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100 anos

de Armistício
Grande
Guerra MEMÓRIAS DE FAMÍLIA

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Grande Guerra • Memórias de Família

ÍNDICE
Pai e filho foram a duas guerras
Catarina Gomes
LER ARTIGO

Ir à guerra e ver o mundo:


uma herança para a família
Catarina Gomes
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O bisavô deixou-lhe “um gráfico da fome”


Catarina Gomes
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A mãe de Yolanda esperou


uma década pelo seu “inimigo”
Catarina Gomes
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2
Grande Guerra • Memórias de Família

O soldado que conheceu de perto


o Cristo das Trincheiras
Patrícia Carvalho
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O evadido que pediu ajuda para


os seus homens
Patrícia Carvalho
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O avô sobreviveu dentro de um bote à deriva


Catarina Gomes
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Quando os heróis não se suicidavam


Catarina Gomes
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As leituras no chalet rosa


Catarina Gomes
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Grande Guerra • Memórias de Família

Para inglês ver


Catarina Gomes
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Um pé ferido salvou-o do
massacre de Cuangar
Patrícia Carvalho
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O médico que foi para a guerra


protegido por uma promessa
Patrícia Carvalho
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Só Felizardo foi à guerra


Catarina Gomes
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Francisco Diogo não voltou o mesmo


Catarina Gomes, Patrícia Carvalho
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Grande Guerra • Memórias de Família

O sino que não cabia


Catarina Gomes
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O voluntário coberto de medalhas


Patrícia Carvalho
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O cabo português do
senhor professor
Catarina Gomes
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A fotografia que resgatou uma história


Patrícia Carvalho
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A lembrança de uma velha senhora


francesa que lhe serviu café sob fogo
Catarina Gomes
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Grande Guerra • Memórias de Família

O soldado que regressou quando


já ninguém o esperava
Patrícia Carvalho
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Em horas de pausa,
o médico disparava
Catarina Gomes
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O enigma do tio António


Catarina Gomes
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A última fotografia
Catarina Gomes
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O velho guerreiro
Patrícia Carvalho
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Grande Guerra • Memórias de Família

O soldado que se revoltou,


já depois da guerra
Patrícia Carvalho
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Um médico na rectaguarda
Catarina Gomes
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Um alentejano na frente de guerra


Patrícia Carvalho
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A uma madrinha de guerra


Catarina Gomes
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As histórias do avô prisioneiro de guerra


Filomena Lança
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Grande Guerra • Memórias de Família

Um poeta nas trincheiras


Luís Miguel Queirós
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Um capitão da Brigada do Minho


que morreu em combate
Luís Miguel Queirós
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O barbeiro de La Lys
Jaime Rocha, escritor
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Um alferes monárquico na
guerra dos republicanos
Luís Miguel Queirós
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O médico que andou desaparecido


na Flandres
Luís Miguel Queirós
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Grande Guerra • Memórias de Família

Memórias de um médico na
frente moçambicana
Luís Miguel Queirós
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Dois filhos de Leotte do Rego


que combateram em La Lys
Luís Miguel Queirós
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Regresso das tropas do Corpo Expedicionário Português em 1919

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Grande Guerra • Memórias de Família

Pai e filho foram a duas guerras


Catarina Gomes

Q
uando, em 1964, António Espadinha Monte foi chamado a ir para
a Guerra Colonial parecia que a história se estava a repetir. Ele, tal
como o pai, também era o único filho homem e, tal como tinha
acontecido com o pai na Primeira Guerra Mundial, era chamado
a ir defender os interesses de Portugal, lá longe. Cada um a seu tempo,
tiveram que deixar para trás a aldeia alentejana de Peroguarda para
partirem do mesmo cais, em Lisboa. António Espadinha para passar dois
anos da sua vida na cidade moçambicana de Tete, de 1964 a 1965, o pai,
José Manuel do Monte, para rumar até Brest, França, em 1917.

O pai de António Espadinha Monte, José Manuel do Monte, é o primeiro homem de pé, à esquerda MIGUEL MADEIRA

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Grande Guerra • Memórias de Família

O pai nunca lhe deu conselhos, nunca disse lhe tinha medo que o
filho partisse. Mas, quando chegou a vez de António Espadinha Monte
embarcar, a guerra já não era assim tão estranha, tinha crescido a ouvir
histórias de um soldado na Primeira Guerra Mundial. Descreve o pai
como uma pessoa “retraída” em termos emocionais. O pouco que foi
contando desse tempo, em família, “era às vezes com um copinho a
mais”, nessas alturas às vezes até cantava o hino francês e falava da
miséria que via entre a população francesa, dos miúdos com fome que na
rua pediam às tropas portuguesas que viam passar, “biscuit, biscuit”.
Nas histórias que foi ouvindo ao pai
percebia-se que as condições daquela
Foi então que, guerra tinham sido piores do que as da
horrorizado, sua. Contou-lhe daquela vez em que
observou que veio à estavam nas trincheiras sem água e
em que a sede era tanta que uma poça
superfície da lagoa o
de água que acumulava as águas da
cadáver de um militar chuva lhe pareceu irresistível, e muito
alemão, já a desfazer- límpida. Era perigoso ir até lá, estava
se pela putrefacção. mesmo à vista das linhas alemãs, mas
o pai de António Espadinha rastejou
Bem tentou vomitar
até ao sítio e conseguiu beber até ficar
a água que tinha completamente saciado. Voltou a
bebido, mas em vão salvo. Pouco depois, o exército alemão
António Espadinha Monte, começou a bombardear com artilharia
sobre o pai pesada as trincheiras portuguesas. Uma
das granadas acabaria por cair sobre a
poça de água onde o pai tinha estado
a beber. “Foi então que, horrorizado, observou que veio à superfície da
lagoa o cadáver de um militar alemão, já a desfazer-se pela putrefacção.
Bem tentou vomitar a água que tinha bebido, mas em vão”, contou ao
PÚBLICO António Espadinha Monte.

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Grande Guerra • Memórias de Família

As condições de higiene eram tão más que era vulgar os soldados


apanharem piolhos, mas nada disso podia transparecer nas cartas para
as famílias, que eram censuradas pela instituição militar, diz. “Então,
numa das cartas à minha avó, ele referiu que ‘na aldeia estava mal com o
Zé Piolhinho, mas ali na Flandres já tinha feito as pazes com ele e davam-
se agora muito bem’”. A carta iria chegar a Peroguarda (distrito de Beja)
tal como tinha sido escrita e a avó de António Espadinha Monte ficaria a
saber que o filho tinha piolhos.
Dizia-lhe o pai que nunca ficou a saber se matou alguém durante os
diversos combates, por estar o inimigo longe da vista, ouvia-o. Houve uma
vez que, durante a noite, o pai estava de vigia na trincheira e, no meio
do silêncio, começou a ouvir uma tosse que não se calava, sempre na
mesma direcção, do lado do inimigo. “Pensou que podia tratar-se de uma
patrulha inimiga que procurasse aproximar-se das linhas portuguesas, ou
mesmo do início de um ataque de infantaria alemão. Decidiu atirar uma
granada na direcção da tosse. A tosse nunca mais voltou a fazer-se ouvir.”
Ficou a dúvida.
António Espadinha Monte nunca teve este tipo de experiências na
guerra colonial. Diz que, na prática, nunca foi combatente, uma vez que o
distrito de Tete, nessa altura, ainda vivia uma “paz podre”, como conta no
livro que escreveu entretanto, Dois anos em Tete-Memórias de um alferes
expedicionário. De Moçambique fazia chegar ao pai, pelo correio, bobines
gravadas com a sua voz onde contava as histórias da sua guerra. “Ele ria-
se com as minhas histórias de África”. Era essa a intenção.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Ir à guerra e ver o mundo:


uma herança para a família
Catarina Gomes

“E
ste senhor tão bem posto, de cigarro pendurado na mão
esquerda, é o meu bisavô na sua farda militar durante a Primeira
Grande Guerra. Neste ano de centenário, lembrei-me desta foto
e de como, de alguma forma, a minha família é herdeira do facto
de este homem - António
Tomaz da Conceição, nascido
em 1893 - ter estado na
guerra, na Flandres.
O meu bisavô é daquelas
figuras que ganham uma
espécie de estatuto mítico nas
famílias. Daqueles de quem
se contam histórias. Eu já
não me lembro dele - creio
que morreu mais ou menos
quando nasci, em 1973.
É verdade que ele já não
era bem como os homens
da sua geração e do seu
lugar, a Barrada, uma aldeia
perto de Abrantes, onde só

O bisavô de Ana Gomes era dos poucos


da sua aldeia que sabiam ler

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Grande Guerra • Memórias de Família

havia agricultores às voltas com uma terra seca cheia de calhaus rolados
e onde os dotes dos noivos se mediam pelo número de oliveiras que
cada família tinha. O meu bisavô tinha um padrinho militar que o levou
para a cidade, onde fez a 4ª classe. Era dos poucos homens na aldeia
que sabia ler. Tenho ideia de me contarem que até tinha um livro - uma
enciclopédia, creio, que trouxe da Flandres.
Teve a sorte de não ir para as trincheiras: trabalhava na cozinha.
Durante o seu tempo de guerra, teve por companhia uma cabrinha de
estimação (se acabou na panela, não sabemos). Escrevia as cartas para os
soldados enviarem à família - cartas que não lhe eram ditadas, mas que
ele inventava, e que lia depois para os soldados aprovarem. Contava, a
chorar, como as francesas beijavam e abraçavam os soldados e as mulas
que entravam em Paris.
Voltou da guerra inteiro e sem mazelas. A filha mais velha, a minha avó,
nasceu em 1923. Contra tudo o que seria de esperar num homem daquele
meio, numa altura em que os pais não queriam que as filhas (mulheres)
estudassem “porque era só para escreverem cartas aos namorados que
os pais não podiam ler”, o meu bisavô pôs as três filhas na escola até à
4ª classe. Mais do que isso: quis que todas aprendessem uma profissão.
Dentro das opções da época, a minha avó tornou-se costureira; a filha do
meio aprendeu tecelagem; e a mais nova ficou de aprender o ofício com
uma das outras duas.
Segundo comentam alguns netos, o meu bisavô quis isto para as
filhas não só porque era, por natureza, um homem inteligente, curioso
e com visão, mas porque tinha visto e vivido outras coisas, que cá
as pessoas não conheciam, na Flandres. Imagino que tivesse visto
indústrias, mulheres e crianças a trabalhar fora de casa, tudo o que
aqui, numa aldeia do interior, não existia. Suponho que a este primeiro
salto na formação e no trabalho se deve depois o facto de os meus avós

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Grande Guerra • Memórias de Família

terem feito tudo para que os filhos estudassem na universidade - não


só o meu pai, como a minha tia. Sem tudo isto a nossa vida - dos filhos,
netos, e bisnetos - teria sido muito diferente.

Relato de Ana Gomes, bisneta de António Tomaz da Conceição

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Grande Guerra • Memórias de Família

O bisavô deixou-lhe
“um gráfico da fome”
Catarina Gomes

D
izem que as crianças de hoje têm muita facilidade em lidar com as
tecnologias, mas Isabel Braz lembra-se de, desde muito pequenina,
saber exactamente como pôr a funcionar aquele gravador de
bobines, de o rebobinar para voltar a ouvir o bisavô António Braz a
falar das suas histórias passadas na Primeira Guerra Mundial, em Angola e
depois em França. “Os miúdos gostam de ouvir histórias”.

Capitão António Braz num campo de prisioneiros na Alemanha MIGUEL MADEIRA

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Grande Guerra • Memórias de Família

Nunca as ouviu de viva voz, quando o bisavô morreu, aos 92 anos, tinha
ela 9 anos, mas aquelas histórias gravadas ficaram-lhe na cabeça. É assim
que, quando Isabel Braz, licenciada em Gestão de Empresas, decidiu
finalmente escrever um livro sobre a história do bisavô, tudo lhe saiu,
naturalmente, na primeira pessoa, como se pudesse ter sido ele escrevê-lo,
apesar lhe ter sido difícil “ter de se colocar no papel de um homem, militar,
a viver uma experiência de guerra tão longínqua”, contou ao PÚBLICO.
Assim começa o livro as Memórias Esquecidas-A vida do capitão António
Braz (Chiado Editora) que deverá ser lançado em Setembro: “O que eu
mais temia concretizou-se praticamente três anos depois de ter iniciado
a Grande Guerra. A ordem para mobilizar para França estava escrita nas
minhas mãos (...) Parti de Elvas no dia 7 de Agosto de 1917”, escreve a
bisneta, recriando os acontecimentos vividos por ele.
Quando terminou o livro, é como se Isabel Braz tivesse finalmente
conseguido fazer a vontade ao bisavô que queria muito que alguém
da família lhe escrevesse a vida, com princípio, meio e fim. Ele deixou
muita coisa escrita em apontamentos, cartas, portais, mas achava-se
sobretudo homem de factos, não se via capaz de contar uma história.
O que deixou escrito em forma de livro, em 1936, fê-lo porque sentiu,
naquele momento, que se impunha “repor a verdade”. O livro Como
os Prisioneiros Portugueses foram Tratados na Alemanha, editado em
1935 pela Tipografia Popular de Elvas, é feito em resposta a Aquilino
Ribeiro. Admirador do escritor, estava um dia a ler-lhe um escrito
intitulado Alemanha Ensanguentada, sobre as impressões do escritor
beirão durante uma viagem na Alemanha, no pós Primeira Guerra
Mundial, quando, de repente, lê o testemunho de um alemão que tinha
sido intérprete no campo de prisioneiros onde ele tinha estado, Breesen.
O alemão a quem Aquilino dava voz dava “a entender que entre nós
havia rixas e desarmonias, o que não são factos verdadeiros. As horas
tristes que passámos em cativeiro só nos permitiram ter sentimentos de
solidariedade, estabelecendo elos de amizade que se vincularam pela vida

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Grande Guerra • Memórias de Família

fora. Quanto muito havia uma má disposição natural entre homens que
tinham fome. Posso efectivamente testemunhar que a fome dá mau estar
psicológico e uma irritabilidade difícil de disfarçar.”
Um dos documentos que deixou e que a família guardou documenta
essa experiência no campo alemão, dando conta de como era meticuloso
o capitão Braz. Criou um “gráfico da fome” onde diariamente foi
apontando a sua perda de peso. O seu peso antes de ser preso era de 86
quilos. “A primeira vez que me pesei, no dia 10 de Julho, tinha 72 quilos,
menos 14 quilos que o meu peso normal. Pesei-me de novo 16 dias depois
e já só pesava 68 quilos.”
Como homem de factos quis dar a conhecer o que passava, ele que
nas cartas que enviava para Portugal nem podia dizer abertamente à
família que passava fome, por causa da censura alemã nos campos.
Mandava fotos suas e a mulher, Adelaide, lá percebeu que ele vinha
emagrecendo de imagem para imagem, conta Isabel Braz, passando então
a eviar comida nas encomendas que mandava para a Alemanha. “Tendo
recebido umas encomendas de casa, aumentei 500 gramas. Regressando
à alimentação oficial, um mês depois voltei a perder um quilo”.
Em vida, acabou por ver reposta “a verdade” sobre a realidade dos
prisioneiros portugueses nos campos alemães pela pena do próprio
Aquilino Ribeiro. Em Abóboras no Telhado, o escritor acaba por contar
a versão dos presos portugueses, das condições difíceis lá vividas. Isabel
Braz termina assim o livro que escreve como se fosse o bisavô: “Fiquei
satisfeito com o que li e tranquilo por se fazer justiça. Aquilino era um
homem de bem e não podia deixar em branco tamanha imprecisão.” O
escritor repôs a verdade em vida, a bisneta contou-lhe a história.

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Grande Guerra • Memórias de Família

A mãe de Yolanda esperou uma


década pelo seu “inimigo”
Catarina Gomes

N
aquele tempo parecia que a ilha do Faial era o centro do mundo e,
de alguma forma, era. À época, as comunicações, feitas sobretudo
por telégrafo, circulavam através de enormes cabos debaixo do mar
mas que para atravessarem o oceano entre a Europa e a América
precisavam de ajuda a meio do Atlântico. Para fazer funcionar este enorme
vaivém de mensagens os grandes do mundo instalaram-se então na ilha
açoreana do Faial.

Quando se conheceram, o alemão Max tinha 17 anos, a mãe de Yolanda (a primeira criança à esquerda)
tinha 10 anos

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Grande Guerra • Memórias de Família

Habituada a ser porto de marinheiros, agora chegavam técnicos


de cabotelegrafia de todo o mundo. Primeiro instalou-se a inglesa
Telegraph Construction and Maintenance Company, mais tarde  a
americana Commercial Cable Company e a alemã Deutsch-Atlantische
Telegraphengesellschaft”. Foram para o Faial técnicos vindos de Inglalerra,
Alemanha, Estados Unidos, mas também de Itália, França, Canadá.
As famílias tradicionais da cidade da Horta apreciavam a vinda destes
estrangeiros que se instalavam na ilha e que lhes pareciam respeitadores
e de bom trato, e abriam-lhes as portas das suas casa, em cházinhos e
bolinhos, lanches, piquenique e serões. Eles traziam animação e novos
costumes, a empresa alemã, por exemplo, pedia aos seus funcionários
que soubessem tocar um instrumento e eles até formaram uma banda, a
Horta Band, os ingleses trouxeram consigo o ténis, o crocket, o futebol, as
corridas de barcos a remos, as garden parties.
O jovem alemão Max Corsépius havia de chegar numa dessas levas,
empurrado por uma mãe que pediu ao Estado alemão um emprego para
o mais velho de quatro filhos, depois de o pai ter morrido. O emprego
seria “numa ilha no Atlântico”. É já no Faial que o jovem Max surge, numa
fotografia, muito hirto, com o boné da companhia, ao lado das crianças
da família Goulart Silveira de Medeiros. Ele tinha 17, uma das menina ao
seu lado, Hortênsia Medeiros, tinha 10. Brincavam todos. À medida que
Yolanda Corsépius vai mostrando as fotografias daquela que é a origem
da sua família é concisa a legendá-las: “a menina vai crescendo, o menino
está sozinho, era bonito, tocava violino...”.
A Primeira Guerra Mundial apanha açoreanos e estrangeiros numa
vida cultural intensa e um cosmopolitanismo que não se encontrava no
continente, diz Yolanda, que tem 82 anos e vive em Lisboa. O conflito já
tinha começado há quase dois anos, em 1914, mas a neutralidade de Portugal
parecia deixar a guerra ao largo, tudo continuava nesta serena animação.
Num acto que precedeu a entrada de Portugal na guerra, a Inglaterra
insta o seu tradicional aliado a “requisitar” todos os barcos alemães

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Grande Guerra • Memórias de Família

nos seus portos, na metrópole  e colónias. Assim fez Portugal, em 1916,


com mais de 70 navios, em Março de 1916. Os tripulantes alemães foram
presos, relembra Yolanda.
Daí em diante todos os alemães serão vistos como “inimigos”. Alguma
imprensa portuguesa da altura dá conta de um anti-germanismo que
também ajuda a criar. Uma capa do Século Ilustrado mostra a caricatura
destes “teutónicos”, aos pés têm copos de cerveja, mostra Yolanda
num dossier com recortes e postais da altura. Os alemães entre os 16
e aos 45 anos seriam obrigatoriamente detidos. Escreve o jornal O
Século que só assim “fica o país livre dos seus mais ferozes inimigo…
Capazes das façanhas mais baixas e dos crimes mais tremendos”, cita
um artigo do Expresso de 17 de Novembro de 2001, intitulado «O lado
desconhecido da primeira Guerra».
O jovem Max Corsépius há-de ser um destes alemães que passa a ser
visto como “súbdito inimigo”. Ele e outros compatriotas são, primeiro,
obrigados a permanecerem no bairro do Faial  onde estavam instalados
os funcionários da sua nacionalidade, depois são transferidos para a ilha
Terceira, onde ficarão  no chamado Depósito de Concentrados Alemães,
no castelo de São João Baptista, em Angra do Heroísmo. A um tempo
chegarão a estar naquele espaço exíguo 700 alemães, mulheres e crianças
incluídas, descreve no seu pequeno livro sobre este campo Yolanda, que
tem nacionalidade portuguesa e alemã. Um campo igual será criado no
continente para aprisionar os alemães, ficarão no forte de Peniche, refere
o mesmo artigo do Expresso.
E Hortênsia? “A menina ficou no Faial, a chorar, mas muito activa,
ficou a aprender alemão, a arte de desenho a carvão e o bordado e rendas
tradicionais dos Açores”, e continuaram a escrever-se, continua Yolanda.
Sobreviveu um postal dessa troca entre “prometidos”, que a filha guardou:
“7/9/1916. Meu amor! A nossa chegada foi tal e qual como vês nesta vista.
Podemos sair no castelo só para fazer passeios no Monte Brasil, os quais me
fazem tão triste sem ti. Uma infinita saudade do teu, sempre teu, Max”.

