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A guerra de guerrilhas de Che Guevara:

entre rupturas e continuidades com o stalinismo

Carlos Batista Prado*

Resumo: O estudo do pensamento de Guevara é essencial para o entendimento da política


latino-americana. No entanto, é preciso investigar seus avanços teóricos, suas contribuições,
mas sem perder de vista, os erros e limites de suas teses. Para tanto, confrontaremos a teoria a
teoria da guerra de guerrilhas de Guevara com as teses desenvolvidas por Stalin, representadas
pela III Internacional. Nosso objetivo é perceber em que medida as teorias de Guevara
romperam e em que medida suas teorias representam uma continuidade das teses de Stalin.

Palavras-chave: Guerrilha; revolução; stalinismo; América.

The war of guerrilhas oh Che Guevara: between breaks and continuities with the
stalinism

Abstract: The study of the thought of Guevara is essential to understanding the Latin American
policy. However, we must investigate its theoretical advances, their contributions, but without
losing sight of the mistakes and limits of their theses. To do so, face the theory of the theory of
warfare, Guevara with the theories developed by Stalin, represented by the International III. Our
objectives are to see to what extent the theories of Guevara disrupted and to what extent his
theories represent a continuity of theories of Stalin.

Key words: Warfare; revolution; stalinism; America.

A teoria da guerra de guerrilhas


Logo após o triunfo da revolução em Cuba, pela via guerrilheira, Che Guevara
se preocupou em sistematizar e teorizar para generalizar essa experiência. Dedicou-se a
analisar e a escrever acerca do processo revolucionário cubano, enfatizando a estratégia
da guerra de guerrilhas.1 Das reflexões de Che surgiu à chamada teoria do “foco
guerrilheiro”, denominada também de “guevarismo” ou até mesmo de “castrismo”.
A guerrilha como estratégia de luta causou um grande impacto nos movimentos
da esquerda mundial, mas seus efeitos imediatos foram mais sensíveis principalmente
na América Latina. Segundo Debray (1980, p. 11): “Historicamente, Cuba deu a
arrancada para a revolução armada na América Latina”. Boa parte das autoridades
cubanas e líderes de movimentos políticos de todo o continente latino-americano

*
Mestrando em Filosofia pela Unioeste/Toledo. End. eletrônico: carlosfloyd@terra.com.br
1
“Apenas Fidel, o Che, Raúl e Camilo tinham autoridade moral para escrever a história oficial da guerra.
Ao primeiro faltava tempo, paciência, e ambição literária ou teórica. Seu irmão aquilatou desde muito
cedo as vastas virtudes do silêncio: seria por quase quarenta anos o homem das sombras. Camilo carecia
de vocação, e também não teve tempo: morreu em novembro. Por eliminação, sobrava o Che, que além
do mais tinha aptidão inata para a tarefa” (CASTAÑEDA, 2006, p. 183).
também passaram a optar pela via armada guerrilheira para alcançar o poder e construir
o socialismo.
Diante desse contexto, Guevara apareceu como o mentor intelectual da guerra de
guerrilhas, como o seu principal teórico e sistematizador. Os objetivos de Guevara eram
evidentes. Em seus escritos deixava claro que a revolução cubana havia sido apenas o
prelúdio de uma onda revolucionária que varreria o continente latino-americano.
Portanto, sua principal preocupação era “Encontrar as bases em que se apóia este tipo de
luta, as regras a seguir pelos povos que buscam sua libertação; teorizar o fato, estruturar
e generalizar esta experiência para o aproveitamento de outros” (GUEVARA, 1982, p.
15).
É no livro A Guerra de Guerrilhas que se encontra a principal contribuição de
Che Guevara à sistematização dessa forma de luta. Trata-se, pois, de um manual
político-militar de orientação prática para os homens que se decidissem pela via
guerrilheira. Essa obra se destacou porque relatava minuciosamente detalhes da
organização interna de uma guerrilha.
Logo nas primeiras linhas do livro, Che Guevara aponta as três principais
contribuições que a experiência guerrilheira cubana legou aos movimentos
revolucionários latino-americanos: São elas: “1) As forças populares podem ganhar uma
guerra contra o exército. 2) Nem sempre há que se esperar que se dêem todas as
condições para a revolução; o foco insurrecional pode criá-las. 3) Na América
subdesenvolvida, o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo”. (
GUEVARA, 1982, p. 13).
Essa passagem expressa em síntese os elementos centrais da teoria da guerra de
guerrilhas. Segundo Guevara a primeira lição da revolução cubana é um fator subjetivo,
pois, ela demonstrou que mesmo em condições adversas a vitória é possível.2 Trata-se
da tomada de consciência de que a vitória do povo em armas contra um exército bem
treinado e armado não é simplesmente tentativa de suicídio ou ilusão.
A segunda tese de Che Guevara, diretamente relacionada à primeira, aparece
claramente como uma critica a inoperância dos Partidos Comunistas. Rompendo com os
dogmas da III Internacional stalinista, a guerra de guerrilhas declara que as condições

