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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003 101
O que Pierson dizia é que o preconceito, diferente de colonizar que significou miscige-
assim definido, não existia no Brasil. Haveria, sim, nar-se, igualar-se, integrar os culturalmente in-
casos individuais de preconceito, casos isolados, feriores, absorver sua cultura, dar-lhes chances
mas não como fenômeno social; ou seja, os bran- reais de mobilidade social no mundo branco.
cos, enquanto grupo, no Brasil, não cultivariam o Freyre fala depois em “democracia étnica” para
medo de serem deslocados pelos negros. Em dizer que, no Brasil, apesar de uma estrutura
Marvin Harris (1956), que segue a orientação de política muito aristocrática, desenvolve-se, no
Blumer, o argumento se estende ao limite, pois ele plano das relações raciais, relações democráti-
diz que, no Brasil, a classe dominante, a branca, cas. São essas idéias que foram traduzidas
nunca precisou sacar a carta racial do colete, ou como “democracia racial” e ganharam, por um
seja, os negros nunca ameaçaram, e os brancos bom tempo, pelo menos dos anos 1940 até os
nunca precisaram sentir medo, e portanto nunca 1960, a conotação de um ideal político de con-
desenvolveram preconceito. O fato é que, nesses vivência igualitária entre brancos e negros (Gui-
anos, a grande discussão era: existe ou não exis- marães, 2002).
te preconceito racial no Brasil? Quando o Florestan Fernandes (1965)
A chamada “escola paulista de sociologia” fala em mito da democracia racial, ele estava
começou a desenvolver um tipo de argumentação querendo dizer o seguinte: essa democracia
diferente, mais ou menos assim: existem áreas tra- racial seria apenas um discurso de dominação
dicionais, como a Bahia, Pernambuco, onde isso política, não expressava mais nem um ideal,
pode ser verdade, onde não existiria preconceito nem algo que existisse efetivamente, seria usa-
porque não haveria ordem competitiva, igualitária. do apenas para desmobilizar a comunidade
Mas, nas áreas de desenvolvimento capitalista, em negra; como um discurso de dominação, seria
São Paulo, onde se organiza uma sociedade de puramente simbólico, sua outra face seria jus-
classes, à medida que aumenta a competição so- tamente o preconceito racial e a discriminação
cial, aparece o preconceito, ou seja, a ameaça do sistemática dos negros.
negro tomar o lugar do branco torna-se real. Em O termo “democracia racial” passa, por-
contraposição, os críticos da escola paulista inter- tanto, a carregar e sintetizar uma certa conste-
pretavam tal preconceito como cultura de impor- lação de significados. Nela, raças não existem
tação, nutrida principalmente por certos grupos e a cor é um acidente, algo totalmente natural,
imigrantes pouco adaptados ainda à vida nacional. mas não importante, pois o que prevalece é o
A escola paulista, ao contrário, buscava explicações Brasil como Estado e como nação; um Brasil
estruturais, ou seja, remetia-se à estrutura social em que praticamente não existem etnias, salvo
em mutação — o capitalismo industrial, em gesta- alguns quistos de imigrantes estrangeiros. In-
ção no país, estaria também deslanchando o fenô- venta-se, portanto, um povo para o Brasil, que
meno do preconceito racial. passa a ter samba, passa a ter um pouco da
O fato é que essa escola cunhou a idéia cultura negra, que até aqui não existia pois se, no
do mito da democracia racial. Aquela socieda- Império, predominou a mística do índio, e na
de multirracial de classes, de que falava Pierson República a mística do imigrante europeu, so-
em 1940, se transformou, com o tempo, numa mente na Segunda Republica o negro vai dar co-
coisa chamada democracia racial, cujas origens loração à nação, à idéia de uma nação mestiça.
estão na idéia de Freyre de que a cultura luso- Apenas a partir de 1978, surgirá um ator
brasileira, o “mundo que o português criou”, político, o Movimento Negro Unificado, a golpear
teria desenvolvido uma “democracia social” esse discurso nacional de maneira mais contun-
mais profunda e pujante que a “democracia dente. Ainda que a crítica da “democracia racial”,
política” dos anglo-saxões e franceses. Essa o denunciá-la como mito, date de 1964, a repres-
democracia social seria basicamente um modo são política impediu qualquer reação organizada.
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orienta essa forma de classificação. Se pensar- Recentemente eu comecei a reagir a
mos em “raça” como uma categoria que expres- esse discurso (Guimarães, 2002), pensando o
sa um modo de classificação baseado na idéia seguinte: esse argumento é muito bom porque
de raça, podemos afirmar que estamos tratan- nos ensina a pensar as relações sociais, tais
do de um conceito sociológico, certamente não como elas se dão no cotidiano; nesse sentido,
realista, no sentido ontológico, pois não refle- ele põe fim à politização excessiva do tema.