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Grande Guerra • Memórias de Família

A companhia de cabos submarinos alemã recomeçará a sua actividade


em 1926. Desde 1916 que estavam separados. “Ela esperou dez anos por
ele”. No mês seguinte à sua chegada casaram-se, ela já tinha 26 anos,
ele 32, continua Yolanda. Da união nascerão três meninos de seguida e
quando vem a menina, de tão ansiada, levará o nome de uma princesa
italiana, Yolanda.
Os pais hão-de ficar juntos apenas dez anos, a mãe adoece, dela a filha
reteve pouco mais do “um sorriso” e uma última prenda, “esta bonequinha
é para a menina”, disse-lhe, já doente, será enviada para Lisboa, onde
acabará por morrer em 1936, quando Yolanda tinha quatro anos.
Mais tarde, o pai de Yolanda viajará para a Alemanha com os três
filhos mais crescidos, mas ela, por ser ainda pequena, tinha sete anos, é
deixada com a avó materna. Corria o mês de Maio de 1939. Brevemente
regressariam.
Em Setembro quiseram voltar à Horta mas estala entretanto a II Guerra
Mundial e o pai e os três irmãos são impedidos de sair da Alemanha.
Esteve um ano sem ter notícias da família. Todos os alemães foram-se
embora, mais uma vez, ficou Yolanda. “A sua neta como tem 11 anos e não
tem mais ninguém pode ficar”, disseram as autoridades portuguesas à sua
avô materna, que foi quem a criou na Horta.
Já em plena Segunda Guerra Mundial, Yolanda lembra-se de o Faial
continua a ser um sítio por onde o mundo passava. Lembra-se de haver
espiões que ficavam hospedados na cidade, um deles, inglês, chegou a ser
seu amigo, chamava-lhe carinhosamente Uncle Joe.
Com a morte da avó, aos 23 anos, vai tentar ser alemã na Alemanha.
Esteve 14 meses mas não se adaptou. “O meu pai era um estranho para
mim”. Haveria depois de ser enfermeira, de tirar a sua especialização
em enfermagem pediátrica nos Estados Unidos e de correr mundo nas
suas viagens.
Faz questão de sublinhar que a sua é uma história banal na Horta, onde
houve dezenas destes casamentos mistos, resultado da época dourada

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Grande Guerra • Memórias de Família

dos cabos submarinos na Horta, ela contabilizou-os a todos e deixou-os


registados em pequenos livros que tem deixado para memória futura.
A curiosidade pelo mundo que vinha até ela naquela ilha ficou. “Em
nenhuma terra se conviveu tanto”. Durante a II Guerra Mundial lembra-
se de ser pequena e abordar os estrangeiros que aportavam na Horta,
para lhes fazer perguntas, cautelosa no início, com medo de ser encarada
como uma pequena inimiga: “I’m german, do you mind if I talk to you?”,
e os estrangeiros respondiam, afáveis, “how interesting, sit down”. E ela
contava-lhes a sua vida, como fez com o PÚBLICO.

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Grande Guerra • Memórias de Família

O soldado que conheceu de


perto o Cristo das Trincheiras
Patrícia Carvalho

A
única certeza de António Machado era aquela fotografia, de um
homem aprumado, fardado, montado num cavalo, a data que
aponta para o ano de 1918 e a localização: França. O homem a
cavalo é António da Silva Pinheiro, bisavô de António Machado,
que integrou o Corpo
Expedicionário Português.
O resto são pouco mais que
mitos, rumores e histórias por
confirmar, que o bisneto, de
25 anos, bem gostava de ver
deslindados.
António Machado sabe
que o bisavô nasceu a 19 de
Janeiro de 1896, no Porto, e
que foi para a Grande Guerra,
como soldado, mas pouco
mais. Pelo menos, pouco mais
que defenda com unhas e
dentes. Tem muitas dúvidas.
A fotografia induziu-o em
erro, e pensou que o avô
fizesse parte de algum grupo

António da Silva Pinheiro chegou a ser dado como morto nos jornais

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Grande Guerra • Memórias de Família

de cavalaria, mas, afinal, diz agora que ele era da Infantaria.


“Há histórias que circulam na família, mas não sei se passam de
rumores. Diz-se que ele chegou a ser dado como morto, nos jornais, mas
afinal regressou. E conta-se também que ele estava no contingente que
levou o Cristo das Trincheiras para as linhas recuadas, mas não sei se será
um mito”, diz ao PÚBLICO o bisneto do soldado português.
A interacção de António da Silva Pinheiro com o Cristo das Trincheiras
até pode ser um mito familiar, mas não é de todo improvável que o
soldado se tenha cruzado com a imagem que repousa, hoje, na Casa
do Capítulo do Mosteiro da Batalha, velando o túmulo do Soldado
Desconhecido.
A imagem do Cristo crucificado estava numa intersecção de estradas, no
sector português da Flandres, entre as localidades de Lacouture e Neuve-
Chapelle. A figura era uma companhia diária dos soldados portugueses
e, tal como eles, sofreu duramente com a ofensiva alemã de 9 de Abril
de 1918, que ficou conhecida como a Batalha de la Lys. No final dos
bombardeamentos, a imagem perdera uma das mãos, parte das pernas,
ambos os pés e tivera o peito atravessado por uma bela. Neuve-Chapelle
tinha sido quase varrida do mapa, os mortos portugueses ascendiam a mais
de 7500, mas o Cristo, ainda que mutilado, continuava no seu lugar.
A imagem estava tão entranhada nas memórias dos soldados que
viveram esse dia que, em 1958, o Governo Português pediu ao Governo
Francês que deixasse o Cristo vir para Portugal. A imagem, que
permanecera no mesmo local, nos 40 anos que se tinham passado desde
o final da guerra, foi então transportada de avião para Lisboa a 4 de Abril
de 1958 e, quatro dias depois, de carro para a Batalha.
Uma vez que o Cristo francês nunca terá deixado o local onde estava
implantado, até ser transferido para Portugal, é muito provável que
história de família de António Machado, sobre um alegado transporte
da imagem para as linhas recuadas, não passe mesmo de um mito. Mas
poucos duvidarão que António da Silva Pinheiro se cruzou com ele.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Sem grandes certezas, o bisneto agarra-se à fotografia, provavelmente


tirada em campanha, de Silva Pinheiro a cavalo e confessa que atribui ao
documento “um valor inestimável”.

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Grande Guerra • Memórias de Família

O evadido que pediu ajuda


para os seus homens
Patrícia Carvalho

J
oão de Almeida Sousa Sacadura foi militar até morrer. Durante
a I Guerra Mundial, lutou nas campanhas de África e da Europa,
recebeu medalhas e distinções, foi preso pelos alemães e fugiu.
Nascido em Viseu, morreu em África, onde passou parte da
sua vida. A sobrinha, Fernanda Sacadura, ainda guarda fotografias e
documentos deste tio com uma vida a lembrar um livro de aventuras.
Fernanda também se
lembra de uma caixa de
madeira, com o número 7,
que pertencera ao espólio do
tio aquando da sua passagem
pelo Corpo Expedicionário
Português, mas essa já não
a tem. “Ofereci o baú ao
Museu Militar do Porto”,
diz a sobrinha do homem
nascido em Viseu, a 17 de
Junho de 1896, que foi para
a guerra como alferes mas
morreria como capitão, com
apenas 45 anos.

João Sacadura conseguiu fugir de um campo


de prisioneiros, conta a sua sobrinha

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Grande Guerra • Memórias de Família

Fernanda ainda se lembra de ouvir o pai contar o orgulho que sentia


quando “via o irmão passar a cavalo com as peças de artilharia”. A João
Sacadura a Grande Guerra apanhou-o em Angola, onde participou nas
chamadas “campanhas do Cuanhama”, a tentativa frustrada de Portugal
ocupar este território no sul de Angola, a fim de assegurar a integridade
da então colónia, perante as forças alemãs.
Segundo uma notícia publicada pelo “Diário de Luanda”, aquando da
morte do português, João Sacadura “assentou praça em 1914”, o ano do
início da guerra, e depois da campanha de África, em 1914 e 1915, partiria
para França, já como parte do Corpo Expedicionário Português. Aí,
acabaria por ser feito prisioneiro, mas, como conta ao a sua sobrinha-
neta, Carla Megre, filha de Fernanda Sacadura, “como primeira obrigação
de um oficial prisioneiros de guerra conseguiu evadir-se”.
João Sacadura terá, então, pedido à Cruz Vermelha Francesa para os
que permaneciam presos. “Ele não gostava dos ingleses, achava que
não queriam saber dos soldados portugueses. E o Governo português,
a mesma coisa. O Corpo Expedicionário Português foi completamente
abandonado pelo Governo. O meu tio pediu auxílio à Cruz Vermelha
Francesa para os portugueses que morriam à fome nos campos de
prisioneiros”, diz ao PÚBLICO Fernanda Sacadura. Já dos alemães, o
alferes parecia “não ter muitas razões de queixa”, acrescenta.
A actuação de João Sacadura no teatro de guerra mereceu-lhe
várias condecorações. Além de vários louvores, recebeu a medalha
comemorativa do Sul de Angola, a Cruz de Guerra, a medalha
comemorativa das Campanhas de França (1917-18), a da Vitoria, de
Comportamento Exemplar e, a 5 de Outubro de 1926, já depois de ser
promovido a tenente, foi agraciado pelo regime saído do golpe de 28 de
Maio, com a distinção de cavaleiro da Ordem de Aviz.
Depois da guerra, João Sacadura continuou na vida militar, exercendo
várias funções durante a ditadura. Fernanda Sacadura recorda o que
se lembra de ouvir contar sobre a passagem do tio por S. Tomé, como

28
Grande Guerra • Memórias de Família

comandante da polícia, entre 1927 e 1928. “Ele foi alertado para uma
evasão dos prisioneiros, que eram quase todos presos políticos, mas
muitos, para fugir aos guardas, atiraram-se ao mar e foram comidos por
tubarões. Nessa altura, ele pediu transferência para Luanda”.
E foi em Luanda que João Sacadura haveria de morrer, já depois de
ter casado e ter tido um filho. O seu funeral, como descreve o Diário de
Luanda, teve honras militares e a presença de altos representantes civis
e militares. Um colega de Sacadura “transportou o boné, a espada e as
medalhas” do português.
João Sacadura, que chegou a ser ajudante de campo do Governador-
Geral de Angola Bento Roma (1930), ostenta na sua campa apenas a
indicação de que foi “capitão de artilharia” e que esteve em “França e
Angola”, durante a I Guerra Mundial.

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29
Grande Guerra • Memórias de Família

O avô sobreviveu dentro


de um bote à deriva
Catarina Gomes

O
vídeo a preto e branco dura cinco minutos, não tem som, chama-
se Afundamento do Augusto Castilho. O filho de Esperança Matos
encontrou-o por acaso na Cinemateca Digital e mandou o link
à mãe. Foi filmado em 1918 por alemães que quiseram deixar
registado para a história as imagens daquele sobrelotado bote salva-vidas
a afastar-se no mar, talvez para depois tentar saber que destino teria. As

O navio português Augusto Castilho foi bombardeado por um submarino alemão Miguel Madeira

30
Grande Guerra • Memórias de Família

caras dos homens mal se distinguem, é lusco-fusco, as ondas reflectem a


luz mas Esperança Matos sabe: “uma das personagens daquele bote é o
meu avô”, José Batista Martins, diz ao PÚBLICO.
Ela era jovem quando o avô morreu, em 1986, mas sempre ouviu aquela
história do avô marinheiro que fez parte dos sobreviventes que resistiram
ao afundamento do navio caça-minas português Augusto Castilho, depois
de ter sido bombardeado por um submarino alemão, em plena Primeira
Guerra Mundial. Morreram no confronto seis pessoas, incluindo o
comandante, mas os alemães condoeram-se daqueles portugueses, conta
Esperança Matos.
Os feridos ainda receberam tratamento ministrado pelo médico do
navio alemão e deram-lhes um bote salva-vidas para que chegassem a
terra, “embora em muito mau estado”, contava o avô, “e umas bolachas,
e mandaram-nos à vida”. Depois os alemães ficaram a filmar o pequeno
barco a desaparecer no meio das ondas, deixado à sua sorte. “Os alemães
eram poderosos e podiam tê-los matados a todos, mas deixaram-nos
ir”, diz Esperança de Matos, que conta que os alemães quiseram dar
uma ultima oportunidade de sobrevivência aos portugueses. “Tiveram
respeito por aqueles homens que eram como que uma formiga em luta
contra um elefante”.
O que aconteceu nos dias seguintes dava um filme. “Era uns a
remar e outros a tirar água”. Alguns dos homens estavam feridos
dos bombardeamentos, outros foram ficando doentes, desidratados,
“um deles começou a ter ataques e tiveram que o lançar ao mar. A
sobrevivência falou mais alto”, contava o avô de Esperança Matos.
Chegaram a terra e o avô acabou por voltar à sua aldeia natal, feito herói,
“com as crianças a mandarem-lhe flores, o chão atapetado. Eu era criança
e lembro-me”. Mais tarde a Marinha Portuguesa homenageou o avô, tendo-
lhe erigido uma lápide na sua terra natal - Fragoso, concelho de Barcelos.
O Portal da Marinha atesta a aventura. Diz que o Augusto de Castilho era
um arrastão de pesca a vapor que tinha sido requisitado pelo Governo

31
Grande Guerra • Memórias de Família

Português durante a guerra, classificado como patrulha de alto mar,


“tendo sido  um dos navios portugueses que mais encontros teve com
submarinos alemães.”
Em 21 de agosto de 1918 estavam a dar vigilância a um vapor de
passageiros, o San Miguel, do Funchal para Lisboa, com nevoeiro denso,
“avistou nas proximidades do Cabo Raso, às 6h30 um grande submarino
alemão em meia imersão, rompendo fogo contra ele. Apesar de começar
a navegar a toda a velocidade, foi atingido por três granadas.”
No dia 23 do mesmo mês, novamente foi perseguido por outro
submersível. Pouco mais de dois meses, em 14 de Outubro de 1918, foi
bombardeado e afundou. Mais uma vez, patrulhava o paquete San
Miguel, com passageiros e carga, em viagem da Madeira para os Açores.
“Pelas 6 horas da manhã, um submarino de enormes dimensões,
conforme o relato dos sobreviventes, atacou o paquete: era o U-139, um
cruzador-submarino armado com duas peças de 150 mm, cujo alcance
era muito superior às do Augusto Castilho, tendo-se este colocado entre o
paquete e o submarino apesar da sua manifesta inferioridade.
Os sobreviventes, alguns deles feridos, embarcaram no salva-vidas e no
bote do navio e conseguem percorrer os cerca de 370 quilómetros que os
separavam da ilha de São Miguel. O salva-vidas encontra-se hoje preservado
no Museu de Marinha, refere o portal oficial. Esperança  Matos conta que
em 1968, 50 anos depois do combate, os seus avós foram numa viagem pelo
Atlântico depositar uma coroa de flores no local de combate.

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32
Grande Guerra • Memórias de Família

Quando os heróis
não se suicidavam
Catarina Gomes

No início, falava-se pouco deste avô que Helena Caxide nunca chegou
a conhecer, era como se a família prolongasse o espírito de uma época
em que o suicídio era pecado. Era inexplicável aquele silêncio, porque,
para ela, o avô sempre tinha sido “um herói. Despertava em mim uma
curiosidade enorme”. Foi em
resposta às suas perguntas
que foi descobrindo “o
sofrimento que acarretou
para ele e para toda a família
a sua participação na I Guerra
Mundial.”
António Júlio dos Santos
Caxide embarcou para a
Flandres a 9 de Setembro
de 1917. Esteve desde essa
data até ao momento do
confronto de La Lys, em 9
de Abril de 2018, a viver nas
trincheiras. Contava desse
tempo que, para conseguir

Por se ter suicidado depois de regressar da


guerra, o Estado cortou a pensão à viúva de
António Caxide DR

33
Grande Guerra • Memórias de Família

sobreviver, teve que comer ratos e raízes. Após a batalha, foi dado como
desaparecido em combate em Lisboa, a 29 de Abril de 1918, conta a neta.
A família não sabe com precisão o que se passou durante e após a
batalha. “Sabemos, sim, que ficou em poder das tropas alemãs, bastante
doente, por ter sofrido a inalação dos gases tóxicos”. Graças a pesquisa
feita já pelo pai de Helena, nos anos 1970 e 1980, descobriram que acabou
por ser identificado no hospital militar de Bruxelas, na Bélgica, a 4 de
Janeiro de 1919. No mês seguinte, foi considerado incapacitado por junta
médica, para todo o serviço, “devido às graves sequelas físicas que eram
efeito dos gases tóxicos durante a batalha. Tinha fortes dores e frequentes
problemas pulmonares, como pleurisias com derrames nos pulmões.
Tinha que ir regularmente fazer dolorosos tratamentos a Lisboa, ao
Hospital Militar e ao Hospital Colonial”, relata.
Foi evacuado para Portugal no navio Gascon, chegando a 25 de Abril
de 1919. “Após tudo o que lutou e tudo o que sofreu fisicamente, como
doente e prisioneiro (embora ele tenha sempre dito que nunca foi
maltratado pelos alemães, e sempre o respeitaram enquanto prisioneiro),
revelou ser um homem nobre de carácter”. Por causa dos seus problemas
de saúde, acabou por aprender a fazer tratamentos de feridas, a usar
seringas. Assim, “quando voltou para a sua aldeia, era a ele a quem
recorriam pessoas doentes, para lhes dar injecções, tratar de ferimentos,
e até fazia pomadas”, recorda-se em família.
Contava-se que todos os dias ele tinha que se injectar a si próprio com
medicamentos para suportar as mazelas da guerra. “Tinha momentos em
que a dor física e a dor psicológica lhe causavam muito sofrimento.”
Tinha o pai de Helena Caxide apenas oito anos quando António
Caxide, usando a sua própria arma, disparou contra si, no ouvido. “Ainda
sobreviveu dois dias, com imenso sofrimento, e arrependido do que havia
feito, mas acabou por falecer a 10 de Outubro de 1944.”
Por causa desta morte prematura, toda a família foi afectada. A vida
dos filhos foi feita em instituições - embora tenham tido oportunidade

34
Grande Guerra • Memórias de Família

de estudar nos Pupilos do Exército, por o pai ter sido militar -,


“completamente sós e com o estigma de um pai que se tinha suicidado,
algo naquela época visto com desconsideração, mesmo como um pecado,
e que, nesse tempo, se sobrepunha a tudo, ao heroísmo demonstrado
durante a guerra, à sua resistência, ao ter sobrevivido aos ferimentos, à
sua nobreza de carácter, como pai, e o enfermeiro e cuidador de tanta
gente, na sua aldeia natal de Castedo do Douro.”
Mas pior havia de acontecer, conta Helena. Por se ter tratado de
suicídio, retiraram à sua avó a pensão de viuvez. Ficou sozinha com
cinco filhos. A neta conta como este corte sempre foi visto como uma
profunda injustiça.
A viúva do combatente teve que fazer face a esta situação. “Sei que
trabalhou muito, chegava a fazer muitos quilómetros a pé para chegar aos
campos que possuía, e que trabalhava duramente. Chegou a desmaiar,
e a levantar-se novamente, para continuar a trabalhar, pois aquele tipo
de trabalho era demasiado para aquela pequena mulher. À sua maneira,
Alice Gaspar Pimentel foi também uma grande lutadora.”
Mais tarde, foi o filho mais novo, o pai de Helena Caxide, que já, como
oficial militar de carreira, conseguiu que se corrigisse “a lamentável
decisão. Por volta de 1980, a minha avó viu ainda ser corrigido o erro,
e voltou a receber por breves anos a pensão a que tinha direito e lhe
recusaram nos anos em que mais precisou”.

