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Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 71-94, 1994.

AS OCUPAÇÕES CERAMISTAS NO VALE


DO RIO PERUAÇU (MG)

André Prous*
Marcos Eugênio Brito**
Márcio Alonso Lima***

PROUS, A.; BRITO, M. E.; LIMA, M. A. A s ocupações ceramistas no vale do rio Peruaçu
(MG). Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 71-94, 1994.

RESUMO: Este trabalho apresenta o instrumental das populações pré-


históricas recentes que ocuparam os abrigos do Vale do Peruaçu (Alto Médio
São Francisco, MG). A ocupação pré-histórica tardia dos abrigos deixou
registros muito variados: estruturas de habitação, sepultamentos, depósitos
alimentares. Neste trabalho, descrevemos os artefatos de fibra vegetal, madeira,
cera, osso, concha e cerâmica, além da indústria lítica. A análise tecno-
tipológica desta evidencia a existência de pelo menos dois conjuntos de
indústria lítica nos abrigos. Um deles, caracterizado por suportes pequenos,
raspadores côncavos e artefatos atípicos, é associado à cerâmica Una com a
qual co-existe nas camadas superiores dos abrigos escavados. O outro
conjunto, encontrado na superfície dos abrigos, caracterizado por grandes
pré-formas lascadas de sílex para machado, lascas grandes e com tipos
retocados característicos (utilizados para trabalhar a madeira). Atribuímo-los
aos últimos habitantes da região. A indústria lítica dos sítios tupiguarani a
céu aberto não foi ainda estudada.
A presença de pelo menos três culturas sucessivas (Una, Tupiguarani e
outra, ainda sem denominação) no período pré-histórico tardio parece
corresponder às rápidas mudanças da arte rupestre durante os dois últimos
milênios.

UNITERMOS: Arqueologia em Minas Gerais - Tecnologia pré-histórica


- Micro-vestígios de utilização - Horticultores.

Introdução cristalinas, atravessa a seguir o platô formado


pelos calcários da form ação Bam bui, num
O rio Peruaçu é um afluente do médio curso profundo canyon entrecortado por trechos
do rio São Francisco. Nascendo em formações subterrâneos. Ú nico rio atualm ente perene
(embora com profundidade nunca superior a l,8m)
em dezenas de quilômetros na margem esquerda
(*) Universidade Federal de Minas Gerais. Responsável pela
do São Francisco entre Januária e Itacarambi, cedo
análise tecno-tipológica.
(**) Universidade Federal de Minas Gerais. Responsável
tomou-se um eixo privilegiado para a penetração
pelo desenho arqueológico. humana. O alto vale apresenta veredas ocupadas
(***) Universidade Federal de Minas Gerais. Responsável pelos buritis, circundadas pelo cerrado. Na parte
pela análise traceológica. mediana, a mata ciliar serpenteia no fundo do

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canyon, cujas en costas apresentam um a caçadores e aos horticultores iniciais (entre


vegetação de mata seca; no topo, a cobertura 2000AP e 6000AP) costumam ser perturbadas por
vegetal passa da mata calcícola nos calcários à covas escavadas por grupos mais recentes, como
formações de tipo cerrado em transição para a veremos a seguir. Este fato dificulta sobremaneira
caatinga. O curso inferior do rio desenvolve-se a compreensão do processo de transformação;
finalmente na planicie aluvial do São Francisco. inclusive, não permite verificar se a introdução
A UFMG realizou prospecções na região em da cerâm ica e da h o rticu ltu ra foram
1978 e pesquisas sistem áticas desde 1988. concomitantes, postulado geralmente admitido,
Embora a maioria dos trabalhos tenham sido até mas nunca demonstrado, pelos arqueólogos das
agora feitos numa porção intermediária do vale, Américas.
onde os abrigos secos proporcionam uma Assim sendo, limitar-nos-emos a apresentar
preservação excepcional dos restos orgánicos, uma síntese dos conhecimentos adquiridos sobre
alguns reconhecimentos foram feitos a montante, a indústria e não uma reconstituição mais
onde as pesquisas devem se intensificar nos ambiciosa do passado cultural da região, embora
próximos anos para estudar as aldeias a céu já disponham os de farto m aterial sobre a
aberto. alimentação, as estruturas de ocupação do espaço
Um dos objetivos deste projeto de longa e sobre manifestações rituais ou “artísticas”
duração é estudar a passagem de uma economia (Prous, 1991, relatório m anuscrito 2, &.).
de predação a uma economia mista de produção/ Descreveremos, portanto, os artefatos líticos,
predação nos últim os m ilênios. Tentamos vegetais ou ósseos e a cerâmica para permitir uma
particularmente identificar alguns territórios pré- comparação com os achados de outras áreas do
históricos, entender a relação que os grupos Brasil Central. Em conclusão, veremos de que
mantinham com os diferentes ambientes (canyon, maneira estes vestígios inserem-se no panorama
veredas, plato e planicie) e identificar os geral da arqueologia do Brasil Central e nos levam
movimentos de população, os últimos dos quais a discutir algumas idéias vigentes.
provavelmente decorrentes da pressão neobrasi-
leira sobre os grupos indígenas. Para tanto, 1 - A indústria lítica.
contamos com estudos genéticos e de DNA,
realizados em restos de plantas cultivadas por Instrumentos polidos
pesquisadores da ESALQ e em esqueletos
humanos por biólogos do ICB/UFMG. Diversas transformações ocorrem no decur­
Neste artigo, falaremos essencialmente da so do período “horticultor”, sendo uma delas o
ocupação dos abrigos, justamente pela variedade aparecimento de lâminas de machado (ver Prous,
de informações que proporcionou, descrevendo in Relatório 2). Nestas, podemos distinguir dois
os vestígios de indústria encontrados; não grandes conjuntos: o primeiro é formado por pe­
pretendemos apresentar uma visão de conjunto ças polidas e picoteadas, várias delas encontra­
do vale ou modelos de ocupação regionais, que das em escavação. São feitas de granodiorito, ro­
seriam ainda prematuros. Apenas tentaremos cha alógena (trazidas de Riacho da Cruz, distan­
sublinhar, através dos restos da cultura material, te cerca de 40 km do canyon, ou das cabeceiras,
as continuidades e as rupturas visíveis entre os desde um ponto ainda mais distante) mas tam­
caçadores-coletores e os grupos horticultores bém encontramos uma de calcário, rocha que não
mais recentes. Deve ficar bem claro que nossas se presta a um trabalho tão pesado: talvez trate-
informações (como todas aquelas provenientes se de um objeto feito como exercício por um prin­
de pesquisas arqueológicas) são bastante cipiante? O mesmo pode supor-se a respeito de
fragmentárias e enviesadas: não vemos ainda uma peça de calcário, quebrada ao lascar-se um
claramente a relação entre os vestigios encon­ gume bifacial, como se fosse uma pré-forma. As
trad o s nos abrigos do canyon (bastan te lâminas são trapezoidais ou sub-retangulares e
pesquisados) e os que aparecem nas aldeias a medem entre 12 e 16cm, variando seu peso entre
céu aberto localizadas a m ontante (apenas cerca de 600 e m ais de 800 gram as. As
prospectadas). Outrossim, as camadas arqueoló­ trapezoidais, com parte mesio-distal picoteada
gicas dos abrigos que correspondem aos últimos para aumentar a aderência, deviam ser inseridas

