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Especial Grande Guerra - Memórias de Família PDF
Especial Grande Guerra - Memórias de Família PDF
de Armistício
Grande
Guerra MEMÓRIAS DE FAMÍLIA
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Grande Guerra • Memórias de Família
ÍNDICE
Pai e filho foram a duas guerras
Catarina Gomes
LER ARTIGO
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Grande Guerra • Memórias de Família
3
Grande Guerra • Memórias de Família
Um pé ferido salvou-o do
massacre de Cuangar
Patrícia Carvalho
LER ARTIGO
4
Grande Guerra • Memórias de Família
O cabo português do
senhor professor
Catarina Gomes
LER ARTIGO
5
Grande Guerra • Memórias de Família
Em horas de pausa,
o médico disparava
Catarina Gomes
LER ARTIGO
A última fotografia
Catarina Gomes
LER ARTIGO
O velho guerreiro
Patrícia Carvalho
LER ARTIGO
6
Grande Guerra • Memórias de Família
Um médico na rectaguarda
Catarina Gomes
LER ARTIGO
7
Grande Guerra • Memórias de Família
O barbeiro de La Lys
Jaime Rocha, escritor
LER ARTIGO
Um alferes monárquico na
guerra dos republicanos
Luís Miguel Queirós
LER ARTIGO
8
Grande Guerra • Memórias de Família
Memórias de um médico na
frente moçambicana
Luís Miguel Queirós
LER ARTIGO
9
Grande Guerra • Memórias de Família
Q
uando, em 1964, António Espadinha Monte foi chamado a ir para
a Guerra Colonial parecia que a história se estava a repetir. Ele, tal
como o pai, também era o único filho homem e, tal como tinha
acontecido com o pai na Primeira Guerra Mundial, era chamado
a ir defender os interesses de Portugal, lá longe. Cada um a seu tempo,
tiveram que deixar para trás a aldeia alentejana de Peroguarda para
partirem do mesmo cais, em Lisboa. António Espadinha para passar dois
anos da sua vida na cidade moçambicana de Tete, de 1964 a 1965, o pai,
José Manuel do Monte, para rumar até Brest, França, em 1917.
O pai de António Espadinha Monte, José Manuel do Monte, é o primeiro homem de pé, à esquerda MIGUEL MADEIRA
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Grande Guerra • Memórias de Família
O pai nunca lhe deu conselhos, nunca disse lhe tinha medo que o
filho partisse. Mas, quando chegou a vez de António Espadinha Monte
embarcar, a guerra já não era assim tão estranha, tinha crescido a ouvir
histórias de um soldado na Primeira Guerra Mundial. Descreve o pai
como uma pessoa “retraída” em termos emocionais. O pouco que foi
contando desse tempo, em família, “era às vezes com um copinho a
mais”, nessas alturas às vezes até cantava o hino francês e falava da
miséria que via entre a população francesa, dos miúdos com fome que na
rua pediam às tropas portuguesas que viam passar, “biscuit, biscuit”.
Nas histórias que foi ouvindo ao pai
percebia-se que as condições daquela
Foi então que, guerra tinham sido piores do que as da
horrorizado, sua. Contou-lhe daquela vez em que
observou que veio à estavam nas trincheiras sem água e
em que a sede era tanta que uma poça
superfície da lagoa o
de água que acumulava as águas da
cadáver de um militar chuva lhe pareceu irresistível, e muito
alemão, já a desfazer- límpida. Era perigoso ir até lá, estava
se pela putrefacção. mesmo à vista das linhas alemãs, mas
o pai de António Espadinha rastejou
Bem tentou vomitar
até ao sítio e conseguiu beber até ficar
a água que tinha completamente saciado. Voltou a
bebido, mas em vão salvo. Pouco depois, o exército alemão
António Espadinha Monte, começou a bombardear com artilharia
sobre o pai pesada as trincheiras portuguesas. Uma
das granadas acabaria por cair sobre a
poça de água onde o pai tinha estado
a beber. “Foi então que, horrorizado, observou que veio à superfície da
lagoa o cadáver de um militar alemão, já a desfazer-se pela putrefacção.
Bem tentou vomitar a água que tinha bebido, mas em vão”, contou ao
PÚBLICO António Espadinha Monte.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
“E
ste senhor tão bem posto, de cigarro pendurado na mão
esquerda, é o meu bisavô na sua farda militar durante a Primeira
Grande Guerra. Neste ano de centenário, lembrei-me desta foto
e de como, de alguma forma, a minha família é herdeira do facto
de este homem - António
Tomaz da Conceição, nascido
em 1893 - ter estado na
guerra, na Flandres.
O meu bisavô é daquelas
figuras que ganham uma
espécie de estatuto mítico nas
famílias. Daqueles de quem
se contam histórias. Eu já
não me lembro dele - creio
que morreu mais ou menos
quando nasci, em 1973.
É verdade que ele já não
era bem como os homens
da sua geração e do seu
lugar, a Barrada, uma aldeia
perto de Abrantes, onde só
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Grande Guerra • Memórias de Família
havia agricultores às voltas com uma terra seca cheia de calhaus rolados
e onde os dotes dos noivos se mediam pelo número de oliveiras que
cada família tinha. O meu bisavô tinha um padrinho militar que o levou
para a cidade, onde fez a 4ª classe. Era dos poucos homens na aldeia
que sabia ler. Tenho ideia de me contarem que até tinha um livro - uma
enciclopédia, creio, que trouxe da Flandres.
Teve a sorte de não ir para as trincheiras: trabalhava na cozinha.
Durante o seu tempo de guerra, teve por companhia uma cabrinha de
estimação (se acabou na panela, não sabemos). Escrevia as cartas para os
soldados enviarem à família - cartas que não lhe eram ditadas, mas que
ele inventava, e que lia depois para os soldados aprovarem. Contava, a
chorar, como as francesas beijavam e abraçavam os soldados e as mulas
que entravam em Paris.
Voltou da guerra inteiro e sem mazelas. A filha mais velha, a minha avó,
nasceu em 1923. Contra tudo o que seria de esperar num homem daquele
meio, numa altura em que os pais não queriam que as filhas (mulheres)
estudassem “porque era só para escreverem cartas aos namorados que
os pais não podiam ler”, o meu bisavô pôs as três filhas na escola até à
4ª classe. Mais do que isso: quis que todas aprendessem uma profissão.
Dentro das opções da época, a minha avó tornou-se costureira; a filha do
meio aprendeu tecelagem; e a mais nova ficou de aprender o ofício com
uma das outras duas.
Segundo comentam alguns netos, o meu bisavô quis isto para as
filhas não só porque era, por natureza, um homem inteligente, curioso
e com visão, mas porque tinha visto e vivido outras coisas, que cá
as pessoas não conheciam, na Flandres. Imagino que tivesse visto
indústrias, mulheres e crianças a trabalhar fora de casa, tudo o que
aqui, numa aldeia do interior, não existia. Suponho que a este primeiro
salto na formação e no trabalho se deve depois o facto de os meus avós
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
O bisavô deixou-lhe
“um gráfico da fome”
Catarina Gomes
D
izem que as crianças de hoje têm muita facilidade em lidar com as
tecnologias, mas Isabel Braz lembra-se de, desde muito pequenina,
saber exactamente como pôr a funcionar aquele gravador de
bobines, de o rebobinar para voltar a ouvir o bisavô António Braz a
falar das suas histórias passadas na Primeira Guerra Mundial, em Angola e
depois em França. “Os miúdos gostam de ouvir histórias”.
