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Ano

 3,  n°  4  |  2013,  vol.2      


[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]   ISSN  [2236-­‐4846]  
 

O que fazer? Pais e filhos modernidade e revolução.


Ana Carolina Huguenin ∗

A Rússia naquele tempo era um grande sonho: as massas


dormiam – figurativamente; os intelectuais passavam a noite
sem dormir – literalmente – sentados e conversando sobre as
coisas ou apenas meditando até às cinco da manhã.
Vladimir Nabokov.

1- Pais e filhos – romantismo e “niilismo”

A década de 1860 representou um período de acontecimentos decisivos na


história da Rússia contemporânea. A humilhante derrota na guerra da Criméia (1853-
1856), marcou o fim do reinado obscurantista de Nicolau I e abriu espaço para
reformas modernizantes, implementadas a partir do Estado, sob Alexandre II: o fim
da servidão e a implementação dos zemstvos, instituições locais de auto-governo,
foram levadas a cabo naquela década. A primeira organização revolucionária desde os
dezembristas, a primeira Zemliá i Volia (Terra e Liberdade) surgiu no mesmo ano da
libertação dos servos, em 1861. Uma crescente radicalização política teve início no
período, culminando, em 1866, com um atentado à vida do Tsar. Os jovens radicais
daqueles anos entraram para história sob a denominação, que alguns assumiram, mas
que a grande maioria rejeitou, de “niilistas”.
A expressão “niilista” passou a ser empregada como referência à intelligentsia
radical russa da década de 1860 por influência do romance Pais e Filhos (1862), de
Ivan Turguêniev. A palavra é mencionada pela primeira vez no quinto capítulo da
obra, quando o jovem estudante Arkádi, vindo de São Petersburgo passar férias na
propriedade da família, expõe ao pai e ao tio as convicções de seu convidado
Bazárov, de quem é amigo e discípulo. O tio, Pável Petróvitch Kirsánov, um


Professora Adjunta de História Contemporânea da Faculdade de Formação de Professores (FFP) da
 

  1  
antiquado aristocrata envelhecido, pergunta ao sobrinho: “O que Bazárov é?”, e
Arkádi responde: “É um niilista”. “Niilista”, conclui Nikolai Petróvitch, o pai, “vem
do latim nihil, nada, até onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa
que... que não admite nada?”. “Digamos: que não respeita nada”, afirma o velho tio
Pável com desdém.
– “Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico –
observou Arkádi. [...] O niilista é uma pessoa que não se curva
diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio
sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja
cercado de respeito.”

Ao que Pável retruca:


– “Mas, pelo que vejo, isso nada tem a ver conosco [com ele e
Nikolai, os “pais” ligados à geração anterior]. Somos gente do
tempo antigo, acreditamos que, sem princípios, sem princípios
aceitos, como você diz, com base na fé, não se pode dar nem um
passo, nem mesmo respirar. Vous avez changé tout cela. [...] Antes
foram os hegelianos e agora os niilistas. Vejamos como os senhores
vão viver no vácuo, no espaço sem ar.”
(TURGUÊNIEV, 2004, pp. 46-47)

Bazárov, o “niilista” em questão, é um jovem médico de origem humilde,


disposto a negar enfaticamente os “princípios sem provas” - não baseados em leis
científicas, mas, antes, amparados pela tradição ou “cercados de respeito”. Voltada
para os estudos de Química e Fisiologia, a personagem dedica grande parte do tempo
a dissecar pequenos animais e a coletar “amostras” de espécies vegetais, valorizando a
utilidade prática em detrimento de ideais abstratos:
“Aristocratismo, liberalismo, princípios, progresso – dizia
Bazárov [...] – Vejam só! Quantas palavras estrangeiras... e inúteis!
O homem russo não necessita delas.
[...]
- Nossa ação se fundamenta naquilo que julgamos útil. Nos
tempos atuais, o mais útil é a negação, nós [niilistas] negamos.”
(TURGUÊNIEV, 2004, pp. 84-85).

O jovem considera o comportamento de Nikolai Petróvitch, que recita Púchkin


e toca violoncelo, superado e bastante ridículo. Em Pável Petróvitch, encontra um
antagonista tremendamente antipatizado, com quem discute e termina, depois de
muitas desavenças, por bater-se em duelo. Quando o amigo Arkádi explica que seu
tio, apesar de antiquado, é um homem bom, a quem uma paixão infeliz arruinara, o
“niilista” não se comove:
– “Não, meu caro, tudo isso é leviandade, frivolidade! E o
que são essas misteriosas relações entre homem e mulher? Nós,

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fisiologistas, sabemos que relações são essas. Estude a fundo a
anatomia do olho: de onde em esse olhar enigmático [da mulher por
quem Pável se apaixonara anos atrás], como você o chamou? Tudo
isso é puro romantismo, fantasia, podridão, belas artes. É muito
melhor irmos examinar o besouro.” (TURGUÊNIEV, 2004, p.
62)

E os dois amigos, completa Turguêniev, encaminham-se para o quarto de


Bazárov, de onde “se fazia sentir um certo aroma médico-cirúrgico misturado a um
cheiro de tabaco barato.” (TURGUÊNIEV, 2004, p. 62)
Representação literária dos raznotchíntsi, intelectuais provindos das camadas
sociais mais baixas, tais como, no contexto histórico, os críticos literários Vissarion
Bielinski, Nikolai Tchernichévski e Nikolai Dobroliúbov, a personagem Bazárov é o
“cheiro de tabaco barato” que irrita a sensibilidade aristocrática dos irmãos Kirsánov
(os “velhos românticos”, como o médico a eles se refere), e envolve o jovem herdeiro
Arkádi. Seu comportamento ríspido e insolente não demonstra deferência e não faz
concessões, de caráter moral ou social, à aristocracia ou aos “princípios aceitos”,
consagrados pela tradição e autorizados pela fé. Bazárov assume a tarefa de negá-los
altiva e radicalmente, apostando na ideia de que sua destruição, longe de criar um
“espaço sem ar” poderia fazer nascer uma nova Rússia, reformulada, modernizada,
democratizada do ponto de vista social, e, finalmente, mais “respirável”.
Após o jovem referir-se a um senhor de terras vizinhas à propriedade dos
Kirsánov como “um canalha aristocratóide”, Pável, que se comportava e se vestia à
maneira de um gentleman, um dandi inglês, parte em defesa dos valores
aristocráticos:
- “Atrevo-me a dizer que todos me conhecem como um
homem liberal e amante do progresso; mas exatamente por isso
respeito os aristocratas... autênticos. [...]. Lembre-se, prezado
senhor, dos aristocratas ingleses. Eles não abriram mão nem de uma
migalha de seus interesses e por isso mesmo respeitaram os direitos
dos demais. [...]. A aristocracia deu liberdade à Inglaterra e a
sustenta”
- “Já ouvimos essa ladainha muitas vezes – retrucou Bazárov –, mas
o que o senhor quer provar com isso?” (TURGUÊNIEV, 2004, pp.
82-83)

  3  
Pável afirma querer provar a importância do sentimento de “dignidade
pessoal”, de “respeito próprio”, bastante desenvolvido entre as camadas aristocráticas,
como alicerce para o desenvolvimento do “bien publique” (TURGUÊNIEV, 2004, p.
83). Enquanto os “niilistas”, que não reconheceriam ou respeitariam nada, pisariam
nas “crenças sagradas” com a força destruidora “do rude mongol.” (TURGUÊNIEV,
2004, p. 89)
Bazárov então desfere um golpe de morte, que faz Pavel ruborizar, de ódio e
vergonha, quando observa:
– “Perdoe-me, Pável Petróvitch, mas o senhor
respeita a si mesmo e no entanto fica de braços
cruzados: que proveito traz isso para o bien
publique? Era melhor não respeitar a si mesmo e
fazer alguma coisa.” (TURGUÊNIEV, 2004, p.
83).