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em cabos de tipo “embutido” (Ribeiro, 1988), dos apenas blocos de calcário aproveitados casual­
quais um exemplar conservou-se na Lapa do mente; preparados por picoteamento, ambos os
Boquete; as sub-retangulares, encontradas num artefatos mencionados apresentam uma larga
estojo em sepultamento com cera e tiras de depressão em meia cana.
embira, apresentam uma leve concavidade mesial
que facilitaria um encabamento de tipo “dobra­ A derradeira indústria lítica do Peruaçu
do” (Ribeiro, ibidem). As lâminas lascadas são
de sílex, menores e bem mais leves (entre 9 e O material lascado evidencia modificações
12cm, pesando apenas entre 88 e 270g) o que em relação aos períodos anteriores, sendo também
implica utilização de um cabo com cabeça refor­ possível sentir uma diferença entre os vestígios
çada. Parecendo-se com bifaces, foram feitas a enterrados, datados do início da nossa era
partir de grandes lascas corticais, largas e frequen­ (camadas “0”e “I”, cujo estudo está apenas
temente refletidas, cujo talhe bifacial ainda deixa iniciando-se) e os restos mais superficiais,
perceber restos da face interna e de córtex no que provavelm ente com antiguidade de poucos
foi o talão ou a face externa da lasca. Não foi ini­ séculos, se não proto-históricos (para uma
ciado o estudo traceológico destes instrumentos, descrição mais detalhada destes, ver Prous,
mas parece pouco provável que tenham sido des­ Fogaça, Lima & Brito, no prelo).
tinados à fabricação de canoas, pelo menos no A indústria superficial (a mais recente)
canyon, onde o rio é navegável; em compensa­ m ostra a ex istên cia de procedim entos de
ção, podem ter cortado os postes cujas marcas fabricação comuns, apesar da heterogeneidade
são freqüentes nas escavações. A existência de dos vestígios encontrados nos diversos sítios.
lâminas de machado de sílex, matéria preterida Com efeito, os produtos de descorticagem
para este uso por rochas mais resistentes no resto somente aparecem nos abrigos próximos às fontes
do Brasil, era totalmente inesperada; embora P. de matéria-prima (seixos do leito seco de um
Lund tenha mencionado “machados de sílex” em córrego nas imediações da Lapa dos Desenhos;
sua correspondência, acreditamos que estava er­ ou do Peruaçu, na Lapa dos Bichos). Nos outros
rado na identificação (ver nossos comentários a casos, a retirada do córtex e extração de lascas
respeito deste texto in Hoch; Prous, 1985). Ou- maiores faziam-se nos afloramentos (no ateliê a
trossim, o que significaria o fato que elas não fo­ céu aberto do Judas, por exemplo, cf. Fogaça &
ram polidas? Tratar-se-ia apenas de esboços des­ alii.y, traziam-se ao sítio blocos menores e grandes
tinados ao polimento fora do vale (onde não exis­ lascas espessas e corticais com mais de 10 cm.
te areia abrasiva perto da água)? A ausência de As grandes lascas eram utilizadas como núcleo
estilhamento nos gumes reforça esta hipótese; no (a face interna servindo de plataform a de
entanto, é bem possível que se trate de instrumen­ percussão) ou suporte para artefatos retocados. Os
tos expeditos de substituição às rochas “verdes”, pequenos blocos serviam para extrair, por
num momento em que não se tinha mais acesso percussão dura direta, lascas de até 8 cm de
à fonte das mesmas por parte de grupos refugia­ comprimento, com talão liso e espesso; quando
dos no Peruaçu. A quase totalidade destas lâmi­ não se obtinha mais lascas maiores de 3,5cm,
nas lascadas foram inclusive encontradas em su­ eram abandonados, apresentando-se, neste estágio
perfície dos abrigos, sendo dos vestígios mais final, globulares ou sub-discoidais. Em dois sítios
recentes da região. Tal substituição de lâminas encontramos peças maciças com duas faces
polidas por outras lascadas (às vezes simples las­ principais (uma mais convexa que a outra) das
cas espessas) em períodos recentes, é documen­ quais tinham sido retiradas grandes lascas
tada por um machado coletado entre os Kreen- centrípetas, às vezes escamosas. Lembram nuclei
Akorore e conservado no Museu de Antropolo­ de tipo Levallois, mas não há lascas extraídas por
gia da Universidade de Goiás. esta técnica, nem facetagem do talão neste
As mós trabalhadas, por vezes consideradas período. Ainda existem indícios casuais de
típicas das populações neolitizadas, são raras; lascamento bipolar em três sítios, inclusive no
apenas duas peças de pedra foram encontradas ateliê do Judas (esta técnica é mais bem atestada
(nas Lapas da Hora e de Rezar) mas é claro que no abrigo Zé de Souza e na Gruta dos Caramujos,
podiam ser utilizados almofarizes de madeira, ou não muito distantes do vale), com poucas lascas

