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HOBSBAWM, Eric.

Era dos Extremos: o Breve Século XX


(1914-1991). São Paulo, Companhia das Letras, 2003, 598 p.

Antonio Carlos de Souza


Doutorando em Educação - UNICAMP
e-mail: Anc_souza@uol.com.br

Para o historiador inglês Eric Hobsbawm, calamidade”, (p. 16) as duas grandes guerras,
“O Breve Século XX”, considerando os anos revoluções, crise e colapso da economia mundial
que vão “da eclosão da Primeira Guerra Mundial e o quase desaparecimento das instituições da
ao colapso da URSS” (p. 15) se subdivide em democracia liberal, com exceção de “apenas de
três partes: uma borda da Europa e partes da América do
A “Era da Catástrofe”, que se inicia em Norte e da Austrália. Enquanto isso, avançavam
1914 com a Primeira Guerra Mundial, “que o fascismo e seu corolário de movimentos e
assinalou o colapso da civilização (ocidental) do regimes autoritários”. (p. 17)
século XIX” (p. 16), caracterizada por uma Não há como compreender o Breve

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civilização capitalista, liberal, burguesa, Século XX sem compreender as duas Grandes
cientificista, eurocêntrica e se fecha com o Guerras. No dizer de J. David Singer: “1914
resultados da Segunda Guerra Mundial (1945). inaugura a era do massacre”. E o que confere
A “Era de Ouro”, que vai do imediato pós- caráter catastrófico às guerras e as diferenciam
Segunda Guerra (1947) até a crise mundial de das guerras do passado é a questão industrial-
meados dos anos setenta (1973), “anos de tecnológica, que possibilitou a “guerra em massa”
extraordinário crescimento econômico e onde há o envolvimento de todos os cidadãos e
transformação social, anos que provavelmente a mobilização da maioria: numa sociedade em
mudaram de maneira mais profunda a sociedade que a maior parte do produto social ainda é
humana que qualquer outro período de brevidade realizada na agricultura, a economia não permite
comparável” (p. 15). a mobilização de milhões de homens por vários
“O Desmoronamento”, chamada também anos para batalhas encarniçadas; somente o nível
de “decomposição”, “incerteza”, “crise”, que vai de industrialização atingido pela Europa, EUA e
de meados da década de 1970 até o colapso da Japão no início do século permitiu que surgissem
URSS (início de 1990), onde o mundo “entrou simultaneamente uma alta produtividade do
num futuro desconhecido e problemático, mas trabalho, um exército de reserva de mão de obra
não necessariamente apocalíptico” (p. 16). e a generalização de uma atividade liberta da
O objetivo do autor não é julgar (o que sazonalidade natural inerente à atividade agrícola.
não é difícil para quem tenha vivido neste século), Apesar disso, a mobilização em massa de
mas “compreender e explicar por que as coisas homens para a guerra impôs enormes tensões à
deram no que deram e como elas se relacionam força de trabalho, fortaleceu os partidos social-
entre si”. (p. 13) Para que haja tal compreensão democratas e os sindicatos e suscitou a entrada
é preciso se colocar dentro da história do século. das mulheres no mercado de trabalho de forma
efêmera na primeira guerra e permanentemente
Parte um: a Era da Catástrofe na segunda guerra. (cf. p. 51)
E, se as duas Grandes Guerras, por um
A primeira fase do “Breve Século XX” se lado, enfraqueceram a quase totalidade das
caracteriza pelas catástrofes, de “calamidade em nações, “por outro lado, as guerras foram
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visivelmente boas para a economia do EUA... É indiretos”. (p. 89)