2
Guevara (2005, p. 107) salienta que: “(...) agora se sabe perfeitamente a capacidade de coroar com êxito
uma empresa como aquela, acometida por aquele grupo de iludidos expedicionários do Granma em sua
luta de dois anos em Sierra Maestra. Isso indica imediatamente que se pode fazer um movimento
revolucionário que atue a partir do campo, que se ligue às massas camponesas, que cresça, que destrua o
exército em luta frontal, que tome as cidades a partir do campo, que vá incrementado com sua luta, as
condições subjetivas necessárias para tomar o poder”.
objetivas para o processo revolucionário deveriam ser criadas e desenvolvidas. Assim,
os fatores como: consciência, determinação política, organização, mobilização,
conhecimento teórico, etc., emergiriam naturalmente mediante a atuação dos
guerrilheiros junto às populações camponesas.
Por fim, a terceira tese parece ser a mais problemática e discutível de todas.
Guevara a aponta a América Latina como “subdesenvolvida” e diante dessas condições
indica que o campo seria o terreno no qual a luta revolucionária se desenvolveria e,
portanto, o camponês seria o agente revolucionário.
Vejamos então, o princípio, desenvolvimento e fim da guerra de guerrilhas:
Guevara (1982, p. 66) observou que: “No início, há um grupo mais ou menos armado,
mais ou menos homogêneo, que se dedica quase exclusivamente a esconder-se nos
lugares mais agrestes, mantendo raros contatos com os camponeses”. Portanto, o
primeiro momento da guerra de guerrilhas se caracteriza pelo isolamento de um grupo
pequeno de homens embrenhados na mata.
No entanto, a luta não pode avançar sem o apoio dos camponeses, os
guerrilheiros não podem alcançar o triunfo se permanecerem apenas se escondendo nas
montanhas sem estabelecer contato com a população local. Por isso, é necessário um
constante trabalho político com os camponeses. Seria a partir desse contato que Guevara
pensava o desenvolvimento do fator subjetivo. É preciso um “trabalho popular
intensivo, explicando os motivos da revolução, os fins desta mesma revolução,
disseminando a verdade inconteste de que não se poder vencer o povo de maneira
definitiva”. (GUEVARA, 1982, p. 20). É necessário um trabalho que consiga promover
a identificação entre camponeses e guerrilheiros: “É importante destacar que a luta
guerrilheira é uma luta de massas, é uma luta popular; a guerrilha como núcleo armado,
é a vanguarda combatente do mesmo, sua grande força reside na massa da população.”
(GUEVARA, 1982, p.15).
Por que razão os camponeses deveriam aderir à luta de alguns barbudos
embrenhados nas montanhas? Nesse sentido, os guerrilheiros deveriam agir como um
catalisador político, pois, só conseguiriam êxito se fossem capazes de incorporar à luta
guerrilheira o fator social dos trabalhadores rurais. Guevara (1982, p. 16) argumentava
que “o guerrilheiro é um reformador social que empunha as armas respondendo ao
protesto irado do povo contar seus opressores e que luta para mudar o regime social que
mantém todos seus irmãos desarmados na ignonímia e na miséria”.
Segundo Che Guevara na América Latina subdesenvolvida, com economia
predominantemente agrária, a maior parte da população se encontrava no campo e
também as maiores contradições. De um lado, o trabalhador desprovido das condições
objetivas para realizar seu trabalho e do outro lado os grandes latifundiários,
concentrando a propriedade da terra nas mãos de uma minoria privilegiada e
exploradora.
Os escritos de Guevara apontam que diante dessas contradições latentes, a
principal aspiração do camponês latino-americano é a propriedade da terra. Os
guerrilheiros, portanto, devem atuar para demonstrar claramente está relação baseada
em antagonismos inconciliáveis. Para Guevara (1982, p.16): “O guerrilheiro é antes de
tudo um revolucionário agrário. Interpretam os desejos da grande massa camponesa de
ser dona da terra, dona de seus meios de produção e de seus animais, de tudo aquilo que
desejou durante anos (...)”.
A base econômica da luta guerrilheira está dada pela aspiração do camponês
pela posse da terra. Portanto, a reforma agrária é a principal bandeira que os
guerrilheiros deveriam levantar, pois, essa seria a reivindicação capaz mobilizar as
massas oprimidas e desenvolver a luta. Em outras palavras, seria a condição necessária
para o desenvolvimento dos fatores subjetivos; a tomada de consciência dos
camponeses e a opção pela luta armada.
Com o apoio dos camponeses a guerrilha cresce e se expande até alcançar
proporções nacionais. Nesse momento da guerra, instaura-se uma dualidade de poder,
que é fundamental para a desmoralização do Estado burguês e para que a luta avance e
alcance maior magnitude. Pode-se compreender que a guerrilha é apenas o primeiro
momento da guerra, ela precisa expandir-se, fundir-se com outros grupos, para assim,
romper o isolamento político e então, o grupo reduzido de guerrilheiros se torna um
exército regular, a guerra de guerrilhas se torna uma guerra regular, ou seja, uma guerra
civil e, só nessas condições se é capaz de derrotar o exército e tomar o poder. Portanto,
o objetivo último da guerrilha é a sua própria superação.
Estes são os fundamentos gerais da guerra de guerrilhas de Che Guevara.
Vejamos agora, em quais aspectos essa teoria estabeleceu um rompimento com as teses
stalinistas da III Internacional e em quais aspectos Che cooptou com essas teses.

