Você está na página 1de 35
Nos Bastidores da Imigragdo: © Traéfico das Escravas Brancas RESUMO Este artigo focaliza a dinimiea do trdfico das “escravas brancas", isto 4, de mulheres destinadas'a.suprir 0 mercado da prastituicdo em paises @ Brasil « Argentina, nas décadas iniciais do século 4X. Comercializadas na Europa Oriental € Ocidental, ax “polacas", russas, austriacas, polonesas, francesas, italianas « vinham através de redes. organizadas de cdftens, em meio ao grande fluxo migratério do period. Os grupos. de traficantes detinham amplo' controle sobre ‘as rotas internacionais do comércia das proslitules, sobre ox bordéix que se constitulam nos centros urbanos, assim como sobre o corpo das estrangeiras, que nem sempre vieram por livre escolha ¢ em pleno conhecimento de causa. “E de onde ele vem? Do Egito? Margareth Rago* ABSTRACT This article analyses the early twentizth century commercial traffic in women destined for prostitution markets in countries such as Brazil and Argentina. Coming in the great wave of immigration of the period, these white slaves ~ “polacas", russians, austrians, polish, italiana, and French —were bought and sold in Eastern and Western Europe before arriving in Latin America through Kaftan trade networks. Through their control of international trade routes and bordellos, the white slave traffickers also retained substantial control of the bodies of the women they traded, women who did not always immigrate of their own free will o in complete knowledge of their future employment. — Claro que nao, senhor Albert! O Egito nao tem tanta importancia; ele vem do grande mercado. — De Villette? — De Buenos Aires!” No final dos anos 20, um jornalista francés ¢ incumbido de penetrar no. misterioso mundo dos traficantes de “escravas brancas” pela Liga das NagOes, tendo em vista as repercussGes negativas que assumia internacionalmente a comercializagio de contingentes femininas destinados a suprir os mercados. da prostituigdo na América do Sul, Procurando ento desvendar as formas *Depto. Hist6ria —IFCH UNICAMP [Rev. Bras. de iis." T'S.Pauto T vontis [pp. 145-180 _] 2g0.89/set.89. pelas quais se constituiram redes alternativas de: individuos especializados nesta atividade lucrativa, Albert Londres trava contato com membros de uta’ poderosa organizagio mafiosa francesa, sediada em Buenos Aires, A partir de entdo, outras portas se abrem ao jornalista, permitindo-Ihe conhecer por dentro a micro-sociedade dos rufides, com sua linguagem, cédigos, geografia. De Paris, viaja para a capital portenha, considerada como 0 “grande mercado”, onde entrevista outros integrantes da associacao, visita os movimentados bairros do: submundo, conversa com prostitutas européias, decifra as girias da “zona”, observa gestos € condutas ¢ percorre os diversos caminhos que constituem as principais rotas do comércio ilfcito das Prostitutas estrangeiras. Assim nasce, em 1927, 0 CAMINHO DE BUENOS AIRES, livro que produz enorme: impacto na €poca, por suas minuciosas e inesperadas revelagées, despertando mundialmente a opinido piblica para o problema! Principal documento sobre a dindmica da circulacdo dos mifiées ¢ da comercializagao dos corpos femininos da Europa para a Argentina, suas reportagens descrevem a vida cotidiana de duas gangs organizadas: uma formada pelos “maquereaux” franceses e outra por cAftens judeus, diferenciando-se em seus métodos de atuagao ¢ formas de organizagio. Desde os: contatos iniciais estabelecidos em Paris, Albert Londres inteira-se dos procedimentos diversificados e’sofisticados empregados pelos tufides responsdveis pela exportagio de mulheres para Buenos Aires, Rosério, Mendonza, Santa Fé, Bafa Blanca, através das quais esperavam construir grandes fortunas. Buenos Aires, principalmente, é considerada nas décadas iniciais do sécula XX como um dos principais centros do prazer, atraindo conseqiientemente a atengao de