Ficar de “braços cruzados”, envolto em respeito próprio e esperando,


passivamente, pelo bom desenrolar do “bien publique”, era uma atitude típica
atribuída aos chamados lichnie liudi, os “homens supérfluos” da geração de
1830/1840. Aristocratas de berço, cercados de privilégios, esses homens carregavam
um sentimento de culpa em relação ao povo, e, estando em contato com as idéias
vindas da Europa, não raro se filiavam, no plano intelectual, a ideais liberais ou
progressistas. É o que ecoa na reivindicação de Pável quanto a ser um suposto
“homem liberal e amante do progresso”, que reverencia a liberdade no melhor estilo
inglês.
Obrigada ao serviço de Estado desde a época do primeiro Tsar, Ivan, O
Terrível, que subjugara a nobreza boiarda, a aristocracia russa ganhou autonomia e
livrou-se da obrigatoriedade de servir o Estado sob o reinado de Catarina II. Tal
quadro permitiu a criação de elites ociosas e cosmopolitas, que viajavam pelo mundo
e gozavam os prazeres da vida em ambiente de grande sofisticação intelectual e em
contato com a fina flor do pensamento europeu – a ciência, a filosofia e as letras.
A incongruência entre os ideais “iluminados” da razão europeia e a realidade
brutal da Rússia, onde subsistiam a servidão e uma repressora autocracia, criava dois
tipos de atitude, segundo Isaiah Berlin, entre os jovens cosmopolitas entusiastas do
“progresso” nos moldes europeus: o “acomodar-se e pôr-se de acordo com a
realidade”, tornando-se
“melancólico, mansamente frustrado, vivendo em seus domínios,
virando as páginas de sérios periódicos importados de São

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Petersburgo ou do exterior, ocasionalmente introduzindo novas
máquinas agrícolas ou algum outro recurso engenhoso que tivesse
chamado sua atenção na França ou na Inglaterra” (BERLIN, 1988,
p. 194)

Entregando-se a “discussões intermináveis” sobre a necessidade de mudanças,


as quais não se concretizariam em práticas efetivas, diante da certeza de que “pouco
ou nada poderia ser feito” (tal atitude descreve de perto o comportamento dos irmãos
Kirsánov); ou “ceder completamente e mergulhar em uma espécie de desalento,
torpor ou desespero” (BERLIN, 1988, p. 194) improdutivo e até destrutivo, tão
frustrados se sentiam diante de uma realidade em desacordo com suas ideias,
sensibilidade e inclinações. Esses seriam os “velhos românticos”, contemplativos e
melancólicos, desprezados por Bazárov.
Entre os “homens supérfluos”, porém, surge uma ala ativa, revolucionária, da
qual Alexander Herzen e Mikhail Bakunin são os principais expoentes. Formados no
seio da aristocracia mundana e intelectualizada, não se limitariam a atitudes de
resignação melancólica, comprometendo-se e dedicando suas vidas a ideais e práticas
transformadores. Precedendo o caráter revolucionário presente no comportamento de
tais indivíduos comprometidos com a mudança, a rebelião dezembrista, de 1825,
representou, segundo Franco Venturi, “a parte mais autêntica daquele desejo de
liberdade, daquela vontade de criar uma Rússia baseada nos princípios de ilustração
que animou os melhores herdeiros do século XVIII” (VENTURI, 1981, p. 100).
Organizado por nobres de tendências liberais, que se opunham à ascensão de Nicolau
I ao trono, o movimento foi esmagado e seguido por uma fase de forte censura e
repressão políticas. A maior parte dos dezembristas, segundo Riasanovsky,
“eram oficiais do exército e regimentos de elite, que receberam uma
boa educação, aprenderam francês e às vezes outras línguas
estrangeiras. [...]. Essencialmente eram liberais na tradição do
Iluminismo e da Revolução Francesa; eles queriam estabelecer o
constitucionalismo e as liberdades básicas na Rússia e abolir a
servidão.” (RIASANOVSKY, 1993, pp. 319-320)

A ideia de libertação dos servos, defendida por líderes como Pável Pestel, era
uma causa não identificada às origens e interesses de classe dos revolucionários,
nobres em sua maioria, e por isso o movimento foi tomado como exemplo de

  5  
abnegação em nome dos ideais. A forte repressão que se abateu sobre as principais
lideranças fez com que a rebelião adquirisse uma aura lendária de heroísmo e
sacrifício revolucionários. Essa “lenda” influenciaria A. Herzen em particular e o
populismo russo em geral, no que concerne à formação do caráter heróico e abnegado
no qual os revolucionários populistas basearam seu papel e suas atividades políticas.1
Uma observação de Rostoptchin revela todo o espanto de um aristocrata
tradicional, isto é, ligado à ordem e à mentalidade tradicionais, diante dos
dezembritas: “Até agora as revoluções eram feitas por sapateiros que desejavam
converter-se em senhores, enquanto neste caso os senhores trataram de fazer a
revolução para converter-se em sapateiros” (VENTURI, 1981, p. 101).
O desejo de “converter-se em sapateiros”, o sentimento de revolta e o
questionamento à ordem estabelecida por parte de uma nobreza beneficiária (os
“senhores”) dessa mesma ordem, relaciona-se ao contato intelectual das elites russas
com ideias e contextos estrangeiros. O que antes parecia “natural” – a servidão e a
brutalidade da vida camponesa em contraste com os privilégios aristocráticos –
passara a causar um sentimento de exasperação e culpa, imobilizando alguns na
frustração melancólica, e inspirando outros à ação revolucionária. Em homens como
A. Herzen, N. Ogariov e M. Bakunin, herdeiros dos dezembristas, o romantismo
melancólico dá espaço ao romantismo de caráter revolucionário, populista.2 Esses

1  Os termos narodnik (populista) e narodnichestvo (populismo) surgiram e se afirmaram na Rússia em

meados dos anos 1870, designando, então, uma geração específica do movimento revolucionário do
país - aquela dos anos 1870, que “foi ao povo”, ensinar e aprender com os mujiques (PIPES, 1964).
Nos anos seguintes, porém, o termo passou a designar todas as correntes revolucionárias russas
anteriores ao marxismo. Franco Venturi aponta a geração revolucionária dos anos 1870 como herdeira
do pensamento político e social das gerações que a precederam, existindo, segundo ele, uma relação de
identidade que agrega, no que podemos designar pelo termo “populismo”, a intelligentsia russa desde
os anos 1820 até os anos 1880. Segundo o autor, “todo o movimento revolucionário do século XIX,
desde os dezembristas e antes dos marxistas – isto é, todo o populismo russo”, deve ser visto em
conjunto, como “uma corrente que apesar de suas diferenças e lutas internas conservava uma unidade
própria e uma continuidade”, ou, enfim, como “uma única peripécia humana, em seu nascimento,
desenvolvimento e trágico final. (VENTURI, 1881, 11).
2
Como ponto de identidade entre as diferentes gerações populistas é possível indicar o elemento
romântico anticapitalista – a expressão é utilizada por Michel Löwy para definir uma característica
geral do pensamento romântico. Segundo o autor, todas as correntes do romantismo teriam em comum
uma perspectiva crítica em relação ao capitalismo – entendido como a perda de certos valores
humanos e as injustiças sociais no mundo moderno (LÖWY, 1990). Ao adotarmos tal expressão, não
pretendemos sustentar que os populistas tivessem a noção, já na Rússia do século XIX, de combate a
um sistema econômico internacional, estruturado de forma complexa e de acordo com uma
determinada lógica, regras e leis as quais Marx viria expor – o sistema, como hoje o entendemos,
capitalista. O termo “anti-capitalista” é posterior às concepções dos populistas russos, que, no entanto,
percebendo as contradições e as desigualdades modernas, das sociedades industriais, resistiriam às
mesmas, vendo-as ou não como estruturadas em torno de uma determinada lógica econômica, de um
determinado “modo de produção”. A crítica dos populistas ficaria mais circunscrita a um caráter ético-
social, e não econômico. Segundo Robert Sayre e Michel Löwy o sentimento de perda, a sensação de

