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A AMERICA DOS GELOS E DAS FLORESTAS Para distrair nossa gente ¢ atrair os seloagens estivamos equipades com wma grande variedade de instrument de misi- ca, sem omitr de modo algum bringuedas como dangarinos mows, eavalinhos de pa [..] ara praxer dos selvagens cua simpatiatentévames angariar Viagem de Sir Humfrey Gilbert a TertaNova (1583) Existia uma passagem para o Noroeste? Desde o fim do século XV a questo intrigava e apaixonava todos os que procuravam alcancar a Asia pelo Oeste. Em 1524, resolvido a quebrar o intoleravel monopélio his- pano-portugués, Francisco I enviou o florentino Verazzano para explorar as margens atlanticas da América do Norte. Elas foram batizadas com 0 nome de Nova Franca. Dez anos depois, em 1534, enquanto Francisco Pizarro empreendia a conquista do Peru, o rei da Franca adiantou seis mil libras a Jacques Cartier para partir em busca de terras nas quais, acreditava-se, abunda- vam © ouro, as pedras preciosas ¢ as especiarias. O malujno explorou o golfo do Sao Lourenco e, no ano seguinte, entrou no rio imenso de rede- moinhos perigosos que talvez trouxesse a resposta to esperada. Quan- do Cartier se deu conta de que 0 Sao Lourenco nao conduzia ao Pacifico, modificou seus planos para fundar um estabelecimento francés que ser- viria de base & conquista do Norte da América. A regido devia encerrar 640 HISTORIA DO NOVO MUNDO tesouros idénticos aos do México ¢ dos Andes. Francisco I designou 0 senhor de Roberval para chefiar o estabelecimento projetado e outorgou- Ihe poderes de tenente-general. Mas essa tentativa de rivalizar com o rei da Espanha fracassou redondamente. Em 1543, os sobreviventes da expe- digdo de Roberval abandonavam a regio: as condicdes de vida, a fome, os ataques dos indigenas tinham desencorajado os franceses; era forgoso constatar que nenhum reino com riquezas mirificas se estendia no cora- do do Canadé: 0 ouro e os diamantes recolhidos perto do sitio de Que- bec cram apenas piritas de ferro e de quarto. ‘Ao contrario do que acontecera na Nova Espanha ¢ no Peru, um pouco a maneira como se encerrara a primeira invasio do Novo México, os europeus nao procuraram conquistar 0 Canada. Os franceses preferi- ram © Brasil, sua efémera “Franca Antértica”. Escaldados pelas brutali- dades e pelos reveses daqueles primeiros contatos, os iroqueses souberam entravar qualquer penetracao européia no interior de suas terras. Con- tudo, o sursis de um século de que se beneficiou a América do Nordeste nio foi isento de contatos, de conflitos e de trocas; ndo se tratava de co- lonizagao, tampouco de conquista. NO PAIS DOS LAGOS E DOS RIOS Com gelos, neves ou florestas imensas, o Nordeste da América mul- tiplicava os obstaculos 4 penetragao dos europeus. Nada de construgdes ciclépicas nem de pirdmides sob essas latitudes, nem cidade india com mercados multicoloridos. Em compensacio, a riqueza da fauna e da flo- ra exerceria um fascinio duradouro sobre o espirito dos recém-chegados. As altas copas dos carvalhos, dos freixos, dos dceres e dos pinheiros es- tendiam-se a perder de vista. Os rebanhos de bisontes percorriam a re- gido dos Grandes Lagos ¢ a bacia do Hudson. Eram abundantes 0 cabri- to-montés, o uapiti — cervo-canadense -, 0 caribu 0 alce-canadense. Ao Sul da regio de Montreal, proliferavam as galinhas e os galos-da-India, enquanto na primavera € no outono véos de rolas — pombos-selvagens — encobriam o céu, saturando o ar de odores atordoantes. Os iroqueses, que armavam redes para capturélas, pegavam sem dificuldade de trezen- tas a quatrocentas de uma s6 vez. Abetardas, cisnes, gansas-selvagens, patos contavam-se as centenas de milhares. As 4guas cristalinas dos rios € riachos transbordavam de licios, saimées e esturjées; perchaudes, barbotos, carpas e enguias, “grandes e robustas e de 6timo sabor, muito melhores que na Franca”, passavam entre as rochas. Os bosques abriga- ‘A AMERICA DOS GELOS E DAS FLORESTAS on vam grande quantidade de frutos selvagens: “Morangos, framboesas, ce- rejas-bravas, acianos de um sabor delicioso, amoras, groselhas vermelhas brancas e muitas outras frutinhas incomuns na Europa, entre as quais A espécies de pequenas macis ou bagas de azevinho e de péras que s6 amadurecem na geada”. Nas praias, os indios colhiam mariscos, conchas e ostras. Eles pesca- vam a lagosta bem antes que as Aguas piscosas do Atlantico tivessem se tornado para as frotas européias um primeiro Eldorado norte-americano. ‘A enguia era capturada com armadilha ou arpao. As baleias que desciam longe em direcdo ao sul, as focas e as otarias eram freqitentes num grande ntimero de paragens. A exemplo dos espanhéis que cantaram a grandeza da Nova Espa- nha, os viajantes do século XVII deixaram descricdes ditirambicas das paisagens da Nova Fran¢a, como se “a natureza tivesse ali reunido uma grande parte das belezas da terra habitavel”. A suntuosidade da floresta boreal, a magnificéncia dos rios, lagos e riachos seduziam menos por sua beleza do que pelas imensas reservas de caca e de peixes que cacadores € pescadores europeus sonhavam um dia explorar. ‘Terra de abundancia, a América do Nordeste nada tem, contudo, de paradisfaca. £ uma regido submetida a intermindveis invernadas ¢ tem- peraturas extremamente baixas. Sé com um longo periodo de adapta¢io e um arsenal de técnicas, pacientemente desenvolvidas pelos naturais, € possivel defender-se ali do frio. Mas a caca de inverno compensava que se superassem os rigores do clima, Os animais com pele que povoavam a floresta boreal constituiam-se em presas faceis quando os montes e as Arvores desapareciam sob um espesso manto branco. As tempestades de neve vinham entao em socorro dos homens, entravando os deslocamen- tos des animais. A um jesuita que se surpreendia com as precaugées com que os indios cercavam a vinda do granizo, um cacador retorquia: “Ele serve para pegar 0 alce”. Com efeito, “como a neve se congela apés um pequeno degelo ou um pouco de chuva, ela fere esses pobres alces que nao vao muito longe sem serem massacrados”*. Os indios sabiam igual- mente perseguir o alce em movimento quando as neyes eram profundas. Uma grande quantidade de presas, ursos, lobos, lontras, ratos-almisca- rados ¢ martas, acabavam todos sob seus golpes quando a estaco era boa, senio “eles sé pegavam frio ¢ vento”. 1. Delage, 1991, pp. 4852; Relations des suits... (1668), 1972, t. V, Montreal, Editions du Jour, pp. 27-28, 2. Iden 3. Lejeune, 1973, pp. 55 89. 4, Idem, p. 84,

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