provável que o efeito econômico mais duradouro Analisa a questão do impacto do colapso
das duas grandes guerras tenha sido dar à econômico que abalou e desmoronou a economia
economia do EUA uma preponderância global mundial capitalista entre as duas Grandes Guerras
sobre todo o Breve Século XX”. (p. 55) Sobre e que, segundo Hobsbawm, “a Grande
o impacto humano na era das guerras e seu custo, Depressão destruiu o liberalismo econômico por
fundamental para a compreensão da brutalidade meio século... e obrigou os governos ocidentais
e desumanidade do século XX, Hobsbawm a dar às considerações sociais prioridade sobre
analisa a questão da “tortura”, a “democratização as econômicas em suas políticas de Estado”. (p.
da guerra”, a “impessoalidade da guerra”. Em 99) Um dos maiores traumas da Grande
resumo, “a catástrofe humana desencadeada pela depressão foi que “um país que rompera
Segunda Guerra Mundial é quase certamente a clamorosamente com o capitalismo pareceu
maior da história humana. O aspecto não menos imune a ela: a União Soviética”. (p. 100) O
importante dessa catástrofe é que a humanidade regime soviético surgiu como alternativa de
aprendeu a viver num mundo em que a matança, economia racional e planejada numa época em
a tortura e o exílio em massa se tornaram que as democracias liberais e a política do laissez-
experiências do di-a-dia que não mais notamos”. faire fracassavam visivelmente. A partir dos anos
(p. 58) trinta, as democracias ocidentais adotaram
O “Breve Século XX” também nasceu políticas intervencionistas de matriz keynesiana
com uma nova força: a revolução mundial. “A para recuperar a acumulação e o nível de
revolução foi a filha da guerra no século XX: emprego. Porém, o maior efeito da Grande
especialmente a Revolução Russa de 1917, que Depressão não foi o fortalecimento do
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criou a União Soviética, transformada em movimento revolucionário mundial, mas “o


superpotência...”. (p. 61) As condições fortalecimento da direita radical”, (p. 108)
históricas, a incapacidade da burguesia de fazer inspirado pelo movimento fascista, “que
a revolução e “a reivindicação básica dos pobres compartilhava nacionalismo, anticomunismo,
da cidade era pão, e dos operários entre eles, antiliberalismo etc. com outros elementos não
melhores salários e menos horas de trabalho. A fascistas da direita”. (p. 121) Enfim, “a ameaça
reivindicação básica de 80% dos russos que à sociedade liberal e todos os seus valores
viviam na agricultura era, como sempre, terra” parecia vir exclusivamente da direita; a ameaça
(p. 68) levou os bolcheviques mais que tomar, a á ordem social, da esquerda”. (p. 126) Assim
“colher o poder”. E “a Revolução do Outubro como a Revolução Russa teve repercussão nos
foi universalmente reconhecida como um diversos cantos do mundo, também o movimento
acontecimento que abalou o mundo”, (p. 72) fascista ecoou pelo mundo afora, inclusive no
inspirando revolucionários e uma onde de Brasil.
revoluções pelo mundo afora que, Na visão de Hobsbawm, o fascismo só
acompanhando o movimento da história tinha não triunfou e “a democracia só se salvou porque
como razão fundamental de existir a houve uma aliança temporária e bizarra entre
inevitabilidade utopia da “emancipação universal, capitalismo liberal e comunismo: basicamente a
a construção de uma alternativa melhor para a vitória sobre a Alemanha de Hitler foi, como só
sociedade capitalista” (p. 78) e proporcionar a poderia ter sido, uma vitória do Exército
possibilidade de uma “sociedade sem Vermelho”. É a ironia da história: se por uma
infelicidade, opressão, desigualdade e injustiça”. lado a Revolução de Outubro e a URSS só se
(p. 78) Outros efeitos da Revolução Russa foram deram pela fraqueza do capitalismo, pela
as “guerrilhas”, “insurreições”, a onda global de desestruturação da sociedade burguesa, por
“descolonização” dos países dominados pelas outro lado “o resultado mais duradouro da
nações imperialistas. “Em suma, a história do Revolução de Outubro, cujo objetivo era a
Breve Século XX não pode ser entendida sem a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu
Revolução Russa e seus efeitos diretos e antagonista, tanto na guerra quanto na paz”.