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indivíduos estariam situados na fronteira “que divide o velho e o novo, entre a
douceur de la vie que se finda e o futuro atormentador, a nova era perigosa que eles
mesmos ajudam a gerar.” (BERLIN, 1988, p. 193)
A “nova era perigosa”, gerada pelos “pais” dos anos 1840, é aquela encarnada
pelos “filhos niilistas” da geração de 1860. O próprio termo “niilista”, que, como
Turguêniev se refere, advêm do latim nihil (nada), remete-se à negação radical de
uma geração em relação à outra, à recusa e destruição das referências e autoridades
aceitas. Fortemente empenhados em “descruzar os braços”, esses filhos chegariam,
nos anos subseqüentes, desencantados que estavam diante dos termos da abolição, a
significativas radicalizações, no que concerne a discursos e práticas.
O novo radicalismo trouxe à frente os raznotchíntsi, agressivos na atitude, no
posicionamento das ideias e nas críticas à geração anterior. Herzen, por exemplo,
apesar de permanecer uma referência revolucionária, foi em larga medida hostilizado
pelos jovens revoltés
“por ser um cavalheiro, rico, que vivia no conforto; [....] por ser
membro de uma geração que se limitara a conversar nos salons, a
especular e a filosofar; por não procurar a salvação em algum
trabalho manual sério – por exemplo, cortar uma árvore,
confeccionar um par de botas ou fazer algo ‘concreto’ e real, a fim
de se identificar com as massas sofredoras.” (BERLIN, 1988, p.
211)

Espezinhando “com excessiva brutalidade os delicados valores estéticos da


geração anterior” (BERLIN, 1988, p. 183), os “niilistas”, representados, em Pais e
Filhos através de Bazárov, defendiam o utilitarismo e o materialismo. O jovem
médico afirma o princípio da utilidade, desprezando a arte e a contemplação da
natureza como inúteis perdas de tempo. A natureza, afirma a personagem, “não é um
templo, mas uma oficina, e nela o homem é um trabalhador” (TURGUÊNIEV, 2004,
p.75) desvendando suas leis e fazendo avançar a ciência (visão que contrasta com o

que “no real moderno algo precioso se perdeu” ( LOWY e SAYRE, 1993, 22) e de que certos valores
humanos foram alienados, acarretam a nostalgia do passado, a qual estaria no próprio centro da visão
de mundo romântica. O romantismo russo traduzia-se na admiração pelo povo, o qual resguardaria,
através da comuna camponesa, uma solidariedade contraposta ao egoísmo capitalista ocidental. A
comuna era apontada, neste sentido, como uma tradição que guardava em si a promessa de um futuro
redentor. Os populistas assumiram assim uma proposta modernizante alternativa, entusiastas que eram
da modernidade, mas entusiastas críticos, querendo reformulá-la de modo a afastar as injustiças sociais
verificadas na Europa industrial.

  7  
romantismo contemplativo através do qual o velho Nicolai Petróvitch comporta-se
diante da natureza). Rafael, para o jovem, não valeria uma “moedinha de cobre e
esses outros [pintores renascentistas] não valem mais que ele” (TURGUÊNIEV,
2004, p. 90); ou ainda: “um químico honesto é vinte vezes mais útil que qualquer
poeta” (TURGUÊNIEV, 2004, p. 52).
O crítico literário da revista Ruskoe Slovo (Palavra Russa), o jovem radical
Dimitri Píssarev, viu em Bazárov a encarnação admirável e exemplar do “homem
novo” e proclamou-se niilista. Um de seus ensaios, A destruição da estética (1865),
ecoa, já no próprio título, o utilitarismo anti-estético de Bazárov. Numa expansão
retórica, Píssarev chegou a afirmar que “um par de botas valia mais que todas as
peças de Shakespeare.” (BERLIN, 1988, p. 212).
Ao contrário de Píssarev, que fora uma espécie de enfant terrible entre os
populistas, a maior parte da juventude daqueles anos não se viu legitimamente
representada no romance de Turguêniev. O livro foi recebido como uma ironização de
suas idéias e posturas, e a denominação “niilista” rejeitada pela maioria. No entanto, o
cientificismo materialista expresso por Bazárov, assim como a rebeldia contra os
valores da geração anterior, estiveram, sem dúvida, presentes naqueles jovens, que
passaram a ser denominados como um todo, mesmo não se reconhecendo enquanto
tal, pelo termo popularizado em Pais e Filhos.
Adrzej Walicki aponta N. Tchernichévski, N. Dobroliúbov (figuras centrais da
revista esquerdista Sovremiénik- O Contemporâneo) e D. Píssarev como a tríade
radical dos “iluministas” da década de 1860 (WALICKI, 1979). O primeiro teria
influenciado os dois últimos. Sobre o radicalismo “niilista” de D. Píssarev, Nikolai
Strákhov comentara na revista de tendências eslavófilas Vriemia (Tempo), editada por
F. Dostoiévski: o “Sr. Tchernichévski” seria “o alicerce e o princípio; o Sr. Píssarev, a
conseqüência e a conclusão” (FRANK, 2002, p. 249). Quanto a Dobroliúbov, ele era,
como Tchernichévski, um humilde filho de padre de aldeia. Ambos foram expoentes
entre os raznotchíntsi, amigos pessoais e editores, conforme mencinado, do periódico
Sovremenik (Contemporâneo), sendo Dobroliúbov uma espécie de jovem prodígio,
morto prematuramente aos 25 anos de idade, e discípulo fiel das ideias de
Tchernichévski.3 Segundo Isaiah Berlin, Tchernichévski fora

3
Como Dobroliúbov, a personagem Bazárov teria uma morte prematura. As semelhanças entre
Bazárov e Dobroliúbov, no que diz respeito às idéias, ao comportamento, às humildes origens sociais e

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“o líder natural de uma geração desencantada, de origens sociais
misturadas, já não mais dominada por membros da classe alta,
amargurada pela falência de seus primeiros ideais, pela repressão do
governo, pela humilhação na guerra da Criméia. [...]. Para esses
jovens agressivos, socialmente inseguros, irados e desconfiados,
que desprezam o menor traço de eloquência ou ‘literatura’,
Tchernichéviski foi aquele pai que nem o aristocrático e irônico
Herzen, nem o volúvel e, em última análise frívolo Bakunin jamais
poderiam ser.” (BERLIN, 1988, pp. 228-229)

O desencantamento daquela geração, que cresceu testemunhando a derrota dos


partidos revolucionários europeus nos anos 1840, esteve ligada, em grande medida, à
forma como os camponeses foram libertados em seu país, a qual ficara aquém de suas
expectativas e esperanças. Os mujiques teriam de pagar pela terra, que não fora ampla
e democraticamente redistribuída, um alto preço, o que significava que a libertação
com a terra, como defendiam os revolucionários, não se realizara de maneira concreta.
Seguiram-se revoltas camponesas localizadas, como a da aldeia de Bezdna, onde o
líder camponês Anton Pietrov proclamou a “verdadeira emancipação”, pretendendo
revelar as legítimas intenções do Tsar, as quais supostamente não estariam expressas
no decreto oficial da abolição, cujos termos não atendiam às pretensões dos
mujiques.4 No entanto, ao contrário da expectativa dos revolucionários, tais conflitos
não se transformaram em revolução generalizada.
Tchernichévski sempre desconfiara das reformas vindas de cima, com as quais
nunca se comprometeria, mostrando-se extremamente cético em relação às mesmas.
Tal desconfiança influenciou toda a assim chamada geração “niilista”, desiludida
diante dos termos da tão ansiada emancipação dos servos. (BERLIN, 1988)
O amargor que conduziu à radicalização foi particularmente expresso no
panfleto clandestino A Jovem Rússia, que circulara em São Petersburgo na primavera
de 1862. Escrito pelo estudante P. Zaitchniévski, que contava apenas 20 anos, o
documento pregava a transformação da ordem vigente sem intermediações, sem
gradualismos ou paliativos implementados a partir do alto. Uma revolução “sangrenta

ao fim prematuro, levaram muitos a afirmar que este último serviu de inspiração à composição da
personagem de Turguêniev, algo que o autor jamais admitiria.
4
Para maiores detalhes sobre a questão camponesa e o levante de Bezdna, ver VENTURI, F. op. cit.
Capítulo 7.

