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Il Cardter e Natureza do Sistema Colonial Portugués 7. O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial A Histéria do Brasil, nos trés primeiros séculos, est& in- timamente ligada 4 da expansdo comercial e colonial euro- péia na época moderna, Parte integrante do império ultra- marino portugués, o Brasil-colénia refletiu, em todo o largo perfodo da sua formagao colonial, os problemas e os meca- nismos de conjunto que agitaram a politica imperial lusitana. Por outro lado, a histéria da expansao ultramarina e da ex- ploragao colonial portuguesa se desenrola no amplo quadro da competigao entre as varias poténcias, em busca do equi- librio europeu; desta forma, 6 na histéria do sistema geral de colonizacao européia moderna que devemos procurar 0 esquema de determinacdes dentro do qual se processou a organizacdo da vida econdmica e social do Brasil na primeira fase de sua histéria, e se encaminharam os problemas polf- ticos de que esta regido foi o teatro, Procuraremos sinteti- zar as linhas mestras do sistema colonial da época mercan- tilista, tentando marcar a posicao do Brasil nesse contexto. A atividade colonizadora dos povos europeus na época moderna, inaugurada com a ocupagéo e utilizacio das ilhas atlanticas, e logo desenvolvida em larga escala com o po- voamento e valorizagio econémica da América, distingue-se da empresa de explorago comercial que desde o século XV j& vinham realizando os portugueses nos numerosos entre- postos do litoral atlantico-africano e no mundo indiano. Efe- tivamente, a empresa colonial é mais complexa, envolyendo 26 CARATER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUSS povoamento europeu, organizacéo de uma economia comple- mentar voltada para o mercado metropolitano. Em outras palavras, pode-se dizer que nos entrepostos africanos e asid- ticos a atividade econdmica dos europeus (pelo menos nesta primeira fase) se circunscreve nos limites circulagdo das mercadorias; a colonizagao promoveré a intervengao direta dos empresdrios europeus no émbito da produgéo. Contudo, se é possivel e mesmo Util estabelecer a distingao, cumpre acrescentar logo em seguida que, no processo histérico con- creto as duas formas nao sao sucessivas, mas coexistentes; e mais, 0 carater de exploragio comercial nao é abandonado pela empresa ultramarina européia, quando ela se desdobra na atividade mais complexa da colonizagio. Pelo contrario, esse cardter de exploragéo mercantil marca profundamente © tipo de vida econémica que se organizar4 nas dreas co- loniais. A colonizagio da época moderna se apresenta, pois, em primeiro lugar, como um desdobramento da expansaio marftimo-comercial européia que assinala a abertura dos Tempos Modernos [...] Como desdobramento da expansio comercial, a coloniza- g@o se insere no processo de superagdo das barreiras que se antepuseram, no fim da Idade Média, ao desenvolvimento da economia mercaniil, e ao fortalecimento das camadas urbanas e burguesas. Com efeito, o renascimento do comércio, vigo- rosamente consolidado a partir do século XI, intensificara o- ritmo das atividades econémicas no curso de toda a segunda Idade Média; entretanto, no final do periodo, sobretudo a partir do século XIV, uma série de fatores internos e externos poem em xeque a possibilidade de se prosseguir na linha de desenvolvimento econdmico, desencadeando um conjunto de tensdes, através das quais se criam condigées, ao mesmo tem- po para as mudangas na organizagio politica européia e para a abertura de novas rotas e conquistas de maiores merca- dos [...] Devemos reter aqui apenas os elementos indispensa- veis para a compreensao da histéria do sistema colonial, orga- nizado em fungao desse movimento. Para tanto, cumpre des- tacar a conexdo que vincula os dois processos paralelos de expansdo mercantil e a formagdo de Estados de tipo moderno. Realmente, a abertura de novas rotas, a fim de superar os en- traves derivados do monopélio das importagGes orientais pelos CARATER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUES 27 venezianos e mugulmanos e a escassez do metal nobre, im- plicavam em dificuldades técnicas (navegagio do Mar Ocea- no) e econémicas (0 alto custo de investimentos, o grau muito elevado de risco da empresa), 0 que exigia larga mobilizagao de recursos; as formas de organizagio empresarial entdo exis- tentes, por seu turno, dado seu cardter embriondrio, reve- lavam-se incapazes de propiciar a acumulagio de meios in- dispensdveis ao empreendimento. Desta forma, o Estado centralizado, capaz de mobilizar recursos em escala nacional, tornou-se um pré-requisito 4 expansio ultramarina; por outro lado, desencadeados os mecanismos de exploragio comercial e colonial do ultramar, fortalece-se reversivamente o Estado colonizador. Em outras palavras, a expansdo mar{tima, comer- cial e colonial, postulando um certo grau de centralizacio do poder para tornar-se realiz4vel, constitui-se, por seu turno, em fator essencial do poder do Estado metropolitano. Temos assim os dois elementos essenciais 4 compreensio do modo de organizagio e dos mecanismos de funcionamento do antigo Sistema Colonial: como instrugao de expansio da economia mercantil européia, em face das condigdes desta nos fins da Idade Média e infcio da Epoca Moderna, toda atividade econémica colonial se orientara segundo os inte- reses da burguesia comercial da Europa; como resultado do esforgo econédmico coordenado pelos novos Estados modernos, as colonias se constituem em