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O MAL: UM DESAFIO A FILOSOFIA E A TEOLOGIA Que a filosofia ¢ « teologia constderam o mal como um desafio sem igual, ox maiores pensadores, em uma ou outra diseiplina, coneordam em eonfes- si-lo, por vezes com grande alarde. © importante nao ¢ esta eonfissio, mas o modo pelo qual a desa- fio, e até mesmo o fracasso, é recebido: seria um convite @ pensar menos ou uma provocagio a pensar mais, ou até mesmo a pensar diferente mente? ‘A questo reside em um modo de pensar sub- metido & exigéneia de coeréneia légiea, isto ¢, a0 mesmo tempo Ge néo-contradigio e de totalidade sistematiea, 2 este modo de pensar que prevalece nos ensaios de teodicéia, na acep¢ao técnica do ter- me, que, por mais diversas que sejam suas respos- tas, concordam em definir o problema em termos aproximadas, tais como estes (como se pode afir- mar conjuntamente, sem contradi¢ao, as trés pro- posigGes seguintes): Deus ¢ todo poderaso, Deus @ absolutamente bom; contudo, o mal existe. A teo- dieéia surge, entéo, como um combate a favor da coeréncia, em resposta & abjecdo segundo a qual vomente duas das proposigées sio compativels, mas nuinea as trés ao mesmo tempo, O que é pressuposto pelo moda de colocar © problema nao é poste em questo, isto é a propria forma proposicional na qual os termos do problema sao expressos, ¢ a regra de coeréncia 4 qual a solucio admite dever satis- fazer. Por outro lado, com efeito, mio se leva em conta que estas proposicces exprimem um estado “onto-teolégico" do pensamento que 86 foi atingido num estigio avancado da especulacdo € sob a con- digdo de uma fusio entre a linguagem confessional da religido e um discurso sobre a origem radical de todas ax coisas, na época da metafisica pré-kantia- na, como o demonstra até A perfeico a teodicéia de Leibniz. Nao se leva em conta também que a ta- refa de pensar — sim, de pensar Deus e de pensar o mal! perante Deus — pode nao estar esgotada através de nosses taciocinios de acordo com a ndo- contradi¢ao ¢ a nessa inclinag&o para a totalizagée sistematica, A fim de mostrar o cardter limitade relative da, posigdo do problema no quadro argumentative da teodicéia, é preciso primeiro tomar a medida da amplitude ¢ da complexidade do problema com os recursos de uma. fenomenologia da experiénela do mal, depois distingulr os nivels do diseurso percor= rides pela especulagao sobre a origem e a ravio de ser do mal, e enfim juntar o trabalho do pensar suscitado pelo enigma do mal as respostas da ago e do sentimento, I — A experiéncia do mal; entre a repreensio ea lamentagio O que fornece o cardter enigmatico ao mal é a nossa posigéo de colocarmos, numa primeira apro- ximagdo, sob um mesmo plano, pelo menos na tra- digo judaico-crista do Ocidente, fenémenos tio dispares como o pecado, o sofrimento ¢ a morte. Pode-se mesino dizer que € na medida em que o soirimento ¢ constantemente tomacio come ponto de referéncia que a questo do mal se distingue da do pecado ¢ da culpabilidade, Antes entdo de dizer @ que, no fenémeno do mal cometido e no do mal sojride, aponta na direcdo de uma enigmatica pro- fundidade comum, é preciso insistir na sua dispa- ridade de prineipio. No rigor do termo, o mal moral — o pecado em linguagem religiosa — designa o que torna a agdo humana objeto de imputacao, de acusagao e de repreensiio. A imputagdo eonsiste em consignar a lum sujeite responsével uma ago suscetivel de apre- cingéo moral, A aeusagio carseteriza a propria agao como violagaio do cédigo ético dominante na comunidade considerada. A repreensio designa 0 Jitizo de condenacao, em virtude do qual o autor da ayio é declarado culpado e merece ser punide, B aqui que o mal moral interfere no sofrimento, na medida em que a punicao ¢ um sofrimento infli- Rido. Tornado também no rigor de seu sentido, o sofrimento distingue-se do pecado por tragos con- ‘nfirios, A imputagio que centralize. o mal moral so- a bre um agente responsivel, o sofrimento sublinha seu cariter essencialmente sofrida: nao a fazemos chegar, ela nos afeta, Dai a surpreendente varie- dade de suas causas: adversidade de natureza fisi- ca, doengas e enfermidades do corpa e do espirito, afligéo produzida pela morte de entes queridos, perspectiva assustadora de mortalidade propria, sentimento de indignidade pessoal, etc.; em oposi- clio & acusacio que denuncia um desvio moral, 0 sofrimento caracteriza-se como puro contrario do prazer, como nfio-prazer, isto é, como diminuigSo de nossa integridade fisiea, psiquica e espiritual. A repreensio, enfim e sobretudo, o sofrimento opoe 8 lamentacao, pois se a falta (0 era) faz 0 homem culpado, o sofrimento o fax vitima: 0 que reclama a lamentagao. Sendo assim, o que é que em detrimento desta, irrecusivel polaridade convida a filosofia e a teo- logia g pensar o mal como raiz comum do pecado e do sofrimento? B, primeiramente, 0 extracrdina- rio eneadeamento destes dois fendmenos; por um lado, a punigfio é um sofrimento ff{sico e moral acrescentado ao mal moral, quer se trate do castigo corporal, de privagdo de liberdade, de vergonha, de remorso; é por isso que se chama a culpabilidade de pena, termo que ultrapassa a fratura entre o mal cometico e o mal sofrido: por outro Indo, uma causa principal de sofrimento é a violéncla exerclda sobre o homem pelo homem: em verdade, fazer mal é sempre, de modo direto ou indireto, prejudicar outrem, logo, é fazé-lo sofrer; na sua estrutura ra- cional — dialégica — o mal cometido por um en- 24 contra sua réplica no mal softido por outro; € neste ponto de interseccdio maior gue o grito da, lamen- taco é mais agudo, quando o homem se sente vitima da maldade do homem; isto testemunham tanto os Salmos de David como a andlise de Marx da alienagao resultante da redugdo do homem ao estado de mereadoria, ‘Somos conduzidos a um gran mais alto, em diregdo a um timico mistério de inigitidade, pelo pressentimento de que pecado, sofrimento e morte exprimem de modo miltiplo a condi¢Zo humana em sua unidade profunda. E certo que atingimos aqui o-ponto onde a fenomenologia do mal é destro- nada pela hermenéutica dos simbolos © dos mits, estes oferecendo a primeira mediagio lingiiistica a uma experiéncia confusa e muda. Dois indicios pertencentes 4 experiéncia do mal apontam em ditecdo a esta unidade profunda. Do lado moral, primeiramente, a incriminagao de um agente res- Ponsdvel isola no Amago tenebroso a zona mais clara da experiéncia da culpabilidade, Esta e1 bre em sua profundidade o sentimento de ter sido redusida por foreas superiores, que o mito nao teria dificuldade em exorcizar. Ista feito, 0 mite sé fark exprimir a sentimento de pertencer a uma histérla do mal, sempre j4 existente para cada um, O efelto mais visivel desta estranha experiéncia de passi- vidade, no cerne mesmo do agit mal, é que-o homem se sente vitima ao mesmo tempo em que ele é culpa- do. A mesma confusio se processa na fronteira entre culpada ¢ vitima, observada partindo de cutro pélo. Se a punigéo é um sofrimento reputado ¢ merecido, quem gabe se todo o sofrimento niio é de 2s

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