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Revista de Economia Politica, vol. 14, n° 2 (54), abril-junho/94 pesquisadores daeconomia brasileira, Maria da Conceigdo Tavares & uma das fundadoras da Revista de Economia Politica. Sua contribuigo para a compreensio da economia brasileirac latino-americana ede suainsergao ‘na economia mundial & fundamental. Desde jutho de 1993 ela vem publicando artigos aos domingos, na Folhades. Paulo, Fizemos uma selegao dessesartigos, organizamosportemas, ‘comegando pelos assuntos internacionais,easestamos publicando como documento, partir da convicgio de que esses artigos precisam ficar mais facilmente disponiveis para os Artigos de Maria da Conceicao Tavares TRISTES MEMORIAS DO PACTO INFLACIONARIO O problema fiscal que sempre obcecou ‘0s economistas de todos os matizes foi equa- cionado pelo professor Bulhdes, com o auxilio do fiscalista Gerson Augusto da Silva, dando- Ihe uma resposta satisfatdria, entre 1964/1968. fato histérico, porém, é que apesar da com- peténcia e do poder politico incontrastivel da equipe econdmica, o choque fiscal ea reforma tributaria que se Ihe seguiu no acabaram com a inflagdo. Esta reduziu-se substancialmente (de 80% para 40% ao ano), em boa medida, pela politica de prefixagdo de salarios, com um redutor escandaloso entre a inflagao pro- gramada ¢ a inflagio real, que deu lugar ao primeiro grande arrocho salarial da historia econémica brasileira contemporinea. Mas, infelizmente, a politica Bulhdes- ‘Camposnao foi tZo dura com o capital, nem to ‘ortodoxa como se imagina, Ao contrario, eles adotaram 0 “enfoque heterodoxo” do combate gradualista a inflagdo, pondo a equipe do FMI para correr, por no quererem aceitar os cho- ques cambial e monetério recomendados. Comegou, entio, um processo de inde- xago (correo monetéria ¢ cambial), pelo gual o valor do capital, as receitas e dividas em dolar © as receitas fiscais estavam a salvo, jo. Ai comegou a gerar-se a mente choques favoriveis de precos eram capazes de baixar a taxa de inflagao, enquanto choques adversos (por exemplo: petrdleo, tari- fas ou més saftas agricolas) levavam a taxa para cima. Os salarios e o emprego (com o fim da estabilidade) foram considerados as vari veis de ajuste permanente, Este mecanismo basico, que se mantém até hoje, para resolver 0 “conflito distributivo” a favor do capital, ndo tem resultado noutra coisa ando serno empobrecimento regular dos assalariados de base, dos trabalhadores sem carteira e dos funcionérios pablicos da admi- nistragdo direta (aquela que deveria servir 0 povo). A partir de 1964, a politica salarial nunca mais teve uma solugao satisfatéria, Passamos a viver permanentemente numa cco- nomia de alta inflagio ¢ baixos salérios e com rendimentos da ctipula da sociedade escanda- losamente altos. Mas hd um problema que o dr. Bulhdes nio previu ao introduzir a corregdo monetiria ecambial e contra o qual acabou lutando, em i, até o fim de seus dias: trata-se da fami- gerada “ciranda financeira”, que permite aos agentes liquidos (pablicos ¢ privados) abrir mio do dinheiro comum ¢ adotar o dinheiro indexado, 4 custa do Tesouro Nacional. A historia & longa © comegou na gestio do ministro Delfim Netto, que iniciou o proces- so de endividamento externo usando os titu- los da divida piblica, com corregio moneté- riae juros sob controle, para regularomercado bancério, em face de um volume de crédito interno alto, Mas a “ciranda” comegou para valer na gestio do ministro Mario Simonsen, que pos em marcha batida e de uma forma peculiar (0 refinanciamento compensatério) 0 nosso fa- moso over, lastreado em titulos da divida plblica, com juros altos, sem riscos € com liquidez garantida. Desde ai soldou-se de vez a promiscuidade entre os dealers do Tesouro € 0 Banco Central, que se mantém até hoje com os breves entreveros do Plano Cruzado e do Plano Collor. Os titulos da divida piblica federal fo- ram emitidos entdo, como no ano passado, nao por razes estritamente fiscais, mas para dar garantia monetdria e cambial, capaz de atrair capital financeiro intemacional barato para