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Grande Guerra • Memórias de Família
Nunca as ouviu de viva voz, quando o bisavô morreu, aos 92 anos, tinha
ela 9 anos, mas aquelas histórias gravadas ficaram-lhe na cabeça. É assim
que, quando Isabel Braz, licenciada em Gestão de Empresas, decidiu
finalmente escrever um livro sobre a história do bisavô, tudo lhe saiu,
naturalmente, na primeira pessoa, como se pudesse ter sido ele escrevê-lo,
apesar lhe ter sido difícil “ter de se colocar no papel de um homem, militar,
a viver uma experiência de guerra tão longínqua”, contou ao PÚBLICO.
Assim começa o livro as Memórias Esquecidas-A vida do capitão António
Braz (Chiado Editora) que deverá ser lançado em Setembro: “O que eu
mais temia concretizou-se praticamente três anos depois de ter iniciado
a Grande Guerra. A ordem para mobilizar para França estava escrita nas
minhas mãos (...) Parti de Elvas no dia 7 de Agosto de 1917”, escreve a
bisneta, recriando os acontecimentos vividos por ele.
Quando terminou o livro, é como se Isabel Braz tivesse finalmente
conseguido fazer a vontade ao bisavô que queria muito que alguém
da família lhe escrevesse a vida, com princípio, meio e fim. Ele deixou
muita coisa escrita em apontamentos, cartas, portais, mas achava-se
sobretudo homem de factos, não se via capaz de contar uma história.
O que deixou escrito em forma de livro, em 1936, fê-lo porque sentiu,
naquele momento, que se impunha “repor a verdade”. O livro Como
os Prisioneiros Portugueses foram Tratados na Alemanha, editado em
1935 pela Tipografia Popular de Elvas, é feito em resposta a Aquilino
Ribeiro. Admirador do escritor, estava um dia a ler-lhe um escrito
intitulado Alemanha Ensanguentada, sobre as impressões do escritor
beirão durante uma viagem na Alemanha, no pós Primeira Guerra
Mundial, quando, de repente, lê o testemunho de um alemão que tinha
sido intérprete no campo de prisioneiros onde ele tinha estado, Breesen.
O alemão a quem Aquilino dava voz dava “a entender que entre nós
havia rixas e desarmonias, o que não são factos verdadeiros. As horas
tristes que passámos em cativeiro só nos permitiram ter sentimentos de
solidariedade, estabelecendo elos de amizade que se vincularam pela vida
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Grande Guerra • Memórias de Família
fora. Quanto muito havia uma má disposição natural entre homens que
tinham fome. Posso efectivamente testemunhar que a fome dá mau estar
psicológico e uma irritabilidade difícil de disfarçar.”
Um dos documentos que deixou e que a família guardou documenta
essa experiência no campo alemão, dando conta de como era meticuloso
o capitão Braz. Criou um “gráfico da fome” onde diariamente foi
apontando a sua perda de peso. O seu peso antes de ser preso era de 86
quilos. “A primeira vez que me pesei, no dia 10 de Julho, tinha 72 quilos,
menos 14 quilos que o meu peso normal. Pesei-me de novo 16 dias depois
e já só pesava 68 quilos.”
Como homem de factos quis dar a conhecer o que passava, ele que
nas cartas que enviava para Portugal nem podia dizer abertamente à
família que passava fome, por causa da censura alemã nos campos.
Mandava fotos suas e a mulher, Adelaide, lá percebeu que ele vinha
emagrecendo de imagem para imagem, conta Isabel Braz, passando então
a eviar comida nas encomendas que mandava para a Alemanha. “Tendo
recebido umas encomendas de casa, aumentei 500 gramas. Regressando
à alimentação oficial, um mês depois voltei a perder um quilo”.
Em vida, acabou por ver reposta “a verdade” sobre a realidade dos
prisioneiros portugueses nos campos alemães pela pena do próprio
Aquilino Ribeiro. Em Abóboras no Telhado, o escritor acaba por contar
a versão dos presos portugueses, das condições difíceis lá vividas. Isabel
Braz termina assim o livro que escreve como se fosse o bisavô: “Fiquei
satisfeito com o que li e tranquilo por se fazer justiça. Aquilino era um
homem de bem e não podia deixar em branco tamanha imprecisão.” O
escritor repôs a verdade em vida, a bisneta contou-lhe a história.
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Grande Guerra • Memórias de Família
N
aquele tempo parecia que a ilha do Faial era o centro do mundo e,
de alguma forma, era. À época, as comunicações, feitas sobretudo
por telégrafo, circulavam através de enormes cabos debaixo do mar
mas que para atravessarem o oceano entre a Europa e a América
precisavam de ajuda a meio do Atlântico. Para fazer funcionar este enorme
vaivém de mensagens os grandes do mundo instalaram-se então na ilha
açoreana do Faial.
Quando se conheceram, o alemão Max tinha 17 anos, a mãe de Yolanda (a primeira criança à esquerda)
tinha 10 anos
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
A
única certeza de António Machado era aquela fotografia, de um
homem aprumado, fardado, montado num cavalo, a data que
aponta para o ano de 1918 e a localização: França. O homem a
cavalo é António da Silva Pinheiro, bisavô de António Machado,
que integrou o Corpo
Expedicionário Português.
O resto são pouco mais que
mitos, rumores e histórias por
confirmar, que o bisneto, de
25 anos, bem gostava de ver
deslindados.
António Machado sabe
que o bisavô nasceu a 19 de
Janeiro de 1896, no Porto, e
que foi para a Grande Guerra,
como soldado, mas pouco
mais. Pelo menos, pouco mais
que defenda com unhas e
dentes. Tem muitas dúvidas.
A fotografia induziu-o em
erro, e pensou que o avô
fizesse parte de algum grupo
António da Silva Pinheiro chegou a ser dado como morto nos jornais
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
J
oão de Almeida Sousa Sacadura foi militar até morrer. Durante
a I Guerra Mundial, lutou nas campanhas de África e da Europa,
recebeu medalhas e distinções, foi preso pelos alemães e fugiu.
Nascido em Viseu, morreu em África, onde passou parte da
sua vida. A sobrinha, Fernanda Sacadura, ainda guarda fotografias e
documentos deste tio com uma vida a lembrar um livro de aventuras.
Fernanda também se
lembra de uma caixa de
madeira, com o número 7,
que pertencera ao espólio do
tio aquando da sua passagem
pelo Corpo Expedicionário
Português, mas essa já não
a tem. “Ofereci o baú ao
Museu Militar do Porto”,
diz a sobrinha do homem
nascido em Viseu, a 17 de
Junho de 1896, que foi para
a guerra como alferes mas
morreria como capitão, com
apenas 45 anos.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
comandante da polícia, entre 1927 e 1928. “Ele foi alertado para uma
evasão dos prisioneiros, que eram quase todos presos políticos, mas
muitos, para fugir aos guardas, atiraram-se ao mar e foram comidos por
tubarões. Nessa altura, ele pediu transferência para Luanda”.
E foi em Luanda que João Sacadura haveria de morrer, já depois de
ter casado e ter tido um filho. O seu funeral, como descreve o Diário de
Luanda, teve honras militares e a presença de altos representantes civis
e militares. Um colega de Sacadura “transportou o boné, a espada e as
medalhas” do português.
João Sacadura, que chegou a ser ajudante de campo do Governador-
Geral de Angola Bento Roma (1930), ostenta na sua campa apenas a
indicação de que foi “capitão de artilharia” e que esteve em “França e
Angola”, durante a I Guerra Mundial.