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e uma bigoma que apresenta vestígios típicos de posteriormente refrescado, para cortar; o outro,
lascamento de pedra. É claro que não há muitas para raspar). Nas Lapas do Lourenço e da Hora,
vantagens em utilizar a técnica bipolar para o suportes corticais enormes (até 20cm) foram
sílex, a não ser que se trate de aproveitar nodulos retocados lateralm ente, sendo que um deles
muito pequenos, como os de sílex preto brilhante apresenta também uma frente retocada convexa;
que formam veios em alguns estratos do calcário as partes mesiais apresentam abundantes restos
local ou para conseguir-se pequenos elementos a de resina e as laterais, vestígios de fricção em
serem montados em série num cabo. Raros são madeira dura; sendo pouco provável que estas
os b ated o res encontrados: o calcário dos peças pesadas tenham sido encabadas, podemos
afloramentos não fornecia um material adequado supor que tenham sido usados como machados
para lascar o sílex local, bastante resistente; manuais para cortar árvores.
mesmo assim, deve ter sido utilizado, o que Ainda existem lascas retocadas de maneira
explicaria em parte a frequência de acidentes de irregular: as de tamanho médio (entre 5 e 9cm)
lascamento como a reflexão das lascas (25% de são espessas e apresentam córtex, enquanto o
casos nas lascas e 50% nas cicatrizes observadas bulbo foi parcialmente retirado; os retoques são
nos nuclei na Lapa dos Bichos) ou sua fratura praticados a partir da face mais plana (mesmo se
distai. Os batedores observados são seixos de sílex esta for cortical), sendo bastante abruptos;
ou de quartzito e até nuclei reutilizados (tais verifica-se que no início de uso apresentam gume
batedores “sobre arestas” foram encontrados no reto ou levemente convexo e retoque semi abrupto;
Boquete e no Sítio Antonio Cardoso). quando mais utilizadas, o gume toma-se convexo
Os suportes trabalhados são bem mais e o retoque abrupto, com arredondamento da parte
num erosos que nas camadas im ediatamente ativa. Em lascas pequenas, os retoques costumam
subjacentes. Além das “pré-formas” de sílex já ocorrer em várias faixas curtas, separadas por
mencionadas, observamos grandes lascas não fortes denticulações.
corticais mais delgadas, sempre quebradas A análise traceológica inicial das lascas
obliquamente (uma delas teve a parte quebrada “brutas” (não retocadas) de form a regular
retocada), com talhe bifacial pouco profundo. A evidenciou apenas um caso inquestionável de
análise traceológica evidenciou, numa delas, vestígios, numa lasca não retocada que cortou
marcas de uso intensivo em madeira fresca; caso material vegetal fresco. Podemos supor que as
esta peça fosse representativa, este tipo de outras lascas com gume cortante teriam sido
instrumento teria servido como faca de gume aproveitadas para operações que não deixam
reforçado para trabalhar matérias medianamente facilmente marcas nas variedades de sílex do
resistentes. Pemaçu (cortar carne, por exemplo). Quanto às
Mais freqüentes são as lascas com retoque peças retocadas que não apresentaram indícios
unifacial: algumas têm formas “clássicas” como de uso, elas poderiam ter tido seus gumes
uma “lesma” parcialmente destruída pelo fogo refrescados após utilização, ficando os vestígios
(M orro V erm elho) ou plainas, que podem no talão das lascas de retoque (no entanto, o talão
apresentar tanto um retoque cuidadoso com dos poucos retoques encontrados também não
retiradas laminares paralelas (Bichos), quanto um apresentaram marcas de uso); de qualquer forma,
trabalho mais tosco; infelizmente, as peças deste por que abandonar os artefatos logo depois de os
tipo provenientes dos níveis recentes não retocarem? Como sempre, o estudo traz mais
ofereceram micro-vestígios legíveis de utilização. perguntas que respostas.
Os artefatos mais típicos deste período no Uma última categoria tipológica vem a ser
Peruaçu são, no entanto, raspadeiras feitas sobre a dos blocos de calcário utilizados como bigornas
grandes lascas (entre 9 e 13cm), trapezoidais para quebrar vegetais, que vêm sendo estudados
espessas e co rticais, bem m ais largas na por M.T.Moura; muitos deles foram toscamente
extremidade distal que na proximal; o retoque, regularizados por lascamento periférico, medindo
marginal e escamoso, desenvolve-se lateralmente. entre 13 e 25 cm e pelo menos 4 cm de espessura.
Apenas uma destas raspadeiras, a menos típica, Apresentam as mesmas manchas oleosas que já
apresentou dois gumes retocados, com micro- foram descritas em outros lugares (Bryan, 1977;
vestígios de utilização em madeira (um gume, Bryan & Gruhn, 1993; Moura & Prous, 1989).