  9  
e impiedosa, que deve mudar radicalmente tudo, derrubando sem exceção todas as
bases da sociedade atual, arruinando os que defendem a ordem presente”5
Segundo o panfleto, existiria na Rússia dois grupos sociais antagônicos: o
partido imperial, composto pelos governantes e os proprietários, fossem eles de ideias
mais ou menos liberais; e o povo. “Este antagonismo, não pode terminar enquanto existir o
regime econômico atual, no qual um pequeno número de pessoas, que possui o capital, dispõe
do destino das demais. [...]. [Regime esse] em que tudo é falso, tudo é estúpido, desde a
religião [....] até a família.”
Contra tal “estupidez”, defendia-se a emancipação das mulheres, a abolição
do casamento e o fechamento dos mosteiros. Contra a injustiça social era proposta
uma república democrática cuja economia se baseasse na obchina, assembléias
camponesas consagradas pelos costumes e ligadas ao mir, ou à comuna rural.
Revoltas camponesas como as de Pugatchiov e a do “generoso Anton Pietrov” foram
citadas de modo a evocar a tradição revolucionária dos camponeses russos, o que
espelhava as esperanças, não concretizadas, de que houvesse uma guerra camponesa
revolucionária. “Nós não tememos essa revolução”, dizia-se, “ainda que corram rios
de sangue, que pereçam nela – quem sabe – inclusive vítimas inocentes”.
A força social em que se basearia a revolução seria o povo, mas “nossa maior
esperança está na juventude”. A juventude, ou seja, os jovens intelectuais, os
universitários radicais, representariam “o que de melhor há na Rússia, de mais vivo”
e a disposição de se sacrificar pela justiça social. A juventude faria chegar
“o dia em que empregaremos a grande bandeira do futuro, a
bandeira vermelha, e com estrondoso grito ‘Viva a república russa
social e democrática!’ avançaremos contra o Palácio de Inverno
para derrubar os que nele habitam. [...]. [Caso haja resistências por
parte do “partido imperial”] gritaremos: ‘Aos machados!’ [...]. Os
golpearemos nas praças – se esses porcos covardes se atreverem a
aparecer nelas – os golpearemos nas casas, nas estreitas ruelas das
cidades, nas grandes avenidas da capital. [...]. Os inimigos serão
abatidos por todos os meios.”

Zaitchniévski demonstrava uma preocupação maior em propor a revolução


que em apresentar projetos para a nova sociedade a ser instalada. Dever-se-ia,
primeiro, “limpar o terreno”, ou seja, derrubar o governo vigente a machadadas,
deixando, para o futuro, a construção da nova ordem.

5
As citações da Jovem Rússia que utilizaremos daqui em diante estão em VENTURI, F, 1981, pp. 499
a 504.

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Se o movimento obtivesse êxito, dizia, a centralização política teria de ser
mantida “temporariamente”, para que assim se pudesse introduzir, “no tempo mais
breve possível, as novas bases da vida econômica e social”. Até que isso ocorresse,
durante um “breve” espaço de tempo cuja duração o autor não determina, o poder
ficaria, pois, centralizado nas mãos de uma elite revolucionária, de uma juventude
esclarecida à frente das massas. As propostas de tomada imediata e violenta do poder,
conduzida por uma elite radical, marca a importância do documento, em que pese
suas bravatas retóricas e sua evidente intenção de causar impacto, como expressão de
uma nova radicalidade que marcaria a história do populismo russo.
Por isso podemos, seguindo Isaiah Berlin, classificar Zaitchniévski, entre os
populistas que não estariam dispostos a esperar pela conscientização e a adesão
prévias das maiorias camponesas aos ideais revolucionários, advogando, antes, a
tomada do poder, da máquina de Estado, por uma elite política. Tal “impaciência”
teria sido difundida por Tchernichévski nos anos 1850, apregoada por P. Lavrov nos
anos 1870 e 1880 e por seus adversários S. Netchaiév e P. Tkatchev, partidários da
ação política profissional e disciplinada (BERLIN, 1988, p. 218).
Mas a maior parte dos populistas era, ainda segundo I. Berlin, atenta aos
perigos – morais e políticos – da criação de um regime potencialmente autoritário. A
necessidade de conhecer e educar o povo, conduzindo uma revolução por vias não
autoritárias, inspirou e levou muitos jovens da década de 1870 à “ida ao povo”, para
de fato conhecê-lo – ensinar e aprender com os mujiques. Não foram bem recebidos,
todavia, tendo seus nomes por vezes entregues às autoridades pelos próprios
beneficiários da “boa nova” que foram anunciar. Esses jovens descobriram, com a
amarga exatidão que só o contato direto é capaz de revelar, o quanto a mentalidade
do povo russo permanecia distante e indiferente em relação às modernas ideias
revolucionárias. Como diria Kravtchinski em 1876, “o socialismo ricocheteou no
povo como ervilhas na parede” (BERLIN, 1988, p. 235).
O auto-proclamado “niilista” D. Píssarev, em seu “realismo crítico”
fortemente influenciado por Tchernichévski, lançaria ataques irados contra a
“idealização sentimental da simplicidade e da beleza dos camponeses russos”

  11  
(BERLIN, 1988, p. 227), enquanto P. Tkatchev consideraria as massas “ignorantes,
brutais e reacionárias”, incapazes de compreender as próprias necessidades.
(BERLIN, 1988, p. 224). No mir, o “desencantado” Tchernichévski percebia não
mais que um conjunto de leis “científicas”, de caráter social e econômico, enquanto
Herzen enxergaria uma “religião”, isto é, um modo próprio de viver e pensar,
específico do povo russo. Essa especificidade deveria ser, senão idolatrada e
idealizada ao extremo (extremo a que chegava o messianismo eslavófilo, de fundo
conservador), ao menos respeitada.

2 Que fazer? Um “melhor retrato”, uma duradoura influência.

O socialismo russo dos anos 1840, de forte inspiração romântica, centralizado


na figura de A. Herzen, dera lugar ao cientificismo do “líder” (desencantado em
relação ao presente, mas empenhado na elaboração de um futuro regenerador) dos
assim chamados “niilistas”. Tchernichévski filiava-se intelectualmente ao
hegelianismo de esquerda e a um utilitarismo inspirado em James Mill e Jeremy
Bentham. Baseado em Feuerbach, filósofo que defendeu, em Lições sobre a essência
da religião, a secularização dos valores cristãos, deslocando a origem espiritual das
virtudes morais para o próprio ser humano, Tchernichévski fundiu o materialismo
com o antropocentrismo feuerbachquiano em ensaios de grande influência sobre a
juventude da época, como O Princípio Antropológico da Filosofia e A relação
estética entre arte e realidade. Neste último ensaio, direcionado contra o
“esteticismo” romântico, atribuiu à arte as funções de reprodução e análise da
realidade. Tais premissas foram radicalizadas e levadas às últimas consequências por
Píssarev, ao postular a “destruição da estética.” (WALICKI, 1979).
Em O Princípio Antropológico da Filosofia, publicado no Contemporâneo em
1860, Tchernichévski defendeu a unicidade entre corpo e espírito. O autor expôs o
organicismo presente no “princípio antropológico” da seguinte maneira:
“O que é o princípio antropológico nas ciências morais? [...] É que o
ser humano deve ser visto como um ser uno possuindo uma única
natureza. [...] Que todo aspecto da atividade do homem deve ser
visto como a atividade de todo o seu organismo, da cabeça aos pés
de forma inclusiva.” (WALICKI, 1979, p.195)