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Grande Guerra • Memórias de Família
O
vídeo a preto e branco dura cinco minutos, não tem som, chama-
se Afundamento do Augusto Castilho. O filho de Esperança Matos
encontrou-o por acaso na Cinemateca Digital e mandou o link
à mãe. Foi filmado em 1918 por alemães que quiseram deixar
registado para a história as imagens daquele sobrelotado bote salva-vidas
a afastar-se no mar, talvez para depois tentar saber que destino teria. As
O navio português Augusto Castilho foi bombardeado por um submarino alemão Miguel Madeira
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
Quando os heróis
não se suicidavam
Catarina Gomes
No início, falava-se pouco deste avô que Helena Caxide nunca chegou
a conhecer, era como se a família prolongasse o espírito de uma época
em que o suicídio era pecado. Era inexplicável aquele silêncio, porque,
para ela, o avô sempre tinha sido “um herói. Despertava em mim uma
curiosidade enorme”. Foi em
resposta às suas perguntas
que foi descobrindo “o
sofrimento que acarretou
para ele e para toda a família
a sua participação na I Guerra
Mundial.”
António Júlio dos Santos
Caxide embarcou para a
Flandres a 9 de Setembro
de 1917. Esteve desde essa
data até ao momento do
confronto de La Lys, em 9
de Abril de 2018, a viver nas
trincheiras. Contava desse
tempo que, para conseguir
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Grande Guerra • Memórias de Família
sobreviver, teve que comer ratos e raízes. Após a batalha, foi dado como
desaparecido em combate em Lisboa, a 29 de Abril de 1918, conta a neta.
A família não sabe com precisão o que se passou durante e após a
batalha. “Sabemos, sim, que ficou em poder das tropas alemãs, bastante
doente, por ter sofrido a inalação dos gases tóxicos”. Graças a pesquisa
feita já pelo pai de Helena, nos anos 1970 e 1980, descobriram que acabou
por ser identificado no hospital militar de Bruxelas, na Bélgica, a 4 de
Janeiro de 1919. No mês seguinte, foi considerado incapacitado por junta
médica, para todo o serviço, “devido às graves sequelas físicas que eram
efeito dos gases tóxicos durante a batalha. Tinha fortes dores e frequentes
problemas pulmonares, como pleurisias com derrames nos pulmões.
Tinha que ir regularmente fazer dolorosos tratamentos a Lisboa, ao
Hospital Militar e ao Hospital Colonial”, relata.
Foi evacuado para Portugal no navio Gascon, chegando a 25 de Abril
de 1919. “Após tudo o que lutou e tudo o que sofreu fisicamente, como
doente e prisioneiro (embora ele tenha sempre dito que nunca foi
maltratado pelos alemães, e sempre o respeitaram enquanto prisioneiro),
revelou ser um homem nobre de carácter”. Por causa dos seus problemas
de saúde, acabou por aprender a fazer tratamentos de feridas, a usar
seringas. Assim, “quando voltou para a sua aldeia, era a ele a quem
recorriam pessoas doentes, para lhes dar injecções, tratar de ferimentos,
e até fazia pomadas”, recorda-se em família.
Contava-se que todos os dias ele tinha que se injectar a si próprio com
medicamentos para suportar as mazelas da guerra. “Tinha momentos em
que a dor física e a dor psicológica lhe causavam muito sofrimento.”
Tinha o pai de Helena Caxide apenas oito anos quando António
Caxide, usando a sua própria arma, disparou contra si, no ouvido. “Ainda
sobreviveu dois dias, com imenso sofrimento, e arrependido do que havia
feito, mas acabou por falecer a 10 de Outubro de 1944.”
Por causa desta morte prematura, toda a família foi afectada. A vida
dos filhos foi feita em instituições - embora tenham tido oportunidade
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
D
esde sempre que Miguel Alegre, de 18 anos, se lembra de passar boa
parte das férias de Verão naquele chalet rosa, na aldeia de Valezim,
no meio da Serra da Estrela. Entre os muitos retratos de antepassados
que ali existem havia um que sobressaía e descreve-lhe a figura,
“corpo magro, bigode preto, olhos penetrantes, sempre muito digno”.
Conhecia-lhe também o nome: Albano Manuel de Senna Fonseca.
Mas o que dava corpo àquela pessoa, que não estava no chalet rosa mas
que era como se estivesse,
eram a quantidade de escritos
do homem que era seu bisavô
e que Miguel encontrava
espalhados pela casa, em
papéis, cadernos, sebentas,
dentro de gavetas cheias de
mofo. Desde os seus 12 anos
aquelas leituras significaram
que, sem sair de casa,
sentia estar a ler histórias
de aventuras, a descobrir
tesouros no meio dos papéis.
Depois de tudo o que foi
lendo, Miguel Alegre acredita
hoje que foram “dois os anos
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
N
ão foi na Primeira Guerra Mundial que nasceu a expressão “para
inglês ver” mas ela parecer ter sido talhada para um dos episódios
passados na guerra que Gaspar Santos, português que foi oficial
médico do Corpo Expedicionário Português em França, mais contava
em família e que os punha a todos a rir lá em casa, contaram ao PÚBLICO a
sua neta, Leonor Santos, e o
seu filho, Emílio Santos.
Gaspar Santos esteve
em França de Maio de 1917
até Agosto de 1918. Um dia
um soldado português foi
trazido, sob prisão, por um
oficial inglês “por ter andado
a roubar sulipas para se
aquecer”, aquelas travessas
da madeira em que assentam
os carris de caminho-de-ferro,
explica a neta. O oficial inglês
vinha denunciar a grave falha
ao oficial português mais
graduado, para que tomasse
medidas. Gaspar Santos pôs
semblante carregado.
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Grande Guerra • Memórias de Família
O tom veemente com que estava a falar ao seu conterrâneo fazia-o parecer
solidário com o inglês mas o aparente ralhete foi algo como: “então você
deixou-se apanhar pelo inglês, tem que roubar mas não pode deixar que
os ingleses o apanhem e não se atreva rir-se”, reconstitui Leonor Santos,
que tem 52 anos e ainda conviveu com o avô durante 24 anos.
Para Leonor Santos, este episódio cómico é bem o espelho da pessoa
que o avô era. “Um homem fantástico, inteligentíssimo”, um militar
que se via sobretudo como médico e que distinguia bem entre “ordens
estúpidas e ordens inteligentes”, ele fazia por apenas acatar as segundas,
diz. “Quando não faziam sentido não eram para se cumprir”. Como
oficial, Gaspar Santos tinha uma vida privilegiada face aos soldados,
mas conhecia-lhes as dificuldades, conta o filho, sabia bem que as
condições miseráveis em que viviam os soldados portugueses, que para
se aquecerem até a sulipas de linhas férreas tinham que recorrer. “Foi
médico militar até ao resto dos seus dias mas não havia pessoas mais
antimilitarista”, lembra o filho. A cena termina com o oficial inglês a
agradecer-lhe a reprimenda.
Neta e fillho lembram também como ele lhes contava como faziam
pouco dos portugueses por andarem agasalhados com as pelicas
alentejanas de pele de carneiro e que por causa dessa vestimenta lhes
começaram a chamar mé-més. Os franceses também encaravam com
estranheza o facto de os portugueses lhes irem às hortas roubar as folhas
dos nabos, que eles não aproveitavam. Como estavam incorporados nas
tropas inglesas, serviam-lhes rações daquele país, e o que eles queriam
era “a sopinha portuguesa”, comenta Emílio Santos.
O espírito independente do avô esteve presente até ao fim da vida,
conta Leonor Santos. “Quando os netos lhe faziam uma pergunta nunca
nos dava a solução, punha-nos a pensar”, andava sempre a dizer-lhes “é
preciso exercitar a massa cinzenta”.