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Por sua vez, os pigm entos para pintura são assim como o arco (a remontagem permitiu
geralmente fragmentos de couraça bruta, marcados verificar o complexo sistema de inserção da ponta
por estrias de raspagem (Silva e Paredes, in no caniço). Colocados paralelamente e mantidos
Relatório 2). por cordões, caniços eram também utilizados para
As in d ú strias lascadas im ediatam ente fazer esteiras, seja para sentar, seja para servir de
subjacentes estão ainda mal conhecidas e serão base a um dos depósitos que denominamos “si­
comentadas mais adiante, no parágrafo 4. los”. Uma vareta com extremidade esmagada para
separar as fibras (pincel?) apareceu também numa
2 - Indústria de concha, osso e m ateriais dessas estruturas. Caniços e fibras de cipó foram
vegetais. trançados para fab ricar a linda cesta que
encontramos junto de um corpo semi-mumificado.
Poucos artefatos de osso foram recolhidos; no Os mortos eram depositados num leito de folhas
Boquete, um fragmento de espátula em osso de e revestidos de uma espécie de capa de folhas
veado, artefato normalmente característico das compridas, ligadas por um cordão.
camadas mais antigas, pode ter sido trazido para Ainda encontramos contas de colar de
os níveis superficiais durante a escavação dos “si­ sementes, com menos de 5 mm de diâmetro e
los” pelos indígenas horticultores. Alguns restos de postes enterrados (Boquete) ou ainda
fragmentos ósseos com facetas polidas ou estriadas su p erfícies, mas certam ente feitos sem
poderiam ser o refúgio de algum trabalho de instrum entos de m etal (Piolho do U rubu).
fabricação. Contas de colar discoidais (algumas, Barbantes de vários tipos de algodão e cordões
feitas com osso de pássaro) de 3 a 5 mm de feitos de fibras mais resistentes ainda não
diâm etro foram encontradas espalhadas nas identificados foram achados freqüentes nas
escavações. No Malhador, apareceram ainda uma escavações; tiras de embira imobilizavam os
ponta polida e um chifre de veado trabalhado. De braços dos dois mortos enterrados nas camadas
concha de gastrópodo gigante (Megalobulimus) superiores do Boquete. Bolas de cera virgem,
encontramos fragmentos da primeira volta, com ainda com própolis, eram guardados nos estojos,
reentrância lascada que sugere tratar-se de restos provavelmente para reforçar a aderência no
de plainas (Prous, 1986); fragmentos de labro processo de encabamento (há vestígios de cera
retrabalhado em proveniência da camada II do no cabo de machado); uma destas bolas, com a
Boquete poderiam ser indícios da utilização desta forma de uma tampa de garrafa de Champagne,
parte da concha como anzol (utilização conhecida evoca um virote embora possa ser apenas o
entre os Bororo, cf. Albisetti e Venturelli, 1962). resultado da raspagem do material.
Outro fragmento, cheio de pigmento vermelho, A ssinalarem os enfim , a presença de
podia ser um recipiente de tipo godê. A concha numerosas cabaças inteiras nos sepultamentos e
robusta de bivalva de água doce foi também de fragmentos nos diversos depósitos (“silos” e
utilizada, sem retoque, como faca ou raspador, covas para lixo).
como comprova a peça de 7cm de comprimento,
com vestígios de utilização, encontrada num estojo 3 - As cerâmicas.
do sepultamento 4 da Lapa do Boquete. Retângulos
recortados em bivalvas poderiam ser elementos de Aparecem, em contextos diferentes, vestígios
adorno a serem colados, como exemplificam norm alm ente atribuídos a pelo menos duas
colares ou máscaras indígenas atuais. tradições ceramistas distintas. Análises prévias
A casca de ovo de uma ave grande (menor de cerca de 2500 cacos provenientes de 20 sítios
que uma ema, no entanto) foi aproveitada para foram feitas por Junqueira e Malta (1981), Prous
fabricar pingentes ovóides; cinco destes elementos (1991, Relatórios 1 e 2) e Jobim (Relatório 2).
de colar foram encontrados juntos na Lapa da Hora.
Os restos vegetais são abundantes; além do A cerâmica “Una”
já m encionado cabo de m achado de tipo
“em butido”, encontram os várias pontas de A grande maioria da cerâmica coletada nos
madeira; uma flecha farpada tinha sido quebrada abrigos pode ser provisoriamente denominada “de
para acompanhar seu dono na cova funerária, tipo Una”. É formada por cacos não decorados, de