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35
Grande Guerra • Memórias de Família

As leituras no chalet rosa


Catarina Gomes

D
esde sempre que Miguel Alegre, de 18 anos, se lembra de passar boa
parte das férias de Verão naquele chalet rosa, na aldeia de Valezim,
no meio da Serra da Estrela. Entre os muitos retratos de antepassados
que ali existem havia um que sobressaía e descreve-lhe a figura,
“corpo magro, bigode preto, olhos penetrantes, sempre muito digno”.
Conhecia-lhe também o nome: Albano Manuel de Senna Fonseca.
Mas o que dava corpo àquela pessoa, que não estava no chalet rosa mas
que era como se estivesse,
eram a quantidade de escritos
do homem que era seu bisavô
e que Miguel encontrava
espalhados pela casa, em
papéis, cadernos, sebentas,
dentro de gavetas cheias de
mofo. Desde os seus 12 anos
aquelas leituras significaram
que, sem sair de casa,
sentia estar a ler histórias
de aventuras, a descobrir
tesouros no meio dos papéis.
Depois de tudo o que foi
lendo, Miguel Alegre acredita
hoje que foram “dois os anos

O bisavô de Miguel Alegre conta nos seus


apontamentos que na partida os homens
choraram

36
Grande Guerra • Memórias de Família

definidores e aglutinadores de toda aquela vida: 1917 e 1918. A guerra,


involuntária e inadvertidamente, constituía-se como pilar integrador
daquela existência. Como poderia uma experiência tão curta influir de
tal modo na essência de um homem nascido a 1888 e falecido a 1952?”,
escreveu num texto em que reuniu algumas das suas reflexões sobre este
bisavô que conta transformar em livro.
Sobre a partida para guerra Miguel leu que o bisavô, que era capitão de
artilharia, quis chorar: “Entrámos nas carruagens a dissimular as lágrimas
escondidas, há quem tenha a pretensão de estar alegre para se ajudar,
mas todos se sentem autómatos empurrados por força desconhecida.
Entramos no túnel e naquela penumbra de ambiente exterior e interior,
ouvem-se os primeiros soluços e, logo a seguir, a voz do meu Comandante
Tenente-Coronel Pires Leitão que, a chorar também, nos diz ‘Chorem à
vontade, rapazes, que eu também estou a chorar!’ […] Entrávamos em
mundo novo. Ia começar a viagem.”
Numa recordação de batalha o bisavô de Miguel Alegre relatava que “às
10 e meia da noite, dois bombas de aeroplano inimigo mataram e feriram
quase metade dos meus soldados, dos meus melhores soldados. Horríveis os
estragos, terríveis os momentos de sofrimento! […] Ficavam no cemitério de
Steenbecque os que morreram logo, ficando decepados no acampamento.”
Miguel Alegre lembra ao PÚBLICO outra cena escrita que o marcou,
e que mostra o que descreve como um momento de “insurreição” e
outro de “imoralidade”: “Revolta na Infantaria 7 por não querer mais
trincheiras. Retira com os oficiais e passam pelo meu acantonamento
em St. Venant. Enchem os ouvidos dos meus soldados […] de frases
que preparam para a insubordinação”. Num dos parágrafos que
transcreveu para o seu caderno o bisavô descreve uma casa que os
militares portugueses encontram abandonada, na povoação francesa de
Steenbecque, em que os donos tinham fugido e deixado tudo, “imagens,
postais, retratos! Tudo! Até roupas… Que os soldados roubavam e
estragavam. Era isto a guerra…”

37
Grande Guerra • Memórias de Família

No resto da sua vida, o bisavô Albano Manuel de Senna Fonseca pouco


falou da guerra em família. As experiências mais marcantes deixou-as
no papel e Miguel Alegre agradece-lhe. “Há muita gente que morre e não
deixa nada, ele deixou tanta coisa escrita que se acaba por conhece-lo”.
Estas leituras de Verão terão contribuído para a sua escolha de estudos.
Miguel Alegre está quase de partida para Inglaterra, onde vai começar a
tirar História na University College London. Antes disso, ainda vai passar
as tradicionais semanas férias ao chalet rosa onde descobriu o que o avô
viu e sentiu há mais de 100 anos.

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38
Grande Guerra • Memórias de Família

Para inglês ver


Catarina Gomes

N
ão foi na Primeira Guerra Mundial que nasceu a expressão “para
inglês ver” mas ela parecer ter sido talhada para um dos episódios
passados na guerra que Gaspar Santos, português que foi oficial
médico do Corpo Expedicionário Português em França, mais contava
em família e que os punha a todos a rir lá em casa, contaram ao PÚBLICO a
sua neta, Leonor Santos, e o
seu filho, Emílio Santos.
Gaspar Santos esteve
em França de Maio de 1917
até Agosto de 1918. Um dia
um soldado português foi
trazido, sob prisão, por um
oficial inglês “por ter andado
a roubar sulipas para se
aquecer”, aquelas travessas
da madeira em que assentam
os carris de caminho-de-ferro,
explica a neta. O oficial inglês
vinha denunciar a grave falha
ao oficial português mais
graduado, para que tomasse
medidas. Gaspar Santos pôs
semblante carregado.

Gaspar Santos foi médico em Moçambique e


em França

39
Grande Guerra • Memórias de Família

O tom veemente com que estava a falar ao seu conterrâneo fazia-o parecer
solidário com o inglês mas o aparente ralhete foi algo como: “então você
deixou-se apanhar pelo inglês, tem que roubar mas não pode deixar que
os ingleses o apanhem e não se atreva rir-se”, reconstitui Leonor Santos,
que tem 52 anos e ainda conviveu com o avô durante 24 anos.
Para Leonor Santos, este episódio cómico é bem o espelho da pessoa
que o avô era. “Um homem fantástico, inteligentíssimo”, um militar
que se via sobretudo como médico e que distinguia bem entre “ordens
estúpidas e ordens inteligentes”, ele fazia por apenas acatar as segundas,
diz. “Quando não faziam sentido não eram para se cumprir”. Como
oficial, Gaspar Santos tinha uma vida privilegiada face aos soldados,
mas conhecia-lhes as dificuldades, conta o filho, sabia bem que as
condições miseráveis em que viviam os soldados portugueses, que para
se aquecerem até a sulipas de linhas férreas tinham que recorrer. “Foi
médico militar até ao resto dos seus dias mas não havia pessoas mais
antimilitarista”, lembra o filho. A cena termina com o oficial inglês a
agradecer-lhe a reprimenda.
Neta e fillho lembram também como ele lhes contava como faziam
pouco dos portugueses por andarem agasalhados com as pelicas
alentejanas de pele de carneiro e que por causa dessa vestimenta lhes
começaram a chamar mé-més. Os franceses também encaravam com
estranheza o facto de os portugueses lhes irem às hortas roubar as folhas
dos nabos, que eles não aproveitavam. Como estavam incorporados nas
tropas inglesas, serviam-lhes rações daquele país, e o que eles queriam
era “a sopinha portuguesa”, comenta Emílio Santos.
O espírito independente do avô esteve presente até ao fim da vida,
conta Leonor Santos. “Quando os netos lhe faziam uma pergunta nunca
nos dava a solução, punha-nos a pensar”, andava sempre a dizer-lhes “é
preciso exercitar a massa cinzenta”.
Leonor Santos lembra que este seu espírito independente esteve
presente desde cedo. O avô acabou o curso em 1915 e, nessa altura,

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Grande Guerra • Memórias de Família

escolheu como tese de final de curso a questão do aborto como um


problema de saúde pública. “O júri não o deixou defender a tese, deram-
lhe uma tese em substituição que já estava feita. A cabeça andava mais à
frente do que o seu tempo”. O avô era também membro da Maçonaria.
A família dá mais importância a estas memórias vivas do que aos
objectos que ficaram desse tempo. Mas ainda restam alguns lá por casa,
algumas fotos, cartas e postais, o capacete enferrujado, o capote usou-o
filho  até ficar estragado e as fardas estiveram num baú mas acabaram por
ser comidas pelas traças, conta Emílio Santos.
A ida para França, e antes disso (entre 1916 e 1917) a sua colocação no
Norte de Moçambique, onde esteve também durante a Primeira Guerra
Mundial com a Cruz Vermelha, serviu indirectamente à família para
conhecer os hábitos dos seus antepassados desse tempo. Porque ficou
muita da correspondência que a família lhe mandava. Ele era o segundo
mais velho de oito irmãos. Se não fosse a guerra talvez Leonor não soubesse
tanto de como eram as suas vidas naqueles tempos em Portugal, de como
eles viviam em Lisboa e iam passar as suas férias à Trafaria e à Algueirão,
que hoje são subúrbios de Lisboa. O avô guardou as muitas cartas que
recebia da família e Leonor acha sempre piada ao postalinho do lagarto
do Jardim zoológico de Lisboa enviado para França ao irmão que estava
na guerra pela irmã mais nova. Com apenas oito ano a pequena Marieta,
de oito anos, terminava a carta para o seu “querido Gaspar” com a
espontaneidade de quem é criança: “já estou maçada de escrever”.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Um pé ferido salvou-o do
massacre de Cuangar
Patrícia Carvalho

A
s histórias que José Joaquim Fernandes contou ao filho, Manuel Leal
Fernandes, acabariam por aparecer no livro que este escreveria,
muitos anos depois de o pai ter participado, em Angola, na Grande
Guerra. Em Angola: As Brumas do Mato, Manuel conta, referindo-
se ao pai: “O massacre de
Cuangar, lá nas terras do fim
do mundo, na imensa Angola,
nunca lhe saiu da memória.
Aí passara quase dois
anos. Um ataque traiçoeiro
massacrara amigos e
companheiros de armas. Um
golpe inesperado num pé que
o levara a ser evacuado para
o Hospital de Sá da Bandeira
livrara-o da morte.”
José nascera muito longe
do mato africano. Foi em
Bismula, Sabugal, que o
filho de João Fernandes
e Luísa Nunes nasceu, a

Depois de ter ficado ferido José Joaquim


Fernandes levou três meses a ser
transportado

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Grande Guerra • Memórias de Família

25 de Maio de 1891. Mas o concelho do interior do país era demasiado


pequeno e apertado para quem aprendera a ler e escrever e tinha sede
de aventura. Com 17 anos perdeu a mãe e, a 5 de Agosto de 1911, assentou
praça no Regimento de Infantaria 12, na Guarda, e a 12 de Janeiro de 1912
foi incorporado no 1.º Batalhão. A 29 de Abril, finda a instrução, recusa-
se a voltar a casa e oferece-se, em vez disso, para substituir um soldado
recrutado para África.
Por aí andou por Luanda, Moçâmedes, Sá da Bandeira e Cuangar. E foi
neste posto fronteiriço que a Grande Guerra o apanhou, já como membro
da 1.ª Companhia Europeia de Infantaria de Angola.
O soldado português esteve colocado em Cuangar entre 26 de
Dezembro de 1912 e 1 de Agosto de 1914, dia em que ficou gravemente
ferido num pé e, sem meios de socorro convenientes nas imediações,
foi evacuado para o hospital de Sá da Bandeira. O caminho, contudo,
foi penoso. José contou ao filho que, transportado num carro de bois,
levou três meses a atingir o destino, sempre acompanhado pelo medo
de perder o pé e a perna, que se foi aguentando à custa de água, sal e
plantas locais.
Quando, finalmente, chegou ao hospital, já as tropas alemãs tinham
atravessado o rio e atacado o posto fronteiriço, a 31 de Outubro.
Morreram 22 pessoas, incluindo dois oficiais, um sargento, cinco
soldados europeus e treze africanos, além de dois civis, o comerciante
Sousa Machado e uma mulher. Foi no hospital que o português soube
do incidente que foi conhecido como “massacre de Cuangar” e também
que alguns colegas tinham conseguido sobreviver, fugindo pelo mato.
Após a convalescença, José passa a integrar a 4.ª Companhia de
Depósito de Angola, a partir de 14 de Maio de 1915 e é aí que aguarda
o regresso a Lisboa. Embarca em Moçâmedes, a 18 de Julho, no
paquete Zaire, e termina o serviço militar já na capital portuguesa, a
9 de Setembro de 1915, como refere a caderneta militar que Manuel
Fernandes fez chegar à investigadora Manuel Portela, do Instituto de

43
Grande Guerra • Memórias de Família

História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da


Universidade Nova de Lisboa.
O serrano que se voluntariara para ser soldado em África, para
conhecer o mundo, acabou por regressar a Bismula e foi aí, na sua casa,
que relatou ao filho, vezes sem conta, as histórias vividas na Grande
Guerra em África.

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44
Grande Guerra • Memórias de Família

O médico que foi para a guerra


protegido por uma promessa
Patrícia Carvalho

L
uís António Martins Raposo não tinha qualquer apetência por
guerras. Não sonhava em ser soldado nem em combater, de arma ao
ombro, nem sequer em ser herói. O que Luís queria era ser médico
e, por isso, é que deixou Caçarelhos, em Vimioso, e rumou ao centro
do país, para ingressar na
Faculdade de Medicina da
Universidade de Coimbra.
Mas a Grande Guerra havia
de se intrometer no futuro
que, porventura, idealizara,
e Luís lá partiu para França,
enquanto a sua noiva fazia
promessas à santa da aldeia,
ansiosa pelo regresso do
médico.
Nascido a 20 de Maio de
1892, Luís concluiu o curso
de Medicina em 1916, o ano
da mobilização portuguesa
para a guerra. Nas Memórias
que escreveu, dedicadas à

A intervenção do médico valeu-lhe


a Cruz de Guerra

45
Grande Guerra • Memórias de Família

família, o transmontano recorda esses dias. “Em fins de Abril do meu


5.º e último ano de Curso (1916) soube na minha aldeia, onde gozava
as últimas férias da Páscoa como estudante, que havia sido mobilizado
para uma Divisão de Instrução em Tancos. Tratava-se da primeira e
até essa altura inocente manifestação da nossa entrada na 1.ª Guerra
Mundial”, escreveu o médico.
Luís Raposo explica depois como foi “clinicando” na aldeia de
Caçarelhos, “para matar o tempo”, até que, no último dia do ano,
foi “convocado para a guerra”. O transmontano iria para França
como médico do Corpo Expedicionário Português. “Ia, assim, iniciar
forçadamente uma carreira para a qual jamais me sentira com vocação”,
escreveu, mais tarde, nas suas memórias.
O médico descreveu, depois, vários episódios da sua passagem
pelas trincheiras, em França. Desde o dia indefinido de Fevereiro
em que desembarcou em Brest (“Frio de gelar, como se calcula”),
passando pelo percurso até Aire-Sur-La-Lys, em que viveu “três dias
de frio e de fome” como não se lembrava de ter passado. Luís traça
o trajecto até Quernes, onde permaneceu “até depois do fatídico 9
de Abril” e recorda, depois “com emoção” o baptismo de fogo que
experimentou “na noite de Santo António”, a 12 de Junho. “Súbita e
inesperadamente os alemães desencadearam um fortíssimo ataque
com artilharia, morteiros, metralhadoras e gases asfixiantes, como
que a presentear as tropas portuguesas pela sua recente entrada
em actividade”, escreveu Luís Raposo. Ele ocupou-se do Posto de
Socorro da frente e garante que durante toda a noite não houve “um
minuto de descanso, tantos os feridos e gaseados assistidos e tantas
as deficiências compreensivelmente verificadas neste primeiro e
delicado contacto com a guerra a sério”. Sobre os gaseados que lhe
passaram pelas mãos, o médico escreveria: “Dos muitos quadros
temerosos e cruéis oferecidos pela guerra foi este, sem dúvida, o
mais impressionante.”