te algo existente no mundo real, mas um con- Mas ele tem um defeito — ele acaba se apegan-
ceito analítico nominalista, no sentido de que do muito à idéia de estrutura, de longa dura-
se refere a algo que orienta e ordena o discurso ção, torna-se quase que um discurso a-históri-
sobre a vida social. co, como se estivéssemos tratando com uma
Temos outros dois complicadores adi- matriz que não teve inicio e não terá fim. Se os
cionais. que usam tal argumento são pouco críticos a
Primeiro, houve um movimento de rea- respeito da historicidade dessa matriz, então eu
ção à vontade do MNU de desmistificar a de- os fustigo, perguntando: como nasceu a demo-
mocracia racial, à sua ânsia de culpar o precon- cracia racial? Quando se transformou num com-
ceito e a discriminação raciais como responsá- promisso político? Será que esse discurso não
veis, pelo menos em parte, pela desigualdade pode acabar? Será que não está acabando? E,
racial no Brasil; junto com isso houve também, inspirado nas idéias de alguns cientistas políti-
nos anos 1980 e 1990, um grande abalo no cos, como Amaury de Souza (1971), por exem-
nosso sentimento de nacionalidade, resultado plo, penso a democracia racial como um com-
de sucessivas crises econômicas e políticas – promisso político, que teve um começo, conhe-
houve crises de governabilidade e ameaças de ceu o apogeu, passou por crises e, talvez, te-
desintegração nacional, com o surgimento de nha se esgotado.
movimentos separatistas. Uma observação final de cunho metodo-
Segundo, houve, no plano da academia, lógico. Tratei até aqui de termos analíticos, de
uma certa reação à tentativa de demonização de termos nativos, agora gostaria de tratar de ter-
Gilberto Freyre. Surgiu na academia um movimento mos de pesquisa. Como é que se observam “ra-
de reinterpretação da democracia racial como um ças” ou como se observa a “cor” de uma pes-
mito. Formou-se uma certa matriz interpretativa, soa? Temos esses dois momentos na pesquisa:
que diz assim: “Tudo bem, a democracia racial é num primeiro, temos nossas hipóteses, nossas
um mito, mas vocês, sociólogos, não entendem categorias analíticas, nossas categorias nativas;
muito de mito, não. Mito não é só falsa ideologia, num segundo momento, precisamos transformar
mito é uma coisa mais importante do que o que “cor” ou “raça” em algo que possa ser observa-
vocês acham; mito, na verdade, é um discurso do, quantificado, analisado. A primeira regra,
sobre a origem das coisas, um discurso sobre o para quem faz pesquisa, é que é necessário se
dia-a-dia, que não precisa ser real, ao contrário, é ter domínio da linguagem nativa, pois se as
efetivo apenas na medida em que orienta a ação questões teóricas do pesquisador não puderem
das pessoas, em que dá sentido às relações ser traduzidas em questões que utilizem a lin-
sociais do dia-a-dia. Nesse sentido, o mito da guagem nativa, tais perguntas não serão enten-
democracia racial é e continuará sendo muito didas. Precisamos, pois, trabalhar com o senso
importante para a idéia de nação brasileira”. comum, traduzir conceitos analíticos em catego-
Esse é um argumento muito forte, pois rias nativas; temos que frasear a pergunta de
significa dizer o seguinte: “Apesar da militância modo a obter uma resposta sobre o que quere-
do MNU, qualquer um que saia à rua e conver- mos. No nosso caso, estamos querendo saber
se com as pessoas vê que a democracia racial como uma pessoa se classifica em termos raciais
está viva, enquanto mito”. no Brasil. Como perguntar?
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com João Batista Felix (2002), quando entre- pergunta à qual, se feita algum tempo atrás,
vistou militantes e perguntou: “qual é a sua na minha terra, todo mundo responderia “não”.
raça?”. Esses militantes tinham uma teoria ra- Aqui, em São Paulo, agora, em 2000, eu não
cial muito consistente sobre o mundo e sobre sei qual será o resultado, pois estamos viven-
si mesmos, em que a idéia de raça em termos do um tempo em que as pessoas começam a
políticos era central e na qual a idéia de cor, cultivar diferenças, identidades, origens. É
que é a idéia normal dos brasileiros, continua- provável que apareçam muitos descendentes
va vigendo. Ou seja, essas pessoas fundiram de portugueses, muito mais do que seria lógi-
uma classificação brasileira com uma classifi- co esperar em São Paulo, simplesmente por-
cação militante, na qual a “raça” referia-se a que os brasileiros brancos, sem nenhum ances-
uma ascendência biológica e posição política, tral português conhecido, tenham passado a
enquanto a cor a uma tonalidade de pele con- reivindicar essa ascendência esquecida. O que
siderada objetiva. Até que ponto esse discur- eu estou tentando defender é que qualquer ca-
so racial vai se espraiar, vai ganhar adeptos tegoria só faz sentido no interior de um discur-
fora do movimento? Outro exemplo, no nos- so, no nosso caso, racial; quando nos depara-
so Censo Étnico-Racial da USP (Guimarães; mos com uma resposta sobre identidade, temos
Prandi, 2002), perguntamos: “Você é descen- que investigar qual o discurso que está orien-
dente de imigrantes estrangeiros?”. É uma tando as respostas.
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Recebido em 22.05.03
Aprovado em 13.06.03
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães é professor do Departamento de Sociologia da USP. É doutor pela University of
Wisconsin-Madison e livre-docente em sociologia política. Publicou sobre o tema deste artigo: Preconceito e discriminação
(Salvador: Novos Toques, 1998); Racismo e anti-racismo no Brasil (São Paulo: Ed. 34, 1999) e Classes, raças e democracia
(São Paulo: Ed. 34, 2001), além de artigos e coletâneas.
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