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paredes finas (a espessura varia entre 4 e 22 mm, diâmetro, sugere cacos de vasilhame em preparação,
mas fica geralmente ao redor de 7mm apenas); inclusive com borda; outros, mais maciços,
embora porosa e às vezes heterogênea, a pasta é apresentam depressões em canaleta que lembram
muito dura. torrões de pau-a-pique; teria havido algum edifício
O antiplástico é bastante variável de um sitio construído com esta técnica no fundo da pequena
para outro: argila, carvão vegetal (este, somente gruta, no final do período pré-histórico?
em vasos de paredes mais finas), calcário moído,
areia rolada de rio. A oxidação atinge entre 60 e A cerâmica tupiguarani
100% da espessura. A superfície é marrom,
raramente alaranjada; geralmente, apresenta Uma outra categoria de cerâmica foi notada,
alisamento e urna brunhidura, pelo menos extema. sobretudo em sítios a céu aberto e fora do canyon
Os vasilhames parecem ter sido feitos geralmente (Grotões etc.), mas também em abrigos onde tanto
por modelagem e não com roletes. As formas são pode ser a única representada quanto misturar-se
quase exclusivamente fechadas e globulares; os com a de “tipo Una”; neste caso, no entanto, e ao
lábios são arredondados ou apontados; os fundos, contrário dos cacos finos e escuros, não aparece
curvos. Excepcionalmente, a borda pode ser enterrada, a não ser superficialmente ou em
levemente ondulada, ou acompanhada por uma depressões remexidas a partir da superfície: trata-
incisão fina mas nunca é reforçada ou decorada. se da cerâmica dita Tupiguarani. A quase totalidade
A abertura da boca varia de 5 a 13 cm para os dos cacos são bem espessos (geralmente mais de
vasos globulares, entre 13 e 30 cm para os raros 17 e até 26 mm); apresentam-se pouco oxidados
recipientes abertos (em bora não ultrapasse (em geral, em menos de 20% da espessura); o
geralmente 18 cm). Quando a boca não é constrita, antiplástico costuma ser menos abundante e mais
as paredes costumam ser sub-verticais ou apenas bem repartido que nos tipos Una, dominando a areia;
levemente inclinadas. No Boquete, encontrou-se em alguns locais, nota-se, no entanto, a presença de
um caco espesso regularizado e com furo central; alguns elementos grandes de hematita, calcário e
provavelmente trate-se de uma rodela de fuso feita feldspato. A não ser o fundo modelado, os potes
a se “recuperar” um fragmento de vasilhame foram construídos por roletes.
quebrado (é in teressan te notar que as Duas categorias de recipientes foram encontra­
características deste caco são de tipo tupiguarani). das nos abrigos: a) pequenos vasos abertos com até
N este mesmo abrigo, foi verificado que a 35 ou 40 cm de diâmetro, bordas extrovertidas re­
quantidade de cerâmica era maior no fundo do forçadas extema e internamente, espalhados nas
abrigo (onde os vasos deviam ser guardados áreas de ocupação. Alguns cacos apresentam vestí­
contra a parede) e mais perto da entrada (onde os gios de traços vermelhos finos sobre engobo bran­
fragmentos são menores, a não ser nos três co; b) vasos de formato oval em planta, fortemente
depósitos de lixo escavados), diminuindo na zona carenados e com a parte superior decorada por li­
intermediária. Aparece também nos sepultamen- nhas de ungulações (as unhadas têm cerca de 12
tos, juntamente com as cabaças. mm de comprimento) inclusive na borda, reforçada
Em raros sítios (Malhador, Ticão, Lourenço e externamente. O diâmetro maior gira ao redor de 30
Caboclo) aparecem alguns cacos muito leves, por cm e o menor, de 20 cm. Estes potes foram encon­
apresentarem uma estrutura extremamente porosa: trados em nicho (Lapa do índio) ou em abrigos sem
numerosos buracos de vários milímetros de diâ­ outra marca aparente de ocupação (Abelinhas/Jataí),
metro foram deixados pela queima de materiais sugerindo uma utilização ritual. Nos sítios a céu
com bustíveis (vegetais? tratar-se-ia de uma aberto predominam formas bem maiores e fecha­
variedade de cariapél), propiciando uma oxidação das de tipo igaçaba. Estas umas têm uma boca de
completa e uma cor alaranjada. Não sabemos se 30 a 40 cm de diâmetro e 40 a 80 cm de diâmetro de
devem ser ou não atribuídos aos mesmos artesãos bojo. O ponto de inflexão é alto, podendo ser mar­
que os vestígios descritos acima. cado por uma carena nítida. As bordas não são re­
Na Lapa da Hora encontramos, numa das forçadas e os lábios são planos ou arredondados.
camadas superiores da sondagem III, blocos de A maioria apresenta uma superfície sem
argila endurecida, porém não queimada. A forma decoração, seja alisada, seja exageradamente irregu­
de vários destes fragmentos, com até 6cm de lar (sugerindo até um tratamento voluntário no sítio