Rupturas com o stalinismo


Crítica aos partidos comunistas burocratizados
Os partidos comunistas orientados pela burocracia soviética, principalmente a
partir do Congresso da III Internacional Comunista de 1928, adotaram as teses
stalinistas e passaram a atuar de maneira geral, a partir dos seguintes princípios:
a) Os países latino-americanos são países de economia “atrasada”,
“subdesenvolvida”, “semicolonial”, “dependentes” e dominados pelo imperialismo
norte-americano.
b) A contradição fundamental não reside na luta de classes entre burguesia e
proletariado, mas sim, na contradição entre capital nacional e capital estrangeiro. Os
partidos comunistas deveriam atuar na luta pela revolução democrática (burguesa);
construir uma frente nacional-democrática baseada na aliança eleitoral entre os partidos
comunistas e os partidos burgueses progressistas, para assim, estabelecer um governo
nacionalista apoiado nas massas.
c) As principais tarefas dessa etapa da revolução (etapa burguês-democrática)
eram a reforma agrária e a expropriação das indústrias estrangeiras, enfatizando a luta
antiimperialista.
d) Devido à ausência de uma classe operária significativa e ao “atraso”
econômico, o socialismo só poderia ser pensado como tarefa futura; dever-se-ia
primeiro, desenvolver o capitalismo em toda sua plenitude.

Como se vê, os partidos comunistas “stalinistas” atuavam na realidade como


uma força contra-revolucionária. Na contra mão dessas teses, Che Guevara rompeu com
a “via pacífica” e colocou a revolução socialista na ordem do dia, como necessidade
imediata.3 Esse rompimento apareceu claramente em sua segunda tese, acerca das
guerrilhas na América Latina.
Em primeiro lugar, porque segundo Che não se tratava de esperar as condições
objetivas para iniciar a luta pelo socialismo, não se tratava de esperar que as forças
produtivas se desenvolvam. A guerra de guerrilha aparece como uma crítica a