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Grande Guerra • Memórias de Família

A intervenção do médico valeu-lhe a Cruz de Guerra e, em Fevereiro de


1919, Luís Raposo regressava a Portugal, “num navio inglês improvisado
de hospital”. À sua espera estava Antónia de Jesus Moreira, a sua noiva.
Quando viu o médico partir para a guerra, Antónia dirigiu-se à Nossa
Senhora da Batalha, imagem que existia na capela da sua terra, em Peredo,
Macedo de Cavaleiros, e fez-lhe uma promessa. Voltasse o seu Luís intacto
da guerra e ela, Antónia, vestiria a Santa da Batalha de cetim e ouro.
O vestido branco, debruado a ouro, e o manto azul, também debruado,
foram feitos em Braga ou Penafiel e ainda existem. Quanto a Antónia,
casou com Luís e juntos tiveram três filhos. Luís pôde, então, dedicar-se a
exercer Medicina longe da guerra e, ao longo do seu percurso profissional
– como recorda o seu neto Miguel Raposo e outros familiares do médico,
em depoimentos compilados pela investigadora Margarida Portela, do
Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa
– foi responsável por instalar em Coimbra uma delegação do Instituto
Português de Oncologia. Morreu um mês antes de completar 93 anos.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Só Felizardo foi à guerra


Catarina Gomes

F
elizardo Simões e Manuel Simões eram gémeos. Foram os dois
mobilizados para a guerra com 27 anos mas, numa revista à
formatura, o irmão Manuel pediu ao militar de alta patente que só
um deles fosse enviado, “para que ficasse um a ser amparo da mãe”,
que já tinha 71 anos, conta o seu neto, Manuel Simões Rodrigues Marques.
O militar em causa compadeceu-se do pedido, chamou o oficial que o
acompanhava e disse-lhe para
tomar nota do nome do irmão
que fazia o pedido, para que
fosse só ele a ir para a guerra.
Apesar de serem gémeos,
Manuel quis escapar-se e deu
o nome do irmão. “Só um foi
um para a guerra, mas foi o
Felizardo”, lembra o neto que
recorda que Manuel Simões
sempre foi “o mais descarado
dos irmãos”.
Já casado e com dois filhos,
Felizardo embarcou então
para França, no dia 26 de
Maio de 1917, com 28 anos
de idade, na 1.ª Companhia

Felizardo Simões escrevia à família que


na guerra havia homens com saias,
chamavam-se escoceses

48
Grande Guerra • Memórias de Família

do Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro, integrado no Corpo


Expedicionário Português, e por lá andou quase dois anos. Em família
diz-se que morreu em 1934 com 47 anos, quinze anos antes de o neto ter
nascido. “A família afirmava que ele tinha morrido novo, resultado do gás
mostarda que tinha inalado na guerra.” Depois de regressar da ainda teve
mais cinco filhos.
Nasceram em Albergaria dos Doze, no concelho de Pombal, tendo
o irmão gémeo que ficou, Manuel Simões, mais tarde ido viver para as
Caldas da Rainha. “Houve muita troca de correspondência, que a família
guardou ao longo destes quase 100 anos” e Manuel Simões Rodrigues
Marques destaca um excerto: a 30 de Setembro de 1917 escrevia à esposa
um postal, com a fotografia de dois soldados, onde dizia: “Minha querida,
saúde, bem assim Amélia e mãe, que eu bem. Envio-te este postal que é
para vocês verem que na guerra também andam homens com saias e são
os melhores guerreiros. Chama-se escocês e o outro é inglês”
“É histórico que tudo correu mal ao Corpo Expedicionário Português e
o avô Felizardo não fugiu à regra, com a suas insubordinações, registadas
na sua Caderneta Militar”, continua a relatar o seu neto. Mas o Estado
Português reconheceu que “O Batalhão de Sapadores de Caminhos
de Ferro foi a Unidade Portuguesa que, com maior persistência e
assiduidade, mais cooperou na zona de guerra, onde prestou notáveis e
assinalados serviços, em circunstâncias por vezes difíceis e arriscadas e
muitas vezes debaixo de fogo da artilharia inimiga”.
A povoação de onde era Felizardo, Albergaria, no concelho de Pombal,
é de solo pobre, a agricultura pouco cultivo dava. Mas com a construção
do caminho-de-ferro começaram novos dias. Os dois irmãos foram ambos
foram empregados da CP. Mas só Felizardo foi à guerra.

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49
Grande Guerra • Memórias de Família

Francisco Diogo não


voltou o mesmo
Catarina Gomes, Patrícia Carvalho

G
uarda-os como tesouros, aos seis postais que, como neta mais velha
da sua avó, acabaram por ir para às suas mãos naquele dia em que,
tinha Alexandra Róldão 17 anos, a avô lhe disse “vai lá tirar ao álbum
os que quiseres”.
Os postais de que mais gosta são os bordados à mão, Kisses for my
darling, diz um deles. Alguém deve ter dito ao irmão da sua bisavô
paterna, Francisco Diogo, o que queriam dizer aquelas palavras em inglês,
“beijos para a minha querida”. Como não tinha namorada, mandou-os
às irmãs e à mãe, juntamente com algumas palavras de circunstância

Alexandra Roldão guarda vários postais enviados pelo seu tio bisavó

50
Grande Guerra • Memórias de Família

“muito estima que ao receber este bilhete te ia encontrar de boa saúde, eu


felizmente bem com os meus camaradas”. Seria o tipo de discurso que a
censura militar deixaria passar, diz ao PÚBLICO Alexandra Roldão que, é
professora de Economia mas que por via deste seu tio bisavó vem lendo
sobre o tema.
Pouco sabe desse familiar longínquo, mas os postais são a sua ligação
à sua história, isso e umas vagas referências passadas da bisavó, contadas
ao seu pai. Sabe-se que regressou da guerra mas que não veio o mesmo.
Os gases, dizia a bisavó que tinha sido o gás mostarda, deixaram-lhe
marcas para o resto da sua vida, que haveria de ser curta.
O seu boletim individual do Corpo Expedicionário Português,
preservado no Arquivo Histórico Militar, revela que Francisco Diogo
embarcou para França a 20 de Janeiro de 1917. Um mês depois, a 21
de Fevereiro, “baixou a uma ambulância”, por causas desconhecidas,
mas de que só teria alta a 31 de Março. Poderá ter sido uma doença
adquirida na viagem ou algo que tenha sucedido no treino ou na
vida diária, nas marchas difíceis e rigorosas, enuncia a historiadora
Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa. Foi apenas o primeiro de vários
episódios de doença do soldado que, iria receber tratamentos de saúde
pelo menos mais duas vezes.
A juntar aos episódios de doença, Francisco viu a sua passagem
pela frente de guerra marcada também por histórias de indisciplina,
traduzidas em castigos, em três alturas diferentes, o mais grave dos
quais o condenou a 15 dias de detenção, já depois do final da guerra,
a 13 de Março de 1919. O jovem soldado cumpriu a pena e foi posto
em liberdade a 3 de Abril, podendo então regressar a casa com os
restantes sobreviventes do muito massacrado do Regimento de
Infantaria 22, a 25 de Abril.
Quando voltou a Portugal ainda casou, comprou uma quinta
perto de Lisboa, mas seria dos problemas respiratórios que nunca o

51
Grande Guerra • Memórias de Família

abandonaram ou da infidelidade da mulher, a família sabe apenas que se


suicidou, enforcado. As razões de ter decidido pôr fim à vida quem tinha
conseguido sair da guerra vivo só podem ser feitas de especulação. É o
que resta em família, poucos factos, muita imaginação.

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52
Grande Guerra • Memórias de Família

O sino que não cabia


Catarina Gomes

O
s dois filhos partiram de Covelo de Gerês para a guerra ao mesmo
tempo. A mãe, Carolina Rosa Gonçalves, ficou na aldeia sem nada
saber mas decidiu fazer o que podia pelo seu regresso tornando
pública a promessa de que, se voltassem os dois filhos sãos e salvos,
mandaria construir o sino que passaria a tocar no campanário a Igreja.
São Bento faria por isso.
Cada um de sua vez,
regressaram, bem. Primeiro
Manuel Lopes Pereira, e
depois Domingos Lopes
Pereira. Fez-se festa para
assinalar o seu retorno, mas
havia que pagar a promessa.
Todo o dinheiro que a
família tinha não chegava
para pagar o sino prometido.
Para isso venderam uma
terra, um lameiro, que é
como se chamam às terras
húmidas, que ficava num
sítio chamado no Alto da
Lomba e lá mandaram então
fabricá-lo.

Domingos Lopes Pereira e a sua mulher


no dia do casamento

53
Grande Guerra • Memórias de Família

Uma vez concluído o sino, este devia ser colocado na igreja, mas era
demasiado grande e não entrava no campanário. O milagre, o regresso
dos filhos da Casa da Forja, tinha que ser anunciado, dizia a família, disso
fazia parte a divida para com São Bento.
Reza a história familiar que se mandou rachar um carvalho ao meio e
montar uma estrutura de madeira para pendurar o sino, para se poder
ouvi-lo tocar. E ele ali terá ficado anos, até que a madeira, carcomida
pelo tempo, cedeu e o sino caiu. Ao cair danificou-se e partiu-se, já não
badalava, razão pela qual foi então vendido.
Manuel Miranda, neto de Manuel Lopes Pereira e trineto de Domingos
Lopes Pereira vive fora de Portugal mas quis saber mais sobre esta história
da sua família. Na aldeia conseguiu saber que um senhor tinha recebido
os restos do sino, tendo-se mandado fazer um novo, agora no nicho.
Manuel Miranda contou à historiadora Margarida Portela, do Instituto
de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, que em 1913
os dois mancebos partiram, junto com outros jovens de Covêlo do Geres
(distrito de Vila Real), para prestarem serviço militar, só depois foram
para a guerra, em África e em França.
O irmão Manuel Lopes Pereira, nascido a 5 de Junho de 1893, partiu
para Angola em 3 de Fevereiro de 1915, desembarcando em Moçâmedes.
Da sua estadia ali pouco se sabe. No entanto Manuel Miranda ouviu a
história de que, para além dos ataques possíveis dos alemães, a sede era
tanta que, um dia, Manuel Lopes terá bebido excrementos de um animal.
Sabe-se depois que desembarcou em Lisboa a 15 de Outubro de 1916.
Casou no mês seguinte, tendo tido 10 filhos. A guerra na França precisava
entretanto de mais homens. Desembarcou em França em 31 de Maio de
1917, onde esteve até ao seu regresso, a 28 de Fevereiro de 1919.
Depois da guerra foi sempre agricultor, vivendo em Covelo e trabalhando
as suas propriedades, de onde tirava, não sem dificuldades, o rendimento
que lhe permitia sustentar a família, contou o seu neto. Tinha dois filhos
com deficiência, um deles surdo-mudo. “Manuel Lopes Pereira foi, depois

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Grande Guerra • Memórias de Família

da guerra, um dos muitos esquecidos pelas autoridades, abandonado à sua


sorte, sem que lhe tenham alguma vez providenciaram qualquer tipo de
melhoria na sua vida, como o não fizeram com tantos outros combatentes
por Portuga”, escreve a historiadora Margarida Portela.
Viria a falecer, muitos anos depois, em 1990, com 97 anos. Segundo
Manuel Miranda, a sua participação no conflito era um grande orgulho,
comprovado pela sua dupla condecoração, com medalhas de cobre
que atestam operações no sul de Angola, e a sua presença em França,
combatendo contra os Alemães em La Lys.
Os relatos dizem que chegou à sua aldeia quando se semeava o milho.
Seu irmão tornaria algum tempo depois, quando já se cortava o milho.
Domingos Lopes Pereira voltava quando se começava já a temer por
falta de notícias suas. Tinha embarcado para França em 22 de Abril de
1917, de onde só regressou em 20 de Março de 1918. Teve uma relação por
essa altura com uma senhora, do qual teve a sua única filha, falecidas não
muitos anos depois em Lisboa. Domingos decidiu-se então a partir para o
Brasil, em 1921. Ali casou, às vésperas da sua morte, a 30 de Março de 1931.
Na opinião da sua mãe, ele e o irmão, com percursos de vida tão
diferentes, contaram sempre com a protecção de São Bento.

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55
Grande Guerra • Memórias de Família

O voluntário coberto de
medalhas
Patrícia Carvalho

A
José Ribeiro Barbosa não foi preciso que a guerra o chamasse, para
se juntar ao exército. Nascido em Joane, Vila Nova de Famalicão, a 29
de Janeiro de 1887, e oriundo de uma família de industriais da área do
têxtil, alistou-se como voluntário, ainda antes de fazer 20 anos.
Por isso, em 1906, já tinha
sido integrado no Regimento
de Infantaria n.º 8 de Braga
e foi aí que fez o curso da
Escola do Exército. Em 1911,
José Ribeiro Barbosa foi
promovido a alferes e dois
anos depois a tenente. Já
durante a Grande Guerra, em
1917, chegou a capitão e era já
essa a patente que ostentava
quando, a 22 de Abril de 1917,
acompanhou o 1.º Batalhão
de Infantaria n.º29 de Braga
para França. Os primeiros
anos da guerra, entre 1914 e

José Ribeiro esteve colocado em pontos


diversos da frente francesa

56
Grande Guerra • Memórias de Família

1916 passara-os numa comissão de serviço, em Cacheu, na Guiné.


A história de José Ribeiro Barbosa foi contada pelo seu neto, Dino
Ramalhete, à investigadora Margarida Portela, do Instituto de História
Contemporânea da Faculdade de Ciências Socias e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. Além dos factos recolhidos sobre o
avô, Dino Ramalhete apresentou também um conjunto de artefactos
cuidadosamente guardados: a espada militar de José, as várias
condecorações que recebeu, cartuchos que trouxe para Portugal após
a sua passagem pelas batalhas da Flandres, várias fotografias e até um
recorte do jornal Lusitano, em que a imagem de José Ribeiro Barbosa
figura numa secção designada “Galeria da Grande Guerra”.
De óculos redondos, bigode e ar afável, o avô de Dino Ramalhete
não parece, à primeira vista, o combatente descrito como de uma
bravura e coragem dignos de uma medalha. A sua fotografia, não fosse
a farda militar, poderia levar-nos a pensar que estávamos, de facto, na
presença de um homem de paz, e não de um voluntário do exército. As
condecorações que recebeu, contudo, não deixam margem para dúvida
sobre a sua dedicação ao cargo.
Em França, conforme descreveu o neto, José Ribeiro Barbosa
participou em diferentes batalhas e esteve colocado em pontos diversos
da frente, além de ter sido director da Escola de Esgrima de Baionetas e
de ter cursado a Escola de Granadeiros e Metralhadoras Ligeiras. Esteve
na primeira linha de defesa do sector Boutillerie (Fleurbaix), onde
o seu batalhão conseguiu repelir um ataque alemão, fazendo vários
prisioneiros, e comandou a 1.ª Companhia de Infantaria, no sector de
Ferme de Bois (Richebourg) e em Ferme de Bois II, onde os alemães
voltaram a ser travados.
Quando o 9 de Abril de 1918 chegou, o dia da célebre Batalha de La
Lys, José foi colocado à frente da 2.ª Companhia do Grupo de Ciclistas.
Dino Ramalhete não refere se o avô foi, então, feito prisioneiro, mas José
Ribeiro Barbosa só regressaria a Portugal a 5 de Junho de 1919, a bordo

57
Grande Guerra • Memórias de Família

de um dos navios ingleses que transportou os portugueses de regresso a


casa, o Northwestern Miller.
Seguiram-se louvores e condecorações, todos destinados a enaltecer o
comportamento e o valor do famalicense durante a guerra. “Nada pedia
aos seus que não praticasse e não fizesse na frente do combate”, é uma
das qualidades atribuídas a José Ribeiro Barbosa e que bem podia servir-
lhe de epitáfio. Pela sua participação na Grande Guerra passou a carregar
ao peito a Cruz de Guerra, a Medalha da Vitória, a Medalha Comemorativa
da Campanha de França “Legenda 1917-1918”, a Cruz Vermelha de
Dedicação, a Medalha de Agradecimento da Cruz Vermelha Portuguesa, a
Medalha de Prata da Classe de Comportamento Exemplar.
De regresso a casa, José Ribeiro Barbosa continuou a sua carreira
militar e seria um dos apoiantes do Movimento de 28 de maio de 1926,
que iria impor a ditadura em Portugal até 1974. Sob a batuta da ditadura,
foi governador civil de Braga durante três anos e recebeu o grau de
Cavaleiro da Ordem Militar de Cristo. Para o famalicense, a vida sob o
regime que pôs fim à 1.ª República não iria, contudo, durar muito tempo.
Como tantos outros portugueses que passaram pelas trincheiras da
Flandres, morreria prematuramente, com apenas 43 anos, em Braga.

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58
Grande Guerra • Memórias de Família

O cabo português
do senhor professor
Catarina Gomes

Q
uem diria que os dotes de carpintaria que António Pereira dos
Santos aprenderia na sua terra, no lugar de Amoínha Nova,
concelho de Valpaços, lhe viriam a ser de valia em tempo de guerra.
O percurso deste 1º cabo, nascido a 1895, contado pelo seu neto, Gil
Manuel Morgado dos Santos,
e bisneto, Gil Filipe Calvão
Santos, foi feito de percalços.
Esteve na famosa batalha de
La Lys, sobreviveu, mas foi lá
que pelas 12 horas do dia 9 de
Abril de 1918, começou um
longo episódio da sua vida
em guerra – ali foi capturado
pelas forças alemãs. Durante
a guerra, mais de 7 mil
portugueses foram feitos
prisioneiros.
Ao todo, e ao longo
de mais de um ano, teve
passagem por cinco locais

António Pereira dos Santos manteve


um diário durante o conflito

59
Grande Guerra • Memórias de Família

de aprisionamento. Primeiro foi transportado para a prisão de Lille,


em seguida para Bruxelas, na Bélgica. A 16 de Abril chegou ao campo
de prisioneiros de Friedrichsfeld, na região do Rhein, Alemanha; no
dia 9 de Maio foi transferido para o campo de Ságan (actual Azagan, na
Polónia), onde permaneceu dois meses. Seguiu então para o campo de
Heilsberg (actual Lidzbark Warminski, na Polónia), onde ficou apenas
quatro dias. A 15 de Julho foi levado para o campo de Stallupönen
(actual Nesterov, na Rússia).
Havia de ser neste último campo que teria o seu contacto mais
marcante com o “inimigo”. Cerca de três semanas depois da sua chegada,
um professor procurou no campo alguém que lhe pudesse fazer uns
trabalhos de carpintaria. A sorte calhou ao militar português. A requisição
era apenas por alguns dias, mas o professor, a mãe e a irmã – com quem
este vivia – simpatizaram com António Pereira dos Santos e, por isso,
solicitaram ao oficial responsável pelo campo de Stallupönen que o
prisioneiro ficasse até ao final da guerra. “O comandante autorizou a que
o português permanecesse ‘por algum tempo’, avisando o professor de
que, se ele escapasse, ‘não lhe ia ficar barato’”, escreve a historiadora
Fátima Mariano, do Instituto de História Contemporânea da Universidade
Nova de Lisboa, a quem os familiares do militar contaram esta história.
António Pereira dos Santos ficou então responsável pela lida da casa
(excepto a confecção das refeições) e passou até a receber o salário da
criada, que entretanto tinha sido despedida. Segundo os familiares deste
1º cabo português, terá sido durante este período que o militar começou
a escrever o seu diário, onde conta a história de como “um professor
prussiano acabou por amenizar os dias de cativeiro de um prisioneiro
português”, resume a investigadora.
Após a assinatura do Armistício, António Pereira dos Santos é obrigado
a sair de casa do professor e a regressar ao campo de prisioneiros, para
poder iniciar a sua viagem de regresso a casa, também ela atribulada.
Ainda permaneceu 15 dias em Stallupönen. No início de Dezembro foi

60
Grande Guerra • Memórias de Família

transferido para Heilsberg, onde ficou até 3 de Janeiro de 1919. Neste dia,
saiu do campo de prisioneiros inserido num grupo de italianos, fazendo-
se passar por um deles. No dia seguinte, estavam em Dantzig (actual
Gdansk, na Polónia) de onde, a 8 do mesmo mês, partiu num vapor em
direcção a Copenhaga, na Dinamarca. Permanece na região até 22 de
Janeiro, altura em que parte para Cherburgo, em França, onde chegou
quatro dias mais tarde. Finalmente, a 2 de Fevereiro de 1919 zarpou com
destino a Lisboa, onde desembarcou no cais de Alcântara três dias depois.
Rumou depois a norte, tendo chegado à sua aldeia natal.
Foi com base no seu diário e noutros documentos, fotografias e
memórias de conversas passadas que, como forma de homenagem, os
seus dois descendentes publicaram, em 2008, o livro que dá conta destas
suas atribulações em tempo de guerra. Decidiram chamar-lhe António
Pereira dos Santos – De Chaves a Copenhaga – A saga de um combatente.
Pouco tempo depois do regresso a casa, António Pereira dos Santos
mudou-se para a freguesia de Santa Leocádia, concelho de Chaves, para
gerir a casa agrícola de uma tia materna, que enviuvara. Aqui conheceu
Carolina Augusta Gomes, oito anos mais velha, com quem casaria a 24 de
Outubro de 1921. Viveriam na mesma freguesia até ao fim dos seus dias.
Tiveram quatro filhos: dois rapazes e duas raparigas.
No diário que chegou até hoje lembra agruras da guerra, recorda com
ironia “uma lauta refeição três bolachas e um pouco de carne”. Mesmo
apesar de todas as dificuldades este foi talvez o momento mais marcante da
sua vida, o que explicará que quando morreu, a 7 de Janeiro de 1976, aos 81
anos, tenha querido ser enterrado com o capote que usou na guerra, para
onde partiu com 22 anos, e que usava muitas vezes como almofada.

