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Jornalismo cidadao Alzira Alves de Abreu Introducao Uma das peculiaridades do processo de democratizacao do Brasil, ap6s 0 fim do regime militar (1964-1985), foi a ampliacao do papel da midia, que se tor- nou uma das mais importantes instituigdes co-participantes na construgao da nossa cidadania. Atéo inicio dos anos 1980, viviamos em um regime politico que censurava os meios de comunicacao ¢ privava a maior parte da populacao dos seus direitos civis e politicos. A Constituigao de 1988 significou a tiltima etapa da transicdo para a democracia, quando foram reconquistadas liberdades até entao suprimidas. A “Constituigao cidada”, como a chamava o presidente da consti- tuinte, deputado Ulysses Guimaraes, pretendia enterrar o “entulho autoritario” ¢ instituir finalmente o regime democratico. Nota: Este texto se insere no projeto “Brasil em transicio: um halango do final do século XX", apoiado pelo Programa de Apoio a Ncleos de Exceléncia (Pronex). O projeto tem o CPDOC da Fundagio Getulio Vargas como instituigio-sede e o Programa de Pés-Graduacio em Antropologia e Ciéncia Politica da UFF como instituigao participance Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, n° 31, 2003, p. 25-40. 25 26 estudos histéricos ® 2003 - 31 Paralelamente ao processo de redemocratizacao, assistiu-se no paisa um debate publico sobre o acesso a justica ¢ 0 direito de defesa dos cidadaos. Deu-se relevancia a extensao da cidadania & toda a sociedade, ¢ nesse ponto teve grande peso a intervencdo da imprensa, que tentava dessa forma legitimar a sua propria acao. E importante assinalar que s6 recentementea informacao se tornou estrela de primeira grandeza na conquista e no exercicio da cidadania. ‘A democracia, para se consolidar, requer a competicao aberta pelo con- trole do governo. De acordo com Linz Stepan (1999: 47), “nao pode haver uma democracia moderna complexa sem eleicdes, nao pode haver eleigdes sem cida- dania, e ndo pode haver participagao oficial na comunidade de cidadaos sem um Estado para certificar essa participacao”. ‘A cidadania é constituida pelos direitos que permitem o exercicio da li- berdade individual. A liberdade de ir e vir, a igualdade perante a lei, a liberdade de pensamento ea liberdade de contratar e possuir propriedades seriam os direi- tos civis da cidadania. A cidadania politica € 0 dircito de participar do poder poli- tico, tanto diretamente, pelo governo, quanto individualmente, pelo voto. Jaa ci- dadania social implica um conjunto de direitos ¢ obrigagoes que possibilita a participacao igualitaria de todos os membros de uma comunidade nos seus pa- dries basicos de vida (Roberts, 1997), No classico estudo de Marshall, o surgi- mento desses trés tipos de direito teria obedecido a uma sequncia cronoldgica, a qual por sua vez obedeceria a uma légica politica. Ao ter assegurados seus dire! tos civis, 0s individuos lutariam para obter direitos politicos e chegariam final- mente a obtencao dos direitos sociais (Marshall, 1967). Eevidente que informacao é um dos elementos fundamentais para que 0 individuo possa exercer plenamente os seus direitos. A imprensa é um veiculo que fornece informagses aos cidadios ¢, simultaneamente, Ihes da a possibilida- de de levar suas demandas até os responsaveis pelas decisoes que afetam a vida em sociedade, A imprensa tem por funcao dar visibilidade & “coisa publica”, ea visibilidade é uma condigio da democracia. Nao por acaso, as primeiras medidas dos regimes autoritarios geralmente visam a restringir a liberdade de informa- gio, e a censura é imediatamente imposta as estagdes de radio e televisio ¢ a im- prensa escrita. Por outro lado, a informagao é decisiva para os movimentos de li- bertacdo contra a opressao. E é a imprensa que permite ao cidadio alargar o seu conhecimento sobre as questdes ptiblicas, evidentemente, no sobre o todo, ¢ sim sobre parte do que se passa na sociedade. Explicar os tipos de relacio que se estabeleceram entre imprensa e cida- dania, suas formas de expressao, as representacdes que os jornalistas tém da soci- edade e do piiblico leitor e seus reflexos sobre a orientacao eo contetido da infor- macdo sio parte dos objetivos deste texto. Outro aspecto examinado sao as novas demandas de acesso & justiga por parte da populacao, principalmente a de baixa Jornalismo cidadao renda, e o apelo a imprensa como intermediaria nessas reivindicagoes. Es: algumas das quest6es que pretendemos discutir, embora tenhamos mais diividas do que respostas aos problemas ligados a relagao entre jornalismo e cidadania. Nio € nossa intengdo analisar aqui as causas das dificuldades de acesso at justica € 4 cidadania na nossa sociedade, mas algumas explicagdes sero sugeridas. A revalorizagéo da cidadania Inicialmente, constata-se que 0 grande sucesso do tema “cidadania”, na atualidade, foi acompanhado da perda de importancia do tema “luta de classes” O voluntarismo politico ocupa o espaco do determinismo econémico, e seu uni- versalismo transcende os particularismos socioccondmicos (Kail, 1996: 3). Ao longo do século XX, a luta politica deixou em segundo plano a luta pelos direitos do homem, vistos como nodes burguesas. A cidadania nao era um tema considerado relevante pelas ciéncias sociais no Brasil, em parte devido a forte politizacao e & influéncia marxista que predominavam entre os cientista sociais. Marx entendia que a verdadeira “emancipacao politica” s6 se pode re zar no ambito da “emancipacio social”, isto é, no ambito da revolucao do prole- tariado, Ele identificava, nas constituigdes burguesas, os “direitos do homem” como algo definido pelo molde dos direitos do burgués. Os direitos, tal como sio assegurados pelo Estado, segundo Marx, pressupoem a desigualdade na econo- mia e na sociedade (Weffort, 2002: 253-4). Durante décadas a esquerda brasileira lutou pela implantagao de um re- gime socialista, em que os meios de producio seriam controlados pelo Estado, o que reduziria as desigualdades sociais, as injustigas etc. Mas foi na vigéncia do regime militar, quando as regras formais da democracia deixaram de ser respei- tadas, que se tornou evidente que os direitos formais eram importantes para 0 controle das arbitrariedades do poder ¢ fundamentais para a protegio do cida- dio, Por outro lado, com a queda do muro de Berlim, em 1989, eo fim do regime comunista da Uniao Soviética e dos paises do leste europeu, deu-se a reconversio da ideologia socialista em beneficio da afirmagao dos direitos do homem, da construgao da cidadania, da defesa das minorias, dos novos movimentos sociais. A luta por justiga ganhou preeminéncia e substituiu a militancia revolucionaris Hoje, as pessoas se engajam na construcdo da cidadania e na extensio dos direi- tos humanos para todos. A cidadania voltou a ser um conceito que tem atualidade, e que hoje se baseia na luta contra a exclusao social, Ser cidadao € estar incluido na comunida- de. Como indica Reis (1999), ser cidadao é ser identificado com uma nacao parti- culare ter direitos garantidos pelo Estado correspondente a essa nacio. Segundo a mesma autora, no Brasil, a discussao da democratizacao avanca para a consoli-

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