Leonor Santos lembra que este seu espírito independente esteve
presente desde cedo. O avô acabou o curso em 1915 e, nessa altura,
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
Um pé ferido salvou-o do
massacre de Cuangar
Patrícia Carvalho
A
s histórias que José Joaquim Fernandes contou ao filho, Manuel Leal
Fernandes, acabariam por aparecer no livro que este escreveria,
muitos anos depois de o pai ter participado, em Angola, na Grande
Guerra. Em Angola: As Brumas do Mato, Manuel conta, referindo-
se ao pai: “O massacre de
Cuangar, lá nas terras do fim
do mundo, na imensa Angola,
nunca lhe saiu da memória.
Aí passara quase dois
anos. Um ataque traiçoeiro
massacrara amigos e
companheiros de armas. Um
golpe inesperado num pé que
o levara a ser evacuado para
o Hospital de Sá da Bandeira
livrara-o da morte.”
José nascera muito longe
do mato africano. Foi em
Bismula, Sabugal, que o
filho de João Fernandes
e Luísa Nunes nasceu, a
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
L
uís António Martins Raposo não tinha qualquer apetência por
guerras. Não sonhava em ser soldado nem em combater, de arma ao
ombro, nem sequer em ser herói. O que Luís queria era ser médico
e, por isso, é que deixou Caçarelhos, em Vimioso, e rumou ao centro
do país, para ingressar na
Faculdade de Medicina da
Universidade de Coimbra.
Mas a Grande Guerra havia
de se intrometer no futuro
que, porventura, idealizara,
e Luís lá partiu para França,
enquanto a sua noiva fazia
promessas à santa da aldeia,
ansiosa pelo regresso do
médico.
Nascido a 20 de Maio de
1892, Luís concluiu o curso
de Medicina em 1916, o ano
da mobilização portuguesa
para a guerra. Nas Memórias
que escreveu, dedicadas à
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
F
elizardo Simões e Manuel Simões eram gémeos. Foram os dois
mobilizados para a guerra com 27 anos mas, numa revista à
formatura, o irmão Manuel pediu ao militar de alta patente que só
um deles fosse enviado, “para que ficasse um a ser amparo da mãe”,
que já tinha 71 anos, conta o seu neto, Manuel Simões Rodrigues Marques.
O militar em causa compadeceu-se do pedido, chamou o oficial que o
acompanhava e disse-lhe para
tomar nota do nome do irmão
que fazia o pedido, para que
fosse só ele a ir para a guerra.
Apesar de serem gémeos,
Manuel quis escapar-se e deu
o nome do irmão. “Só um foi
um para a guerra, mas foi o
Felizardo”, lembra o neto que
recorda que Manuel Simões
sempre foi “o mais descarado
dos irmãos”.
Já casado e com dois filhos,
Felizardo embarcou então
para França, no dia 26 de
Maio de 1917, com 28 anos
de idade, na 1.ª Companhia
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
G
uarda-os como tesouros, aos seis postais que, como neta mais velha
da sua avó, acabaram por ir para às suas mãos naquele dia em que,
tinha Alexandra Róldão 17 anos, a avô lhe disse “vai lá tirar ao álbum
os que quiseres”.
Os postais de que mais gosta são os bordados à mão, Kisses for my
darling, diz um deles. Alguém deve ter dito ao irmão da sua bisavô
paterna, Francisco Diogo, o que queriam dizer aquelas palavras em inglês,
“beijos para a minha querida”. Como não tinha namorada, mandou-os
às irmãs e à mãe, juntamente com algumas palavras de circunstância
Alexandra Roldão guarda vários postais enviados pelo seu tio bisavó
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
O
s dois filhos partiram de Covelo de Gerês para a guerra ao mesmo
tempo. A mãe, Carolina Rosa Gonçalves, ficou na aldeia sem nada
saber mas decidiu fazer o que podia pelo seu regresso tornando
pública a promessa de que, se voltassem os dois filhos sãos e salvos,
mandaria construir o sino que passaria a tocar no campanário a Igreja.
São Bento faria por isso.
Cada um de sua vez,
regressaram, bem. Primeiro
Manuel Lopes Pereira, e
depois Domingos Lopes
Pereira. Fez-se festa para
assinalar o seu retorno, mas
havia que pagar a promessa.
Todo o dinheiro que a
família tinha não chegava
para pagar o sino prometido.
Para isso venderam uma
terra, um lameiro, que é
como se chamam às terras
húmidas, que ficava num
sítio chamado no Alto da
Lomba e lá mandaram então
fabricá-lo.
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Grande Guerra • Memórias de Família
Uma vez concluído o sino, este devia ser colocado na igreja, mas era
demasiado grande e não entrava no campanário. O milagre, o regresso
dos filhos da Casa da Forja, tinha que ser anunciado, dizia a família, disso
fazia parte a divida para com São Bento.
Reza a história familiar que se mandou rachar um carvalho ao meio e
montar uma estrutura de madeira para pendurar o sino, para se poder
ouvi-lo tocar. E ele ali terá ficado anos, até que a madeira, carcomida
pelo tempo, cedeu e o sino caiu. Ao cair danificou-se e partiu-se, já não
badalava, razão pela qual foi então vendido.
Manuel Miranda, neto de Manuel Lopes Pereira e trineto de Domingos
Lopes Pereira vive fora de Portugal mas quis saber mais sobre esta história
da sua família. Na aldeia conseguiu saber que um senhor tinha recebido
os restos do sino, tendo-se mandado fazer um novo, agora no nicho.
Manuel Miranda contou à historiadora Margarida Portela, do Instituto
de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, que em 1913
os dois mancebos partiram, junto com outros jovens de Covêlo do Geres
(distrito de Vila Real), para prestarem serviço militar, só depois foram
para a guerra, em África e em França.
O irmão Manuel Lopes Pereira, nascido a 5 de Junho de 1893, partiu
para Angola em 3 de Fevereiro de 1915, desembarcando em Moçâmedes.
Da sua estadia ali pouco se sabe. No entanto Manuel Miranda ouviu a
história de que, para além dos ataques possíveis dos alemães, a sede era
tanta que, um dia, Manuel Lopes terá bebido excrementos de um animal.
Sabe-se depois que desembarcou em Lisboa a 15 de Outubro de 1916.
Casou no mês seguinte, tendo tido 10 filhos. A guerra na França precisava
entretanto de mais homens. Desembarcou em França em 31 de Maio de
1917, onde esteve até ao seu regresso, a 28 de Fevereiro de 1919.
Depois da guerra foi sempre agricultor, vivendo em Covelo e trabalhando
as suas propriedades, de onde tirava, não sem dificuldades, o rendimento
que lhe permitia sustentar a família, contou o seu neto. Tinha dois filhos
com deficiência, um deles surdo-mudo. “Manuel Lopes Pereira foi, depois
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
O voluntário coberto de
medalhas
Patrícia Carvalho
A
José Ribeiro Barbosa não foi preciso que a guerra o chamasse, para
se juntar ao exército. Nascido em Joane, Vila Nova de Famalicão, a 29
de Janeiro de 1887, e oriundo de uma família de industriais da área do
têxtil, alistou-se como voluntário, ainda antes de fazer 20 anos.
Por isso, em 1906, já tinha
sido integrado no Regimento
de Infantaria n.º 8 de Braga
e foi aí que fez o curso da
Escola do Exército. Em 1911,
José Ribeiro Barbosa foi
promovido a alferes e dois
anos depois a tenente. Já
durante a Grande Guerra, em
1917, chegou a capitão e era já
essa a patente que ostentava
quando, a 22 de Abril de 1917,
acompanhou o 1.º Batalhão
de Infantaria n.º29 de Braga
para França. Os primeiros
anos da guerra, entre 1914 e
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
O cabo português
do senhor professor
Catarina Gomes
Q
uem diria que os dotes de carpintaria que António Pereira dos
Santos aprenderia na sua terra, no lugar de Amoínha Nova,
concelho de Valpaços, lhe viriam a ser de valia em tempo de guerra.