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Grotinha); raramente, cacos apresentam restos de silvestres, cerâmica e artefatos vegetais, fogueiras
banho vermelho (trata-se, então, de vaso menor, construídas, fossas de dejetos, sepultamentos etc.)
com paredes um pouco mais finas) ou traços e os das ocupações anteriores que apresentam ves­
pintados pretos sobre engobo branco. Moradores da tígios de ocupação bem menos intensa, diversificada
região presentearam-nos com urna esfera com furo ou preservada. Mas houve, sem dúvida, importan­
central, provavelmente um peso de fuso, que tes modificações culturais no decorrer dos dois últi­
atribuimos tentativamente aos tupiguaranis. mos milênios. Outrossim, a própria evolução acele­
Apesar da eventual co-existéncia dos dois rada dos grafismos rupestres indica uma “acelera­
tipos de cerâmica na superfície de alguns abrigos, ção” das transformações: enquanto a Tradição “São
acreditamos que tenham sido deixados por culturas Francisco”, com suas representações de armas e fi­
distintas, pois não há vestigios “tupiguarani” nos guras geométricas, parece ter permanecido estável
longos trechos mais fechados do canyon, nem nos durante muito tempo ao longo do período “pré-
níveis estratigráficos mais profundos escavados. cerâmico”; nos seus estilos finais aparecem algu­
E possível que os raros vasos encontrados em mas representações de raízes e tubérculos talvez cul­
abrigos sejam resultados de trocas de objetos ou tivados e até uma possível espiga de milho (facies
de aquisição de esposas/oleiras e não de urna Rezar), tipiti e cerâmica (facies Caboclo). Logo de­
ocupação verdadeira por parte dos tupiguarani, que pois, a temática rupestre passa por rápidas e suces­
parecem ter preferido as veredas a montante, e a sivas mudanças: ao “reinado” das figuras geomé­
planície a jusante. De fato, a maioria da cerámica tricas sucede o das figurações zoomorfas e vegetais
tupiguarani encontrada é formada por potes inteiros (milho, coqueiros nas unidades estilísticas “Peruaçu
ou pouco fragmentados, que encontramos como - Urubu” e “Desenhos”; para as representações
que escondidos em nichos e grutas e não em locais “alimentares”, ver Prous, 1989); finalmente, impõe-
de habitação ou intensa ocupação. O utra se o domínio das figuras humanas miniaturas (Tra­
possibilidade seria que uma única população teria dição “Nordeste”), sem contar manifestações me­
ocupado alternada e sazonalmente os diversos nores mais tardias e ainda mal definidas. É tentador
ambientes, deixando em cada um deles categorías estabelecer um paralelo entre estas transformações
cerámicas distintas. As diferenças notadas na pasta e as já m encionadas na indústria lítica dos
e nos processos de fabricação resultariam então de horticultores, mesmo sem levar em conta a existên­
exigências diferentes para a qualidade dos vasos cia de duas tradições ceramistas na região (já que
fabricados e não de preferências culturais. A futura não há certeza de que os Tupiguarani teriam efeti­
análise do material dos sítios lito-cerámicos das vamente ocupado os abrigos). E, realmente, os ves­
veredas, localizados por I. Malta e P. Junqueira e tígios líticos coletados nos diversos sítios, respecti­
que deverão ser escavados em breve, trará vamente, em superfície, nos níveis da camada su­
certamente subsidios valiosos para escolher entre perior (dita “0”, frequentemente perturbada pelo
estas duas interpretações. gado e as atividades antrópicas recentes) e nos ní­
A datação mais antiga de que dispomos para veis da camada “I” (intacta, com datações atual­
camadas em que foram encontrados cacos de tipo mente entre 1200 e 1600 AP na Lapa do Boquete,
Una é de 2 2 4 0 + 7 0 AP (Lapa do índio). No nosso principal sítio de referência) mostram dife­
Malhador, um caco foi encontrado junto com um renças notáveis. O material de superfície inclui so­
carvão datado em 5000 AP retirado não de urna bretudo as peças grandes e retocadas descritas no
fogueira intacta, mas de urna zona possivelmente início deste texto; em compensação, o lítico enter­
perturbada pelo sedimento proveniente de urna rado comporta essencialmente lascas não retocadas
cova de sepultamento; desta forma, não se deve pequenas (dois terços das mesmas têm menos de
confiar numa “associação” de caráter duvidoso. 3cm, quase nenhuma, mais de 7) e sem córtex.
Os artefatos retocados são raríssimos e geralmente
atípicos (como o "furador" da figura 6) ou frag­
4 - As culturas tardias no vale do rio Peruaçu.
mentados; destacam-se espessos raspadores côn­
cavos abruptos, cujas lasquinhas de retoque típi­
É fácil distinguir entre os achados arqueológi­ cas são encontradas com muito maior frequência
cos das camadas superiores dos abrigos (caracteri­ que o próprio instrumento. É mesmo possível no­
zadas por balaios cheios de vegetais cultivados e tar algumas diferenças entre o material da camada

