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68 Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 22, maio-ago.

2010

Entre fé e razão:
o encontro Habermas-Ratzinger

Por Eneida Jacobsen


Mestranda em Teologia (EST)
Bolsista CNPq

Resenha de:
SCHÜLLER, Florian (Org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. São Paulo:
Idéias & Letras, 2007. 103 p.

Após os atentados terroristas do 11 de o Estado liberal é resultado de uma interação


setembro, a religião tornou-se um importante tema inclusiva e discursiva de seus cidadãos, de maneira
de discussão em diversas áreas do conhecimento. O que seus princípios constitucionais podem ser
debate milenar acerca da correta relação entre fé e aceitos racionalmente sem a mediação de
razão reassume uma atualidade que há algum fundamentos pré-políticos.
tempo seria impensável. É nesse contexto que o Embora o Estado constitucional liberal não
encontro entre dois antípodas do mundo necessite de tradições religiosas e metafísicas para
acadêmico e religioso é de uma relevância inegável. se legitimar, permanece em aberto a pergunta
De um lado, Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo acerca do que motiva a participação de seus
mundialmente conhecido por sua análise a respeito cidadãos. Sob o título Como se reproduz a solidariedade
das mudanças estruturais da esfera pública e por humana, Habermas explica que, enquanto
sua teoria da ação comunicativa; de outro, Joseph colegisladores democráticos e não meros
Ratzinger, então cardeal e atualmente Papa da destinatários do direito, espera-se que as pessoas
Igreja Católica Apostólica Romana: ambos se exerçam ativamente seus direitos de comunicação e
encontraram no dia 19 de janeiro de 2004 na participação, tencionando não apenas seus próprios
Academia Católica da Baviera, em Munique. As interesses, mas também o bem comum. Para o
exposições foram publicadas sob o título Dialética autor, embora a motivação para tal envolvimento
da secularização: sobre razão e religião, tendo como não possa ser obtida legalmente por coação, o
organizador o então diretor da Academia Católica Estado liberal é capaz de produzir seus próprios
da Baviera, Florian Schüller. pressupostos motivacionais, como mostra o
O primeiro capítulo, de Jürgen Habermas, exemplo em diversos países de uma “política da
apresenta como título a pergunta: Fundamentos pré- memória” autocrítica, capaz de formar e renovar
políticos do Estado de direito democrático? O capítulo vínculos patriótico-constitucionais no próprio meio
encontra-se dividido em cinco partes. Na primeira político.
parte, Sobre a fundamentação do Estado constitucional Na terceira parte, intitulada Quando se rompe o
secular a partir das fontes da razão prática, Habermas vínculo social, Habermas considera o fato de que,
sustenta que a concepção procedimentalista de embora o modelo liberal de política não apresente
política – que ele defende na forma do deficiências internas, quer do ponto de vista
republicanismo de Kant – dispensa cognitivo, quer do ponto de vista motivacional,
fundamentações de ordem moral ou religiosa. O pode haver causas externas capazes de esgotar a
autor argumenta que, ao se autolegitimar por meio solidariedade da qual o Estado democrático
de processos jurídicos gestados democraticamente, depende. Dentre os fatores que têm contribuído