O percurso deste 1º cabo, nascido a 1895, contado pelo seu neto, Gil
Manuel Morgado dos Santos,
e bisneto, Gil Filipe Calvão
Santos, foi feito de percalços.
Esteve na famosa batalha de
La Lys, sobreviveu, mas foi lá
que pelas 12 horas do dia 9 de
Abril de 1918, começou um
longo episódio da sua vida
em guerra – ali foi capturado
pelas forças alemãs. Durante
a guerra, mais de 7 mil
portugueses foram feitos
prisioneiros.
Ao todo, e ao longo
de mais de um ano, teve
passagem por cinco locais
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
transferido para Heilsberg, onde ficou até 3 de Janeiro de 1919. Neste dia,
saiu do campo de prisioneiros inserido num grupo de italianos, fazendo-
se passar por um deles. No dia seguinte, estavam em Dantzig (actual
Gdansk, na Polónia) de onde, a 8 do mesmo mês, partiu num vapor em
direcção a Copenhaga, na Dinamarca. Permanece na região até 22 de
Janeiro, altura em que parte para Cherburgo, em França, onde chegou
quatro dias mais tarde. Finalmente, a 2 de Fevereiro de 1919 zarpou com
destino a Lisboa, onde desembarcou no cais de Alcântara três dias depois.
Rumou depois a norte, tendo chegado à sua aldeia natal.
Foi com base no seu diário e noutros documentos, fotografias e
memórias de conversas passadas que, como forma de homenagem, os
seus dois descendentes publicaram, em 2008, o livro que dá conta destas
suas atribulações em tempo de guerra. Decidiram chamar-lhe António
Pereira dos Santos – De Chaves a Copenhaga – A saga de um combatente.
Pouco tempo depois do regresso a casa, António Pereira dos Santos
mudou-se para a freguesia de Santa Leocádia, concelho de Chaves, para
gerir a casa agrícola de uma tia materna, que enviuvara. Aqui conheceu
Carolina Augusta Gomes, oito anos mais velha, com quem casaria a 24 de
Outubro de 1921. Viveriam na mesma freguesia até ao fim dos seus dias.
Tiveram quatro filhos: dois rapazes e duas raparigas.
No diário que chegou até hoje lembra agruras da guerra, recorda com
ironia “uma lauta refeição três bolachas e um pouco de carne”. Mesmo
apesar de todas as dificuldades este foi talvez o momento mais marcante da
sua vida, o que explicará que quando morreu, a 7 de Janeiro de 1976, aos 81
anos, tenha querido ser enterrado com o capote que usou na guerra, para
onde partiu com 22 anos, e que usava muitas vezes como almofada.
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Grande Guerra • Memórias de Família
A
fotografia do tenente Aurélio de Mendonça e Pinho estava esquecida
entre papéis, até ao dia em que Nuno Borges de Araújo, casado com
uma prima do militar português, a resgatou, de uma casa de família, na
Guarda. A impressão foto-mecânica mostra um homem em pose, olhos
grandes, bigode e de costas
bem direitas, como quem
mostra a farda com orgulho.
A legenda que acompanha a
imagem, impressa pela firma
Marques Abreu & C.ª, do Porto,
explica que quem nos olha é
Aurélio de Mendonça e Pinho,
tenente de Artilharia 2, “Morto
Heroicamente em França nos
combates de 9 d’Abril de 1918”.
Nascido a 12 de Junho de
1891, em Açores, Celorico da
Beira, Aurélio era filho de José
Rodrigues Ferreira de Pinho
e Maria de Jesus Mendonça e
Pinho. Morreu sem ter casado
e sem descendência, pelo
Carlos Ferreira, barbeiro dos oficiais,
salvou-se das trincheiras MIGUEL MADEIRA
62
Grande Guerra • Memórias de Família
que, quase cem anos depois, a sua memória podia ter sido completamente
apagada, não fosse a imagem descoberta por Nuno Borges de Araújo.
“Não tenho muita informação sobre ele. A minha sogra é que sabia alguma
coisa, mas não muito, também”, diz ao PÚBLICO. Nuno Borges de Araújo
contou o pouco que sabia deste parente afastado da esposa à investigadora
Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da Faculdade
de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, juntando
um rosto ao nome gravado numa das campas do Cemitério Português de
Richebourg, em França.
Nuno nunca lá esteve, mas descobriu, através do grupo de Facebook
Corpo Expedicionário Português 1916-19, que o primo da mulher estava
enterrado no talhão D, fila 1, coval 20. Afonso da Silva Maia, que criou o
grupo e mora em França, enviou-lhe fotos da campa de Aurélio, com a pedra
esverdeada pelos anos.
As conversas trocadas nessa página de Facebook permitiram a Nuno
descobrir que o tenente pertencia ao 1º Grupo de Baterias de Artilharia que,
a 9 de Abril de 1918, durante a famosa Batalha de La Lys, estava a poucos
quilómetros da frente, tendo sofrido fortemente com o fogo da artilharia
alemã. Ferido, Aurélio acabaria por não resistir e acabou por perder a vida
a 9 de Abril. “Morreu no mesmo dia em que o meu avô foi feito prisioneiro
pelos alemães, em Lacouture”, diz.
Aurélio de Mendonça e Pinho, morto aos 26 anos, ao comando da sua
bateria, foi um dos mais de cem mil soldados portugueses que participaram
na Grande Guerra, do Norte de França até África. Quase oito mil homens
morreram, incluindo muitos do Corpo Expedicionário Português, enviado
para França. Aurélio foi um deles, enquanto o avô de Nuno foi feito
prisioneiro. Soldados da mesma guerra, na mesma área de batalha, quem
sabe se não se terão conhecido, nas trincheiras enlameadas da Flandres?
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Grande Guerra • Memórias de Família
T
inha José Ferreira 20 anos quando foi considerado “apto para o
serviço”. Corria 1915 e ele passava ainda os seus dias a calçar a aldeia
de Lomba, concelho de Paredes (distrito do Porto). Era tamanqueiro
de profissão, um calçado de madeira que era comum entre os mais
pobres, e ainda estava longe de saber
que um dia lhe iriam atribuir o número
321 e fazê-lo embarcar para muito longe
dali. Quando é chamado para a instrução
ainda tem tempo de pedir uns dias
de licença para se casar, a 2 de março
de 1917, antes de partir para Brest, a
povoação francesa que era para muitos
a primeira vez que viam França, a 22 de
Julho de 1917.
No ano seguinte haveria de ser
um dos que participaria naquela que
ficou conhecida como a batalha de La
Lys. É engraçado que ao neto, Afonso
da Silva Maia, pouco tenha contado
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
Q
uando Francisco do Carmo Laboreiro de Villa-Lobos regressou da
Grande Guerra já ninguém o esperava. Tinham passado meses desde
o Armistício e, em Lisboa, o sentimento entre quem lhe guardava
os bens era o de que Francisco teria sido mais uma das vítimas
mortais do Corpo Expedicionário Português, em França. Por isso, quando
o lisboeta desembarcou na
capital portuguesa, a 15 de
Abril de 1919, descobriu que
todos os seus bens tinham
sido vendidos.