instrumento de poder das res- pectivas metrépoles. Na medida em que os velhos reinos me- dievais se organizam em Estados do tipo moderno, unificados e centralizados, vio, uns apés outros abrindo caminho no ultramar e participando da exploracao colonial: Portugal, Espanha, Paises-Baixos, Franga, Inglaterra, do século XV ao XVII realizam sucessivamente a transigéo para a forma mo- derna de Estado, e se langam & elaboragao de seus respecti- vos impérios coloniais. Paralelamente, agudizam-se as tensdes politicas entre as varias poténcias, e os problemas tradicionais da velha Europa se complicam com novos atritos pela partilha do mundo colonial; 0 equilfbrio europeu, quimera constante da diplomacia na Epoca Modema, torna-se cada vez mais dificil, enquanto se sucedem as hegemonias coloniais ou con- tinentais. E emoldurada no complicado quadro dessas tensdes que se desenrola a histéria da colonizagio e do sistema colonial [...] 28 cCARATER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUES Para se completar o quadro falta porém um elemento e essen- cial. Na medida em que a colonizago se constituia num dos elementos, quic4 0 mais importante, no Pprocesso de fortale- cimento dos Estados modernos e de superagao das limitagSes ao desenvolvimento da economia capitalista européia, a “Wiea colon seguida-pelas poteneee qe eee ee do juntamente com o préprio movimento colonizador, passa a integrar um esquema mais amplo de politica econdmica, que teoriza e coordena a acio estatal na época moderna: @ politica mercantilista, Efetivamente, a expansio da econo- mia de mercado para assumir o dominio da vida econémica européia, esbarrava com uma série de ébices institucionais legados pelo feudalismo; ao mesmo tempo, como vimos,. o _ Brau de desenvolvimento espontaneo da economia mercantil nao a tinha capacitado para ultrapassar os limites geogrAficos em que até entao se vinculava 0 comércio europeu. A emer- séo dos Estados do tipo moderno rompendo essas barreiras, cria_condigdes de enriquecimento da burguesia mercantil e seu fortalecimento face 4s demais “ordens” da sociedade euro- péia. A politica econémica do mercantilismo ataca simulta- neamente todas as frentes, preconizando a abolic&o das adua- nas internas, tributagao em escala nacional, unidade de pesos e medidas, politica tarifaria protecionista, balanga favordvel com conseqiiente ingresso do bulhao, colonias para complementar @ economia metropolitana. A politica mercantilista, conforme a classica andlise de Heckscher, visava a unificagdo e ao poder do Estado. O sistema de colonizacéo que a politica econdmica mer- cantilista visa desenvolver tem em mira os mesmos fins mais gerais do mercantilismo e a eles se subordina. Por isso, a primeira preocupagéo dos Estados Colonizadores ser de resguardar a drea de seu império colonial face as demais poténcias; a administragio se faré a partir da metrérole, € a preocupagao fiscal dominaré todo o mecanismo adminis- trativo. Mas a medula do sistema, seu elemento definidor, reside no monopélio do comércio colonial. Em torno da pre- servagao desse privilégio, assumido inteiramente pelo Estado, ou reservado a classe mercantil da metrépole ou parte dela, é que gira toda a politica do sistema colonial. E aqui reapa- rece o cardter de exploragio mercantil, que a colonizacio CARATER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PoRTuGUfs 29 incorporou da expansio comercial, da qual foi um desdo- bramento. O monopélio do comércio das colonias pela metrépole define 0 sistema colonial porque é através dele que as co- -lonias preenchem a sua fungdo histérica, isto 6, respondem aos estimulos que Ihes deram origem que formam a sua ra- “zao de ser, enfim, que lhes dao sentido. E realmente, res loniais, a burguesia mercantil metropolitana pode forgar a baixa dos seus pregos até o minimo além do qual se tor- naria antiecondmica a produgo; a revenda, na metrépole ou alhures a prego de mercado, cria uma margem de lucros de monopélio apropriada pelos mercadores intermediarios: se yendido no préprio mercado consumidor metropolitano os produtos coloniais, transferem-se rendas da massa da popu- lagdo metropolitana (bem como dos produtores coloniais) para a burguesia mercantil; se vendidos em outros paises trata-se de ingresso externo, apropriado pelos mercadores metropolitanos. Igualmente, adquirindo a prego de mercado, na prépria metrépole ou no mercado europeu, os produtos de consumo colonial (produtos manufaturados sobretudo), @ revendendo-os na colonia a precos monopolistas, 0 grupo privilegiado se apropria mais uma vez de lucros extraordina- trios, Num e noutro sentido uma parte significativa da massa de renda real gerada pela produgio da colonia é transferida pelo sistema de colonizacio para a metrépole e apropriada pela burguesia mercantil; essa transferéncia corresponde- as necessidades histéricas de expansiéo da economia capitalista de mercado na etapa de sua formagio. Ao mesmo tempo, garantindo o funcionamento do sistema, face as demais po- téncias, e diante dos produtores coloniais e mesmo das de» mais camadas da populagdo metropolitana, o Estado realiza a politica burguesa, e simultaneamente se fortalece, abrindo novas fontes de tributagéo. Estado centralizado e sistema ‘colonial conjugam-se pois para acelerar a acumulagiio de capital comercial pela burguesia mercantil européia. Novars, Fernando A. In: Brasil em Perspectiva (org. Carlos G. Bota). Difusio Européia do Livro, Sio Paulo, 1971, pp. 47—52.

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