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(p. 17) Se “foi a crise do liberalismo que “Paz Fria”, esquentada pela idéia de aquisição e
fortaleceu os argumentos e as forças do fascismo manutenção da supremacia concreta, daí que “os
e dos governos autoritários” (p. 148), foi a dois lados viram-se assim comprometidos com
imprescindível participação da URSS “a uma insana corrida armamentista para a mútua
salvadora do capitalismo liberal, tanto destruição, e com o tipo de generais e intelectuais
possibilitando ao Ocidente ganhar a Segunda nucleares cuja profissão exigia que não
Guerra Mundial contra Alemanha de Hitler percebessem essa insanidade” (p. 233) e “a
quanto fornecendo o incentivo para o capitalismo Guerra Fria só acabou quando uma ou ambas
se reformar, e também paradoxalmente, graças superpotências reconheceram o sinistro absurdo
à aparente imunidade da União Soviética à da corrida nuclear, e quando um acreditou na
Grande Depressão, o incentivo a abandonar a sinceridade do desejo da outra de acabar com a
crença na ortodoxia do livre mercado”. (p. 89) ameaça nuclear”, (p. 246) que na prática só
Com o enfraquecimento e quase extinção do aconteceu “nas duas conferências de cúpula de
fascismo, entrou em colapso também “a grande ReykjaviK (1986) e Washington (1987)”. (p.
aliança antifascista. Assim que não mais houvera 246) Por outro lado, a Guerra Fria não diminui,
um fascismo para uni-los contra si, capitalismo e mas aumentou os conflitos pelo mundo afora,
comunismo mais uma vez se prepararam para devido ao clima de “competição” entre as
enfrentar um ao outro como inimigos mortais”. superpotências para fazer amigos e influenciar
(p. 177) A Grande Guerra produziu o efeito pessoas distribuindo armas por todo o globo,
global de “descolonização” e, com isso isto é “encheu o mundo de armas num grau que
aconteceu, aquilo que parecia “indestrutível” no desafia a crença”. (p. 250) Na realidade, houve
início do século, “a era imperial acabar”. (p. 219) um aumento generalizado de conflitos e, “desta

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Será? Houve a polarização das duas forma a Guerra Fria se perpetuou”. (p. 251)
superpotências: Os EUA e a URSS. Os Anos Dourados e a Revolução Social.
“Hoje é evidente que a Era de Ouro pertenceu
Parte dois: A Era de Ouro essencialmente aos países capitalistas
desenvolvidos... pois a riqueza mundial jamais
A “Era de Ouro” se caracteriza, por um
chegou à vista da maioria da população do
lado, pela “profunda e irreversível”
mundo”. (p. 255) As desigualdades sociais
transformação econômica, social e cultural
aumentaram na “crescente divergência entre o
promovida pelo capitalismo e, por outro lado,
mundo rico e o mundo pobre que se tornou cada
pela grande aceleração da modernização de
vez mais evidente a partir da década de 60”. (p.
países agrícolas atrasados, inspirados pela
256) O progresso aconteceu às custas da
Revolução Russa de 1917. Neste período dá-
“deteriorização ecológica”, da “padronização do
se uma infinidade de “estratégias rivais”, de
desejo de consumo” e da “tecnologização da vida
confronto entre “capitalismo” e “socialismo”,
cotidiana” e no “desemprego em massa”, pois
protagonizados pelos EUA e URSS e suas
“os seres humanos só eram essenciais para tal
conseqüências concretas: as revoluções sociais,
economia num aspecto: como compradores de
a Guerra Fria, a questão do “socialismo real”, a
bens e serviços”. (p. 262) O que proporcionou
realidade do Terceiro Mundo.
tudo isso foi a “substancial reestruturação e
A Guerra Fria. “A peculiaridade da Guerra
reforma do capitalismo e um avanço bastante
Fria era a de que, em termos objetivos, não existia
espetacular na globalização e internacionalização
perigo iminente de guerra mundial. Mais que isso:
da economia... A Era de Ouro democratizou o
apesar da retórica apocalíptica de ambos os
mercado”. (p. 264) O boom da industrialização
lados, mas sobretudo do lado americano, os
levou “à morte do campesinato”, conforme a
governos das superpotências aceitaram a
previsão de Marx (cf. p. 285) e “quando o
distribuição global de forças no fim da Segunda
campo se esvazia, as cidades se enchem” (p.
Guerra Mundial, que equivalia a um equilíbrio
288) e “quase tão dramático quanto o declínio e
de poder desigual mas não contestado em sua
queda do campesinato, e muito mais universal,
essência”. (p. 224) Na realidade era mais uma
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foi o crescimento de ocupações que exigiam exagerada burocratização que um governo de