Durante uns dias, a sua
única posse foi a farda que
trazia vestida, e até esta sofreu
as consequências do perda
dos bens de Francisco – como
era proibido usar uniforme
militar nas ruas, após o
final da guerra, o soldado
português teve de substituir os
botões e arrancar as divisas da
Arma de Infantaria.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
Em horas de pausa,
o médico disparava
Catarina Gomes
A
vida dos médicos na guerra era suposto ser calma, com algum
conforto, na rectaguarda, como acontecia com outros oficiais. O
que conta o neto de José Joaquim Machado Guimarães Júnior é
que essa não era uma vida que tivesse bastado ao avô, que partiu
com 27 anos para França,
como voluntário no exército,
acabando por fazer parte
do Serviço Médico do Corpo
Expedicionário Português.
Embarcou a 15 de Fevereiro
de 1917 rumo a Brest.
O neto, Nuno Borges
de Araújo, conta que em
família sempre se recordou
a sua passagem pela frente
de batalha portuguesa, a
fazer o que era de médico –
tratar de feridos e doentes
– mas também, em horas de
pausa, a pegar na sua arma
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Grande Guerra • Memórias de Família
e a fazer uso dela. Numa das vezes em que isso aconteceu, o tenente-
médico terá ido para a torre de uma igreja semi-arruinada com uma
metralhadora, e desse ponto favorável terá morto muitos alemães, não
deixando que passassem em direcção à linha portuguesa, contou à
historiadora Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea
da Universidade Nova de Lisboa, o seu neto.
Dos registos oficiais deste médico natural de Guimarães, descendente
de uma família com tradição na área dos têxteis do vale do Ave, não fazem
parte menções directas a estas intervenções não clínicas, até porque tal
não faria parte da sua competência na frente e nem deveria ser autorizado
a tal, refere seu neto. Ainda assim, foi louvado em 24 de Outubro de 1917
pelo cumprimento das suas funções e por “serviços que não são da sua
profissão”, refere a historiadora.
José Joaquim esteve na batalha de La Lys. Foi primeiro dado como
desaparecido e depois soube-se do seu cativeiro, tendo sido feito
prisioneiro em La Couture, a 9 de Abril de 1918. Segundo o que o próprio
tenente-médico relatou aos familiares, quando se viu aprisionado desfez-
se dos seus galões e de qualquer identificação que levassem os alemães a
julgá-lo oficial. Possivelmente poderá tê-lo feito para evitar interrogatórios
ou uma eventual execução. Ele assim aparece, sem sinais de patente,
num postal alemão da época que mostra uma coluna de prisioneiros
portugueses e ingleses a caminhar com ar desolado.
José Joaquim referia ter estado em dois campos de prisioneiros
alemães. Referia ter perdido 30 quilos. As condições eram deploráveis,
tendo sempre referido que chegou a lavar a roupa em charcos, para poder
manter algumas condições de asseio.
Terminada a Guerra, regressou ao Corpo Expedicionário Português a
16 de Janeiro de 1919, vindo da Holanda, como tantos outros prisioneiros
que, aos poucos, foram enviados da Alemanha para a França e depois
para Portugal. Passou alguns dias em Paris e partiu rumo a Lisboa a
bordo do navio inglês Hellenus. Desembarca na capital portuguesa a 29
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
S
empre se ouviu falar do “tio António” lá em casa. Havia dele uma
foto e uma história longínqua de que tinha estado a lutar em França
na Primeira Guerra Mundial, sabia-se que tinha morrido, mas não
se sabia onde estava o seu corpo. Mas na família tinha sido passada,
de geração em geração, a obrigação de nunca o esquecer, a este tio
que era uma figura quase fantasmagórica. A mãe do militar, Aparecida,
tinha passado esse dever de lembrança ao seu filho, Manuel Domingos
Francisco e este, por sua vez, tinha-o feito aos seus quatro filhos.
Só cerca de 100 anos depois do conflito é que a família descobriu a campa de António Francisco
MIGUEL MADEIRA
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Grande Guerra • Memórias de Família
Para o mais novo dos quatro, José, o único nascido já em França, para
onde o pai emigrou no início dos anos 1960, o tio António ajudou-o.
Na sua infância e adolescência no país que era o seu mas não era
bem, chegou a surgir-lhe como resposta pronta sempre que ouvia um
comentário xenófobo, do estilo «os portugueses vieram para França ‘tirar
o pão aos franceses’”. Ele retorquia com essa figura quase mítica, um tio
português que tinha desaparecido em França a defendê-los também a
eles, aos franceses, contou ao jornal Le Monde.
“Quando eu era pequeno o meu pai falava-me muito do tio António.
Mostrou-me uma foto dele, tirada em 1916. Ele sonhava saber onde
ele estava”. O que se sabia era que tinha saído de Lisboa a 21 de
Outubro de 1917, um dos cerca de 50 mil homens enviados pelo
governo português para França a partir de 1917. Nunca deu notícias,
era analfabeto. Depois do Armísticio, a família esperou-o em Alcaria
do Coelho, uma aldeia do distrito de Beja. Uma carta expedida da
Bélgica, com uma mecha de cabelo e umas palavras em francês, que a
professora da aldeia traduziu, anunciavam que António tinha morrido
de peritonite num hospital de Liège, a 22 de Janeiro de 1919, com 25
anos. Os pais de Francisco morreram sem nunca saberem onde foi
enterrado o filho.
Foi José, hoje com 44 anos, quem deslindou o mistério do tio
desaparecido. Tornou-se professor de liceu e com os estudos que
o pai não teve e a ajuda da Internet andou à procura do tio-avô.
Descobriu primeiro os seus papéis militares, mas não o sítio onde
estariam os seus restos mortais. Durante a sua pesquisa soube que
havia um cemitério onde os portugueses tinham sido enterrados, foi
até lá em Fevereiro deste ano. “Olhou por cima do muro e a primeira
campa na qual o meu olhar caiu, na primeira fila à esquerda, estava o
nome António Francisco”. Encontrou o tio avô. Ligou ao pai, Manuel
Domingos Francisco, hoje com 90 anos, e sentiu-lhe a voz a tremer do
outro lado da linha.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
A última fotografia
Catarina Gomes
P
edia desculpa à irmã por eventualmente não estar muito bem na
fotografia e poder não lhe agradar o retrato, a culpa não era sua mas
sim da má qualidade dos fotógrafos na frente, escrevia. O soldado
Francisco Carolino surgia assim fardado, luvas colocadas, bornal a
tiracolo, em pose, apenas as botas enlameadas e o chão de terra retiravam
à foto tornada postal (no verso escrevia estas suas considerações) alguma
da solenidade que o fotografado provavelmente lhe quis dar. Tem o
cigarro na mão que tem
encostada a um banco alto
de pau onde, pousado sobre
um pano branco, repousa um
livro, um cenário fotográfico
típico para a época.
Enviada de França a 20
de Fevereiro de 1918, para
a sua irmã, cujo nome não
menciona, esta ficará sendo
a última foto em vida deste
soldado e as últimas notícias
que a sua família receberá
dele. Atestam os dados do
Arquivo Histórico Militar,
recolhidos pela historiadora
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
O velho guerreiro
Patrícia Carvalho
L
uís Veríssimo d’Azevedo não era um jovem inexperiente quando
partiu para a frente de guerra, em França. Nascido a 21 de Maio
de 1866, em Leiria, Luís não só tinha idade suficiente para ter sido
louvado por um rei português, pelo seu “selo e dedicação” no cargo
de professor da Escola Central de Sargentos da Arma de Infantaria,
como já estava casado pela terceira vez.