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61
Grande Guerra • Memórias de Família

A fotografia que resgatou


uma história
Patrícia Carvalho

A
fotografia do tenente Aurélio de Mendonça e Pinho estava esquecida
entre papéis, até ao dia em que Nuno Borges de Araújo, casado com
uma prima do militar português, a resgatou, de uma casa de família, na
Guarda. A impressão foto-mecânica mostra um homem em pose, olhos
grandes, bigode e de costas
bem direitas, como quem
mostra a farda com orgulho.
A legenda que acompanha a
imagem, impressa pela firma
Marques Abreu & C.ª, do Porto,
explica que quem nos olha é
Aurélio de Mendonça e Pinho,
tenente de Artilharia 2, “Morto
Heroicamente em França nos
combates de 9 d’Abril de 1918”.
Nascido a 12 de Junho de
1891, em Açores, Celorico da
Beira, Aurélio era filho de José
Rodrigues Ferreira de Pinho
e Maria de Jesus Mendonça e
Pinho. Morreu sem ter casado
e sem descendência, pelo
Carlos Ferreira, barbeiro dos oficiais,
salvou-se das trincheiras MIGUEL MADEIRA

62
Grande Guerra • Memórias de Família

que, quase cem anos depois, a sua memória podia ter sido completamente
apagada, não fosse a imagem descoberta por Nuno Borges de Araújo.
“Não tenho muita informação sobre ele. A minha sogra é que sabia alguma
coisa, mas não muito, também”, diz ao PÚBLICO. Nuno Borges de Araújo
contou o pouco que sabia deste parente afastado da esposa à investigadora
Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da Faculdade
de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, juntando
um rosto ao nome gravado numa das campas do Cemitério Português de
Richebourg, em França.
Nuno nunca lá esteve, mas descobriu, através do grupo de Facebook
Corpo Expedicionário Português 1916-19, que o primo da mulher estava
enterrado no talhão D, fila 1, coval 20. Afonso da Silva Maia, que criou o
grupo e mora em França, enviou-lhe fotos da campa de Aurélio, com a pedra
esverdeada pelos anos.
As conversas trocadas nessa página de Facebook permitiram a Nuno
descobrir que o tenente pertencia ao 1º Grupo de Baterias de Artilharia que,
a 9 de Abril de 1918, durante a famosa Batalha de La Lys, estava a poucos
quilómetros da frente, tendo sofrido fortemente com o fogo da artilharia
alemã. Ferido, Aurélio acabaria por não resistir e acabou por perder a vida
a 9 de Abril. “Morreu no mesmo dia em que o meu avô foi feito prisioneiro
pelos alemães, em Lacouture”, diz.
Aurélio de Mendonça e Pinho, morto aos 26 anos, ao comando da sua
bateria, foi um dos mais de cem mil soldados portugueses que participaram
na Grande Guerra, do Norte de França até África. Quase oito mil homens
morreram, incluindo muitos do Corpo Expedicionário Português, enviado
para França. Aurélio foi um deles, enquanto o avô de Nuno foi feito
prisioneiro. Soldados da mesma guerra, na mesma área de batalha, quem
sabe se não se terão conhecido, nas trincheiras enlameadas da Flandres?

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63
Grande Guerra • Memórias de Família

A lembrança de uma velha


senhora francesa que lhe
serviu café sob fogo
Catarina Gomes

T
inha José Ferreira 20 anos quando foi considerado “apto para o
serviço”. Corria 1915 e ele passava ainda os seus dias a calçar a aldeia
de Lomba, concelho de Paredes (distrito do Porto). Era tamanqueiro
de profissão, um calçado de madeira que era comum entre os mais
pobres, e ainda estava longe de saber
que um dia lhe iriam atribuir o número
321 e fazê-lo embarcar para muito longe
dali. Quando é chamado para a instrução
ainda tem tempo de pedir uns dias
de licença para se casar, a 2 de março
de 1917, antes de partir para Brest, a
povoação francesa que era para muitos
a primeira vez que viam França, a 22 de
Julho de 1917.
No ano seguinte haveria de ser
um dos que participaria naquela que
ficou conhecida como a batalha de La
Lys. É engraçado que ao neto, Afonso
da Silva Maia, pouco tenha contado

José Ferreira sofreu com os gases inalados na frente


de batalha

64
Grande Guerra • Memórias de Família

sobre o que viveu nesse combate que aconteceu a 9 de Abril de 1918.


Marcou-o mais a história de uma figura que encontrou quando foram
obrigados a fugir da frente, “depois de resistirem o mais que podiam”.
Para trás tinham ficado muitos portugueses feitos mortos ou prisioneiros.
Debaixo de fogo ele e um camarada, durante uma curta acalmia nos
bombardeamentos inimigos, conseguiram abrigo numa casa quase em
total ruína, pensando que se encontrava desabitada. Lá dentro consta que
uma velha senhora francesa que, segundo o soldado contou ao neto, lhes
ofereceu café e sorriu. A senhora tinha preferido ficar ali a partir com os
outros habitantes, por não conseguir nem andar nem deixar a sua casa,
contou o neto à historiadora do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa, Margarida Portela.
Quando ficam novamente sob fogo – escutam-se bombardeamentos e
zumbidos dos tiros de metralhadora – os militares portugueses decidem
sair da habitação arruinada. José Ferreira contava sempre que tentaram
convencer a velha senhora a fugir com eles mas que ela recusou,
convencendo-os eles a serem rápidos a escapar do local. Ainda terá ficado
a vê-los partir, a velha senhora, de uma janela, e no mesmo instante
em que se afastam, a casa é bombardeada e tudo é reduzido a pó. Anos
depois José Ferreira contava que considerava aquela velha senhora o seu
“anjo da guarda”.
O então soldado do Corpo Expedicionário Português desembarcará
em Lisboa a 3 de Agosto de 1918. Voltará a Lomba, terá oito filhos com
a mulher, Olinda Torres Maia, com quem mal tinha tido tempo de estar
casado. O neto conta que no resto da sua vida, morre em 1960 com um
tumor pulmonar, terá tido sequelas relacionadas com os gases inalados na
frente de batalha. Voltará a passar os seus dias a fabricar tamancos.

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65
Grande Guerra • Memórias de Família

O soldado que regressou


quando já ninguém o esperava
Patrícia Carvalho

Q
uando Francisco do Carmo Laboreiro de Villa-Lobos regressou da
Grande Guerra já ninguém o esperava. Tinham passado meses desde
o Armistício e, em Lisboa, o sentimento entre quem lhe guardava
os bens era o de que Francisco teria sido mais uma das vítimas
mortais do Corpo Expedicionário Português, em França. Por isso, quando
o lisboeta desembarcou na
capital portuguesa, a 15 de
Abril de 1919, descobriu que
todos os seus bens tinham
sido vendidos.
Durante uns dias, a sua
única posse foi a farda que
trazia vestida, e até esta sofreu
as consequências do perda
dos bens de Francisco – como
era proibido usar uniforme
militar nas ruas, após o
final da guerra, o soldado
português teve de substituir os
botões e arrancar as divisas da
Arma de Infantaria.

Quando voltou Francisco de Villa-Lobos


percebeu que lhe tinham vendido todos
os seus bens

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Grande Guerra • Memórias de Família

Francisco do Carmo Laboreiro de Villa-Lobos nasceu em Lisboa, a 5


de Fevereiro de 1899. Oriundo de uma família aristocrata com raízes no
Alentejano, percebeu cedo que o estatuto familiar não era sinónimo de
felicidade, quando, com apenas 10 anos, ficou órfão. O resto da infância
passou-a na casa da avó paterna, com o irmão e as duas irmãs, e, com
apenas 16 anos, alistou-se no Exército.
A Grande Guerra já tinha começado e, em breve, os portugueses
haveriam de ser chamados a participar activamente em combate.
Francisco embarcou para França a 8 de Agosto de 1917, como soldado da
3.ª Companhia do Batalhão de Infantaria n.º 2. A sua placa de identidade
ostentava o número 61239.
O lisboeta haveria de sobreviver à Batalha de La Lys, a 9 de Abril de 1918,
que roubou a vida a tantos portugueses, e antes do final da guerra ainda
foi transferido para a 2.ª Companhia do 2.º Batalhão da 5.ª Brigada de
Infantaria e, mais tarde, para a 2.ª Companhia do 3.º Batalhão da Brigada
do Minho. Após a assinatura do Armistício, a 11 de Novembro de 1918, nos
bosques que rodeiam a cidade francesa de Compiègne, Francisco passou
para a 2.ª Companhia do Batalhão de Infantaria n.º 14. A Grande Guerra
tinha terminado, mas os seus efeitos estavam muito longe do fim.
Para Francisco, as provações da guerra incluíram a inalação de gás
mostarda, nas trincheiras da Flandres, o que acabaria por lhe afectar
a saúde para sempre. A 11 de Abril de 1911, o soldado embarcou no
S.S. Nenominée, da Star Lines, rumo a Lisboa. A chegada à capital foi
brindada com a surpresa de que já falámos, mas nada que Francisco
Villa-Lobos não ultrapassasse.
De regresso a casa, Francisco casou com a namorada, Sara, e teve três
filhos. Segundo o neto, também de nome Francisco, em memória do avô
– e que contou a sua história à investigadora Fátima Mariano, do Instituto
de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa -, a inalação de gás mostarda, na Flandres,
acabaria por ditar a morte prematura do soldado português. Com apenas

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Grande Guerra • Memórias de Família

34 anos, em 1933, Francisco do Carmo Laboreiro de Villa-Lobos acabaria


por morrer. Está sepultado na cripta do talhão dos Combatentes da Grande
Guerra do Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Em horas de pausa,
o médico disparava
Catarina Gomes

A
vida dos médicos na guerra era suposto ser calma, com algum
conforto, na rectaguarda, como acontecia com outros oficiais. O
que conta o neto de José Joaquim Machado Guimarães Júnior é
que essa não era uma vida que tivesse bastado ao avô, que partiu
com 27 anos para França,
como voluntário no exército,
acabando por fazer parte
do Serviço Médico do Corpo
Expedicionário Português.
Embarcou a 15 de Fevereiro
de 1917 rumo a Brest.
O neto, Nuno Borges
de Araújo, conta que em
família sempre se recordou
a sua passagem pela frente
de batalha portuguesa, a
fazer o que era de médico –
tratar de feridos e doentes
– mas também, em horas de
pausa, a pegar na sua arma

Joaquim Machado Guimarães Júnior


foi louvado por “serviços que não são
da sua profissão”

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Grande Guerra • Memórias de Família

e a fazer uso dela. Numa das vezes em que isso aconteceu, o tenente-
médico terá ido para a torre de uma igreja semi-arruinada com uma
metralhadora, e desse ponto favorável terá morto muitos alemães, não
deixando que passassem em direcção à linha portuguesa, contou à
historiadora Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea
da Universidade Nova de Lisboa, o seu neto.
Dos registos oficiais deste médico natural de Guimarães, descendente
de uma família com tradição na área dos têxteis do vale do Ave, não fazem
parte menções directas a estas intervenções não clínicas, até porque tal
não faria parte da sua competência na frente e nem deveria ser autorizado
a tal, refere seu neto. Ainda assim, foi louvado em 24 de Outubro de 1917
pelo cumprimento das suas funções e por “serviços que não são da sua
profissão”, refere a historiadora.
José Joaquim esteve na batalha de La Lys. Foi primeiro dado como
desaparecido e depois soube-se do seu cativeiro, tendo sido feito
prisioneiro em La Couture, a 9 de Abril de 1918. Segundo o que o próprio
tenente-médico relatou aos familiares, quando se viu aprisionado desfez-
se dos seus galões e de qualquer identificação que levassem os alemães a
julgá-lo oficial. Possivelmente poderá tê-lo feito para evitar interrogatórios
ou uma eventual execução. Ele assim aparece, sem sinais de patente,
num postal alemão da época que mostra uma coluna de prisioneiros
portugueses e ingleses a caminhar com ar desolado.
José Joaquim referia ter estado em dois campos de prisioneiros
alemães. Referia ter perdido 30 quilos. As condições eram deploráveis,
tendo sempre referido que chegou a lavar a roupa em charcos, para poder
manter algumas condições de asseio.
Terminada a Guerra, regressou ao Corpo Expedicionário Português a
16 de Janeiro de 1919, vindo da Holanda, como tantos outros prisioneiros
que, aos poucos, foram enviados da Alemanha para a França e depois
para Portugal. Passou alguns dias em Paris e partiu rumo a Lisboa a
bordo do navio inglês Hellenus. Desembarca na capital portuguesa a 29

70
Grande Guerra • Memórias de Família

de Janeiro de 1919. Vinha debilitado, refere Nuno Borges de Araújo. Como


resultado dos gaseamentos a que foi sujeito durante o conflito, e em
particular no 9 de Abril, a sua voz voltou a mesma. Deixou o Exército em
1941, mas continuou a ser médico em Braga. Morreu em 1952 vítima de um
derrame cerebral.
Recebeu a mais alta condecoração, a Ordem da Torre e Espada do
Valor, Lealdade e Mérito, “por ter prestado com a maior dedicação e zelo
serviços da sua especialidade debaixo de fogo inimigo por ocasião da
batalha de 9 de Abril de 1918”. Como mostra o seu registo militar, nesse
dia, acompanhou espontaneamente, sob um intenso bombardeamento,
uma companhia que se dirigia para um posto a ocupar, fazendo pensos
aos feridos durante todo o trajecto que efectuou, refere a historiadora
Margarida Portela.
Curioso é referir que se recusou a pagar pela medalha, como lhe
pediam, ficando apenas com o papel que lha concedia. Dizia que “se lhe
tinham atribuído a mesma, uma vez ganha lhe devia ser dada e não paga”.

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71
Grande Guerra • Memórias de Família

O enigma do tio António


Catarina Gomes

S
empre se ouviu falar do “tio António” lá em casa. Havia dele uma
foto e uma história longínqua de que tinha estado a lutar em França
na Primeira Guerra Mundial, sabia-se que tinha morrido, mas não
se sabia onde estava o seu corpo. Mas na família tinha sido passada,
de geração em geração, a obrigação de nunca o esquecer, a este tio
que era uma figura quase fantasmagórica. A mãe do militar, Aparecida,
tinha passado esse dever de lembrança ao seu filho, Manuel Domingos
Francisco e este, por sua vez, tinha-o feito aos seus quatro filhos.

Só cerca de 100 anos depois do conflito é que a família descobriu a campa de António Francisco
MIGUEL MADEIRA

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Grande Guerra • Memórias de Família

Para o mais novo dos quatro, José, o único nascido já em França, para
onde o pai emigrou no início dos anos 1960, o tio António ajudou-o.
Na sua infância e adolescência no país que era o seu mas não era
bem, chegou a surgir-lhe como resposta pronta sempre que ouvia um
comentário xenófobo, do estilo «os portugueses vieram para França ‘tirar
o pão aos franceses’”. Ele retorquia com essa figura quase mítica, um tio
português que tinha desaparecido em França a defendê-los também a
eles, aos franceses, contou ao jornal Le Monde.
“Quando eu era pequeno o meu pai falava-me muito do tio António.
Mostrou-me uma foto dele, tirada em 1916. Ele sonhava saber onde
ele estava”. O que se sabia era que tinha saído de Lisboa a 21 de
Outubro de 1917, um dos cerca de 50 mil homens enviados pelo
governo português para França a partir de 1917. Nunca deu notícias,
era analfabeto. Depois do Armísticio, a família esperou-o em Alcaria
do Coelho, uma aldeia do distrito de Beja. Uma carta expedida da
Bélgica, com uma mecha de cabelo e umas palavras em francês, que a
professora da aldeia traduziu, anunciavam que António tinha morrido
de peritonite num hospital de Liège, a 22 de Janeiro de 1919, com 25
anos. Os pais de Francisco morreram sem nunca saberem onde foi
enterrado o filho.
Foi José, hoje com 44 anos, quem deslindou o mistério do tio
desaparecido. Tornou-se professor de liceu e com os estudos que
o pai não teve e a ajuda da Internet andou à procura do tio-avô.
Descobriu primeiro os seus papéis militares, mas não o sítio onde
estariam os seus restos mortais. Durante a sua pesquisa soube que
havia um cemitério onde os portugueses tinham sido enterrados, foi
até lá em Fevereiro deste ano. “Olhou por cima do muro e a primeira
campa na qual o meu olhar caiu, na primeira fila à esquerda, estava o
nome António Francisco”. Encontrou o tio avô. Ligou ao pai, Manuel
Domingos Francisco, hoje com 90 anos, e sentiu-lhe a voz a tremer do
outro lado da linha.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Foi no cemitério de Richebourg que ao jornalista do Le Monde,


Benoît Hopquin, o foi encontrar, a 9 de Abril deste ano, na primeira
vez que viu a campa do tio António, uma das 1830 estrelas que têm
escrito “morto pela pátria”. Um enigma familiar que demorou quase
um século a ser deslindado.