vérios grupos interessados em enriquecer com a vida do submundo. Juntamente com 0 Rio de Janeire e Sao Paulo, estes centros urbanos vivem neste momento histérico um acentuado processo de modernizacdo, de desenvolvimento econdmico e¢ intenso crescimento demogrifico favorecido pela imigracao. O desejo de europeizar a lLondres, Albert - LE CHEMIN DE BUENOS AIRES, Paris, Albin Michel, 1927. Em suas memérias, Eisenstein refere-se 2 dois livros que o marcaram fortemente, entre eles © de Albert Londres, sobretudo pela maneira como estabeleceu contato com © mundo exterior, superando as barreiras geogréficas, viajando mentalmente através deles, Nas MEMORIAS IMORAIS: Uma autobiografia (S. Paulo, Companhia das Letras, 1987) afinme: “Bnconstom # ponta de uma espada em meu peito ou o cano de ums pistola em minha témpora. E obriguem-me a declarar qual dos meus dois livros preferidos tem por titulo O CAMINHO DE BUENOS AIRES. Seria « continuagio de ANATOLE FRANCE DE ROUPAQ, por Brousson ou a coletinia de ensaios de Alben Londres sobre o trifico de escravas brancas?” (@. 209), 146 cidade evidencia-se na transformago dos habitos da populagao urbana, desde a importagao de mercadorias francesas ¢ inglesas de luxo até a adogdo de novas formas de consumo sexual, As prostitatas estrangeiras adquirem um estatuto: privilegiado, especialmente as “francesas”, verdadeiras ou falsificadas, que freqiicntam os bordéis, rendez-vous ¢ prostibulos modemizados, Embora as rotas do trafico internacional das prostitutas controladas pelos caftens n&o se circunscrevam A América do Sul, Argentina e Brasil figuram como paises importadores relevantes, onde se estabelecem redes estreitas de comunicagao. As barreiras geogréficas so completamente abolidas por esses grupos némades, que se trasladam das mais afastadas aldeias da Europa Oriental aos pafses do continente americano, espalhando-se. pelas cidades mais longinquas. Perseguidos pelas autoridades policiais, nao raro se refugiam no Brasil, apresentando-se sob uma falsa identidade e. suscitando também aqui inimeras campanhas de sensibilizagdo da opiniaio publica, mobilizadas por jornalistas, chefes de policia, juristas irritados com © crescimento do Ienocinio no pals. A viagem para Buenos Aires, informa Londres, partia de Paris ¢ Marselha, passava pelos portos do Rio de Janeiro ¢ de Santos, seguia até Montevidéu, finalizando na capital Argentina. A agilidade dos rufides ¢ mesmo das prostitutas ultrapassava em muito a dimensdo espacial. O jomalista espantava-se com a extrema facilidade com que faziam embarcar suas “mercadorias”, burlando e confundindo as’ autoridades publicas, falsificando documentos, escondendo-as nos recantos mais reclusos dos navios, em pordes ou entre as m4quinas. Muitas vezes, casavam-se com elas para facilitar 0 embarque ¢ sempre atuavam organizadamente. Em passagem curiosa de seu livro, conta-nos que ele mesmo fora impedido de desembarcar em Montevidéu pela policia maritima, enquanto 0 céften que viajava ao seu lado com uma jovem nao tivera problema algum. Pelo contrario, desembarcara sem ser barrado e interfertra com éxito na enuada da moga ¢ na do préprio Londres naquele pais. Montevidéu era escolhida como local de chegada porque a passagem pela alfandega era menos vigiada e, em seguida, podiam partir em grandes barcos iluminados para Buenos Aires, sem quaisquer constrangimentos. Como comerciantes especializados na venda de outras mercadorias, de peles ou jdias, os rufises mantinham absoluto controle sobre as mogas durante todo:o percurso da viagem, instruindo quanto as formas de conduta, conversas, siléncio, respostas, lugares onde poderiam aparecer publicamente ¢ relacionamento com a policia alfandegria. Pois, se muilas vinham j& como prostitutas experientes, outras eram mais recentes na profissdo ¢ muitas acreditavam vir, mesmo que clandestinamente, encontrar um tipo de 147

Você também pode gostar