A noção de indivíduo como uma unidade orgânica contrapunha-se à idéia


hegeliana do Espírito Absoluto, ao incorporar a crítica de Feuerbach às hipóteses

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idealistas da Razão e do Espírito supra-individuais (WALICKI, 1979, p.196). O
indivíduo/organismo individual seria governado “da cabeça aos pés” pelas leis
orgânicas de sua natureza material, buscando, sempre, o que é útil e benéfico à
própria sobrevivência. Deriva daí a noção do egoísmo como princípio norteador da
conduta humana – a busca egoísta de cada um por condições vantajosas à própria
existência. Tchernichévski estabelecia, no entanto, uma diferença fundamental entre o
egoísmo de natureza imediata e irrefletida (irracional) e aquele baseado na razão. O
“egoísmo racional” caracterizar-se-ia pela percepção lógica de que aquilo o que
beneficia a sociedade como um todo é o que pode haver de mais vantajoso, a longo
prazo, para cada indivíduo. Assim, um ato de bondade e auto-abnegação seria,
essencialmente, um ato egoísta (do tipo racional), uma vez que, favorecendo o
próximo, o indivíduo favoreceria, em última análise, a si próprio.
Uma sociedade mais justa e igualitária seria alcançada através da busca
“egoísta” pela maximização da felicidade individual, a qual, por sua vez, só poderia
se dar à medida que o bem estar da coletividade fosse garantido. Tal concepção ecoa,
como demostra Walicki, a máxima feuerbachquiana segundo a qual “ser um
indivíduo significa ser um egoísta, e, portanto, um comunista” (WALICKI, 1979, p.
196).
A utopia igualitária de Tchernichévski partia da crença segundo a qual
bastaria ao homem fazer uso da razão para aceitar que:
“Os interesses da humanidade como um todo são maiores que os
interesses de uma única nação; o interesse comum de toda uma
nação são maiores que os interesses de uma única classe; os
interesses de uma classe extensa são maiores que de uma classe
minoritária.” (WALICKI, 1979, p. 196).

Tão logo tais evidências fossem racionalmente aceitas, a humanidade iria


aderir como um todo aos ideais socialistas. Eis o “princípio antropológico” aplicado
às “ciências morais”: a moral ou a ética figurariam não como um conjunto de valores
“espirituais” (ligados, de alguma forma, à religiosidade ou à transcendência), mas
como um derivativo das necessidades orgânicas (a busca egoísta por condições
vantajosas) e da capacidade racional dos indivíduos. Quanto ao “egoísmo irracional”,
isto é, o desejo irrefletido de obter alguma satisfação momentânea ou alguma

  13  
vantagem pessoal sem levar em conta o bem estar comum, este seria apenas uma
“impressão subjetiva” (FRANK, 2002, p. 64).
A teoria de Tchernichévski baseava-se, pois, em um forte igualitarismo,
racionalismo e organicismo, que influenciaram de forma decisiva a juventude
“niilista” dos anos 1860. As “impressões subjetivas” que dariam origem a
comportamentos destrutivos (o “egoísmo irracional’) poderiam ser corrigidas na
medida em que a sociedade fosse reformulada, e, com ela, o modo de viver e
pensar dos indivíduos. A visão do ser humano como um organismo regido pelas
leis da natureza e, através de educação adequada, da razão universal, é reproduzida
por Turguêniev, quando o niilista Bazárov declara não existir diferença intrínseca
entre os homens; estes se classificariam apenas entre “saudáveis” e “doentes”, do
ponto de vista biológico como moral:

– “Os pulmões de um tuberculoso não se encontram nas


mesmas condições que os pulmões da senhora [referindo-se à
personagem Ana Sergueiêvna, por quem Bazárov, contradizendo
seu racionalismo, se apaixonaria], embora sejam igualmente
constituídos. Conhecemos aproximadamente as causas das
enfermidades do corpo; e as doenças morais advêm da educação
precária, de todas as bobagens que, desde a infância, atulham as
cabeças das pessoas, em suma, da situação revoltante da sociedade.
Corrijam a sociedade e não haverá doenças.
– E o senhor supõe – disse Ana Sergueiêvna – que, quando a
sociedade for corrigida, não haverá mais tolos nem pessoas más?
[...]. Sim, entendo; todos terão um baço exatamente igual.
– Exatamente isso, nobre senhora.” (TURGUÊNIEV, 2004, pp.
132-133)

Tal crença na cientificidade do comportamento humano resume, de maneira


geral, as esperanças da juventude “niilista” e seu “líder” na construção de um
futuro harmonioso e igualitário. Uma vez libertos das “bobagens” advindas da
“educação precária” que “atulhava” suas cabeças (entenda-se, da mentalidade
“arcaica”, que deveria ceder espaço às “luzes” da ciência e da razão), os seres
humanos se adequariam ao futuro idealizado, vivendo em uma sociedade livre de
doenças morais.

Podemos afirmar que a máxima cristã de solidariedade ao próximo é


reformulada por Tchernichévski em termos não religiosos, mas temporais (racionais,
utilitários e pretensamente científicos). O “egoísmo racional” não configura assim a
busca religiosa pela salvação transcendental da alma (através da obediência preceitos

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e orientações de natureza espiritual) objetivando a felicidade eterna no paraíso, mas
visa atingir a felicidade e a perfeição neste mundo, na busca de um futuro utópico
para homens e mulheres de carne e osso.
Para alcançar o paraíso terrestre, bastaria aos indivíduos tomar consciência de
seus interesses orgânicos de forma racional, o que seria alcançado através do
progresso da ciência e da razão, até que a humanidade evoluísse rumo ao socialismo.
Não se tratava, porém, de uma espera passiva por um futuro garantido pela lógica da
histórica (a inevitabilidade histórica). Fazia-se necessário a ação e a vontade humanas
(baseadas em uma racionalidade científica universal), isto é, era preciso que alguns
heróis “egoístas”, esclarecidos e (por isso mesmo) abnegados (os “jovens de ação”,
nos quais recaíam as esperanças revolucionárias) dessem o exemplo, assumindo a
vanguarda da construção de um futuro igualitário.
Esses heróis exemplares assumiriam forma no romance Que Fazer? (1863), de
subtítulo Histórias da Nova Gente (Iz rasskázov o nóvikh liudiakh), uma narrativa
didática, escrita por um não romancista, sobre a trajetória de jovens “egoístas
racionais” – é interessante notar que a intervenção consciente do revolucionário
Tchernichévski no âmbito dos debates públicos se deu, entre outras maneiras, através
da escrita ficcional, da criação literária através da elaboração de um romance que
exerceria forte e duradoura influência sobre os socialistas russos. A obra foi
composta, em grande medida, como uma resposta a Pais e Filhos, visto por
Tchernichévski (assim como pelos intelectuais ligados ao Contemporâneo) como uma
caricatura desmoralizante da juventude revolucionária. Bazárov tem um fim patético,
sucumbindo diante de uma paixão não correspondida do tipo “romântico”, por ele
ridicularizada no início da narrativa. Tal paixão o coloca num estado angustiado de
contradição entre suas convicções racionais/fisiológicas e seus sentimentos. Os
sentimentos humanos, tachados pelo “niilista” como romantismo ultrapassado, põem
em xeque as certezas científicas da personagem, atormentando-a e, por fim,
liquidando-a. Amargurado, Bazárov se entrega a um estado melancólico –
contrastando com a atitude resoluta do “homem de ação” por ele encarnada – até que,