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Grande Guerra • Memórias de Família

A última fotografia
Catarina Gomes

P
edia desculpa à irmã por eventualmente não estar muito bem na
fotografia e poder não lhe agradar o retrato, a culpa não era sua mas
sim da má qualidade dos fotógrafos na frente, escrevia. O soldado
Francisco Carolino surgia assim fardado, luvas colocadas, bornal a
tiracolo, em pose, apenas as botas enlameadas e o chão de terra retiravam
à foto tornada postal (no verso escrevia estas suas considerações) alguma
da solenidade que o fotografado provavelmente lhe quis dar. Tem o
cigarro na mão que tem
encostada a um banco alto
de pau onde, pousado sobre
um pano branco, repousa um
livro, um cenário fotográfico
típico para a época.
Enviada de França a 20
de Fevereiro de 1918, para
a sua irmã, cujo nome não
menciona, esta ficará sendo
a última foto em vida deste
soldado e as últimas notícias
que a sua família receberá
dele. Atestam os dados do
Arquivo Histórico Militar,
recolhidos pela historiadora

Francisco Carolino foi um dos cerca de 8 mil


portugueses que morreram no conflito

75
Grande Guerra • Memórias de Família

do Instituto de História Conteporânea da Universidade Nova de Lisboa,


Margarida Portela, que o soldado nº 528, pertencente a Infantaria 17, terá
morrido umas duas semanas após o dia da fotografia, a 9 de Abril de 1918.
Perdia assim a vida, solteiro, aos 24 anos, um dos quase 8 mil homens
portugueses que perderam a vida durante este conflito. Todos os seus
nomes podem ser consultados num memorial virtual desenvolvido pelo
Arquivo Histórico Militar.
Nascido a 10 de Novembro de 1894 no concelho alentejano de Moura,
morador na Rua do Rei, Sobral da Adiça, filho de Manuel Francisco Ribeiro
e Carolina Maria, Francisco Carolino fez parte do Corpo Expedicionário
Português em França, para onde partiu a 8 de Agosto de 1917.
Estas são as palavras da missiva, tal qual as escreveu, que o relator
desta história, Rui Santos Vargas, fez chegar ao Instituto de História
Contemporânea: Minha quirida [querida] e nunca esqueçida [esquecida]
irmã do meu coração dizeijo [desejo] que ao riçeberes [receberes]
deste meu ritrato tevá [retrato te vá] encontrar gozando uma perfeita e
filis saude [feliz saúde] em companhia do mano Antonio e das minhas
sobrinhas e de toda a familia. Querida irmã, eu te ofereço o meu ritrato
[retrato] não sei se ficaras contente se não desculpa, de serem tão mal
teradas e [tiradas é] porque o ritratistas [os retratistas] são ruins por hoje
nada mais a gora da [agora dá] saudades ao mano Antonio Jose ao mano
Francisco á mana Maria e vizinhos ás minhas sobrinhas e saudades ás tuas
cunhadas e ao teu sogro e beijinhos ás minhas sobrinhas e a gora [agora]
tu minha quirida [querida] e nunca esquecida irmã riçebi [recebe] muitos
abraços deste teu irmão que te dizeja [deseja] ver e não te pode ter junto.
Francisco Carolino. Espero resposta na volta do correio”.

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Grande Guerra • Memórias de Família

O velho guerreiro
Patrícia Carvalho

L
uís Veríssimo d’Azevedo não era um jovem inexperiente quando
partiu para a frente de guerra, em França. Nascido a 21 de Maio
de 1866, em Leiria, Luís não só tinha idade suficiente para ter sido
louvado por um rei português, pelo seu “selo e dedicação” no cargo
de professor da Escola Central de Sargentos da Arma de Infantaria,
como já estava casado pela terceira vez.
A sua vida militar tinha começado a 21 de Janeiro de 1886, quando
se voluntariou para o Regimento de Infantaria 23. Daí até partir para
França, já como major,
passariam décadas e vários
cargos. Quando embarca
para França, a 20 de Junho
de 1917, fá-lo como membro
do Estado-Maior da Artilharia
e como responsável pelo 1.º
G.B.M. (Grupo de Baterias
de Morteiro), do qual seria
nomeado comandante a 5 de
Setembro desse ano.
Na véspera de Natal de 1917,
começa a gozar uma licença
de 25 dias e, quando regressa
à frente, em Janeiro de 1918,

Luís Veríssimo d’Azevedo estava casado pela


terceira vez quando partiu para a frente

77
Grande Guerra • Memórias de Família

atribuem-lhe o comando interino da 1.ª Divisão. O seu desempenho


foi notado e conduziu à sua promoção a tenente-coronel, ainda em
Fevereiro, mas é a partir de Março, com o início da poderosa ofensiva
alemã contra as linhas portuguesa e britânica que os louvores voltam a
marcar a sua carreira.
Na sua ficha de combate, está referido: “Louvado pela forma como
executou o bombardeamento das posições inimigas pelas 5 horas do
dia 9 de Março, neutralizando a maior parte das baterias, pela excelente
preparação do raid, pela maneira como as baterias do seu comando
fecharam a barragem a coberto da qual a infantaria pôde operar.” O mesmo
texto seria utilizado para referir uma intervenção similar dez dias depois, a
19 de Março. O sobrinho-bisneto do português, Ricardo Charters d’Azevedo,
que levou a história do tenente-coronel à investigador Margarida Portela,
do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, contou que Luís conseguiu
manobrar a artilharia sob o seu comando, em pleno combate, sem
provocar qualquer baixo nos soldados do Corpo Expedicionário Português.
Luís Veríssimo d’Azevedo também participaria na Batalha de La Lys
e, de novo, voltaria a ser louvado, recebendo diversas condecorações.
Recebeu a medalha comemorativa da Campanha de França e foi
condecorado pelo rei Jorge V, de Inglaterra, com a Croix de Guerre avec
Palme. A 3 de Maio de 1920 foi ainda agraciado com a medalha inglesa
“Officer of the British Empire”.
Na recta final da guerra, o tenente-coronel foi ainda nomeado
presidente do júri do Tribunal de Guerra em 24 de Junho de 1918, cargo
que exerceu até 21 de Julho e, posteriormente, comandante militar de
Chebourg. Com a assinatura do Armistício, Luís Veríssimo d’Azevedo
não regressaria a Portugal de imediato, tendo permanecido em França
até 1920, provavelmente envolvido no repatriamento dos combatentes
portugueses. Embarcou, finalmente, rumo a Lisboa, 8 de Fevereiro de
1920, no navio Pedro Nunes.

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Grande Guerra • Memórias de Família

O tenente-coronel iria reformar-se em 1936, antes de se iniciar o


segundo conflito militar que atravessaria a sua vida. Morreu em plena II
Guerra Mundial, a 31 de Maio de 1942, com 76 anos. Os seus louvores, em
Portugal e no estrangeiro, descrevem-no como “um oficial zeloso, muito
competente, muito cumpridor, enérgico e disciplinador”.

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Grande Guerra • Memórias de Família

O soldado que se revoltou,


já depois da guerra
Patrícia Carvalho

M
anuel da Piedade era daqueles homens para quem as suas
povoações são demasiado pequenas para satisfazer os seus
sonhos. Nascido em Britiande, Lamego, a 27 de Junho de 1893,
quis conhecer o mundo para lá dos limites da pequena vila e,
assim acredita a família, foi
essa a razão para se alistar no
exército. O desejo levou-o tão
longe quanto Angola, para
onde partiu como soldado
artilheiro.
Viveu a Grande Guerra
em África, mas também
na Europa, como atestam
as fotografias guardadas
pelo seu neto, Manuel
Mesquita, e que integram
o espólio disponibilizado
à investigadora Margarida
Portela, do Instituto de
História Contemporânea
da Faculdade de Ciências

Manuel da Piedade veio a ser castigado


como opositor à ditadura

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Grande Guerra • Memórias de Família

Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, para o projecto


Portugal 1914-18.
Manuel Mesquita não sabe muito da vida do avô durante a guerra,
mas sabe que o 2.º Sargente possuía uma condecoração militar, com
referência à sua participação na guerra no Sul de Angola 1914-15 e em
França 1917-18. Manuel da Piedade recebeu ainda a Medalha da Vitória e,
segundo o neto, foi-lhe atribuída uma medalha de Mérito Militar de 3.ª
Classe, em cobre. Apesar de a família não ter esta última peça, Manuel
Mesquita não tem grandes dúvidas sobre a sua existência. “Posso (quase)
confirmar, por testemunho de minha mãe, que o ouviu dizer a meu
avô, que lhe tinha sido atribuída essa medalha, mas que nunca lhe tinha
sido imposta em cerimónia oficial, por não ser bem quisto”, explica ao
PÚBLICO o neto do militar.
É que, entretanto, a guerra acabara, mas não a vida militar de
Manuel da Piedade, e esta não se desenvolveu como o regime ditatorial,
introduzido no país a 28 de Maio de 1926, o desejava.
O antigo soldado da I Guerra Mundial estava aquartelado na
Figueira da Foz quando, a 3 de Fevereiro de 1927 decidiu avançar, com
os seus companheiros, para o Porto, para ajudar à revolta contra a
ditadura. Piedade tomou assim parte no que ficou conhecido como
o “pronunciamento da Mealhada” e, por isso, seria condenado, em
Tribunal Militar, a sete anos de degredo em Angola.
Manuel da Piedade teria, contudo, parte da pena comutada, numa
amnistia, e, em 1930, estava de regresso a Portugal, onde casou com
Maria Pestana Simões, a 17 de Fevereiro. A mãe de Manuel Mesquita seria
a única filha do casal. O 2.º sargento ainda prestaria algum serviço em
Coimbra, nos anos de 1934 e 1935, mas o facto de ser visto como opositor
não lhe dava qualquer expectativa de uma carreira militar – nunca mais
foi promovido e, em 1937, foi reformado compulsivamente.
Depois disto, Piedade continuou a não ter a vida facilitada, graças
à sua conotação anti-regime, e só encontraria alguma estabilidade

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Grande Guerra • Memórias de Família

financeira quando foi convidado a participar como sócio na sociedade


que iria explorar o Café Nicola na Figueira da Foz. Foi nessa sucursal do
famoso café lisboeta, como gerente, que Manuel da Piedade se manteve
até à reforma.
Morreria a 6 de Junho de 1977, mas antes ainda procurou alguma justiça
para a sua carreira militar. Após o 25 de Abril de 1974 pediu ao Estado
“o que considerava que lhe era devido”, diz o neto, e conseguiu, desta
forma, obter a pensão devida como combatente.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Um médico na rectaguarda
Catarina Gomes

“24
de Março de 1917: É um sábado, um dia triste apesar da
extrema claridade do céu. De manhã ainda uns últimos
retoques nas malas, umas visitas de fugida, combinar
umas determinações e andar ligeiro, pois o tempo, como
um cavalo, marcha impávido até à hora de partida. Nunca se passou
um dia tão rapidamente. Uma tristeza imensa me dominava por ter que
deixar os meus queridos, Deus sabe por quanto tempo e se para sempre!
Minha mulher! Minha filha
querida! Meus pais! Tornar-
vos-ei a ver???”.
Assim escreve Raúl de
Carvalho, nascido em 1888,
na primeira entrada do seu
pormenorizado diário, em
vésperas de partir para a
guerra, em França, na sua
qualidade de médico analista.
A viagem até Paris demorará
duas semanas. Teve uma
passagem pela guerra calma,
resguardado dos conflitos,
primeiro na estância balnear
de Paris-Plage, com outros

Raúl de Carvalho deixou vários cadernos


com as suas impressões do seu tempo
de guerra

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Grande Guerra • Memórias de Família

médicos. Como ainda não havia um hospital português pouco mais


podem fazer do que vacinar tropas e tratá-las de doenças venéreas,
escreve a historiadora Margarida Magalhães Ramalho, que organizou as
suas memórias em forma de um livro que se ficou a chamar Quando Raúl
foi à guerra (edições Matéria Prima). Depois é destacado para Calais,
onde a guerra, com os seus bombardeamentos, já se torna presente no
seu dia-a-dia. Perto de Calais, em Ambleteuse chefia o laboratório de um
hospital militar
Os seus relatos não são sobre questões militares ou a vida nas
trincheiras. “Homem meticuloso por natureza” deixa nos seus quatro
organizados cadernos as suas impressões pessoais de tudo um pouco, das
pequenas intrigas e desavenças entre oficiais, ao que comiam, ao preço
das coisas, a sua opinião sobre as mulheres locais. Lamenta, por exemplo,
as mulheres francesas que, com o marido fora na guerra, se prostituem,
culpando tanto a elas como aos homens que as procuram, aconselhando
antes: “há tanta mulher não casada que pode satisfazer os nossos desejos
sem que a gente a faça pecar tão grandemente e sem que nós fiquemos
tão mal com a nossa consciência”.
A última entrada do diário é de 8 de Outubro de 1917: “Passei a noite
a fazer o resto das malas que estavam quase todas concluídas. Grande
alegria é esta de fazer as malas para partirmos para o pé dos nossos
queridos; o coração parece que me não cabia no peito, caramba! Deitei-
me, sempre a pensar na felicidade de ir ver os meus”.
A família desconhece se terá voltado a França depois destes primeiros
sete meses de permanência na guerra (os diários são apenas
deste período). De volta a Lisboa, Raúl de Carvalho vai enveredar
definitivamente pela área farmacêutica e, em 1923, será o primeiro
português a ter um doutoramento em Farmácia. A historiadora Margarida
Magalhães Ramalho foi amiga da família de Raúl Carvalho, que vivia em
Lisboa, e conheceu de perto “este velho senhor de barbicha branca que
guardava e catalogava tudo o que  encontrava, desde recortes de jornais

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Grande Guerra • Memórias de Família

a bocados de lápis ou pedaços de cordel. Tornou-se definitivamente para


mim, o avô Raúl, cujas excentricidades e manias ainda hoje fazem sorrir
os seus bisnetos e trinetos”, escreve no prefácio do livro.

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85
Grande Guerra • Memórias de Família

Um alentejano na
frente de guerra
Patrícia Carvalho

A
Grande Guerra já se aproximava do fim quando, a 6 de Setembro
de 1918, Dimas José Rosado enviou ao irmão, Leandro José Rosado,
soldado condutor do Corpo Expedicionário Português, uma
fotografia de corpo inteiro. Com uns bigodes de fazer inveja, relógio
preso com a corrente no colete e a mão a repousar sobre uma cadeira em
que está pousado um vaso, Dimas chegava assim às mãos do irmão, com
um recado escrito no verso: “Offreço [Ofereço] ao meu mano Leandro esta
minha futugrafia [fotografia] como prova
de recordação e da amizade. Dimas José
Rosado.” A letra, redonda e floreada,
deixava ainda espaço para identificar o
local onde Leandro receberia a imagem:
“Front em Vermelles 6 de Setembro de
1918. França”.
Os dois irmãos eram filhos de
Domingos Rosado e Violante Jesus e
nasceram na Gafanhoeira, Arraiolos,
distrito de Évora. Leandro foi recrutado
a 29 de Julho de 1915, quando o pai já
tinha morrido, e era, na altura, solteiro.
Integrado no contingente do distrito de
Évora, concluiu a recruta a 4 de Junho de

Fotografia-postal que Dimas José Rosado enviou ao seu irmão

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Grande Guerra • Memórias de Família

1916, passando a fazer parte do quadro permanente.


Vinte dias depois passou no exame do curso de instrução elementar,
tendo dado provas de que sabia ler, escrever e contar.
Sem estas capacidades, Leandro não poderia ter sido o soldado condutor
n.º 425, mas talvez tivesse partido para França com outras funções. Assim,
foi mesmo como soldado condutor que o alentejano integrou o C.E.P.,
conforme contou o seu sobrinho-bisneto, Paulo Rosado, à investigadora
Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Leandro Rosado embarcou para França a 20 de Abril de 1917, como
membro do 4.º Grupo de Bateria de Artilharia (4.º G.B.A.) e a 1 de Novembro
desse ano concluiu a formação na Escola de Morteiros e Metralhadoras.
Pela documentação que recolheu, o sobrinho-bisneto de Leandra acredita
que esteve em Vermelles (como está escrito na fotografia que Dimas enviou
para França), mas que participou também em operações de guerra desde La
Bassée até à ocupação do Escalda, no sector de La Tournai (Bélgica).
Louvado pelo “zelo, dedicação e coragem” durante o serviço, o alentejano
regressou a Portugal a 19 de Maio de 1919, passando à reserva. Só iria receber
a baixa definitiva do serviço a 31 de Dezembro de 1944, já um outro conflito
de proporções catastróficas, a II Guerra Mundial, se aproximava do fim.
Do que recolheu da história familiar, Paulo Rosado diz que o tio-bisavô
terá casado com Rosa Guedelha, mas que o casal nunca teve filhos. A
família acredita que Leandro poderá ter estado sujeito aos efeitos de
gases, como o gás mostarda, usados durante a Grande Guerra, associando
os problemas respiratórios de que ele padecia a essa situação.
Do relato de Paulo Rosado não consta a data de nascimento nem da morte
do soldado condutor alentejano.

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87
Grande Guerra • Memórias de Família

A uma madrinha de guerra


Catarina Gomes

P
ouco se sabe do combatente Pedro Augusto Soares que terá
estado, segundo consta, em França, como membro do Corpo
Expedicionário Português. O que restou da sua partipação é apenas
este postal-fotografia que dirige à sua madrinha de guerra.
Nele, Pedro Augusto Soares remete a sua profunda amizade àquela
que, em Portugal, esperaria uma palavra sua e lhe enviaria umas linhas
de consolo e amparo em horas mais difíceis. “Seu affilhado de guerra,
Pedro Augusto Soares.
Minha madrinha Ofereço-te
o meu retrato como prova
d´amizade tem a desculpar
em ser tam ensegneficante
lembrança.» Na fotografia
postal surge o soldado
combatente totalmente
fardado, pousando em
pé para uma fotografia
tradicional na sua época,
junto de uma mesa. O postal
pertence a Nuno Borges de
Araújo, é de um familiar
distante da sua mulher, de
quem pouco se sabe.

Pedro Augusto Soares manda esta imagem


para a sua madrinha de guerra

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Grande Guerra • Memórias de Família

No imaginário português o termo madrinha de guerra surge sobretudo


associado à Guerra Colonial, mas o nascimento desta figura feminina
a quem, na prática, cabia animar o espírito do combatente, nasceu em
França precisamente na Primeira Guerra Mundial. São deste conflito os
primeiros afilhados de guerra.
As madrinhas de guerra foram introduzidas em Portugal pela
associação Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra, presidida
pela condessa de Ficalho, uma organização católica e monárquica.
Desempenharam um papel de relevo na sua actividade mulheres como
a Maria Amélia de Carvalho Burnay, Maria Josefa de Melo e Maria van
Zeller. Apostou na formação de enfermeiras, contando com a colaboração
técnica de Reinaldo dos Santos e Domítilia de Carvalho, contribuindo
bastante para a constituição do Grupo Auxiliar das Damas Enfermeiras.
Do ponto de vista assistencial, preocupava-se com o apoio às famílias
dos soldados, promovendo, em 1917, a iniciativa “Venda da Flor”, através
da qual foi possível recolher fundos importantes, referem informações
disponíveis no portal sobre a Primeira Guerra Mundial do Instituto de
História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
A Cruzada das Mulheres Portuguesas acabaria por também adoptar esta
figura com receio de que as mulheres católicas, através das cartas trocadas
com os seus afilhados de guerra, os doutrinassem na religião católica.

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89
Grande Guerra • Memórias de Família

As histórias do avô
prisioneiro de guerra
Filomena Lança

M
uitos anos depois de ter voltado, Aniceto José gostava de se sentar
no canto da chaminé, na sua casa do monte alentejano, a beber
chá e a contar histórias aos netos. Sabia muitas, e por vezes
contava-nos também coisas do tempo da Grande Guerra.
De como o frio apertava
nas trincheiras e os soldados
comiam sopa aguada dentro
dos capacetes que usavam na
cabeça. E dos alemães, que o
fizeram prisioneiro na batalha
de La Lys e que, no fim de
contas, assim lhe salvaram a
vida. Era o herói da família,
este avô que nunca matou
ninguém porque lhe deram
a tarefa de maqueiro e que a
família deu como morto, mas
que conseguiu regressar são
e salvo da maior aventura da
sua vida.