educação secundária e superior”, (p. 289) que comando centralizado engendrou, e que nem
propiciou a organização e mobilização dos Stalin pôde enfrentar”. (p. 374) Uma outra
movimentos estudantis de reivindicações. O “desvantagem do sistema, e aquela que acabou
processo de produção, baseado no fordismo, por afunda-lo era sua inflexibilidade”. (p. 375)
levou a uma crise de consciência e Enquanto Lênin é descrito com adjetivos
desestruturação da classe operária. (cf. pp. 296- elogiosos ou de forma positiva, (pp. 378-380)
304) Um outro fator essencial neste período foi “Stálin dirigiu seu partido, como tudo mais ao
desempenhado pelas mulheres, especialmente na alcance de seu poder pessoal, pelo terror e o
sua crescente entrada na educação superior e medo”. (p. 380) Hobsbawm considera que a
no mercado de trabalho. (cf. pp. 304-313) manutenção do sistema soviético, de uma forma
Revolução cultural. “A melhor abordagem ou de outra, tenha precisado de uma ação dura,
dessa revolução cultural é portanto através da tanto que “o desmoronamento político do bloco
família e da casa, isto é, através da estrutura de soviético começou com a morte de Stalin, em
relações entre os sexos e gerações”. (p. 314) 1953, mas sobretudo com os ataques oficiais a
Isso se concretiza na questão do divórcio, dos era stalinista em geral e, mais cautelosamente,
nascimentos ilegítimos e o aumento de famílias ao próprio Stalin, no XX Congresso do PCUS,
com um só dos pais, criando, assim uma “nova em 1956”. (p. 386-387)
cultura juvenil”, (p. 319) muito mais subjetivista,
individualista, consumista. Para Hobsbawm, “a Parte três: o Desmoronamento
revolução cultural de fins do século XX pode
assim ser mais bem entendida como o triunfo do “A história dos vinte anos após 1973 é a
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indivíduo sobra a sociedade, ou melhor, o de um mundo que perdeu suas referências e


rompimento dos fios que antes ligavam os seres resvalou para a instabilidade e a crise”. (p. 393)
humanos em texturas sociais”. (p. 328) Assim, A terceira fase se caracteriza pelo
as famílias tradicionais e as igrejas mais “Desmoronamento”, uma “crise universal e
organizadas tradicionalmente foram as global”, que tem com causa fundamental a
instituições mais solapadas moralmente pelo “transnacionalidade” da economia mundial,
novo individualismo moral. (cf. p. 330) Por outro criada na “Era de Ouro”, idéia esta que
lado, começou a rarear o ar na atmosfera suplantava e solapava os regimes e sistemas de
capitalista, pois “maximização e acumulação de Estado. (cf. pp. 413ss) A conseqüência da crise
lucros eram condições necessárias para o sucesso foi geral: “desemprego em massa, depressões
do capitalismo, mas não suficientes”. (p. 336) cíclicas diversas, contraposição cada vez mais
“Socialismo Real”. “Os fundadores do espetacular de mendigos sem teto e luxo
marxismo supunham que a função da Revolução abundante, em meio a rendas limitadas de Estado
Russa só podia ser a de provocar a explosão e despesas ilimitadas de Estado”. (p. 19) Daí o
revolucionária nos países industrializados mais aumento da pobreza e da miséria como “parte
avançados, onde estavam presentes as condições do impressionante aumento da desigualdade
para a construção do socialismo. (p. 366) Mas social e econômica na nova era”. (p. 396) E
isso não ocorreu. A guerra civil matou a maior Hobsbawm cita o Brasil como “candidato a
parte dos operários industriais russos e campeão mundial de desigualdade econômica”.
desindustrializou o país. (cf. pp. 369-370) Na (p. 397) Neste contexto os países capitalistas
questão política se destaca a desfiguração da buscaram soluções radicais, muitas vezes
base social do partido bolchevique e o retrocesso ouvindo teólogos seculares do livre mercado
político operado pelo estilo “autocrata de irrestrito, que rejeitavam as políticas que tão bem
ferocidade, crueldade e falta de escrúpulos haviam servido à economia mundial durante a
excepcionais” (p. 371) de Stálin. Isto, combinado Era de Ouro e que agora pareciam estar falhando.
à estrutura de partido de vanguarda de quadros É a discussão entre keynesianos e liberais (cf. p.
disciplinados, facilitou a uma “enorme e 398ss) enquanto que “os países socialistas, agora