  15  
convocado para fazer a necropsia de um homem que morrera de tifo, o jovem corta o
dedo por distração e se contamina, falecendo de maneira estúpida.
A morte prematura, assim como o tipo revolucionário encarnado pela
personagem (um jovem representante dos raznotchíntsi, inspirado por ideais
materialistas), fez com que Tchernichévski associasse Bazárov a N. Dobroliúbov, e
considerasse o livro um insulto à memória do amigo, falecido, aos 25 anos de idade,
no ano anterior à composição de Pais e Filhos: “uma franca manifestação do ódio de
Turguêniev por Dobroliúbov”, escreveria Tchernichévski ao final da vida, em 1884
(FRANK, 2002, p. 247).
Duas das principais personagens de Que Fazer?, Lopukhov e Kirsanov, eram,
de forma análoga a Bazárov, estudiosos de medicina de baixa extração social. Ambos
envolver-se-iam amorosamente com a heroína Vera Pavlovna, mas, como egoístas
racionais que eram, na qualidade de representantes autênticos da “gente nova”, não se
deixariam atormentar, como Bazárov, por quaisquer desesperos ou angústias de fundo
irracional (sentimental ou romântico), e seguiriam inabaláveis suas convicções
revolucionárias.
Lopukhov não chegaria a se tornar médico, pois abandonaria os estudos para
casar-se com Vera, libertando a moça de uma vida familiar opressora e de um
casamento forçado com um homem rico.
No primeiro capítulo do romance, intitulado “A vida de Vera Pavlovna na casa
paterna”, Tchernichévski deflagra severas críticas à família patriarcal russa, na qual as
mulheres, a exemplo de Vera, seriam submetidas à autoridade dos pais, pouco
podendo decidir sobre o próprio destino (a ponto de se verem barganhadas, como a
protagonista, em casamentos indesejados) (TCHERNICHÉVSKI, 2000). A mãe de
Vera, Maria Alexeievna, é uma mulher irascível, cruel e chegada à bebida, que
maltrata a filha espancando-a e insultando-a. O autor ressalta constantemente a vida
sofrida, a condição de pobreza (condição que a personagem queria atenuar casando a
filha com um jovem rico) e a falta de instrução da mãe, deixando parecer que essas
eram as causas de seu comportamento desprezível. Quando quer enganar Maria
Alexeievna, Vera conversa com as pessoas em francês, língua que aprendera por
haver recebido uma educação razoável, enquanto a mãe, ignorante e “atrasada”,
encarnando o obscurantismo e a brutalidade de grande parte da população russa,
absolutamente não compreendia.

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Existe um abismo bastante inverossímil entre as mentalidades da mãe
retrógrada e da filha educada e falante da língua francesa. Essa encarnaria quase
milagrosamente, apesar de ter sido criada em tal ambiente familiar, os ideais da
“mulher emancipada”, enfrentando a tirania materna sem medo ou culpa. Também
inverossímil é a facilidade com que Lopukhov abandona a carreira para casar-se com
Vera, não motivado por qualquer sentimento juvenil de caráter impulsivo, mas pela
mais pura lógica do racionalismo egoísta. Como Tchernichévski explica ao leitor, foi
“de propósito deliberado e sem voltar atrás que ele [Lopukhov] renunciou a todas as
vantagens e honras para poder trabalhar em benefício do outro, estimando que os
deleites obtidos por tal trabalho seriam a suprema vantagem para ele”
(TCHERNICHÉVSKI, 2000, p. 92).
Algumas páginas adiante, o autor acrescenta:
“Um materialista não tem outra coisa em mente que não o seu
benefício. Ele [Lopukhov] sonhava efetivamente com o seu
benefício; ao invés de sublimes meditações poéticas e plásticas, ele
se abandonava a esse gênero de sonhos de amor que convêm
somente a um grande materialista.” (TCHERNICHÉVSKI, 2000,
p. 116).

O gênero de amor aqui defendido em nada incorpora as agruras irracionais da


paixão romântica, com as suas “sublimes” e nada práticas “meditações poéticas” e
supostamente ultrapassadas que desgraçaram Bazárov, mas diante das quais a
verdadeira “gente nova” permaneceria impermeável. Lopukhov teme que seu amor
“egoísta” seja tomado por sacrifício romântico, e por isso reafirma, em monólogo
interior, as convicções materiais compatíveis com a decisão que tomara:
“Não é uma questão de sacrifício. Jamais foi do meu feitio fazer
sacrifícios e eu espero que não o seja nunca. Eu farei aquilo o que
for o melhor para mim. Eu não faço parte da raça dos que fazem
sacrifícios. Além do mais, isso não existe: ninguém os faz jamais, é
um contra-senso a idéia de sacrifício [...]. Nos comportamos sempre
da maneira que melhor nos convêm.” (TCHERNICHÉVSKI,
2000, p. 116).

Lopukhov explica, então, que jamais libertaria Vera da tutela dos pais se não
encontrasse nisso uma enorme satisfação pessoal. No fundo, ele poderia estar
libertando a si próprio, e, por isso, Vera não deveria manter nenhum sentimento de

  17  
gratidão: “Como fazer para que não se implante nela o detestável sentimento de
gratidão? No fim, isso se arranjará, ela é inteligente, ela compreendera que isso é
tolice” (TCHERNICHÉVSKI, 2000, p. 116).
Nos trechos citados, pode-se ver exposta, de forma bastante didática, a teoria
do egoísmo racional – a busca de vantagem para si, que favorece o próximo, e
justifica grandes atos de auto-abnegação.
No “casamento racional” entre Vera e Lopukhov impera a igualdade de
direitos entre os sexos. O casal mantem uma relação, além de igualitária, sóbria e
harmoniosa, sem grandes arroubos sentimentais de felicidade ou de sofrimento
amorosos – como o próprio Lopukhov explicara à noiva antes do casamento, “a
angústia, no amor, não é o amor ele mesmo, mas o indício de alguma perturbação.
Pois o amor é alegre e despreocupado” (TCHERNICHÉVSKI, 2000, p. 76).
Depois de casada, Vera passa a se dedicar ao trabalho numa confecção de
vestidos. Junto de jovens operárias, ela consegue fazer da fábrica uma organização
igualitária nos moldes de Fourier, obtendo sucesso econômico e redistribuindo os
lucros sem suscitar ganâncias ou maiores choques de interesse. A confecção encarna o
exemplo dos benefícios de uma vida comunitária, instaurada, na ficção, sem grandes
dificuldades.
Tudo vai perfeitamente bem até que Vera perde o interesse pelo marido,
apaixonando-se por seu melhor amigo Kirsanov (que se tornara médico de prestígio,
afinal, não abandonara a carreira para resgatar Vera da casa dos pais). E, então, tudo
continua bem, pois, egoístas racionais que são, a tríade se desembaraça da situação
potencialmente dolorosa e conflituosa tranquilamente, sem os arroubos do ciúme, do
ressentimento ou de quaisquer “aberrações” irracionais desta sorte. Tanto é assim que
Lopukov, em uma prova de grande abnegação “egoísta”, simula o próprio suicídio,
para que a antiga companheira pudesse casar-se com outro, driblando, e ao mesmo
tempo protestando contra, as regras de uma sociedade na qual o divórcio não era
permitido.
Outra notável personagem é o jovem inteiramente voltado para os ideais da
revolução - Rakhmietóv. Inabalável em suas convicções, ríspido em seus modos, nos
quais não há espaço para as amenidades supérfluas da boa educação, Rakhmietóv
abandona uma vida de conforto pela mais absoluta ascese revolucionária, evitando as
mulheres, alimentando-se parcamente, a exemplo dos camponeses mais pobres com

