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a MODERNIZACAO FRUSTRADA: A POLITICA DE TERRAS NO IMPERIO. ** José Murilo de Carvalho * © exame da politica de terras permite aprofundar a anélise das re- lagées entre o governo imperial e os proprietérios rurais. Tratava-se de uma medida que atingia de maneira profunda os interesses rurais, mas em torno da qual se alinhavam de maneira distinta os varios grupos de proprietarios, e sobre qual se fazia sentir muito menos o peso da Corea. Essas diferencas fariam com que 0 resultado das varias tentativas de alterar, ou simplesmente regular a propriedade da terra, fosse distinto do das tentativas abolicionistas. A politica de terras no Império muito pouco ou nada sairia do nivel legislativo. Ela seria sistematicamente sa- botada e bloqueada ao nivel da implementacao, Seria o primeiro grande ‘exemplo nacional de lei que nfo pegou. ‘Nao € necessétio reconstituir aqui a historia da politica de terras se- guida por Portugal até a Independéncia, pois outros j4 o fizeram (). Basta recordar que ha muito tempo se perdera a finalidade inicial do instituto da sesmaria, que era a cultura efetiva da terra. As exigénclas de medicao e demarcacao judicial também tinham deixado de ser cum- pridas em muitos casos. Como consequéncia, a confirmacio regia das doacées feitas por governadores e capitaes-generais também no era efe- tuada. Mais ainda, o limite das doacdes, que j4 era alto (mAximo de 3 Téguas, ou seja, mais de 12.000 hectares), ha muito fora ultraj . havendo propriedades de mais de 50 léguas, ou seja, em torno de 218.000 hectares. Um relatério de Gongalves Chaves, citado por Ruy Cirne Lima, escrito & época da Independéncia, coneluia que todas as terras aprovel- tAveis estavam tomadas num pais que era quase deserto. Em vista da situacio j cadtica, uma resolucéo de consulta da Mesa do Desembargador do Paco, de 17 de julho de 1822, assinada por José Bonifacio, determinou que se suspendessem “todas as sesmarias futuras até a convocacéo da Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa”. A de- ciséo fol ratificada no ano seguinte, jé apos a Independéncia, numa pro- visao do Desembargo, que também ordenava “mui positiva e terminan- temente” a todas as Juntas dos Governos Provisérios das Provincias que se abstivessem de conceder sesmarias até que a Assembléia Constituinte regulasse a matéria (2). ‘Mas nada foi feito na Constituinte. Em 1835 um projeto sobre ses- marias foi apresentado & Camara, mas nao teve andamento. O primeiro abinete conservador formado apés a Maioridade € que retomaria o pro- jlema, quando, por avisos de 6 de junho e 8 de julho de 1842, 0 me tro do Império, Candido José de Aratijo Viana, solicitou & Secio dos Negécios do Império do Conselho de Estado que elaborasse propostas de legislagao sobre sesmarias colonizacdo estrangeira. O pedido fol 40 encaminhado, para que fosse o relator, a Bernardo Pereira de Vasconce- los que, com José Cesdrio de Miranda Ribeiro, compunha a Secao @). 34 em 8 de agosto ficava pronta a proposta, relatada por Vasconcelos, ¢ era enviada a0 Conselho Pleno, que a debateu em seis sessdes durante os meses de setmbro, outubro e novembro. O parecer da Seco j4 continha os elementos que marcariam a dis- cusséo de todo o projeto. Comecava por vincular os dois problemas e fazer um 86 projeto em vez de dois, como foram solicitado, propondo uma abordagem diversa da até entio seguida. F dizia claramente: “o prin- cipal objeto da Seco é promover a imigracdo de trabalhadores pobres, mocos e robustos”. E isto porque os membros da Secdo receavam que a cessacio do trafico de escravos, ja resolvida em tratados que se de- viam respeitar, reduziria de tal modo os bracos existentes que acabru- nharia a indtstria, isto é a grande agricultura. E como a ocupagio in- discriminada de terras dificultava a obtencao de trabalho livre, o pa- recer propunha que se vendessem as terras e ndo mais fossem doadas nem permitida sta ocupacéo. Deste modo se aumentaria o valor das terras e seria dificultada sua aquisigao, sendo entao de se esperar “que 0 emigrado (sic) pobre alugue o seu trabalho efetivamente por algum tempo, antes de obter os meios de se fazer proprietario” (@), A propria Seco reconhecida que se tratava de doutrina importada, a ser “naturalizada”. Durante a discussdo na Camara ficou clara a ins- piracdo do projeto nas idéias de E.G. Wakefield, particularmente em seu folheto A Letter from Sydney, publicado em 1829. Marx analisaria um pouco mais tarde em O Capital as idéias de Wakefield, conforme expos- tas em trabalho posterior a carta. Tratava-se do problema de como co- lonizar a Australia, onde a terra era barata e abundante e a mio-de-obra era escassa e cara, Todo