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MEcaNisMos NEUROTICOS 55 ele e ele mesmo séo duas pessoas diferentes. O que diz nosso cantor, “Devo me controlar.” A confusao entre o si-mesmo e o outro que jaz sob as neuroses se mostra também na completa confusio sobre o si-mesmo. Para 0 neurético o si-mesmo é um anjo ou um deménio — mas o si-mesmo nunca é a prdépria pessoa. Freud, descrevendo o desenvolvimento da personali- dade, contribui para esta confusio. Falou sobre o ego (o “eu”), o id (as pulsdes organicas) e o superego (@ consciéncia) e descreveu a vida psiquica do individuo como um conflito constante entre eles — encerrado num abraco infindavel e inquebravel consigo mesmo, 0 homem luta até a morte. O retroflexivo parece estar agindo de acordo com a imagem freudiana do homem. Mas pare- mos, por um momento, para considerar o que é realmente © superego. Se ele nao é parte do si-mesmo, 0 “eu”, 0 ego deve, por necessidade, ser um amontoado de introjegdes de atitudes nao assimiladas e caminhos impostos ao indivi- duo pelo meio. Freud fala da introjegiéo, como parte do processo moral de crescimento; diz, por exemplo, que @ crianga introjeta as imagens “boas” dos pais e as estabe- lece com ego-ideais. O ego entéo também se torna um amontoado de introjegdes. Mas varios estudos da perso- nalidade neurética nos mostram que o problema surge nao em relacao a& identificagéo infantil com pais “bons”, mas em relag&o a identificagao com os pais “maus”. De fato, a crianga n&o introjeta as atitudes e éticas dos pais “bons”. Ela as assimila. Ela pode nao se dar conta em termos complicados e em jargao psiquidtrico do que esta fazendo, mas esta traduzindo as atitudes que repousam sob 0 comportamento satisfatério de seus pais em termos que pode entender, reduzindo-os ao menor denominador comum, e entéo assimilando-os em sua nova forma, uma forma que ela pode usar. Por outro lado nao pode fazer © mesmo com as atitudes “mds” de seus pais; nféo tem meios de enfrentd-las, e certamente nenhum desejo inato disso. Assim, ela tem que suportdlas como introjegoes indigestas. E é ai que comega o problema. Isto porque agora temos uma personalidade constituida, nao de ego e superego, mas de eu e nao-eu, de si mesmo e imagem do si-mesmo, uma personalidade tao confusa que se tornou incapaz de distinguir uma da outra. 56 A ABORDAGEM GESTALTICA Na verdade, esta confus&o da i1dentificagéo 6, de fato, a neurose. E se ela se apresenta inicialmente pelo uso dos mecanismos de introjegao, ou projegao, ou retroflexao, ou confluéncia, seu sinal caracteristico é a desintegracgéo da personalidade e a falta de coordenacéo entre pensamento e acao. A terapia consiste em retificar as falsas identifica- goes. Se a neurose é 0 produto de “mas” identificagdes, a satide € o produto de identificagdes “boas”. Isso deixa em aberto, sem duivida, a questao de quais sio as boas iden- tificagdes e quais as mds. A resposta mais simples e, penso eu, mais satisfatéria — baseada na realidade observavel — é€ que “boas” identificagdes sfo aquelas que promovem as satisfagdes e preenchimentos de objetivos do individuo e seu meio. E mas identificagdes séo aquelas que resultam em esmagamento e frustragao do individuo, ou em com- portamento destrutivo com relagéo ao meio, Pois o neu- rético nao apenas se faz um miseraével; .pune todos os que se preocupam com ele, com seu comportamento autodes- trutivo. Na terapia temos, entao, que reestabelecer a capacl- dade do neurdtico de discriminar. Temos que ajudélo a descobrir 0 que ele 6 e o que nao 6; o que o gratifica e 0 que o contraria. Temos de guid-lo para a integragao, Temos de auxilid-lo a encontrar o prdéprio equilfbrio e o limite entre ele e o resto do mundo. E simples dizer “seja apenas vocé mesmo”, mas para o neur6ético, milhares de obsta- culos lhe barram o caminho. Compreendendo agora, como compreendemos, 0s mecanismos através dos quais o neu- Totico se impede de ser ele mesmo, podemos comegar @ tentar remover os obstdculos, um por um. Porque isto e © que deveria ocorrer na terapia, e terapia 6 o que vamos discutir agora. 3 E AQUI TEMOS 0 NEUROTICO E agora vem nosso neurético — ligado ao passado com modos obsoletos de agir, vago quanto ao presente porque o vé apenas através de culos escuros, torturado em relagéo ao futuro porque o presente lhe escapa. Ele entra no consultdério, envergonhado ou atrevido, timido ou arrogante, arrastando os pés ou tentando andar gar- bosamente. Para ele o terapeuta pode ser um par de ou- vidos sem corpo, ou talvez um padrinho magico que sé tem que balancar sua varinha de condao para transformar o diabo num jovem bonito, de boa aparéncia, esguio, e cheio de dinheiro e charme. Ou talvez suspeite de que 0 terapeuta seja apenas uma fraude e um charlatao, mas que no desespero de seu problema e no fundo de seu cora- ¢gao deseje proporcionar-lhe uma mudanga imediata. Quaisquer que sejam as fantasias que passem por sua cabeca quando chega, seja qual for sua aparéncia, o paci- ente vem para tratamento porque esté numa crise ezis- tencial — isto 6, sente que as necessidades psicoldgicas com as quais se identificou e que lhe eram vitais como 0 ar que respira nao estao sendo satisfeitas por seu modo de vida social. As necessidades psicolégicas que assumem esta importancia de vida ou morte séo muitas e tao va- tiadas quanto os pacientes. Para um, nao ficar atras do vizinho e, se possivel, ultrapassd-lo é uma necessidade predominante. Tal pessoa identifica sua existéncia total com sua existéncia social e se sua posi¢géo social for amea- cada entra em crise existencial. Para outro, ter a dedica- ¢ao sincera de uma esposa, marido, ou amante é uma ne- cessidade dominante. Se tal pessoa nao pode conseguir esse Objetivo, ou o perde, uma vez que o tenha adquirido, entra em crise existencial. Para um neurotico, “autocon-

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