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Para Wallersteis, a expansão global desse sistema mundo moderno está ligada em suas
origens ao "descobrimento" da América e sua colonização, e a instauração de um
conjunto de instituições, relações de poder e formas de pensar que legitimam o domínio
eurocentrado sobre o planeta. A instituição desse sistema e suas lógicas de poder se
expressa na instauração de uma hierarquia interestatal que "define" lugares desiguais
para as sociedades do planeta, sendo as sociedades europeias as que se localizam no
topo da pirâmide. De maneira complementar, na América, tal hierarquia se expressa ao
interior das sociedades colonizadas, como sistema desigual de localização nas relações
de poder entre populações (brancos, mestiços, índios, negros).
Para Wallerstein, a expansão global deste sistema mundo moderno la expansión global
de este sistema mundo moderno está ligada en sus orígenes al ‘descubrimiento’ de
América y su colonización, y la instauración de un conjunto de instituciones, relaciones
de poder y formas de pensar, que legitiman el dominio eurocentrado sobre el planeta. La
institución de este sistema y sus lógicas de poder, se expresa en la instauración de una
jerarquía interestatal que ‘define’ lugares desiguales para las sociedades del planeta,
siendo las sociedades europeas las que se ubican en la cúspide de la pirámide. De
manera complementaria, en América, dicha jerarquía se expresa al interior de las
sociedades colonizadas, como sistema desigual de ubicación en las relaciones de poder
entre poblaciones (blancos, mestizos, indios, negros).
Em primeiro lugar, no artigo mencionado os autores nos propõem que a América "foi o
ato constitutivo do moderno sistema mundial". A agregam: "Uma economia mundo
capitalista não teria acontecido sem a América" (1992, p.583). A americanidade, nos
dizem, "foi o levantamento de um gigantesco escudo ideológico para o moderno sistema
mundial. Estabeleceu uma série de instituições e maneiras de ver o mundo que
sustentavam o sistema, e inventou tudo isso a partir do receptáculo americano" (1992, p.
586). As características da americanidade são quatro, uma das quais é a colonialidade;
as outras são: a etnicidade, o racismo e a própria ideia de novidade (1992, p.584).
Wallerstein e Quijano parecem coincidir aqui com Dussel quanto ao papel da América
como condição de partida ou condição de possibilidade para um processo de
consequências globais. No que diz respeito a qual seria tal processo, para haver
diferenças. Para os primeiros, a América é o ato constitutivo de um sistema mundo
capitalista; para Dussel, a América marca o primeiro momento da modernidade. Para
Mignolo é "a origem".
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Essas reflexões são necessárias para entender os posteriores usos que se dão no
pensamento decolonial sobre o sistema mundo moderno, modernidade, colonialidade e
colonialidade do poder. Ao que parece, o que acontece em elaborações posteriores é que
se tomam a colonialidade do poder de Quijano e a modernidade de Dussel e, a partir daí,
se elabora a noção de modernidade/colonialidade (como em Mignolo).
Para autores como Mignolo e Walsh, por exemplo, a colonialidade adquire sentido de
uma maneira distinta ao que propõe Quijano, ainda que tomando uma parte de sua
argumentação. Retomam de Quijano o argumento de que o descobrimento da América
dá lugar à imposição de um sistema hierárquico de classificação de populações,
articulado sobre a ideia de raça, mas "esquecem" com frequência as formas de controle
sobre o trabalho e seus produtos, que é outro dos elementos chave da análise de
Quijano. Além disso, esses autores tendem a apontar ao sujeitos racializados um lugar
de privilégio político no projeto decolonial/ algo que Quijano não parece compartilhar, a
julgar por sua teoria da classificação social que veremos ao final desse texto.
É inegável que a obra de Aníbal Quijano exerceu uma notória influência no pensamento
decolonial, tal como pudemos constatar na apresentação do projeto de
modernidade/colonialidade na primeira sessão, no trabalho de Mignolo da sessão
anterior e o veremos mais adiante na obra de outros autores vinculados ao projeto.
Para Mignolo, "o dispositivo ou a força motriz que constituiu, transformou e continua
reproduzindo a diferença colonial e a diferença imperial se chamara, seguindo a
proposta de Aníbal Quijano, a colonialidade do poder" (Mignolo, 2003, p.36).
Um elemento que talvez seja importante e que nos parece chamativo no texto de
Quijano é uma breve passagem na qual ele se refere à "revolta intelectual" contra o
eurocentrismo, na qual diz: "Quando se trata do poder, é sempre desde as margens que
pode ser melhor observado, e mais ainda, porque entra em questão a totalidade do
campo de relações e de sentidos que constituem tal poder" (Quijano 2000, p.344).