imigrante tornava-se rapidamente um proprie- tério e produtor, impedindo a acumulacao de capital. Partindo dessas premissas, a colonizacdo sistematica de Wakefield propunha que 0 go- verno encarecesse artificialmente as terras a fim de que o imigrante tivesse que trabalhar por algum tempo antes de poder comprar seu lote, Os recursos da venda de terras seriam usados para importar mais colonos, o que por sua vez contribuiria para baratear o trabalho e enca- recer mais as terras. Era um “self-supporting system”, um sistema que se auto-alimentava (5). © projeto da Segiio tinha 10 artigos e, dentro da lgica das pre- missas estabelecidas, proibia datas de sesmarias e posses; autorizava a venda de terras devolutas somente por dinheiro e & vista; mandava res- peitar as posses feitas depois de 17 de julho de 1823 (a data certa de- veria ser 1822) na parte cultivada e em dois tantos mais havendo ter- reno devoluto no local; proibia estrangeiros que tivessem suas passa- gens financiadas pelo governo ou por particulares de comprar ou afo- Yar terras ou comerciar antes de trés anos apés a chegada; autorizava gastar os recursos provenientes da venda da terra em financiar viagens de trabathadores pobres de qualquer parte do mundo; autorizava ainda naturalizar todos os estrangelros apés 3 anos de residéncia, mesmo sem solicitagdo; finalmente. estabeleeida que os litigios surgidos com a apli- a cacdo da lei seriam julgados pelos juizes municipais, com recurso para 9s presidentes de provincia, e permitia a aplicagdo de penas de prisao de até 3 meses e de multas de até 200 réis. ‘A substancia do projeto foi pouco modificada no Consetho Pleno, exceto pela introducio, proposta por Vasconcelos, de um imposto terri- torial de 1$500 por meio quarto de légua em quadra, seguida da dras- tica dispostedio: “Serio devolvidas para a Coroa as terras de que nao for pago o imposto sobredito por trés anos continuos ou interrompi- dos” (6). © projeto apresentado a Camara dos Deputados em 10 de ju- nho de 1843 pelo ministro da Marinha, Joaquim José Rodrigues Torres, era mais elaborado, continha 29 artigos e apresentava algumas mudan- ¢s. Embora mantendo a regra de vender terras, permitia a doacdo em faixa de 30 léguas da fronteira e para a colonizagao de indigenas; reva- lidava todas as sesmarias caidas em comisso e as posses de mais de ano e dia; no caso das posses, permitia legitimacdo da parte cultivada e mais quatro tantos, desde que o total nao ultrapassasse meia légua em quadro de terra. de cultura ou duas léguas de terra de criagao (respecti- vamente 2.178 ha. e 8.712 ha.); introduzia o direito de chancelaria (ta- xa de revalidacao); reduzia o imposto a 00 réis, isentando quem pos- suisse menos de meio quarto de légua ¢ concedendo ao proprietario me- tade do preco da terra em caso de confisco por nfio pagamento, exigia registro das terras dentro do prazo de seis meses, com o confisco da propriedade de quem nao fizesse a declaracéo dentro de 6 anos; esta- belecia 0 tamanho minimo de % de légua em quadro (1.089 ha.) para ‘os lotes a serem yendidos. No resto, era quase idéntico ao projeto do Conselho de Estado. © projeto foi apresentado como ministerial a uma Camara unani- memente conservadora, eleita apés a derrota das rebelides liberais de Sao Paulo e Minas Gerais, Apesar disso, a discussao foi intensa e ocupou 2 meses de trabalhos legislativos (passou sem debate para a segunda dicussdo em 21 de julho, e foi aprovado em 3.a discussao em 16 de se- tembro). A defesa foi feita principalmente por Rodrigues Torres, que pronunciou em torno de 20 discursos, secundado com entusiasmo por Bernardo de Souza Franco, deputado pelo Para, que se comprazia em referéncias a Wakefield, para a irritacdo de alguns de seus colegas; por Euzébio de Queiroz, Paulino José Soares de Souza — ambos do Rio de Janeiro —; pelo ceatense Manuel José de Albuquerque; e, com algu- mas restrigdes, por varios outros, salientando-se Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, irmao de Bernardo. A oposicfio mais violenta velo de deputados de Pernambuco, especialmente Urbano Sabino e Nunes Ma- chado, e do baiano Manuel A. Galvao. Varios outros se opuseram a pon- tos especificos do projeto sem rejeité-lo globalmente. Ao todo, 28 dos 101 deputados se envolveram na discussao proferindo 114 discursos (7). Seria excessivamente longo resumir os debates em todos os seus as- pectos. Basta apontar os principais pontos de controvérsia e os argu- enton apresentados. As paginas dos Anais vao indicadas entre parén- es, De modo geral, nfo se discordava da necessidade de medidas rela- tivas ao suprimento de mdo-de-obra, embora a énfase nesse problema

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