3
“Contra o atentismo “neokautskiano” de certos partidos da esquerda tradicional, que se recusavam a agir
sob o pretexto da “imaturidade das condições”, Che salienta que os partidos marxistas não podem
“aguardar de braços cruzados” o aparecimento de todas as condições objetivas para que o “poder caia
como um fruto maduro nas mãos do povo”. Partindo da experiência da guerrilha em Cuba – que, pela sua
própria ação, criara uma das condições subjetivas da revolução: a certeza da possibilidade de uma
mudança – formula este princípio geral de toda a teoria da práxis revolucionária: o papel dos partidos de
vanguarda é contribuir para a criação das condições necessárias para a tomada do poder, “e não se
tornarem novos espectadores da onda revolucionária que nasce no seio do povo”. É a partir dessas
premissas que se torna necessário aprender a teoria castro-guevarista do núcleo da guerrilha como
catalisador.” (LÖWY, 2003, p. 35).
imobilidade dos partidos comunistas e, ao contrário deles Guevara deixou claro que as
condições para o desenvolvimento de um processo revolucionário deveriam ser forjadas
pela própria luta. Em segundo lugar, Che Guevara salientou que não se tratava de uma
revolução burguesa, presa aos limites da ordem capitalista, mas sim de uma revolução
socialista. Guevara rompe com as posições da revolução em duas etapas e coloca o
socialismo como possibilidade imediata.

Crítica a aliança com a Burguesia reacionária


Ao contrário dos partidos comunistas que buscavam formar alianças eleitoreiras
com os setores progressistas das burguesias nacionais, Guevara percebeu que as
burguesias nacionais eram na verdade, forças conservadoras e que temiam mais uma
revolução social que as relações contraditórias com o capital estrangeiro. As burguesias
nacionais latino-americanas, apesar de entrarem em contradição direta com o
imperialismo não se transformaram em uma força revolucionária.
Pelo contrário, estavam temerosas frente uma revolução, pois, diante de um
clímax revolucionário, da organização e pressão do operariado poderiam perder o
controle sobre as transformações. A burguesia nacional desejava uma revolução de
libertação nacional para que pudesse com maior liberdade comandar a extração de mais-
valia das classes trabalhadoras. No entanto, temia que essa revolução fugisse de seu
controle e se transformasse em uma revolução social.
Os partidos comunistas buscavam alianças com as burguesias nacionais por a
considerarem “setores progressistas”, acreditavam que por estarem em contradição com
o imperialismo estariam de mãos dadas e caminhando junto com as classes exploradas.
E, portanto, era uma força revolucionária pronta para realizar a revolução. Rompendo
com essas teses, Che Guevara destacava que as burguesias nacionais eram uma força
reacionária e, que aliada aos latifúndios e ao capital estrangeiro, buscavam a todo custo
frear qualquer processo revolucionário para manter a ordem estabelecida e seus
privilégios, enquanto classe dominante.

Crítica à via eleitoral


Dentro dessa perspectiva, Guevara criticava veementemente as lutas que se
travavam nos limites da legalidade burguesa. Ele deixa claro que a luta no interior da
democracia burguesa, ou seja, a luta eleitoral, a disputa dentro do parlamento por cargos
no executivo e no legislativo ou até mesmo manifestações públicas, passeatas ou greves
são facilmente reprimidas pelo braço armado do Estado e não tem condições reais de
avançar para a tomada do poder ou para a transformação da sociedade pelo socialismo.
Para Guevara as lutas dentro da legalidade não passam de uma fórmula limitada,
que só traz pequenos avanços e satisfazem apenas as necessidades imediatas da
população e a mantém na condição de classe explorada. Segundo Che (1982, p. 14): “é
necessário demonstrar claramente para o povo a impossibilidade de manter a luta por
reivindicações sociais dentro do plano da luta cívica.”.
Suas teses batem de frente com as teorias contra-revolucionárias do stalinismo
que optavam pela luta eleitoral em aliança com as burguesias nacionais. Ora, uma
revolução não é feita por decreto, por leis ou por reformas. Uma revolução é o
desenvolvimento inconciliável da luta de classes e, justamente por esse caráter
inconciliável desemboca na luta armada.