A sua vida militar tinha começado a 21 de Janeiro de 1886, quando
se voluntariou para o Regimento de Infantaria 23. Daí até partir para
França, já como major,
passariam décadas e vários
cargos. Quando embarca
para França, a 20 de Junho
de 1917, fá-lo como membro
do Estado-Maior da Artilharia
e como responsável pelo 1.º
G.B.M. (Grupo de Baterias
de Morteiro), do qual seria
nomeado comandante a 5 de
Setembro desse ano.
Na véspera de Natal de 1917,
começa a gozar uma licença
de 25 dias e, quando regressa
à frente, em Janeiro de 1918,
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
M
anuel da Piedade era daqueles homens para quem as suas
povoações são demasiado pequenas para satisfazer os seus
sonhos. Nascido em Britiande, Lamego, a 27 de Junho de 1893,
quis conhecer o mundo para lá dos limites da pequena vila e,
assim acredita a família, foi
essa a razão para se alistar no
exército. O desejo levou-o tão
longe quanto Angola, para
onde partiu como soldado
artilheiro.
Viveu a Grande Guerra
em África, mas também
na Europa, como atestam
as fotografias guardadas
pelo seu neto, Manuel
Mesquita, e que integram
o espólio disponibilizado
à investigadora Margarida
Portela, do Instituto de
História Contemporânea
da Faculdade de Ciências
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
Um médico na rectaguarda
Catarina Gomes
“24
de Março de 1917: É um sábado, um dia triste apesar da
extrema claridade do céu. De manhã ainda uns últimos
retoques nas malas, umas visitas de fugida, combinar
umas determinações e andar ligeiro, pois o tempo, como
um cavalo, marcha impávido até à hora de partida. Nunca se passou
um dia tão rapidamente. Uma tristeza imensa me dominava por ter que
deixar os meus queridos, Deus sabe por quanto tempo e se para sempre!
Minha mulher! Minha filha
querida! Meus pais! Tornar-
vos-ei a ver???”.
Assim escreve Raúl de
Carvalho, nascido em 1888,
na primeira entrada do seu
pormenorizado diário, em
vésperas de partir para a
guerra, em França, na sua
qualidade de médico analista.
A viagem até Paris demorará
duas semanas. Teve uma
passagem pela guerra calma,
resguardado dos conflitos,
primeiro na estância balnear
de Paris-Plage, com outros
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
Um alentejano na
frente de guerra
Patrícia Carvalho
A
Grande Guerra já se aproximava do fim quando, a 6 de Setembro
de 1918, Dimas José Rosado enviou ao irmão, Leandro José Rosado,
soldado condutor do Corpo Expedicionário Português, uma
fotografia de corpo inteiro. Com uns bigodes de fazer inveja, relógio
preso com a corrente no colete e a mão a repousar sobre uma cadeira em
que está pousado um vaso, Dimas chegava assim às mãos do irmão, com
um recado escrito no verso: “Offreço [Ofereço] ao meu mano Leandro esta
minha futugrafia [fotografia] como prova
de recordação e da amizade. Dimas José
Rosado.” A letra, redonda e floreada,
deixava ainda espaço para identificar o
local onde Leandro receberia a imagem:
“Front em Vermelles 6 de Setembro de
1918. França”.
Os dois irmãos eram filhos de
Domingos Rosado e Violante Jesus e
nasceram na Gafanhoeira, Arraiolos,
distrito de Évora. Leandro foi recrutado
a 29 de Julho de 1915, quando o pai já
tinha morrido, e era, na altura, solteiro.
Integrado no contingente do distrito de
Évora, concluiu a recruta a 4 de Junho de
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
P
ouco se sabe do combatente Pedro Augusto Soares que terá
estado, segundo consta, em França, como membro do Corpo
Expedicionário Português. O que restou da sua partipação é apenas
este postal-fotografia que dirige à sua madrinha de guerra.
Nele, Pedro Augusto Soares remete a sua profunda amizade àquela
que, em Portugal, esperaria uma palavra sua e lhe enviaria umas linhas
de consolo e amparo em horas mais difíceis. “Seu affilhado de guerra,
Pedro Augusto Soares.
Minha madrinha Ofereço-te
o meu retrato como prova
d´amizade tem a desculpar
em ser tam ensegneficante
lembrança.» Na fotografia
postal surge o soldado
combatente totalmente
fardado, pousando em
pé para uma fotografia
tradicional na sua época,
junto de uma mesa. O postal
pertence a Nuno Borges de
Araújo, é de um familiar
distante da sua mulher, de
quem pouco se sabe.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
As histórias do avô
prisioneiro de guerra
Filomena Lança
M
uitos anos depois de ter voltado, Aniceto José gostava de se sentar
no canto da chaminé, na sua casa do monte alentejano, a beber
chá e a contar histórias aos netos. Sabia muitas, e por vezes
contava-nos também coisas do tempo da Grande Guerra.
De como o frio apertava
nas trincheiras e os soldados
comiam sopa aguada dentro
dos capacetes que usavam na
cabeça. E dos alemães, que o
fizeram prisioneiro na batalha
de La Lys e que, no fim de
contas, assim lhe salvaram a
vida. Era o herói da família,
este avô que nunca matou
ninguém porque lhe deram
a tarefa de maqueiro e que a
família deu como morto, mas
que conseguiu regressar são
e salvo da maior aventura da
sua vida.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
O
2.º sargento José Alagoinha, enviado para as trincheiras da Flandres
em Abril de 1917, era um patriota e era um poeta. Num caderno
de campanha que levava para todo o lado, lêem-se estas quadras,
parte de um extenso poema com data de 26 de Julho de 1918, que
transcrevemos actualizando apenas a ortografia: “(…)Os portugueses na
guerra/ Têm sido muito gabados/ Não deixam mal a terra/ Dos nossos
antepassados. // Os pequenos portugueses/ Não receiam combater/ Noite
e dia quantas vezes/ Sem dormir e sem comer. (…)”.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
Um capitão da Brigada do
Minho que morreu em combate
Luís Miguel Queirós
A
4.ª Brigada de Infantaria do Corpo Expedicionário Português (CEP)
já tinha conquistado uma reputação de bravura na frente de batalha
muito antes de lhe ser confiada, em Fevereiro de 1918, a defesa do
sector de Fauquissart, em Laventie, na Flandres francesa, perto da
fronteira com a Bélgica, onde
ainda se encontrava nesse
fatídico dia 9 de Abril de 1918,
quando foi dizimada pelos
alemães na batalha de La Lys.
Conhecida por Brigada
do Minho, porque os seus
vários batalhões tinham ali
sido recrutados, a brigada
suportara com denodo vários
ataques inimigos desde o
Verão de 1917, e os seus feitos
chegaram a Portugal, onde
um grupo de mulheres do
Minho decidiu homenagear
as tropas da região. Conta
a Ilustração Portuguesa, no
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Grande Guerra • Memórias de Família
seu número de 5 de Agosto de 1918, que lhes foi “oferecida uma bandeira
pelas senhoras daquela província”.
A dita bandeira, que a burocracia de tempo de guerra fez com que só
chegasse ao seu destino meses depois, quando a Brigada do Minho já se
encontrava em Laventie, tinha sido bordada, diz a revista, “pela filha do
coronel Barbosa e pela esposa do capitão do [Batalhão] 3, Luiz Gonzaga
do Carmo Pereira Ribeiro, hoje desaparecido em combate”.
O coronel Adolfo Almeida Barbosa era então o comandante da 4.ª
Brigada. Condecorado pelo Governo inglês pelos seus feitos na guerra,
sobreviveu ao conflito, chegou a general e veio a morrer em 1928. Luiz
Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro não teve a mesma sorte. Após a
batalha de 9 de Abril, foi dado como desaparecido em combate, mas o
seu cadáver acabou por aparecer em Laventie. Foi inicialmente sepultado
em Le Touret, mas os seus restos mortais estão hoje no Cemitério Militar
Português de Richebourg l’Avoué, onde se encontram as campas de quase
dois mil combatentes portugueses na I Guerra.