substituir 0 crédito interno e formar reservas intemacionais, caras ¢ mal remuneradas. O resultado conhecido, masnem por issoapren- dido, divida com juros altos torna-se um pesa- delo, que se acumuula em bola de neve, ¢ faz de qualquer ajuste fiscal uma miragem. Depois da crise da divida externa, o over ¢ 0s mereados financeiros niio fizeram seniio “sofisticar-se”, Em periodos de crise fiscal ou cambial agudos, o mercado cobra uma senho- riagem financeira cada vez maior, que termina. arrebentando com as finangas piblicas. Para tentar manter as reservas interna- cionais necessirias a credibilidade do Banco Central, este, em sua impoténcia para regular a moeda indexada, que substitui a velha que ninguém mais quer, apela sempre para um tranco na taxa de juros ¢ uma intervengio pesada no mercado de cimbio (acaba de fazé lo, de novo, esta semana). Como 0 Banco Central termina em geral sancionando as ex- pectativas do mercado financeiro, a ciranda continua ea politica monetaria tomna-se inope- ante para combater a inflagao. Se eu soubesse 0 que significa hoje um “Banco Central independente”, seria tentada a pedir as autoridades do nosso pais que adotassem essa panacéia, to cara a ideologia liberal, mas to pouco praticada pelos propri- 0s “liberais" no poder durante tantos anos. O objetivo de todos nés (ortodoxos ¢ heterodo- xos), como 0 do grosso da sociedade é, ou deveria ser, um orgamento fiscal e uma politi- camonetéria ecrediticia potentes. Infelizmen- te, desde a desregulagio cambial e financeira da década de 80 ninguém sabe que bicho é um Banco Central independente, se um dinossau- ro ou um unicérnio. Neste sentido, a iltima tentagiio, com a qual termino minhas tristes memérias, é a de pedir a extingdo radical da ciranda financeira (enioocoice de mula collorido). Minha pobre razio critica, no entanto, obriga-me a pergun- tar, sem encontrar respostas: como funciona- ria 0 capitalismo brasileiro sem sua dose di- ria de cocaina? Agiientaria um mercado financeiro “mais primitive”? A esperanga é a iltima que morre. J4 minha meméria, escaldada de tantas derrotas (inclusive a dos ilustres autores da corregao monetiria e cambial), obriga-me a usar a sabedoria popular do Garrincha, per- guntando ao técnico, que expunha suas teo- rias, nas vésperas de um jogo decisivo: “O sr. j combinou com 0 técnico adversério?” Aparentemente, nosso técnico tem ad- versarios demais, j4 que os sécios da infla- cio so muitos. Para piorar a situacdo, entre os arbitros do momento encontram-se alguns membros do Poder Judiciario, visi velmente tomando partido a favor do time adversario. Assim fica dificil ganhar 0 jogo! Mas ha que tentar chegar até o fim da partida sem terminar as caneladas ¢ sem escolher um novo técnico, as manias prefe- ridas da torcida brasileira. (25/7/93) AVIDA E A MORTE DA MOEDA BRASILEIRA Esta semana de tantas mortes anuncia- das, numa sociedade supostamente sem ilu- 1¢s, por quem os sinos dobram todos os dias ‘mas raramente sto ouvidos na luta surda pela sobrevivéncia, terminou (mais uma vez) com © nascimento de uma nova moeda, Para que permaneca a ilusio monetaria (0 fetiche dos fetiches) a nossa moeda “podre” foi batizada de real. No posso, nem quero fazer ironia, devo cumprir minha tarefa e chamara atengio para outras ilusdes € realidades ligadas és “moedas boas”. Trata-se das que resistem melhor a inflagdo, 0 que os cidadios de pri- meira classe, ¢ mesmo de classes médias assalariadas, usam nas suas contas bancérias: 133 ‘as moedas da ciranda financeira, cujos agentes produzem dinheiro novo todos os dias, conver- tendo a moeda ma (agora com menos zeros para facilitar os cdleulos) em moeda boa. Os agentes financeiros desta maquina especial de fazer dinheiro nao tém ilusio monetiria em moeda local, correm eventual- mente para outras moedas (délar ou ouro em particular), mas tém-se mantido figis sua moeda preferida, a divida publica indexada. Quando ha desconfianga sobre a taxa de infla- 40 futura, que eles mesmos projetam e anun- ciam, fazem pagar mais caro ao governo os servigos prestados por serem guardides da verdadeira moeda “real”, Mas ainda nao pas- saram definitivamente para o délar, como nossos vizinhos, talvez porque isso diminuiria ‘onimero de clientes ea taxa de arbitragem do jogo. Mas quem ganha com este jogo? Sé os bancos? Nao, estes sio apenas os guardifies da ivida piblica indexada, do Tesouro Nacio- nal, a protego que dio aos seus clientes. O lucro global ¢ dividido por muita gente, mas sobretudo pelos que tém poder de fogo, as grandes empresas, que, tendo reservas liqui- das aqui eno exterior, alimentam a ciranda em todas as moedas possiveis, agora preferencial- mente em dolar, ¢ ganham margens financei- ras adicionais as obtidas com a formagio “livre” de pregos. Ora, direis, mas o Banco Central sé paga juros altos porque tem de financiar 0 Tesouro, que tem um déficit fiscal alto! Isto nao é verdade, Depois do famigerado plano Color, 0 déficit fiscal efetivo nao foi alto (foi zero,em. média durante cerea de trés anos e nem por isso a inflagao caiu!): © que piorou foi o problema orgamentdrio e fiscal, para atender is obrigagdes minimas do Estado. O Banco Central pagou juros altos por varias razdes, entre as quais a de atrair capitais externos e comprar reservas em délares. Mas varios eco- nomistas ainda mantém a sua crenga “histéri- ca” de que juros altos ajudam a enxugar a liquidez (em qual moeda?) ¢ a combater a inflagdo! A emissio de cruzeiros (a moeda podre, que ninguém quer) é minima como porcentagem da renda nacional (cerca de 1%) e ndo existe como riqueza, razio pela qual 0 “imposto” inflaciondrio cobrado diretamente pelo governo vai desaparecendo. Para todos os credores relevantes do Estado, em particular 05 bancos ¢ seus clientes, a emissio é em divida publica. Esta por sua vez cresce com 0 proprio giro (corregdo monetiria ¢ juros al- 134 tos), realimenta 0 déficit fiscal potencial ¢ permite cobrar do Tesouro uma senhoriagem financeira crescente, em que os bancos se substituem ao Estado como guardities das maoedas boas. As elites econémicas cobram “o imposto inflacionario” apropriando-se de 16% da renda nacional, s6 por conta de juros ¢ nao querem pagar a0 Estado impostos devidos Jegalmente: Os economistas ligados a ciranda vem recomendando, para facilitar 0 jogo do “mer- cado”, liberdade cambial e de movimento de capitais, um jogo que nem os Bancos Centrais curopeus agiientam. E a famosa marca da insensatez! Afinal para que servem, aos agentes privados, as entradas de capitais externos financeiros? Para investir produtivamente ou para financiar a produgi0? Nao, ou quase nunca, servem para especular em bolsa ganhar dinheiro na ciranda financeira. Se a taxa de juros baixasse muito 0 negécio da “arbitragem bancaria” nio seria tio rentavel. Quantos so os personagens “oficiais” que participam do jogo? Dificil saber. Oficialmen- te, além dos bancos, mais de 500 empresas brasileiras tém filiais no exterior, ¢ 17 mil multinacionais operam aqui e 14 fora. Os ban- cos, escaldados com as crises anteriores da divida extema e interna, s6 querem tomar ¢ bancar operagdes em délar com um Agio que nem nossos eredores intemacionais se atre- vem a cobrar do governo. ‘Na semana retrasada, depois que a in- flagdo subiu mais uns pontos (por conta de um reajuste salarial que ainda estava em discus- do), o Banco Central fez uma intervengao no mercado para tentar baixar a taxa de juros ¢ ‘garantir as posigdes liquidas em délares dos bancos e langou titulos com 0 risco cambial por conta do Tesouro, a uma taxa média de 16% real em dolar. Esta é a taxa minima que os bancos dizem poder suportar, quando a taxa nominal de juros para aplicagdes Id fora oscila em tomo de 4% a 6% (isto é, de zero a 2% real). Este prémio “sem risco” & dividido entre 0s nossos aplicadores cosmopolitas ¢ os bancos, e foge completamente aos padres praticados em qualquer parte do mundo “oci: dental” (incluindo a China!), com raras e desonrosas excegdes. Por que 0 Banco Central tolera esta chantagem? Porque omercado financeiro ame- aga nioo rolar a divida e mandar de “volta” os délares. Dada a mudanga de circunstincias

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