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com suas economias desabando, vulneráveis, a maioria violenta e sangrenta, que aconteceram
foram impelidos a realizar rupturas igualmente, entre a década de 70 e 90, (cf. pp. 436-442)
ou até mais, radicais com o seu passado e, como protagonizadas especialmente pela “revivescência
sabemos, rumaram para o colapso”. (p. 19) Se das massas” pois “em fins do século XX as
por um lado, a desintegração econômica mundial ‘massas’ retornaram à cena mais em papéis
ajudou a adiantar o processo de desintegração principais que coadjuvantes”. (p. 443) Daí que,
política na URSS e a fez desaparecer, por outro numa perspectiva realista, “o mundo do terceiro
lado “os três regimes comunistas asiáticos milênio portanto quase certamente continuará a
sobreviventes (China, Coréia do Norte e Vietnã) ser de política violenta e mudanças políticas
assim como a distante e isolada Cuba, não forma violentas. A única coisa incerta nelas é onde irão
imediatamente afetados”. (p. 471) levar”. (p. 446)
A crise econômica provocou instabilidade O “Breve Século XX” terminou com
e “minaram os sistemas políticos das contradições e paradoxos sociais: o grande
democracias liberais”, especialmente os países aumento da produção de bens e serviços e a
do Terceiro Mundo, (cf. pp. 411-413) prevalência da desigualdade entre os povos ou
“esfacelando os Estados-nação territoriais, o “alargamento do abismo entre os países ricos
soberanos e independentes, inclusive os mais e pobres do mundo”; (p. 549) o fosso entre
antigos e estáveis, viram-se esfacelados pelas alfabetizados e analfabetos (especialmente
forças de uma economia supranacional ou funcionais); por um lado, o avanço da revolução
transnacional e pelas forças infranacionais de tecnológica, especialmente nos transportes e nas
regiões e grupos étnicos secessionistas, alguns comunicações e, por outro lado, inquietações,
dos quais, tal é a ironia da história, exigiram para incertezas, desconfiança no futuro, gerados pelos

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si o status anacrônico e irreal de ‘Estados-nação’ barbarismo, hostilidades diversas, guerras sem
em miniatura. (cf. pp. 20 e 413-414) “O futuro razão que tiveram como grande vítima as
da política era obscuro, mas sua crise, no final populações civis, “catástrofes humanas que
do Breve Século XX, patente”. (p. 20) “As produziu, desde as maiores fomes na história até
décadas de crise foram a era em que os Estados o genocídio sistemático”. (p. 22)
Nacionais perderam seus poderes econômicos”. O mundo do final do Breve Século XX é
(p. 398) Mas, “o principal efeito das Décadas muito diferente daquele do início, em pelo menos
de Crise foi assim ampliar o fosso entre países três aspectos: o mundo deixou de ser
ricos e pobres”, (p. 413) causado pela imposição eurocêntrico e surgiu uma nova potência,
de políticas protecionistas de organismos hegemônica, os EUA; o globo tornou-se “uma
financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial), unidade operacional básica” devido à
“apoiados pela oligarquia dos grandes países transnacionalidade, um processo de globalização
capitalistas”. (p. 420) acelerado, uma “aldeia global”; e “a terceira
Alem da crise econômica e política era “a transformação, em certos aspectos a mais
crise moral e social”, da descrença em relação à perturbadora, é a desintegração de velhos
conquista moderna “das teorias racionalistas e padrões de relacionamento social humano, e
humanistas”, abraçadas tanto pelo capitalismo com ela, aliás, a quebra de elos entre as gerações,
quanto pelo comunismo. Segundo Hobsbawm, quer dizer, entre passado e presente”. (p. 24)
a crise moral e social “não era a crise de uma Daí a predominância, especialmente na
forma de organizar sociedades, mas de todas as sociedade capitalista, de um individualismo
formas”. (p. 21) Desapareceu toda a associal absoluto, da desintegração das religiões
possibilidade de um movimento internacional e sociedade tradicionais e “também pela
capaz de fazer uma revolução mundial, centrado destruição, ou autodestruição, das sociedades
no modelo jacobino de 1793 e no modelo Russo do ‘socialismo real’”. (p. 24) “Essa sociedade,
de 1917. Contudo “continuava existindo a formada por um conjunto de indivíduos
instabilidade social e política que gerava egocentrados sem outra conexão entre si, em
revoluções”. (p. 436) Daí a lista das revoluções, busca apenas da própria satisfação (o lucro, o