Internacionalismo
Outro importante ponto de ruptura entre o pensamento de Che Guevara e as teses
stalinistas é a questão do internacionalismo. Vários textos de Guevara afirmam o caráter
internacional da revolução clamam pela união dos povos oprimidos de todo o mundo
contra o imperialismo. Mostrando uma clara compreensão da totalidade histórica, do
desenvolvimento universal das forças produtivas, do intercambio universal entre os
homens, da atuação sem fronteiras do mercado mundial e da opressão imperialista em
escala global.
A teoria da generalização da guerra de guerrilhas pela América Latina apareceu
como um programa revolucionário internacionalista que rompeu diretamente com a tese
forjada por Stálin em 1924, a famosa teoria do socialismo em um país só. Tese que entra
em contradição direta com todos os princípios básicos do marxismo, negando a
totalidade histórica, o caráter internacional da luta de classes e direcionando a III
Internacional comunista ao fracasso, expresso nas atuações burocratizadas e contra-
revolucionárias dos partidos comunistas.
Rompendo com as teses de Stálin e com o fracassado projeto da III
Internacional, Guevara percebeu claramente que o socialismo não pode ser construído
somente na esfera nacional, isolado por fronteiras bem estabelecidas. “Realmente é
preciso levar em conta que imperialismo é um sistema mundial, última etapa do
capitalismo, e que é preciso derrotá-lo em uma grande confrontação mundial.”
(GUEVARA, 1989, p. 103).
Che tinha plena consciência que a revolução cubana não poderia permanecer
isolada e, portanto, era necessário que outras revoluções se realizassem em curto prazo,
principalmente na América Latina. O desencadeamento de outras revoluções era uma
questão de sobrevivência para a revolução cubana. Afinal, se o socialismo em um só
país estava fadado ao fracasso o que se poderia esperar do socialismo apenas em uma
ilha?
Ora, o caráter internacional da revolução é dado pelo caráter internacional das
relações capitalistas. Guevara compreendeu bem as relações globais do mercado
capitalista, a divisão internacional do trabalho e o imperialismo. Portanto, em seus
textos evidencia que a revolução deve ser mundial e o internacionalismo, o dever mais
sagrado de todo revolucionário. Pois o proletário não tem pátria e não deve se prender
as fronteiras nacionais.

Presença de Stálin
O dogma da América subdesenvolvida, atrasada e dependente
A guerra de guerrilhas sistematizada por Guevara manteve intocado o dogma de
que os países latino-americanos são “atrasados” ou “subdesenvolvidos”. O VI
Congresso da III Internacional Comunista, realizado em 1928, consolidou as teses
stalinistas. Este congresso foi o responsável pela criação do dogma do “atraso” da
América Latina. Logo, essa dogmática foi reproduzida pelos partidos comunistas
burocratizados, orientados pela Internacional. As teses desse congresso estabeleceram
que “os países da América latina são países atrasados, coloniais e semicoloniais,
portanto, as tarefas dos comunistas são aquelas da libertação nacional e não (ainda) as
tarefas socialistas” (BENOIT, 2004).
Os escritos de Guevara reproduzem esse dogma do “atraso” latino-americano. E
segundo Che esse “subdesenvolvimento” se determina pela relação entre os grandes
latifúndios e a burguesia nacional associados ao imperialismo norte-americano. E por
sua vez, essa relação resulta em uma economia dependente e fundamentalmente agro-
exportadora, baseada muitas vezes na monocultura. Essa concepção é bem desenvolvida
por Guevara no texto; Cuba: exceção histórica ou vanguarda da luta anticolonialista?
Eis uma interessante passagem, na qual ele defende a tese do “subdesenvolvimento”
latino-americano:
Um anão de cabeça enorme e tórax potente é “subdesenvolvido” na medida em
que suas pernas fracas e seus braços curtos não combinam com o resto de sua
anatomia. Ele é o resultado de uma malformação que impediu seu
desenvolvimento. É o que somos nós, na realidade chamados suavemente de
“subdesenvolvidos”, países coloniais, semi-coloniais ou dependentes. Somos
países cujo desenvolvimento foi distorcido pela ação imperialista, que
desenvolveu normalmente os setores industriais ou agrícolas em função das
necessidades de completar suas próprias economias complexas. O
subdesenvolvimento ou desenvolvimento distorcido provém da excessiva
especialização em matérias-primas, que permite manter nossos povos sob a
ameaça constante da fome. Nós, os subdesenvolvidos, somos os países da
monocultura, do monoproduto e do monomercado. Um produto único cuja
venda incerta depende de um único mercado que impõe e decide das condições
eis a grande fórmula de dominação econômica imperialista que se apóia no
velho e eternamente jovem lema romano: “dividir para reinar” (2005, p. 98).