Aniceto José fotografado com a sua farda


de militar MIGUEL MADEIRA

90
Grande Guerra • Memórias de Família

Aniceto José nasceu em 1895 na aldeia da Trindade, entre Beja e Castro


Verde, no coração do Alentejo. Era ainda adolescente quando lhe morreu
o pai e habituou-se desde cedo a trabalhar na lavoura e a cuidar da mãe
e das cinco irmãs. Tinha 20 anos quando foi chamado a fazer a tropa e
22 quando, num dia que nós imaginamos cinzento e chuvoso, partiu do
monte da Caxia, onde então vivia, para o comboio que o haveria de levar
a Lisboa para embarcar para a Flandres.
A partida esteve longe de ser pacífica. Houve quem desertasse e quem
simplesmente lhe desse para andar pela cidade, onde, quase de certeza,
a maioria nunca tinha estado. O avô contava que muitos embarcaram à
força, “por ordem do Sidónio Pais, que os vendeu a todos aos ingleses por
uma libra por cabeça”. Não era homem de ligar muito à política, mas do
Sidónio Pais nunca gostou.
Os recrutas de Beja integraram o Regimento de Infantaria 17 do corpo
Expedicionário Português (CEP), que embarcou para França a 21 de
Agosto de 1917. Ninguém sabia muito bem o que iria encontrar, mas era
certo que não seria bom e o avô Aniceto haveria de levar o coração na
boca. Mesmo aos netos, que o consideravam um herói, reconheceu
muitas vezes o medo que teve, que todos tinham, escondidos nas
trincheiras à espera dos bombardeamentos alemães. Nunca matou
ninguém, mas viu a morte de frente tantas vezes, que lhes perdeu a
conta, porque, como maqueiro, tinha de recolher do campo de batalha
os mortos e os feridos. Disso não gostava muito de falar. Preferia contar
coisas sobre os alemães, que o fizeram prisioneiro a 9 de Abril de 1918, na
histórica batalha de La Lys
Esteve oito meses em Wesel, junto à fronteira com a Holanda onde,
nas margens do Reno, ficava o campo de prisioneiros de guerra de
Friedrichsfeld. Desse tempo sobreviveu um postal, enviado à mãe,
Joaquina Maria: “Minha querida mãe, muito lhe desejo a sua saúde e bem
e assim como as minhas manas e meus sobrinhos e toda a nossa família
que me pertence, que este seu filho goza saúde. Minha mãe, peço que me

91
Grande Guerra • Memórias de Família

diga as novidades. Sem mais, abrace muito as minhas manas e recomende


a toda a nossa vizinhança. Aniceto José”
Aprendeu a ler na tropa, mas pedia a alguém que lhe escrevesse as
cartas. E foi isso que deu origem a uma grande confusão, que levaria a
família a dá-lo como morto: num outro postal que chegou ao Alentejo,
lia-se que ele estava “na companhia do padrinho”, que também tinha ido
para a guerra. Acontece que, pouco tempo antes, chegara a notícia de que
o padrinho tinha morrido, pelo que a família pensou que aquela era uma
forma de os colegas contornarem a censura que se fazia à correspondência
dos prisioneiros e assim lhe dizerem que ele estava morto.
Aniceto regressou a Portugal a 18 de Janeiro de 1919, poucos dias depois
de fazer 24 anos. Pediu a um compadre que fosse à frente, dar a notícia
à mãe e às irmãs e assim evitar comoções, mas entre nós, os netos,
imaginávamo-lo a chegar ao monte em apoteose, com as manas ainda de
luto, a abraçá-lo e a desmaiarem de emoção.  
Voltou à sua vida de lavrador, casou com Bárbara da Lança Palma
e tiveram seis filhos, 10 netos, 13 bisnetos e quatro trinetos. Morreu
tranquilamente, durante o sono, aos 88 anos.

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92
Grande Guerra • Memórias de Família

Um poeta nas trincheiras


Luís Miguel Queirós

O
2.º sargento José Alagoinha, enviado para as trincheiras da Flandres
em Abril de 1917, era um patriota e era um poeta. Num caderno
de campanha que levava para todo o lado, lêem-se estas quadras,
parte de um extenso poema com data de 26 de Julho de 1918, que
transcrevemos actualizando apenas a ortografia: “(…)Os portugueses na
guerra/ Têm sido muito gabados/ Não deixam mal a terra/ Dos nossos
antepassados. // Os pequenos portugueses/ Não receiam combater/ Noite
e dia quantas vezes/ Sem dormir e sem comer. (…)”.

José Alagoinha com seus companheiros em França MIGUEL MADEIRA

93
Grande Guerra • Memórias de Família

Alagoinha sabia que “Todos esperam o dia/Do fim à guerra ser


dado”, como escreve no mesmo poema, mas enquanto esse dia não
chegasse, havia que não fazer má figura. Foi o seu caso, a julgar pela
documentação militar, que só regista louvores e que nada tem a
apontar-lhe no capítulo disciplinar.
Era um homem sério e que estava interessado em seguir a carreira
militar. Mas também não lhe faltava humor, e talvez isso o tenha
ajudado a chegar à provecta idade de 96 anos.
Num outro poema do seu diário, dá divertida conta dos progressos
que ia fazendo na aprendizagem da língua de Victor Hugo, que talvez
treinasse com as “amigas francesas” cujas moradas – segundo contou
ao PÚBLICO o seu bisneto José Luís Albuquerque Ferreira –, constavam
do seu caderno, a par de “poemas, letras de canções que cantavam nas
trincheiras” ou ainda relações das quantidades de alimentos (“batata,
arroz, banha”) de que o seu grupo dispunha para vários dias.
“Dire dizem que é dizer/ Voir dizem que é ver/ Joli dizem que é
bonito/ Palavreado tão esquisito/ Não consigo compreender// Água
chamam-lhe de l’eau/ Conquistador conquerant/ Não faz mal ça ne
fait rien/, O belo dizem que é beau/ Ao novo chamam nouveau/ Être
arrivé ser chegado/ Boire dizem que é beber/ E não consigo
compreender/ Porque tudo está mudado”, verseja Alagoinha num
poema datado de “Brest, 20 de Agosto de 1918”.
Coma ajuda dos documentos que a família conservou e das
informações prestadas pelo seu bisneto – que teve o privilégio pouco
comum de ter podido conviver com o seu bisavô até aos 15 ou 16 anos
–, a investigadora Margarida Portela reconstituiu o percurso deste
soldado português da I Guerra.
Nascido a 4 de Novembro de 1894 na Quinta do Carmo, em
Estremoz, foi alistado, como já se disse, em 1914. Promovido em 1916,
era já 2.º sargento quando embarcou rumo a Brest, integrado no Corpo

94
Grande Guerra • Memórias de Família

Expedicionário Português, no dia 21 de Abril de 1917, poucas semanas


após se terem registado as primeiras baixas de soldados portugueses
na frente europeia do conflito.
A caderneta militar de Alagoinha indica que este terá regressado
a Portugal em Setembro de 1918, em circunstâncias que Margarida
Portela está ainda a tentar apurar. Certo é que logo em Março de 1919
foi promovido a 1.º sargento, tendo-se casado no mesmo ano com
Joaquina Rosa de Oliveira.
No final da década de 20 concluiu um curso da Escola Central de
Sargentos, que depois lhe permitiu integrar o quadro auxiliar dos
Serviços de Engenharia, escreve Margarida Portela, observando que
o empenho em ascender na carreira foi uma constante no percurso
de José Alagoinha. Um esforço coroado de êxito: em meados dos anos
60, quando estava em vias de se tornar septuagenário, ostentava já a
patente de major e dirigia o Depósito Geral de Material de Engenharia.
Da sua passagem pela I Guerra, além do que se deduz do caderno
que deixou, sobreviveram algumas memórias familiares. José Luís
Albuquerque Ferreira lembra-se, por exemplo, de que a sua avó lhe
contava que uma das funções do pai era avisar os seus companheiros de
trincheira do momento em que tinham de colocar as máscaras anti-gás.
A máscara foi, aliás, um dos objectos que José Alagoinha trouxe
consigo, a par do já referido caderno e de um curiosíssimo copo de
chumbo trabalhado, que usava para beber água na frente de batalha.
Uma recordação da guerra que, antes de o ser, era já um “souvenir”,
mas da Exposição Universal de Paris, de 1900. Gravado em relevo
no copo, vê-se um desenho do Palais de L’Electricité expressamente
construído para a exposição parisiense.
Não se sabe que estranhas circunstâncias levaram este copo às mãos
de um rapaz de Estremoz, mas é curioso que este objecto, símbolo das
promessas científicas e técnicas de um século que nascia sob o signo

95
Grande Guerra • Memórias de Família

da esperança, fosse parar, década e meia mais tarde, às trincheiras


dessa guerra a que justamente chamaram o suicídio da Europa.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Um capitão da Brigada do
Minho que morreu em combate
Luís Miguel Queirós

A
4.ª Brigada de Infantaria do Corpo Expedicionário Português (CEP)
já tinha conquistado uma reputação de bravura na frente de batalha
muito antes de lhe ser confiada, em Fevereiro de 1918, a defesa do
sector de Fauquissart, em Laventie, na Flandres francesa, perto da
fronteira com a Bélgica, onde
ainda se encontrava nesse
fatídico dia 9 de Abril de 1918,
quando foi dizimada pelos
alemães na batalha de La Lys.
Conhecida por Brigada
do Minho, porque os seus
vários batalhões tinham ali
sido recrutados, a brigada
suportara com denodo vários
ataques inimigos desde o
Verão de 1917, e os seus feitos
chegaram a Portugal, onde
um grupo de mulheres do
Minho decidiu homenagear
as tropas da região. Conta
a Ilustração Portuguesa, no

A última foto conhecida de Luís Gonzaga


MIGUEL MADEIRA

97
Grande Guerra • Memórias de Família

seu número de 5 de Agosto de 1918, que lhes foi “oferecida uma bandeira
pelas senhoras daquela província”.
A dita bandeira, que a burocracia de tempo de guerra fez com que só
chegasse ao seu destino meses depois, quando a Brigada do Minho já se
encontrava em Laventie, tinha sido bordada, diz a revista, “pela filha do
coronel Barbosa e pela esposa do capitão do [Batalhão] 3, Luiz Gonzaga
do Carmo Pereira Ribeiro, hoje desaparecido em combate”.
O coronel Adolfo Almeida Barbosa era então o comandante da 4.ª
Brigada. Condecorado pelo Governo inglês pelos seus feitos na guerra,
sobreviveu ao conflito, chegou a general e veio a morrer em 1928. Luiz
Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro não teve a mesma sorte. Após a
batalha de 9 de Abril, foi dado como desaparecido em combate, mas o
seu cadáver acabou por aparecer em Laventie. Foi inicialmente sepultado
em Le Touret, mas os seus restos mortais estão hoje no Cemitério Militar
Português de Richebourg l’Avoué, onde se encontram as campas de quase
dois mil combatentes portugueses na I Guerra.
Morto em combate aos 32 anos, Luiz Gonzaga não está esquecido,
e graças às investigações de um sobrinho-neto, Carlos Ribeiro, é hoje
possível reconstituir o essencial do seu percurso militar.
Filho de Duarte Dias Pereira Ribeiro e de D. Deolinda Rosa da Silva
Pereira Ribeiro, Luiz Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro nasceu a 21
de Junho de 1885 em Viana do Castelo, numa casa da então Rua de S.
Sebastião (hoje de Manuel Espregueira) em cujo rés-do-chão funcionava a
farmácia paterna, a Aurea Vianense.
A família vivera antes na Póvoa do Lanhoso, onde nascera o primogénito do
casal, António Manuel Pereira Ribeiro, que veio a ser bispo do Funchal durante
mais de 40 anos. A sua sagração como bispo, em Fevereiro de 1915, foi a
primeira sagração episcopal ocorrida no país após a implantação da República.
Luiz Gonzaga tinha ainda outro irmão, Joaquim, que seguiria a carreira
do pai e veio a ser director do Sanatório de Paredes de Coura, e duas
irmãs, Conceição e Dores.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Segundo as informações prestadas por Carlos Ribeiro à investigadora


Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova, o seu tio-avô Luiz Gonzaga alistou-se no Regimento de
Cavalaria n.º2 de Lanceiros d’El-Rei em 1905, em plena monarquia, e ali
se manteve até ao final de 1909, transitando em Novembro desse ano para
o Regimento de Infantaria n.º3 de Viana do Castelo.
Dois meses depois, em Janeiro de 1910, obteve licença para se casar com
Maria Isabel da Cunha Palhares, mãe dos seus três filhos: Maria Amália,
Margarida Maria e António Manuel, o mais novo, nascido em 1915. Por essa
altura, Luiz Gonzaga chegara já a tenente, e é nessa qualidade que embarca
para França, em Abril de 1917, integrado na 4.ª Brigada de Infantaria
do CEP. No final de Setembro é promovido a capitão, e em Novembro
é proposto para receber a Medalha de Comportamento Exemplar, grau
prata. Na mesma ocasião passa a acumular as suas funções com o cargo de
ajudante de Brigada, que só manteve até Janeiro de 1918.
No início desse ano esteve em gozo de licença e passou algum tempo
em Portugal com a família. Regressou ao serviço no dia 6 de Março. Um
mês depois, tombava no campo de batalha.

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Grande Guerra • Memórias de Família

O barbeiro de La Lys
Jaime Rocha, escritor

T
oda a gente o conhecia por “Senhor Carlos” ou por Carlos Ferreira. O
seu nome era Carlos de Souza Ferreira. Cantava, tocava, fazia teatro,
tinha voz de tenor. Foi barbeiro em La Lys.
Carlos Ferreira, meu avô materno, nasceu em Leiria a 27 de Maio
de 1894. A mãe morreu quando ele tinha 3 anos. Criou-o a avó. Aos 18
anos foi para a Nazaré trabalhar numa barbearia. Ali conheceu Maria
Rocha, filha de pescadores. Casou aos 27 anos e teve três filhos, Adelina,
Isabel (ainda viva, com 91
anos) e José Carlos. Mas antes
disso, com os seus vinte anos,
viu-se incorporado como
soldado de infantaria no
contingente de portugueses
que seguiu para a frente da
batalha na Flandres, em 1917.
Esteve em La Lys mas
não correu perigo real. Por
um lado era o barbeiro dos
oficiais que preferiam mantê-
lo na retaguarda, ileso e
pronto para cortar barbas e
cabelos. Os soldados faziam
a barba a si próprios, alguns

Carlos Ferreira, barbeiro dos oficiais, salvou-


se das trincheiras MIGUEL MADEIRA

100
Grande Guerra • Memórias de Família

deles mesmo dentro das trincheiras. Mas os oficiais não prescindiam


dos serviços de um barbeiro de mão hábil. «Se não fosse essa a minha
profissão, vinha de lá sem uma perna ou sem um braço, isto se viesse
vivo!», costumava ele dizer.
Por outro lado, a sua capacidade para contar histórias, cantar e tocar
guitarra e viola, destacava-o entre os outros militares. «Ó Carlos, canta lá
um fado». «Ó Ferreira, toca aí uma guitarrada», pediam constantemente os
portugueses que serviam às ordens dos britânicos e que tinham saudades
do seu sul. Estava sempre pronto para animar os soldados e mesmo «as
altas patentes», como ele lhes chamava, gostavam de o ter por perto.
Graças ao seu prestígio, não como combatente mas como suporte
moral das tropas, foi escolhido para integrar o contingente português
que desfilou em Londres, no dia do Desfile da Paz, a 29 de Julho de 1919.
Assistindo à Parada, no palanque real, junto ao Rei George V, à rainha e ao
Príncipe de Gales, o futuro Eduardo VIII, achavam-se o ex-rei de Portugal,
exilado em Inglaterra, e a sua mulher Eugénia Vitória.
Mas o maior orgulho do meu avô nessa visita a Inglaterra foi um
episódio que não se acha documentado a não ser pelas suas palavras que
todos tiveram sempre por honradas:
«Eu lanchei com a rainha D. Amélia», dizia-me ele. E eu nunca duvidei.
Como nunca duvidei quando afirmava:
«O meu pai teve 56 filhos de várias mulheres, mas a todos assumiu e
deu o nome de família. Uma vez em Leiria estive à mesa com 15 irmãos
que andavam espalhados pela Nazaré, Leiria, Almeirim e Lisboa».
Regressou de França, em 1919. Já casado, com filhos adolescentes,
foi viver para Alcobaça para que eles prosseguissem estudos na Escola
Agrícola Vieira Natividade. O seu cartão da Liga dos Combatentes, da
delegação de Alcobaça, data de 1 de Março de 1935. A seguir, rumou
a Leiria para os filhos continuarem a estudar nos cursos Comercial e
Industrial. Ali, tornou-se cabeleireiro de senhoras na rua do mercado,
a única rua em que a minha avó Maria Rocha aceitaria viver. Porque

101
Grande Guerra • Memórias de Família

era ali que diariamente chegavam, da Nazaré, as camionetas com as


peixeiras que iam vender ao mercado. Era uma “Little Nazaré”. Ali
passei os Agostos da minha infância, ajudando o meu avô a escovar as
senhoras, alcançando os ganchos e aprendendo a fazer ondulações. As
clientes diziam que o senhor Carlos, com o cabelo às ondas e o bigode,
era parecido com o Vittorio de Sica. Os seus olhos brilhavam ao ouvir isto,
tanto como quando me falava, orgulhoso, da batalha de La Lys.
Está sepultado no talhão dos Combatentes da Grande Guerra, no
cemitério da Nazaré.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Um alferes monárquico na
guerra dos republicanos
Luís Miguel Queirós

M
á fortuna, a do monárquico José Estevão Coelho de Magalhães,
enviado para as trincheiras da Flandres, como alferes do Corpo
de Artilharia Pesada (CAP), a travar uma guerra que não era a
sua, ao serviço de um governo que desprezava e de um regime
em que se não revia.
Mas era um patriota e
serviu com denodo: a sua
documentação militar,
investigada pela historiadora
Margarida Portela, não
regista a menor censura e,
pelo contrário, inclui um
louvor, reconhecendo o zelo,
dedicação e capacidade de
sacrifício que demonstrara na
frente de batalha.
Único varão entre seis
irmãos – um outro rapaz
morrera ainda bebé –, José
Estevão sobreviveu à guerra
e regressou à casa paterna

José Estevão sobreviveu quatro anos à guerra


– morreu aos 28 anos

103
Grande Guerra • Memórias de Família

em Abril de 1919. Vinha surdo – “com os bombardeamentos, ensurdeceu


por tal forma que era preciso escrever-lhe tudo”, conta a sua irmã mais
nova, Maria José, numas memórias de família –, mas mostrava-se alegre
e não aparentava outros danos físicos ou psicológicos. O pior parecia ter
passado e o futuro mostrava-se risonho. Por pouco tempo. Em Janeiro
de 1822, José Estevão adoeceu gravemente, tendo morrido poucos meses
depois, no dia 23 de Abril, com apenas 28 anos.
A família sempre atribuiu esta morte precoce aos gaseamentos sofridos
no front. O seu impedido – que depois da guerra se tornaria seu criado
de quarto – contou que certa vez tinham sido fortemente gaseados e que
José Estevão, se expusera mais do que qualquer outro. À falta de máscaras
anti-gás, o alferes pusera todos os soldados a inalar o pouco amoníaco de
que dispunham, não tendo guardando nenhum para si próprio.
Rita Van Zeller, neta da irmã mais nova de José Estevão Coelho de
Magalhães, admite que “estas histórias heróicas” que circulam nas
famílias são sempre difíceis de confirmar, mas tanto os louvores da
hierarquia militar à capacidade de liderança do seu tio-avô, como o
carácter que este demonstrou noutras circunstâncias, tornam o episódio
bastante plausível.
Tendo desistido da carreira militar com que sempre sonhara por não
querer servir o regime republicano, José Estevão estudava Engenharia
Civil na Bélgica quando a guerra rebentou e, em Agosto de 1914, os
alemães invadiram o país. A família andou com o coração nas mãos, sem
notícias dele e sabendo-o na zona ocupada. E já começavam a desesperar,
quando  finalmente apareceu em casa. Poderia, na verdade, ter chegado
mais cedo e corrido menos riscos na viagem, mas decidira juntar-se a um
grupo de compatriotas, cujo regresso a Portugal ajudou a financiar.
José Estevão Coelho de Magalhães nasceu a 2 de Setembro de 1893 na
bela Quinta do Mosteiro, na Maia, que a sua avó paterna, Rita de Moura
Miranda, adquirira em 1874, e onde o seu pai, o conselheiro Luiz de
Magalhães, o conhecido intelectual da geração de 70, recebia convidados