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prazer ou seja lá o que for), estava sempre devido à distância entre a “classe política” e
implícita na teoria capitalista”. (p. 25) É só “eleitores”, promovendo uma indiferentismo
conferir o eloqüente tributo do Manifesto político, pois, de um lado, “no fim do século, um
Comunista de 1848, de Marx e Engels, ao papel grande número de cidadãos se retirava da
revolucionário do capitalismo. Na realidade, o política, deixando as questões de Estado à ‘classe
capitalismo não “desintegrou” nada, mas política’” e de outro lado, “a riqueza, a
simplesmente teve seu êxito “adaptando privatização da vida e da diversão do egoísmo
seletivamente a herança do passado par uso do consumo tornavam a política menos
próprio”. (p. 25) importante e menos atraente” supondo assim
Rumo ao Novo Milênio. “O século XX “que a despolitização deixaria as autoridades
acabou em problemas para os quais ninguém mais livres para tomar decisões”. (p. 558) Se há
tinha, nem dizia ter, soluções”. (p. 537) Um dos um certo pessimismo, por outro lado, o Breve
problemas é a “democratização ou privatização Século XX proporcionou a possibilidade das
dos meios de destruição, que transformou a “pessoas comuns entrarem na história como
perspectiva de violência e depredação em atores com seu direito coletivo próprio. Todo
qualquer parte do globo” (p. 539) através dos regime, com exceção da teocracia, agora deriva
fundamentalismos religiosos, políticos da autoridade delas, mesmo os que aterrorizam
(xenofobia). Em relação às ideologia dominantes, e matam seus cidadãos em grande escala”. (p.
o capitalismo e o socialismo, “o fracasso do 559) A capacidade de mobilização “da massa
modelo soviético confirmou aos defensores do das pessoas comuns” e “os limites do simples
capitalismo sua convicção de que nenhuma poder coercitivo” são uma constante no Século
economia sem Bolsa de valores podia funcionar; XX. “Em suma, ao contrário das aparências, o
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o fracasso do modelo ultraliberal confirmou aos século XX mostrou que pode governar contra
socialistas a crença mais justificada em que os todas as pessoas por algum tempo, contra
assuntos humanos, incluindo a economia, eram algumas pessoas por todo o tempo, mas não
demasiadamente importantes para ser deixados contra todas as pessoas todo o tempo. Claro
ao mercado”. (pp. 542-543) E, “embora o que isso não era consolo para minorias
capitalismo certamente não se achasse na melhor permanentemente oprimidas ou para povos que
das formas no fim do Breve Século XX, o sofreram opressão praticamente universal por
comunismo do tipo soviético estava uma geração ou mais”. (p. 560) É preciso criar
inquestionavelmente morto, e era muito meios de participação mais efetivos nos destinos
improvável que revivesse”. (p. 553) da história.
Então, quem poderia garantir um mínimo Hobsbswm diz que “a história é o registro
de bem-estar a todos e contrabalançar as dos crimes e loucuras da humanidade... Profetizar
tendências de desigualdade tão latentes no não ajuda nada... Contudo, esperanças e
mundo? Para Hobsbawm, “de uma forma ou de temores não são previsões”. (p. 561) E conclui
outra, o destino da humanidade no novo milênio dizendo: “Sabemos que, por trás da opaca
iria depender da restauração das autoridades nuvem de nossa ignorância e da incerteza de
públicas. Isso nos deixa com um duplo problema. resultados detalhados, as forças históricas que
Qual seriam a natureza e o âmbito das moldaram o século continuam a operar. Vivemos
autoridades responsáveis pelas decisões – num mundo conquistado, desenraizado e
suprancacionais, nacionais, subnacionais e transformado pelo titânico processo econômico
globais, sozinhas ou combinadas? Qual seria a e tecnocientífico do desenvolvimento do
relação delas com as pessoas sobre quem se capitalismo, que dominou os dois ou três últimos
tomam as decisões?” (p. 555) As respostas a séculos. Sabemos, ou pelo menos é razoável
tais problemas são contraditórias: primeiro supor, que ele não pode prosseguir ad infinitum.
porque as grandes decisões mundiais passam O futuro não pode ser continuação do passado,
pelos organismos capitalistas do capitalismo e há sinais, tanto externamente quanto
internacional (FMI, Banco Mundial) e, segundo, internamente, de que chegamos a um ponto de

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crise histórica. As forças geradas pela economia


tecnocientífica são agora suficientemente grandes
para destruir o meio ambiente, ou seja, as
fundações materiais da vida humana. As próprias
estruturas das sociedades humanas, incluindo
mesmo algumas das fundações sociais da
economia capitalista, estão na iminência de ser
destruídas pela erosão do que herdamos do
passado humano. Nosso mundo corre o risco
de explosão e implosão. Tem de mudar. Não
sabemos para onde estamos indo. Só sabemos
que a história nos trouxe até este ponte e por
quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a
humanidade quer ter um futuro reconhecível, não
pode ser prolongamento do passado ou do
presente. Se tentarmos construir o terceiro
milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço
do fracasso, ou seja, a alternativa para uma
mudança da sociedade, é a escuridão” (p. 562).

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