O que se percebe nessa passagem é uma grande confusão de conceitos. Surge


uma pergunta fundamental. O que caracteriza um país “atrasado” ou
“subdesenvolvido”? A América Latina se enquadra nessa caracterização? Para Benoit
(2004): “Um país atrasado do ponto de vista marxista é um país que conserva relações
de um modo de produção anterior, isto é, relações pré-capitalistas de produção”. O
ponto de partida para a caracterização do desenvolvimento não deve ser o aspecto
técnico-material, mas, sim, o aspecto social, ou seja, o ponto de partida devem ser as
relações sociais estabelecidas.
E na América Latina desde a colonização predominam relações de produção
capitalistas. Mas, e quanto ao trabalho escravo que perdurou nos países latino-
americanos mesmo após a conquista da independência? Não se trataria de relações pré-
capitalistas? Para Benoit (2004): “(...) as relações aparentemente pré-capitalistas, como
o trabalho escravo, e mesmo todo o sistema colonial que vigorou até fins do século
XVIII, eram relações capitalistas de produção “encobertas” e, assim fortes mecanismos
de acumulação primitiva que, integrados ao mercado mundial, preparavam o
capitalismo industrial”.
Em O Capital, essencialmente nos capítulos XXIV e XXV, Marx deixou bem
claro a estreita relação entre o processo de acumulação primitiva e a colonização
européia na América. Eis uma importante passagem: “A descoberta das terras do ouro e
da prata, na América, o extermínio, a escravidão e o enfurnamento da população nativa
nas minas (...). Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação
primitiva” (MARX, 1984, p. 285). E mais adiante acrescenta que: “A Inglaterra obteve
o direito de fornecer à América espanhola, até 1743, 4.800 negros por ano. Isso
proporcionava, ao mesmo tempo, um manto oficial para o contrabando britânico.
Liverpool teve grande crescimento com base no comércio de escravos. Ele constitui seu
método de acumulação primitiva” (MARX, 1984, p. 291).
A questão da utilização do trabalho escravo é posta da seguinte forma por Marx
(1984, p. 291): “De maneira geral, a escravidão encoberta dos trabalhadores
assalariados na Europa precisava, como pedestal da escravidão sans phrase, no Novo
Mundo”. Ora, como se vê, a escravidão na América foi necessária para o
desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista. Portanto, desde a chegada
dos Europeus no continente americano, a América já está inserida no processo de
produção capitalista, seja na exploração de matérias-primas, na exploração do ouro, da
prata ou na utilização do trabalho escravo.
Outro problema das teses de Guevara é que ele elucida o caráter dependente das
economias latino-americanas, frente ao imperialismo norte-americano. Mas o que
significa esse caráter de dependência? A dependência e a especialização na produção de
certos produtos estão diretamente relacionadas à “lei do desenvolvimento desigual e
combinado”. Segundo Trotsky (1979, p.6): “a originalidade nacional representa o
produto sumário e mais geral da desigualdade do desenvolvimento histórico”.
As originalidades e particularidades do tipo nacional e social aparecem como
resultado da desigualdade em suas formações e do seu passado pré-capitalista. O
desenvolvimento das relações de produção capitalista e de suas forças produtivas não se
deu em todo o extenso continente americano de maneira mecânica e linear, pelo
contrário, a América do Norte desenvolveu suas forças produtivas, qualitativamente e
quantitativamente a um nível superior se comparada à América Latina.
Portanto, foi esse caráter de desenvolvimento desigual na evolução histórica que
estabeleceu diferentes posições para a América do Norte e América Latina no interior
do mercado mundial. Esse desenvolvimento desigual que obedece as características da
formação histórica de cada país não cria uma relação de dependência no mercado
mundial, ou melhor, cria uma relação de interdependência.
Guevara confunde desenvolvimento desigual e interdependência com “atraso”,
“subdesenvolvimento” e “dependência”. Portanto, o país exportador de matérias-primas,
produtos agrícolas ou primários, não significa que ainda apresenta características de
relações pré-capitalistas de produção, mas sim a manifestação do desenvolvimento
desigual do capitalismo.
Por considerar a América Latina atrasada, Guevara afirmava que a classe