Morto em combate aos 32 anos, Luiz Gonzaga não está esquecido,
e graças às investigações de um sobrinho-neto, Carlos Ribeiro, é hoje
possível reconstituir o essencial do seu percurso militar.
Filho de Duarte Dias Pereira Ribeiro e de D. Deolinda Rosa da Silva
Pereira Ribeiro, Luiz Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro nasceu a 21
de Junho de 1885 em Viana do Castelo, numa casa da então Rua de S.
Sebastião (hoje de Manuel Espregueira) em cujo rés-do-chão funcionava a
farmácia paterna, a Aurea Vianense.
A família vivera antes na Póvoa do Lanhoso, onde nascera o primogénito do
casal, António Manuel Pereira Ribeiro, que veio a ser bispo do Funchal durante
mais de 40 anos. A sua sagração como bispo, em Fevereiro de 1915, foi a
primeira sagração episcopal ocorrida no país após a implantação da República.
Luiz Gonzaga tinha ainda outro irmão, Joaquim, que seguiria a carreira
do pai e veio a ser director do Sanatório de Paredes de Coura, e duas
irmãs, Conceição e Dores.
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
O barbeiro de La Lys
Jaime Rocha, escritor
T
oda a gente o conhecia por “Senhor Carlos” ou por Carlos Ferreira. O
seu nome era Carlos de Souza Ferreira. Cantava, tocava, fazia teatro,
tinha voz de tenor. Foi barbeiro em La Lys.
Carlos Ferreira, meu avô materno, nasceu em Leiria a 27 de Maio
de 1894. A mãe morreu quando ele tinha 3 anos. Criou-o a avó. Aos 18
anos foi para a Nazaré trabalhar numa barbearia. Ali conheceu Maria
Rocha, filha de pescadores. Casou aos 27 anos e teve três filhos, Adelina,
Isabel (ainda viva, com 91
anos) e José Carlos. Mas antes
disso, com os seus vinte anos,
viu-se incorporado como
soldado de infantaria no
contingente de portugueses
que seguiu para a frente da
batalha na Flandres, em 1917.
Esteve em La Lys mas
não correu perigo real. Por
um lado era o barbeiro dos
oficiais que preferiam mantê-
lo na retaguarda, ileso e
pronto para cortar barbas e
cabelos. Os soldados faziam
a barba a si próprios, alguns
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Grande Guerra • Memórias de Família
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Um alferes monárquico na
guerra dos republicanos
Luís Miguel Queirós
M
á fortuna, a do monárquico José Estevão Coelho de Magalhães,
enviado para as trincheiras da Flandres, como alferes do Corpo
de Artilharia Pesada (CAP), a travar uma guerra que não era a
sua, ao serviço de um governo que desprezava e de um regime
em que se não revia.
Mas era um patriota e
serviu com denodo: a sua
documentação militar,
investigada pela historiadora
Margarida Portela, não
regista a menor censura e,
pelo contrário, inclui um
louvor, reconhecendo o zelo,
dedicação e capacidade de
sacrifício que demonstrara na
frente de batalha.
Único varão entre seis
irmãos – um outro rapaz
morrera ainda bebé –, José
Estevão sobreviveu à guerra
e regressou à casa paterna
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A
história de um oficial-médico que acabou por ser encontrado num
lugar muito provável: num hospital inglês
Luís Carlos da Costa Guerra Charters d’Azevedo acabara de se
licenciar em Medicina e Cirurgia quando foi mobilizado para a
frente europeia da I Grande Guerra, na Flandres francesa
Partiu a 31 de Agosto de 1916 como tenente miliciano médico do Corpo
Expedicionário Português,
informa o seu neto, o
engenheiro e escritor Ricardo
Charters d’Azevedo, que se
tem dedicado a investigar a
história familiar.
“Andava pela frente, num
automóvel-ambulância,
com um chauffeur e um
enfermeiro”, explica o neto,
que era ainda criança quando
o avô morreu de cancro, em
1953, com pouco mais de
60 anos de idade. Ricardo
Charters d’Azevedo nunca
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soube quem conduzia o seu avô, mas veio a conhecer o seu enfermeiro:
“Encontrei-o mais tarde em Lisboa: era barbeiro na Rua do Ouro”.
Uma das histórias mais curiosas da passagem de Luís Carlos Charters
d’Azevedo é justamente a de um improvável encontro. Nos campos da
Flandres, em plena guerra, deu de caras com um seu conterrâneo de
Leiria, o padre José Ferreira de Lacerda, que andava perdido. O próprio
padre Lacerda evocará o episódio no jornal O Mensageiro, em Outubro de
1939, quando a Europa acabava de mergulhar de novo na guerra.
Citando excertos de uma carta que o amigo médico lhe endereçara
– “Agora que novamente na fronteira franco-alemã se desenvolvem
acontecimentos semelhantes aos da Grande Guerra, mais me recordo do
nosso encontro numa manhã cinzenta, fria e nevada numa estrada perto
de Roquetoire (…)” –, o padre Lacerda conta o episódio aos leitores de O
Mensageiro: “Nessa manhã saíra de Teroane em procura de soldados de
Leiria e dum colega capelão. É certo que ia munido duma carta e estavam
sinalizadas as estradas, mas tantas voltas dei que não sabia onde estava.
Estradas, caminhos, casas era tudo cinzento e igual. Valeu-me o encontro
felicíssimo com o meu querido amigo, que me indicou a posição e o
caminho a seguir”.
E o padre evoca ainda as “dezenas e dezenas de feridos” que ajudou
a meter em macas e a “mais de uma dezena” que ajudou a morrer,
“recebendo as suas últimas palavras, recomendações para a família,
objectos sagrados, cartas, retratos...”. Também Luís Carlos Charters
d’Azevedo, nas suas funções de médico, esteve em posição tristemente
privilegiada para testemunhar as horríveis consequências da guerra. Mas,
“como muitos dos que viveram aquele horror, não gostava de contar o
que lá passara”, diz o seu neto.
Nascido em Leiria em 1891, o futuro médico era neto de um grande
proprietário na região, José Maria Henriques de Azevedo, 1º visconde
de São Sebastião, e filho único do engenheiro Roberto Charters
Henriques d’Azevedo. Quando partiu para a guerra, era já casado e pai
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Memórias de um médico
na frente moçambicana
Luís Miguel Queirós
J
oaquim de Araújo foi uma testemunha privilegiada de alguns dos
mais duros combates da guerra em Moçambique
O famalicense Joaquim Alves Correia de Araújo, enviado
como alferes-médico para a frente moçambicana em Maio de
1917, era um observador metódico e imparcial, virtude que tende
compreensivelmente a rarear no cenário violento de um teatro de
guerra, propício a emoções fortes e empolamentos patrióticos
Por isso mesmo é tão precioso o diário que nos deixou: um caderno
de 77 páginas que uma sua sobrinha-neta, Teresa Araújo, historiadora
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A
o contrário da generalidade dos militares portugueses evocados
nestas páginas, o contra-almirante Jaime Daniel Leotte do Rego
(1867-1923) não precisa de ser resgatado do esquecimento
Figura de relevo da fase final da monarquia e do período da I
República, são muitas as obras de referência que abordam a sua vida
e o seu trajecto político e militar. E quem quiser informações mais
Leotte e o ministro da Guerra, Norton de Matos, de partida para o exílio MIGUEL MADEIRA
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