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quem se solidarizava, e chegando a dormir numa tábua de pregos, para experimentar
na pele, literalmente, o sofrimento do povo.
Segundo Joseph Frank, Rakhmietóv seria“um Bazárov sinceramente dedicado
à revolução, inabalável e invencível em sua força e desprovido até dos poucos traços
remanescentes de incerteza pessoal e consciência humana que ainda conseguem fazer
de Bazárov simpático.” (FRANK, 1992, p. 212)
O livro de Tchernichévski (autor que, conforme mencionamos, não era um
romancista) nunca foi exaltado por seus méritos artísticos, basicamente ausentes, mas
pelo impacto que suas ideias teriam sobre as gerações contemporânea e futuras. G.
Plekhanov e V. Lenin são dois dos grandes admiradores marxistas da obra, que,
segundo Walicki, conseguiu atingir os adeptos russos de Marx por pregar um mundo
mais justo sem celebrar, absolutamente, qualquer tipo de tradicionalismo nativo
(WALICKI, 1979, p. 202).
Sobre a recepção do Que Fazer? e sua profunda influência entre a juventude
da época, P. Kropotkin comenta, nas Memórias de um revolucionário:
“A juventude russa não poderia contentar-se com a atitude
meramente negativa do herói de Turguêniev [Bazárov]. O niilismo,
com sua afirmação dos direitos do indivíduo e sua negação de toda
a hipocrisia, era apenas um primeiro passo em direção a um tipo
mais elevado de homem e de mulher, que são igualmente livres,
mas vivem por uma grande causa. Nos niilistas de Tchernichévski,
como representados em seu bem menos artístico romance Que
Fazer?, eles viram retratos melhores de si mesmos.” (FRANK,
1992, 215)

Podemos afirmar que o romance de Tchernichévski recoloca a questão do


conflito de gerações em termos bem distintos do que o fez o liberal e anti-radical
Turguêniev em Pais e Filhos. O autor apresenta sua “gente nova”, que não fraqueja
jamais, como exemplos inequivocamente virtuosos (e vitoriosos, ao contrário de
Bazárov, às voltas com contradições e dúvidas) de um futuro a ser alcançado. Eis o
“melhor retrato” da juventude “niilista” pintado pelo autor. Quanto à atitude positiva
das personagens do romance, que não se limitam à mera negação de tudo, essa foi
incorporada como importante baliza pela juventude de então; mas a proposta de
simplesmente “limpar o terreno”, e deixar a construção de uma nova realidade para as

  19  
gerações posteriores, esteve e continuaria presente, em grande medida, nas
concepções das vertentes mais radicais do populismo russo.
Através de suas personagens, construídas de modo bastante inverossímil e
artificial, Tchernichévski conseguiu, não obstante, estender com sucesso e muito
inovadoramente os valores políticos revolucionários, de caráter público, para a vida
privada, familiar e amorosa, tendo o mérito de incentivar leitores a buscarem a
modificação de suas vidas particulares, de modo a torná-las coerentes com os ideais
da revolução.
Poucos anos após a publicação do romance, um grupo de estudantes reunidos
em torno de Nicolai Ichútin, levariam adiante os valores de auto-sacrifício e ascetismo
revolucionários preconizados pelo mesmo. Segundo Franco Venturi, N. Ichútin era “a
primeira autêntica encarnação dos revolucionários desta novela. ‘Três grandes
homens existiram no mundo – dizia [ele] –: Jesus Cristo, o apóstolo Paulo e
Tchernichévski.’” (VENTURI, 1981, p. 551).
Grande parte das atividades do grupo foi dedicada à construção, sob
inspiração do Que Fazer?, de associações cooperativas de socorro mútuo entre
trabalhadores e estudantes. Seus membros acreditavam na importância da propaganda
pedagógica para conscientizar o povo, recrutar novos militantes e insuflar a
revolução. Aliada às atividades propagandísticas, o grupo gerou ainda uma sessão
voltada, fundamentalmente, para a ação direta. Essa sessão levou o nome de
“Inferno” e seus membros, segundo a formulação de Ichútin, deveriam
“viver na clandestinidade e romper todos os laços familiares, não
deve[m] casar-se, deve[m] abandonar os amigos e viver com um
objetivo exclusivo e único: um infinito amor e entrega à pátria. Por
ela, deve[m] abandonar toda satisfação pessoal e [...] nutrir ódio
contra ódio, maldade contra maldade.” (VENTURI, 1981, p. 557).

Assim, aos ideais de ascetismo e heroísmo revolucionários, que refletem a


influência de Tchernichévski e seu Rakhmietóv, os jovens ligados ao “Inferno”
adicionariam as tendências de ação direta da Jovem Rússia. Em 1866, ano da
publicação de Crime e Castigo, de F. Dostoiévski, um desses jovens, Dimitri
Karakózov, que, à semelhança da personagem Raskólnikov, abandonara a
universidade por dificuldades financeiras, cometeu um atentando contra a vida do
Tsar Alexandre II. Antes do episódio, Karakózov escreveu um panfleto revelando
suas intenções de matar o soberano em nome da liberdade e felicidade do povo
(VENTURI, 1981).

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O povo, no entanto, não estaria pronto a compreender a “grandeza” e a
legitimidade desse ato, e o “Inferno” o sabia. Tanto que, prevendo a comoção popular
que um eventual atentado contra a vida do Tsar provocaria, o grupo tinha a intenção,
bastante maquiavélica, de espalhar rumores atribuindo sua autoria à nobreza. Assim,
acreditavam, o povo se rebelaria contra os nobres e precipitaria a revolução. O que
ocorreu, no entanto, foi a brutal repressão do governo aos radicais, legitimada pelo
choque e a indignação populares.
Ao disparar contra Alexandre II, Karakózov errou o alvo, tendo o braço
desviado por um comerciante de origem humilde.6 Agarrado pela multidão e entregue
de imediato às autoridades, o jovem gritou para a turba: “Estúpidos! Fiz isso por
vocês!” Ao ser levado até o Tsar, esse o perguntou se era polaco (estava em curso, na
época, movimentos de resistência à dominação russa na Polônia), ao que Karakózov
respondeu: “Russo puro!”, causando grande espanto. (VENTURI, 1981, p. 569).
Herzen, que não era apreciado por, e tampouco apreciava os, “filhos” radicais
de sua geração, repudiou o atentado, afirmando, em seu jornal O Sino: “Disso só
podemos esperar uma calamidade [prevendo a repressão e a onda que
conservadorismo que se seguiria, atingindo a já limitada liberdade de expressão], e
estamos estarrecidos só de pensar na responsabilidade que esse fanático jogou sobre si
mesmo.”7
As táticas violentas e autoritárias adotadas pelo grupo de N. Ichútin
encontrariam mais tarde, na figura de Serguei Netcháiev, sua “mais forte e violenta
afirmação.” (VENTURI, 1981, p. 583). Sobre o radicalismo autoritário de parte desta
geração, outro romancista russo, contemporâneo de Turguêniev e de Tchernichévski,
e profundamente envolvido nos debates acerca da radicalização política dos anos
1860, F.M Dostoiévski, desenvolveu reflexões através da literatura, especialmente no
romance Os Demônios (1871), no qual a personagem “endemoninhada” Piotr
Stepenovitch é inspirada no jovem S. Netcháiev. Uma vez concluída a obra, escreveu
o autor ao príncipe herdeiro do trono, o futuro Tsar Alexandre III: “Os Demônios

6
Este fato não foi confirmado, mas o suposto salvador da vida do Tsar, Ossip Komissarov, recebera
honras e fora saudado como um herói da nação. Ver VENTURI. Ibid.
7
Citado em FRANK, J. Os anos Milagrosos. Ibid. p. 85.    

  21  
pode ser visto quase como um estudo histórico com o qual procuro esclarecer um
fenômeno tão escabroso quanto o movimento Netcháiev se torna possível em nossa
sociedade.” (Cf. FRANK, 2003, p.526).
A construção de um paraíso baseado na ciência e na razão, como propunha
Tchernichévski, não inspiraria nenhuma credulidade ou simpatia no egresso da “casa
dos mortos”, que, à frente da Revista Tempo, polemizou em diversas ocasiões com o
Contemporâneo. Dostoiévski se empenharia em defender, através dos romances
escritos ao longo do período (entre os quais se pode destacar Memórias do Subsolo,
publicado no ano subsequente ao Que Fazer?) um ponto de vista segundo o qual as
crenças racionalistas seriam ingênuas e simplificadoras, empobrecedoras das
possibilidades humanas. Indo além da mera ridicularização de tais noções, o autor
apontaria os perigos morais do materialismo simplório e do autoritarismo, alertando
contra seus potenciais “demônios”.