operária não estaria plenamente preparada para dirigir um processo revolucionário.
Portanto, a transformação revolucionária da sociedade se forjaria pelas mãos dos
camponeses. Para ele as contradições do capitalismo “subdesenvolvido” eram mais
latentes no campo e o camponês o verdadeiro sujeito da revolução socialista latino-
americana. Essa questão merece uma análise atenta.
Ao compartilhar do dogma do “subdesenvolvimento” latino-americano e
deslocar a luta e as contradições da sociedade para o campo, Guevara negou ou se
esqueceu de uma premissa fundamental da revolução socialista mundial, expressa
claramente por Marx, em O Manifesto do Partido Comunista: “De todas as classes que
hoje se opõem a burguesia, apenas o proletariado é uma classe verdadeiramente
revolucionária. As demais classes vão se arruinando e por fim desaparecem com a
grande indústria; o proletariado é o seu produto mais autêntico”. (1998, p. 18). Em
contra posição a está tese central exposta por Marx, a guerra de guerrilhas de Guevara,
apresentou o camponês como o verdadeiro agente revolucionário, enquanto que para
Marx, o camponês constitui uma “massa de produtores não envolvidos diretamente na
luta entre capital e trabalho.” (2003, p. 43). Por conseguinte, Guevara menosprezava as
lutas dos operários urbanos. Todavia, reconheceu algumas diferenças entre as condições
históricas cubanas e a dos outros países latino-americanos. Reconhecia, por exemplo,
que vários países já concentravam uma grande massa populacional em grandes centros
urbanos, como era o caso do Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Portanto, segundo Che
Guevara, essas condições históricas diferentes deveriam ser acompanhadas por uma
nova estratégia de luta?
A resposta de Guevara é negativa. Segundo ele, independentemente do grau de
desenvolvimento do país, da concentração populacional nas grandes cidades, do número
de fábricas e operários concentrados na zona urbana, a guerra de guerrilhas no campo
permanecia como o alfa e o ômega do processo revolucionário. Guevara (1981, p. 51)
salienta que: “A nosso ver, tratando-se dos centros urbanos, até mesmo nos casos de
atraso econômico, é aconselhável desenvolver a luta fora dos limites da cidade e com
características de longo prazo”.
As condições sociais, políticas e econômicas desses países com uma grande
concentração urbana e indústrias com uma grande massa de trabalhadores assalariados
indicavam que o centro dos conflitos da luta de classes não se travaria no campo, mas
sim, nas cidades metropolitanas.
No entanto, Guevara percebeu que a realidade das grandes cidades latino-
americanas representava um problema para as suas teses, pois, entravam em contradição
com a teoria da guerra de guerrilhas. Mesmo reconhecendo a existência desses grandes
centros urbanos, com elevadas taxas de concentração de trabalhadores industriais
assalariados e dificuldades objetivas para a organização de uma guerra de guerrilhas
seguindo o modelo cubano, Guevara não abandona a idéia da guerrilha. Para ele o maior
problema da luta nas cidades era que: “A influência ideológica dos centros urbanos
inibe a luta guerrilheira e incentiva as lutas de massas organizadas pacificamente”
(GUEVARA, 1981, p. 50).
A preocupação de Guevara era que a luta no marco das cidades se resumissem as
lutas pacíficas, institucionalizadas, ou seja, a luta por reformas parlamentares, ao
próprio processo eleitoral ou as reivindicações dos sindicatos burocratizados. Portanto,
Guevara não acreditava que essa luta pacífica no marco da legalidade burguesa poderia
avançar. Pois, para ele somente a luta por meio das armas e imposição da força poderia
levar a tomada do poder. Por isso, sua constante afirmação de que o terreno mais
favorável para a luta armada era o campo.
A teoria da guerra de guerrilhas criticou a burocracia dos partidos comunistas
por subestimar a luta no campo, por esquecer e anular a questão agrária e a luta fora dos
limites da cidade. No entanto, Guevara criticou essa unilateralidade, mas, devido a uma
reflexão equivocada, a substituiu por outra. Assim, ele acaba por cometer no mesmo
erro, só que no sentido inverso. Pois, a guerra de guerrilhas centraliza a luta no campo e
esquece ou anula a luta dos operários urbanos.

Referências:
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