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“I” e o do “0” superior e médio. Outrossim, apare­ entanto, estas mesmas limitações existiam em
ceram fragmentos de uma raspadeira delgada uti­ cam adas mais antigas, onde conseguim os
lizada como faca e de um instrumento de gume resultados melhores; destarte, acreditamos não
retocado semi-abrupto usado para raspar madeira. termos escavado ainda os principais locais de
Nem o gume dos raspadores nem os talões das (ra­ trabalho artesanal.
ras) possíveis lascas de retoque dos mesmos apre­ As ocupações Una deixaram vestígios muito
sentaram indícios de terem trabalhado e apenas variados (estruturas de armazenamento, cestaria,
uma das lascas brutas examinada apresentou um sepultamentos etc.) que correspondem a uma
arredondamento, aspecto insuficiente para carac­ ocupação longa e intensa da região. Tentamos
terizar o seu uso. Parece, portanto, que estes ins­ atualmente verificar se teria havido uma evolução
trumentos teriam sido fabricados, mas não utiliza­ do instrumental no interior desta “Tradição”, como
dos nem refrescados nos locais escavados. Não acreditamos ter existido na arte rupestre (Unidades
podemos, no entanto, definir ainda “fases” em fun­ Desenhos e P. do Urubu). O segundo conjunto
ção destas modificações baseando-nos apenas na corresponde a vestígios superficiais marcados por
Lapa do Boquete: com efeito, é possível que as instrumentos retocados sobre lascões, com tipos
peças m enores encontradas nos níveis bem característicos; estes grandes suportes
estratigráficos superiores da camada “0” perten­ lembram a “fase Jataf ’ dos pesquisadores goianos,
çam ao mesmo nível cronológico que as grandes mas dela diferem pela existência (e a frequência)
lascas superficiais, das quais teriam sido separa­ de retoques. De qualquer forma, a última ocupação,
das pelo pisoteio do gado. Quanto às variações que deixou seus vestígios na superfície das Lapas,
discretas notadas entre o “0” e o “1”, precisam ser parece ter sido curta e rompe totalmente com toda
confirmadas pela análise (em andamento) do ma­ a tradição de trabalho da pedra dos milênios
terial de vários outros sítios como as Lapas do anteriores. Acreditamos que reflita uma população
Malhador (tese de M. Schlobach) e dos Bichos (M. intrusiva, que talvez estivesse fugindo da
Alonso) que deverá mostrar se este fenômeno é aproximação dos neobrasileiros. A ela atribuímos
geral no vale. tentativamente as pinturas de tipo “Nordeste”, a
última das principais Tradições rupestres que
apareceram no Vale. Talvez estes derradeiros
Conclusão.
indígenas, desterrados no Peruaçu, tivessem uma
economia adaptada a uma situação de grande
O estudo do material coletado na superfície mobilidade (menos dependente da horticultura?),
de numerosos sítios e dos vestígios recuperados e portanto, necessidade de instrumentos bastante
nas cam adas superiores de alguns abrigos diferentes dos que caracterizavam seus prede-
evidencia rápidas mudanças nas tecnologias ao cessores imediatos enquanto lembram até certo
longo dos dois últimos milênios. Acreditamos que ponto os dos primeiros colonos do Vale, cerca de
seja possível distinguir nos abrigos pelo menos dois 12.000 anos atrás. Trata-se de uma simples
(mais provavelmente, três) conjuntos. O primeiro conjectura, pois não podemos ainda correlacionar
e mais antigo corresponde ao que se costuma os instrumentos do holoceno final com a economia:
chamar Tradição ceramista “Una” (mas cujo com efeito, a análise traceológica das camadas “0”
vínculo com a fase litorânea epônima fica por e “I” dos abrigos escavados ainda mal começou; a
demonstrar), caracterizada no Peruaçu por uma colheita do milho não necessita instrumentos líticos
indústria lítica de lascas pequenas e que privilegiou e não deixará, portanto, traços nos gumes; sua
suportes menores para elaboração de pequenos preparação deixou poucos vestígios (trituradores
artefatos retocados, aparentem ente pouco ou mós); no caso da mandioca, representada desde
padronizados. É de se lamentar que poucos o período final da Tradição São Francisco
instrumentos apresentem vestígios claros de juntam ente com tipiti, ela foi ralada pelos
utilização; isto deve-se em parte à quantidade de portadores da Tradição Una, como testemunham
material queimado (o brilho consecutivo à ação vestígios marcados com riscos paralelos encon­
térmica mascara os micropolidos) e ao grão grosso trados na Lapa do Boquete; no entanto, não sabe­
das variedades de sílex mais típicas do vale, que mos ainda com que instrumentos. Desta forma, não
dificulta o desenvolvimento do micropolido; no podemos saber se foram modificações de cunho