Densidade literária, densidade ideológica

Dostoiévski, Turguêniev, Tchernichévski – figuras de diferentes orientações


ideológicas e trajetórias intelectuais, cada qual, à sua maneira, marcante no cenário
político e cultural da Rússia oitocentista. Podemos citá-los, entre outros, como
expoentes que se debruçaram sobre as questões de um pais trespassado, conforme
ressaltamos, por um rápido processo de transformação e readaptações modernizantes
em curso ao longo dos anos 1860. Dentro de um mesmo contexto histórico, textos
literários bastante diversos foram produzidos por cada autor (inclusive pelo não
romancista Tchernichévski), lançando questões sobre o passado e o futuro da Rússia,
entre polêmicas, incertezas e expectativas; entre perspectivas liberais, socialistas e
messiânicas (de influência eslavófila). Quem seriam aqueles jovens, encarnação de
uma “Jovem (ou modernizada) Rússia”? Rudes “niilistas” aquém das bravatas que
anunciavam de modo inconsequente? O prenúncio de um futuro socialista
regenerador? Potenciais “demônios” do autoritarismo e da violência desconhecedora
de limites? O debate acerca da geração radical de 1860 ainda hoje persiste. O próprio
termo “niilista” foi levantado e discutido, no âmbito de um complexo cenário
histórico, a partir da produção literária, atingindo espaços de discussão e circulação
mais amplos.

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Segundo Joseph Frank, se um conhecimento de história cultural é
indispensável para o estudo da literatura, isso é especialmente verdadeiro para a
literatura russa do século XIX, pois
“devido à dificuldade para expressar idéias controversas
diretamente na imprensa (embora seja espantoso quantas dessas
idéias conseguiram chegar até os periódicos devido à obtuosidade –
mas algumas vezes também à tolerância – da censura tsarista), a
literatura russa serviu, mais ou menos, como uma válvula de escape
através da qual assuntos proibidos podiam ser apresentados ou, pelo
menos, sugeridos. Daí a notória densidade ideológica da melhor
literatura russa.” (FRANK, 1992, p. 62)

Tchernichévski confirma o papel decisivo, no que diz respeito à discussão


das questões nacionais, desempenhado pela literatura de seu tempo. O intelectual
afirma que enquanto nos países europeus existiria
“por assim dizer, uma divisão de funções entre os vários ramos da
atividade intelectual. [...] Nós [os russos] conhecemos apenas um –
a literatura. Por essa razão, não importa como classificamos nossa
literatura em relação às estrangeiras; de todo modo, ela exerce um
papel muito maior no nosso movimento intelectual do que o faz as
literaturas francesa, alemã ou inglesa no movimento intelectual de
seus países. No contexto atual, a literatura [russa] absorve
virtualmente a totalidade da vida intelectual das pessoas. [...].
Aquilo o que Dickens diz na Inglaterra, também é dito, afora ele e
outros romancistas, por filósofos, juristas, economistas, etc. Entre
nós, afora os romancistas, ninguém fala de assuntos que
comprometam os assuntos de suas narrativas. (Cf. PIPES, 1995, p.
278)

Essa realidade histórica é, no caso russo, marcada pela experiência de um


contexto específico, no qual uma intelligentsia, em larga medida perseguida pelo
governo autocrata e ansiosa por mudanças, desenvolvia projetos político-sociais
alternativos para seu país, analisando o passado e o presente e construindo propostas
para o futuro. A questão mais premente que se impunha à intelligentsia era a questão
da modernidade e a construção de um caminho russo, isto é, de um futuro moderno
russo. A literatura figuraria a então como uma “válvula de escape” através da qual
diferentes projetos em disputa vinham à luz. Mas, se a densidade ideológica da
literatura russa pode ser atribuída, como nos mostra Joseph Frank, ao relativo
silenciamento de outras formas de expressão, também podemos atribuí-la ao contexto

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histórico daquele país, dramaticamente cindido entre o tradicional e as “novas idéias”.
A literatura viria, então, a ter um importante papel no levantamento de questões e na
elaboração de diferentes propostas.
Uma vez apropriada pelos intelectuais russos, as perspectivas modernas
sofreriam “mutações” e adquiririam um caráter específico, gerando reflexões e
propostas próprias, refratadas pelo “prisma russo” (FRANK, 1992). Se os literatos do
país foram profundamente influenciados pela cultura ocidental, eles criaram uma
expressão artística muito própria, de grande força e originalidade, discutindo a
modernidade e contribuindo para a criação de propostas alternativas de modernização
a partir de seu próprio prisma. Segundo Andrzej Walicki, podemos averiguar no
pensamento social russo do século XIX
“uma fertilização mútua profundamente singular de idéias e
influências; a rápida modernização de uma grande nação
comprimida em um curto espaço de tempo; a curiosa coexistência
dos elementos arcaico e moderno na estrutura social e nas formas de
pensar; o rápido influxo de influências externas e a resistência a
elas; o impacto, sobre a elite intelectual, das realidades sociais e das
idéias da Europa Ocidental, por um lado, e a constante redescoberta
de sua própria tradição nativa e realidades sociais, por outro”
(WALICKI, 1979, p. 14).

Adriana Facina ressalta que toda fonte documental – seja de natureza literária
ou não – “possui o filtro de uma interpretação do mundo social”, sendo que as obras
literárias “em geral têm ainda a intenção consciente de seus autores de realizar tal
interpretação” (FACINA, 2004, p. 22). Assim, é tão lícita a utilização da literatura,
levando em conta suas especificidades, que incluem, de maneira fundamental, a
subjetividade do autor, quanto outros tipos de fonte para a pesquisa histórica. Nos
textos mencionados ao longo deste artigo, é possível perceber, de maneira bastante
pronunciada e mesmo direta, o exercício da interpretação, do diálogo com (e a reação
ao) contexto histórico, havendo ainda a intenção de agir sobre mesmo, repensando-o,
propondo alternativas ou recusando a incorporação de novos elementos tidos
enquanto potencialmente perturbadores, e finalmente, de forma mais explícita no caso
de Tchernichévski, buscando formas e sugestões de intervenção ativa. Antônio
Cândido aponta a existência de um circuito dialético, sempre móvel e tenso,
intercambiante, entre texto e contexto histórico, entre subjetividade criadora (em larga
medida autônoma) e elementos espaciais e temporais, externos à, mas incorporados
na, obra literária (CANDIDO, 1985). Tensões, projetos, críticas e projeções históricas

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Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      
[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]   ISSN  [2236-­‐4846]  
 
aparecem de forma sensível nas obras mencionadas, que compuseram e marcaram o
(sendo ao mesmo tempo marcadas pelo) contexto político e artístico da Rússia
contemporânea.

Referências bibliográficas

BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literárias.
São Paulo: Ed. Nacional, 1985.
FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson
Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
FRANK, Joseph. Pelo prisma russo: ensaios sobre literatura e cultura. São Paulo:
EDUSP,1992.
---------------- Dostoiévski: Os efeitos da libertação (1860-1865). São Paulo: EDUSP,
2002.
---------------- Dostoiévski: Os anos milagrosos (1865-1871). São Paulo: EDUSP,
2003.
LÖWY, Michel. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Walter
Benjamin. São Paulo: Edusp, 1990.
LÖWY, Michel & SAYRE, Robert. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1993.
PIPES, Richard. “Narodnichestvo: A semantic inquiry”. In: Slavic Review, Vol.
XXIII, 1964, pp. 441 e seguintes.
---------------- . Russia under the old regime. Nova York: Penguin Books, 1995.
RIASANOVSKY, Nicholas V. A History of Russia. Nova York: Oxford University
Press, 1993.
TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e Filhos. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.
VENTURI, Franco. El populismo ruso. Madri: Alianza Universidad, 1981.
WALICKI, Adrzej. A history of russian thought: from the enlightenment to marxism.
Stanford: Stanford University Press, 1979.

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