104
Grande Guerra • Memórias de Família

tão ilustres como Antero de Quental, Oliveira Martins ou Eça de Queiroz,


que faz mesmo referência à propriedade: trocando-lhe deliberadamente
o nome para Quinta de Refaldes, elogia-lhe a “serenidade rural” numa das
cartas de Fradique Mendes.
“Estou vivendo pinguemente em terras eclesiásticas, porque esta
quinta foi de frades”, escreve Eça por interposto Fradique. “Agora
pertence a um amigo meu, que é, como Virgílio, poeta e lavrador, e canta
piedosamente as origens heróicas de Portugal, enquanto amanha os seus
campos e engorda os seus gados”.
O alferes do CEP era neto e homónimo do célebre parlamentar e
jornalista José Estevão (1809-1862), um dos “bravos do Mindelo”, cujos
feitos heróicos durante o cerco do Porto se tornaram lendários. Fundador
do influente jornal liberal Revolução de Setembro, orador inflamado,
oposicionista crónico, grão-mestre da Maçonaria, político envolvido em
sucessivas conspirações e revoltas, várias vezes exilado, José Estevão
dificilmente poderia estar mais à esquerda no arco político da monarquia
constitucional. Nunca pactuou, todavia, com as tendências republicanas
que já no seu tempo começavam a ganhar influência nos meios liberais
mais radicalizados.
O seu filho, Luiz de Magalhães, herdou-lhe essas convicções
monárquicas. Ministro dos Negócios Estrangeiros no governo de
João Franco, exilou-se em Londres após a implantação da República
e veio mais tarde a envolver-se no golpe de que resultaria, em 1919,
a efémera Monarquia do Norte. Condenado e preso, estava ainda na
cadeia quando o seu filho, o alferes José Estevão Coelho de Magalhães,
regressou da guerra.
“A família era toda monárquica e, portanto, não apoiava a entrada de
Portugal na guerra, que via como uma manobra do governo republicano
para se legitimar internacionalmente”, disse ao PÚBLICO Rita van Zeller.
O que não impediu o seu tio-avô, uma vez mobilizado, de “cumprir o que
achava ser a sua obrigação”.

105
Grande Guerra • Memórias de Família

Pelas memórias deixadas por duas filhas de Luiz de Magalhães,


percebe-se que José Estevão era adorado pelos pais e pelas irmãs e que
a sua morte deve ter constituído um duríssimo golpe. E talvez também
por isso, a sua memória continua hoje tão viva na família, passados
quase cem anos sobre a sua morte. Aos muitos objectos do seu tio-avô
que a família conserva, Rita van Zeller veio recentemente juntar uma
série de fotografias totalmente desconhecidas, digitalizadas a partir
de um envelope com negativos que tinha ficado esquecido. Mostram
José Estevão acompanhado de vários camaradas, provavelmente já na
Flandres francesa.
A investigação de Margarida Portela à sua documentação militar
permite resumir o essencial do seu percurso desde que embarcou para
Inglaterra a 18 de Janeiro de 1918, integrado no CAP. A 2 de Março estava
já em França e no final de Abril movia-se nas linhas da frente, trabalhando
com as tropas britânicas. Ele que “não simpatizava nada com os ingleses”,
diz Rita van Zeller, porque não lhes perdoara ainda a humilhação do
Ultimato de 1890.
Margarida Portela não descobriu indicações, no entanto, de que José
Estevão tenha estado presente na fatídica batalha de La Lys, a 9 de Abril.
Sabe-se que em Julho foi transferido para uma nova bateria de artilharia
pesada, à qual ainda estava adstrito quando retirou da frente após o
Armistício de 11 de Novembro.
Desconhece-se o seu paradeiro nos meses seguintes, mas em Março
de 1919 encontrava-se em Cherbourg. A 15 de Abril embarcou em Brest,
regressando finalmente a Portugal, à quinta onde nascera e onde não
tardaria a morrer.

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Grande Guerra • Memórias de Família

O médico que andou


desaparecido na Flandres
Luís Miguel Queirós

A
história de um oficial-médico que acabou por ser encontrado num
lugar muito provável: num hospital inglês
Luís Carlos da Costa Guerra Charters d’Azevedo acabara de se
licenciar em Medicina e Cirurgia quando foi mobilizado para a
frente europeia da I Grande Guerra, na Flandres francesa
Partiu a 31 de Agosto de 1916 como tenente miliciano médico do Corpo
Expedicionário Português,
informa o seu neto, o
engenheiro e escritor Ricardo
Charters d’Azevedo, que se
tem dedicado a investigar a
história familiar.
“Andava pela frente, num
automóvel-ambulância,
com um chauffeur e um
enfermeiro”, explica o neto,
que era ainda criança quando
o avô morreu de cancro, em
1953, com pouco mais de
60 anos de idade. Ricardo
Charters d’Azevedo nunca

Charters d’Azevedo (sentado à direita) entre


um grupo de militares

107
Grande Guerra • Memórias de Família

soube quem conduzia o seu avô, mas veio a conhecer o seu enfermeiro:
“Encontrei-o mais tarde em Lisboa: era barbeiro na Rua do Ouro”.
Uma das histórias mais curiosas da passagem de Luís Carlos Charters
d’Azevedo é justamente a de um improvável encontro. Nos campos da
Flandres, em plena guerra, deu de caras com um seu conterrâneo de
Leiria, o padre José Ferreira de Lacerda, que andava perdido. O próprio
padre Lacerda evocará o episódio no jornal O Mensageiro, em Outubro de
1939, quando a Europa acabava de mergulhar de novo na guerra.
Citando excertos de uma carta que o amigo médico lhe endereçara
–   “Agora que novamente na fronteira franco-alemã se desenvolvem
acontecimentos semelhantes aos da Grande Guerra, mais me recordo do
nosso encontro numa manhã cinzenta, fria e nevada numa estrada perto
de Roquetoire (…)” –, o padre Lacerda conta o episódio aos leitores de O
Mensageiro: “Nessa manhã saíra de Teroane em procura de soldados de
Leiria e dum colega capelão. É certo que ia munido duma carta e estavam
sinalizadas as estradas, mas tantas voltas dei que não sabia onde estava.
Estradas, caminhos, casas era tudo cinzento e igual. Valeu-me o encontro
felicíssimo com o meu querido amigo, que me indicou a posição e o
caminho a seguir”.
E o padre evoca ainda as “dezenas e dezenas de feridos” que ajudou
a meter em macas e a “mais de uma dezena” que ajudou a morrer,
“recebendo as suas últimas palavras, recomendações para a família,
objectos sagrados, cartas, retratos...”. Também Luís Carlos Charters
d’Azevedo, nas suas funções de médico, esteve em posição tristemente
privilegiada para testemunhar as horríveis consequências da guerra. Mas,
“como muitos dos que viveram aquele horror, não gostava de contar o
que lá passara”, diz o seu neto.
Nascido em Leiria em 1891, o futuro médico era neto de um grande
proprietário na região, José Maria Henriques de Azevedo, 1º visconde
de São Sebastião, e filho único do engenheiro Roberto Charters
Henriques d’Azevedo. Quando partiu para a guerra, era já casado e pai

108
Grande Guerra • Memórias de Família

de um filho, Roberto, que veio a ser o engenheiro Roberto Charters


d’Azevedo, secretário-geral do Laboratório Nacional de Engenharia
Civil, director na Gulbenkian e autor de trabalhos pioneiros no campo
da televisão experimental.
Na sua passagem pela guerra, Luís Carlos desempenhou funções
na Coluna de Transporte de Feridos n.º 2, um trabalho que o levava a
circular entre os postos avançado da frente de batalha, e foi ainda adjunto
do chefe do Serviço de Saúde da 2ª Divisão.
Após a batalha de La Lys perdeu-se-lhe o rasto. “Esteve dois ou três
meses desaparecido”, conta o seu neto, “até que alguém passou por um
hospital militar inglês e lá estava ele”. Sabe-se pouco sobre este singular
episódio, mas Ricardo Charters d’Azevedo imagina que, na confusão
que se seguiu à destruição do destacamento português, o seu avô terá
ido parar àquele hospital de campanha inglês e, “como teria muito que
fazer, terá ficado por lá”. Com ascendentes britânicos na família – a sua
avó era filha de um oficial inglês, William Charters, que veio para Portugal
combater as tropas de Napoleão – o médico português relacionar-se-ia
facilmente com ingleses, observa ainda o seu neto.
Certo é que foi licenciado do serviço militar em 1919 e recebeu a
medalha da Vitória em 1920. Regressado a Portugal, trabalhou nos
hospitais militares da Estrela e de Campolide e especializou-se depois em
otorrinolaringologia. Pelo seu consultório de Lisboa passaram doentes
célebres, como o marechal Carmona. Durante os meses de férias que
passava na propriedade da família em Leiria, a Vila Portela, dava consulta
gratuita aos seus conterrâneos.

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109
Grande Guerra • Memórias de Família

Memórias de um médico
na frente moçambicana
Luís Miguel Queirós

J
oaquim de Araújo foi uma testemunha privilegiada de alguns dos
mais duros combates da guerra em Moçambique
O famalicense Joaquim Alves Correia de Araújo, enviado
como alferes-médico para a frente moçambicana em Maio de
1917, era um observador metódico e imparcial, virtude que tende
compreensivelmente a rarear no cenário violento de um teatro de
guerra, propício a emoções fortes e empolamentos patrióticos
Por isso mesmo é tão precioso o diário que nos deixou: um caderno
de 77 páginas que uma sua sobrinha-neta, Teresa Araújo, historiadora

Joaquim Alves Correia de Araújo em Moçambique, 1917

110
Grande Guerra • Memórias de Família

e arquivista na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, tem vindo


pacientemente a decifrar, e que tenciona publicar em breve.
Destacado no posto de Chomba, onde se instalara um Hospital de
Sangue, e depois no Hospital dos Combatentes, na ilha de Xefina, na
baía da então Lourenço Marques, o jovem médico de V. N. de Famalicão
esteve ainda noutros locais-chave do conflito e foi uma testemunha
privilegiada da actuação das tropas portuguesas em Moçambique
durante a I Guerra.
Um bom exemplo da sua objectividade, que em nada diminui a
vivacidade dos seus relatos, é este passo do diário, transcrito por Teresa
Araújo, no qual descreve o modo como se reagiu em Chomba à notícia
de que “grossas colunas alemãs” tinham atravessado o Rovuma: “Às
5h de 22 [de Julho de 1917] tudo batia em debandada. Automóveis e
carregadores transportavam continuadamente pessoal e bagagens,
não esquecendo os penicos. Os lugares eram disputados (…). Todos os
serviços ficaram abandonados. O director do Hospital pôs-se na alheta
e deixou os doentes, de que a custo se evacuou parte. Os medicamentos
ficaram encaixotados. Tomei a direcção, por nomeação dos meus
colegas que ficaram (…). A desordem era enorme, a confusão não se
descreve…”.
Nos apontamentos do médico, diz a sua sobrinha-neta, percebe-se
que respeitava mais os adversários alemães do que os aliados ingleses.
E irritava-se deveras com o amadorismo das forças portuguesas,
lamentando a “figura tristíssima que muitos oficiais fazem”, chorando e
implorando para os mandarem para casa.
Ma o diário também regista momentos felizes: uma noite de Natal com
o indispensável bacalhau, ou a notícia do armistício, a 11 de Novembro
de 1918, que o médico celebrou com champanhe no vapor que já o trazia
de regresso a casa.
Nascido em 1889 em Requião, freguesia do concelho de V. N.
Famalicão, Joaquim Alves Correia de Araújo era o segundo dos oito

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Grande Guerra • Memórias de Família

filhos de um casal de abastados proprietários rurais. O pai, Manuel, foi


presidente da junta de paróquia local e vereador da Câmara de V. N.
Famalicão antes e depois da implantação da República. E muitos dos
seus familiares exerceram, em sucessivas gerações, cargos públicos na
freguesia e no concelho.
O seu irmão Armindo veio a presidir à Câmara de Famalicão na
década de 50, e um seu tio, Francisco Alves Correia de Araújo, fora o
primeiro presidente da autarquia após o golpe de 1926 e voltou a sê-
lo ao longo de quase toda a década de 30. Foi com o seu patrocínio,
conta Teresa Araújo, que Manoel de Oliveira realizou em 1940 o
documentário Famalicão. O intermediário terá sido um filho do
autarca, Virgílio, que estudara com o futuro cineasta num colégio em
La Guardia, na Galiza.
Manuel e a sua mulher, Bambina, eram suficientemente abastados
para poder proporcionar uma educação cuidada a toda a sua extensa
prole, e Joaquim não foi excepção. Licenciou-se pela recém-criada
Faculdade de Medicina do Porto, tendo defendido tese em Fevereiro
de 1917, já após ter sido mobilizado, com um trabalho intitulado O
método de Carrel e o soluto de Dakin no tratamento das feridas infectadas.
No preâmbulo à sua tese, diz a sua sobrinha-neta, exprime a sua
perplexidade pelo facto de os jovens médicos sem tese de final de curso
poderem ser mobilizados para exercer clínica militar, quando estavam
impedidos de a exercer enquanto civis.
Chegado a Moçambique, é integrado na chamada coluna dos
Macondes e colocado no posto de Chomba, onde fica cerca de um
ano. É depois transferido para o hospital de Xefina, onde terá usado
um medicamento da sua própria autoria que, segundo memórias
conservadas na família, obteve resultados excepcionais na luta contra
a febre biliosa.
Regressado a Portugal, trabalhou no Regimento de Sapadores do
Caminho-de-Ferro e no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa, tendo

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Grande Guerra • Memórias de Família

sido promovido a capitão-médico em 1922. Pediu depois transferência


para uma unidade de Santo Tirso, e quando esta foi extinta passou
formalmente à reserva, embora tenha continuado a exercer medicina,
designadamente no Hospital Militar do Porto, onde se manteve até 1947.
Morreu quase octogenário, em 1968.

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Grande Guerra • Memórias de Família

Dois filhos de Leotte do Rego


que combateram em La Lys
Luís Miguel Queirós

A
o contrário da generalidade dos militares portugueses evocados
nestas páginas, o contra-almirante Jaime Daniel Leotte do Rego
(1867-1923) não precisa de ser resgatado do esquecimento
Figura de relevo da fase final da monarquia e do período da I
República, são muitas as obras de referência que abordam a sua vida
e o seu trajecto político e militar. E quem quiser informações mais

Leotte e o ministro da Guerra, Norton de Matos, de partida para o exílio MIGUEL MADEIRA

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Grande Guerra • Memórias de Família

detalhadas, encontra-as na biografia que lhe dedicou Maurício de


Oliveira, publicada em 1967, por ocasião do seu centenário.
Durante a I Guerra, Leotte do Rego comandou a Divisão Naval e Defesa
e foi o responsável pela apreensão dos barcos alemães que estavam nos
portos portugueses. Já havia combates com os alemães em África desde
1914, mas é esta medida que irá justificar a declaração oficial de guerra a
Portugal por parte da Alemanha.
Nascido em Lagos, em 1867, Leotte do Rego terminou o curso da
Escola Naval em 1887. Em 1894 era já primeiro-tenente e foi promovido
a capitão em 1906. Responsável por missões de reconhecimento nas
colónias portuguesas em África, sobretudo em Moçambique (deixou uma
extensa bibliografia, que inclui planos hidrográficos, guias de navegação
e diversos outros trabalhos), aderiu ao franquismo nos anos finais da
monarquia e estreou-se como deputado, pelo Partido Regenerador
Liberal em1907. Nos meses que antecederam a implantação da República
foi governador de S. Tomé e Príncipe, e o novo regime, ao qual aderiu,
reconduziu-o no cargo.
Defensor da entrada de Portugal na I Guerra, foi um dos líderes do
golpe de 14 de Maio de 1915, que depôs a ditadura de Pimenta de Castro.
No mês seguinte é-lhe confiado o comando da recém-criada criada a
Divisão Naval de Defesa, funções que manterá até ao golpe de Dezembro
de 1917, que leva ao poder Sidónio Pais. Exilado em Paris, Leotte do
Rego regressa em 1919 e volta a ser eleito deputado. Morre em pleno
Parlamento, a 26 de Julho de 1923, vitimado por um ataque cardíaco que,
segundo conta o seu neto, Luís Leotte, poderá ter sido provocado pela
ingestão de um copo de leite gelado.
Bastante menos conhecida do que a intervenção do contra-almirante
Leotte do Rego na I Guerra é a participação no conflito dos seus dois
filhos mais velhos, Luís, nascido em 1895, e Jaime, um ano mais novo.
Foram os dois mobilizados para a frente europeia, como capitães de
cavalaria, e ambos combateram na Flandres e participaram na batalha

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Grande Guerra • Memórias de Família

de La Lys. O mais velho veio a fazer carreira na diplomacia e viveu uma


vida invulgarmente longa, tendo morrido aos 96 anos. O seu sobrinho e
homónimo conta que, logo após a I Guerra, o tio chegou a ser secretário,
em Angola, de Norton de Matos, que foi um dos mais íntimos amigos
do contra-almirante Leotte do Rego. Luís Leotte possui uma fotografia
em que o avô e Norton de Matos estão lado a lado, ambos fardados,
preparando-se para embarcar no navio que os levaria ao exílio, após a
chegada ao poder de Sidónio Pais.
Já o segundo filho, Jaime, embora também tenha sobrevivido ao conflito,
teve menos sorte. “Foi muito gaseado e ferido na guerra”, diz Luís Leote. 
“Após a batalha de La Lys deram-no como desaparecido e morto e foi o
seu impedido que percorreu o campo de batalha à procura dele, voltando
os cadáveres a ver se o encontrava”. E este impedido, que se chamava
Neves, descobriu-o mesmo. “Ainda respirava, e ele trouxe-o para o posto de
enfermagem, com a cara toda aberta da orelha ao queixo”.
Jaime Leote “ficou com essa cicatriz para toda a vida”, diz o sobrinho,
que está convencido de que os ferimentos sofridos na guerra acabaram por
encurtar a vida deste seu tio, que veio a morrer antes dos 50 anos, em 1943.
O contra-almirante Leotte do Rego tinha ainda mais três filhos: Pedro,
que morreu de gripe espanhola, uma filha, Joana, que foi sempre
enfermiça e também morreu cedo, e finalmente António, o mais novo,
que nasceu em 1913, quando a mãe já ultrapassara os 40 anos. António
casou-se com Armanda Ferreira de Bettencourt e é o pai de Luís Leotte e
dos seus irmãos.

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