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econômico ou uma ruptura na tradição industrial mantenham algumas pautas, que incluem inclu­
que poderiam explicar tantas m udanças no sive cerimônias em abrigos pintados.
instrumental lítico; uma tese de Doutoramento vai Enquanto não apresentamos uma reconstitui­
ser dedicada a tentar resolver esta dúvida. ção mais completa do passado recente no Peruaçu
Ainda falta determinar qual é a relação entre (a qual ultrapassaria os limites do espaço disponí­
os últimos moradores dos abrigos e os portadores vel para este artigo), esperamos que esta apresen­
da tradição tupiguarani, cujos vestígios aparecem tação dos vestígios da cultura material estimule a
casualmente em algumas Lapas. A partir dos sítios pesquisa e facilite a comparação com os materiais
abertos recém -localizados nas cabeceiras do já coletados por nossos colegas, particularmente
Peruaçu, esperamos ter a possibilidade de melhor nos estados de Goiás e Bahia. Em todo caso, nos­
definir esta ocupação e, particularmente, sua sas observações sugerem que os vestígios tardios
indústria lítica que, segundo comunicação pessoal não tupiguarani, geralmente atribuídos a uma úni­
de I. Malta, seria bastante desenvolvida. Desta ca cultura (“Una”, fase Palma de Simonsen & alii,
forma, poderemos contribuir para uma melhor 1981; fase Jatai, de Schmitz & alii, 1976, 1981;
definição da “Fase Belvedere”, nome dado à fase Unaí, de Dias & alii, 1975; período cerâmico
ocupação tupiguarani no Alto Médio São Fran­ de Bryan & Gruhn, 1993) poderiam, pelo menos
cisco, pelos pesquisadores do LAB. em certas regiões, ter sido deixados por várias po­
Outrossim, uma comparação sistem ática pulações, as quais certamente mantiveram conta­
entre as cerâmicas “Una” e Tupiguarani pretende tos com os tupiguarani.
mostrar até que ponto suas pastas apresentam
características capazes de diferenciar os vasilha­ Agradecimentos
mes menores de cada uma destas tradições.
Pretendemos ainda retomara pesquisa iniciada Agradecemos Maria Tereza Moura pela
nos anos 70 (Abreu, 1978) entre os remanescentes revisão do texto. Para a pesquisa no vale do
Xacriabá que ocupam há algumas gerações uma Peruaçu, recebemos sucessivamente verbas da
reserva vizinha, para tentar resgatar algumas tra­ FUNDEP/UFMG, da FINEP, da FAPEMIG, do
dições sobre seu passado na região. Estes índios CNPq e da Mission Archéologique Franco-
estão, infelizmente, muito aculturados, embora Brésilienne de Minas Gerais.

F IG U R A 1 • MAPA DE LO CA LIZ A Ç Ã O DO RIO PERUAÇU

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FIG U R A 2 • LÁMINAS DE MACHADOS POLIDAS E PRÉ-FORMAS

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F IG U R A 4 • ARTEFATOS SOBRE SUPORTES MAIORES

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FIGURA 5 • ARTEFATOS SOBRE SUPORTES ESPESSOS

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FIGURA 6 RETOQUES, FRAGMENTOS DE GUMES E LASCAS UTILIZADAS

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FIGURA 7 • PEÇAS DIVERSAS

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FIGURA 8 • ARTEFATOS EM CASCA DE OVO, C E R A , OSSO E CONCHA

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FIG URA 9 . ARTEFATOS EM VEGETAL

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FIGURA IO • ARTEFATOS EM VEGETAL

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F IG U R A 11 • CERÁMICA UNA

LAPA DO BOQUETE

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FIG URA 12 • CERAMICA TUPIGUARANI

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Foto 1 - Gume não retocado, Lapa do Boquete. Uso confirmado em madeira verde,
movimento longitudinal (faca), ver fig. 6, embaixo, à esquerda.

Foto 2 - Utilização confirmada em madeira (peça na 2245/J11/1; Lapa do Boquete,


1 médio). Gume com micropolido e estrias aditivas; uso perpendicular (raspa-
gem) na face externa.

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Foto 3 - Utilização confirmada em madeira seca. Uso longitudinal. Gume com


micropolido nas partes mais altas-face interna. Peça na 288-2, Lapa do Boquete

Foto 4 - Gume com micro-polido, sem determinação possível da direção da uti­


lização. Peça 3911 (Lapa do Boquete, HI, 5).

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PROUS, A.; BRITO, M. E.; ALONSO LIMA, M. Ceramists settlements in the Peruaçu river
valley (MG). Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 71-94, 1994.

ABSTRACT: This paper describes the artifacts from recent prehistoric


populations that lived in Peruaçu Valley (Central Brazil). Archaeological levels
from the two latest millenia have provided households, graves and vegetal
depositories. Bone, ceramic, lithic and vegetal artifacts have been found.
One lithic industry, associated with “Una” ceramics, shows little and
atypical plain flakes and some notched scrapers. The latest lithic industry in
the shelters is much more characterized, with big unifacially retouched flakes
and some bifacial large instruments (micro use-wear shows both have been
used to work wood). Tupiguarani sites have been found only in the upper part
of the valley, but some of theirs ceramic wares may appear in few shelters. As
three traditions can be seen from the artifact analysis, three late rock art
traditions exist in this region and would tentatively be assigned to the same
populations that inhabited Peruaçu valley during the “ceramic period” until
neobrazilian occupation in XVIIth Century.

UNITERMS: Archaeology in Minas Gerais State, prehistoric technology


- Micro use-wear - Horticulturalists.

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