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para um esgotamento da solidariedade cidadã, o por isso, invioláveis e inquestionáveis. Uma vez que
autor cita o avanço do mercado rumo a esferas nem todas as culturas aceitam hoje essa ideia,
privadas da vida, as quais passam a se preocupar Ratzinger deixa em aberto a questão para retomá-la
apenas com seu próprio sucesso e a perda de adiante em uma perspectiva intercultural.
influência política por meio da formação de uma
Na segunda parte, intitulada Novas formas de
vontade democrática. É possível que essa
poder e novas formas a respeito de sua contenção, Ratzinger
modernidade ambivalente encontre sua estabilidade
tematiza o fenômeno do poder. Instauraram-se no
nas forças seculares de uma razão comunicativa,
último meio século novas formas de poder como a
mas Habermas prefere deixar essa pergunta como
bomba atômica e a manipulação genética do ser
uma questão empírica em aberto.
humano que nos conduzem à dúvida a respeito da
Em Secularização como processo de aprendizagem confiabilidade da razão. Assim como a religião
duplo e complementar, Habermas lembra que, assim pode engendrar o terrorismo e o terror, a razão
como houve uma permeação mútua entre o também pode se colocar a serviço da destruição.
cristianismo e a metafísica grega, tem começado a Por isso, pergunta o autor, não seria o caso de
prevalecer, para além de um justo reconhecimento razão e religião limitarem-se mutuamente,
da funcionalidade social oferecida pelas religiões no mostrando-se seus respectivos limites assim como
que se refere a uma consciência normativa e à suas possibilidades de contribuição positiva?
solidariedade entre os cidadãos, a ideia de um
Pressupostos do direito: direito – natureza – razão é o
mútuo aprendizado entre mentalidades religiosas e
título da terceira parte. Ratzinger apresenta a época
seculares. Essa questão é aprofundada na última
“iluminista” da Grécia antiga e a dupla ruptura
parte do capítulo, Como deveriam relacionar-se cidadãos
ocorrida da consciência europeia no início da Idade
religiosos e seculares, em que o autor afirma que uma
Moderna – o descobrimento da América e a divisão
cultura política liberal, por seu caráter universalista,
do cristianismo em diversas comunidades. Em
não pode ignorar interesses da comunidade
ambas as situações históricas, viu-se a necessidade
religiosa. Em suas palavras, “a neutralidade
de apelar para um direito comum anterior ao
ideológica do poder do Estado que garante as
dogma, um direito baseado na natureza humana e
mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é
em suas capacidades racionais. Ratzinger afirma que
incompatível com a generalização política de uma
a Igreja Católica até hoje tem feito uso da razão
visão do mundo secularizada” (p. 57).
natural para dialogar com a sociedade secular e
Joseph Ratzinger, em seu capítulo O que mantém outras comunidades religiosas. Todavia, com a geral
o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um aceitação da teoria da evolução, a natureza passou a
estado liberal, retoma várias das questões tematizadas não ser mais vista como racional, levando a que a
por Habermas. Na primeira parte, denominada ideia de um direito natural perdesse sua força. Um
Poder e direito, Ratzinger afirma caber à política último elemento do direito natural que foi capaz de
submeter o poder ao direito, de modo a garantir a permanecer até os nossos dias é a noção de direitos
ordem e a liberdade entre as pessoas. Para que humanos – tema que, para o autor, deveria hoje ser
possa ser um veículo de justiça, é frequentemente vislumbrado a partir de um diálogo intercultural.
argumentado que o direito deve ser instituído por
Sob Interculturalidade e suas consequências,
meio da formação da vontade democrática. Como é
Ratzinger defende uma forma de interculturalidade
difícil alcançar unanimidade entre as pessoas,
não restrita ao âmbito cristão ou à tradição
prossegue o autor, é inevitável que se possibilite
racionalista ocidental. Grandes espaços culturais
decisões por maioria. O problema para o autor está
como o islâmico e o indiano conseguem assimilar
em a maioria poder ser injustiça, oprimindo grupos
de forma seletiva elementos do cristianismo e da
minoritários de acordo com sua raça ou religião. A
racionalidade ocidental, enquanto culturas tribais
fim de contornar essa situação, a Idade Moderna
africanas e latino-americanas representam em
encarregou-se de defender a existência de direitos
grande parte um questionamento à pretensa
que decorrem da essência do ser humano, sendo,
universalidade tanto da racionalidade ocidental

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quanto da revelação cristã. Isso mostra que ambas Apesar de abordagens bastante distintas, tanto
as expressões do mundo ocidental não são Habermas quanto Ratzinger concordam em que
compreensíveis ou operacionais para toda a haja um mútuo aprendizado entre a fé e a razão.
humanidade. Para Ratzinger, ao menos no atual Enquanto Habermas aponta para a solidez de um
momento, não existe uma base racional ou religiosa Estado liberal baseado na neutralidade e na
capaz de sustentar um ethos mundial. racionalidade, Ratzinger chama a atenção para os
Na última parte do capítulo, identificam-se os perigos da razão e para a necessidade de um
Resultados da fala de Ratzinger. Quanto às diálogo intercultural. Habermas não ignora, todavia,
consequências práticas, o autor afirma concordar o valor de potenciais contribuições oriundas da
com Habermas no que diz respeito à importância religião; assim como Ratzinger tampouco rejeita a
de um mútuo aprendizado e de uma mútua importância de uma reflexão racional acerca da fé.
limitação entre a sociedade secular e a religião. Ele Em um Estado liberal baseado na
finaliza com duas teses: 1. Há patologias da religião, interdiscursividade democrática, uma mútua
assim como há patologias da razão. Disso advém a fecundação entre fé e razão, como defendem os
importância de uma correlacionalidade entre fé e autores, torna-se uma possibilidade concreta e uma
razão. “Ambas são chamadas a se purificarem e forma legítima de exercício da democracia.
curarem mutuamente, e é necessário que
reconheçam o fato de que uma precisa da outra” (p.
89). 2. Tal diálogo não deveria excluir outras
expressões culturais. Para o autor, é importante que [Recebido em: julho 2010 e
a fé cristã e a racionalidade ocidental disponham-se aceito em: agosto 2010]
à escuta e à correlacionalidade com outras culturas
rumo a uma “correlação polifônica” por meio da
qual possam ser vislumbrados aquelas normas e
valores que de alguma maneira são almejadas por
todos.

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