Parece haver ali uma ideia próxima a do pensamento de fronteira ou fronteiriço
(Mignolo).
Quijano propõe um esquema de análise do poder como rede de relações sociais (de
exploração/dominação/conflito), que são articuladas na disputa por quatro âmbitos da
existência social.
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"Tal como o conhecemos historicamente, na escala societal o poder é um
espaço e uma malha de relações sociais de exploração/dominação/conflito
articuladas, basicamente, em função e em torno da disputa pelo controle dos
seguintes âmbitos de existência social: (1) o trabalho e seus produtos; (2)
como dependência do anterior, a "natureza" e seus recursos de produção; (3)
o sexo, seus produtos e a reprodução da espécie; (4) a subjetividade e seus
produtos, materiais e intersubjetivos, incluído o conhecimento; (5) a
autoridade e seus instrumentos, em particular de coerção, para assegurar a
reprodução desse padrão de relações sociais e regular seus câmbios"
(Quijano, 2000, p.345).
Essa concepção é chave para entender as formas em que estabelece o padrão de poder
capitalista. Quijano critica e busca transcender as visões do poder características do
liberalismo e do marxismo, as quais assinala como incapazes de compreender os
diferentes âmbitos em que estes operam, ao estarem marcados por sua visão mecânica
da sociedade (seja sistêmica ou orgânica), e seu a-historicismo. Se para o liberalismo as
relações entre os diferentes âmbitos de são em um plano horizontal em que o poder está
ausente, e para o materialismo histórico são relações hierárquicas em um plano vertical,
em que um dos âmbitos determina os demais, para Quijano, é necessário entender o
poder em sua heterogeneidade histórico-estrutural.
Uma concepção do poder como rede de relações tem múltiplas implicações, entre elas
uma que assinala Mignolo, e é que:
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Dali surgem uma série de desafios interessantes em relação às propostas que se
construam desde a perspectiva do pensamento decolonial quanto aos focos e estratégias
de uma luta por construir alternativas frente ao padrão de poder imperante. Em termos
do próprio Quijano:
Quijano elabora uma genealogia da noção de classe, mostrando sua origem lugada à
noção de classe resultado dos estudos da natureza do século XVIII; e chama a atenção
sobre a impronta cognoscitiva dessa origem naturalista nas análises sociais construídas
desde a perspectiva eurocêntrica. Em tais análises, se observa como as classes sociais
são pensadas como categorias dadas, e não como construções sociais históricas, produto
das disputas pelo controle dos diversos âmbitos da vida social. Isto é, que se lhes
naturaliza, e de esta maneira aparecem como inquestionáveis, se lhes apresenta como
fatos dados e não como construções históricas; pior ainda, ao aparecer como "naturais",
deixam de lado e ocultam o problema do poder. "Mas com a questão das classes sociais,
o que realmente está em jogo e esteve desde o começo no propósito daqueles que
introduziram a ideia é algo radicalmente distinto: a questão do poder na sociedade"
(Quijano, 2000, p.367).
Não obstante, a noção de classe social no materialismo histórico também deve ser
problematizada. Quijano chama a atenção sobre seu reducionismo, que é produto de
uma análise estruturada sobre um único âmbito do poder: o do controle sobre o trabalho
e seus recursos e produtos. Além disso, de uma visão linear (evolutiva) do tempo na
qual a Europa se instala como ponto de chegada.
Na Não-Europa existiam nesse mesmo momento, século XIX, todas as formas não-
salariais de trabalho. Mas desde o saintsimonismo até hoje, no eurocentrismo são o
passado "pré-capitalista" ou "pré-industrial". Isto é, essas classes sociais são "pré-
capitalistas" ou não existem. Na Não-Europa haviam sido impostas identidades "raciais"
não-europeias ou "não-brancas". Mas elas, como a idade ou o gênero entre os
"europeus", correspondem a diferenças "naturais" de poder entre "europeus" e "não-
europeus". Na Europa estão em formação ou já estão formadas as instituições
"modernas" de autoridade: os "estados-nação modernos" e suas respectivas
"identidades". Na Não-Europa, então, só são percebidas as tribos e as etnias, o passado
"pré-moderno". Elas serão substituídas em algum futuro por Estados-Nação-como-na-
Europa. A Europa é civilizada. A Não-Europa é primitiva. O sujeito racional é Europeu.
Não-Europa é objeto de conhecimento. Como corresponde, a ciência que estudaria aos
Europeus se chamará "Sociologia". A que estudaria aos Não-Europeus se chamará
"Etnografia" (p. 366-367).
E aqui é necessário não esquecer a teoria do poder construída pelo autor, assim como o
já mencionado em relação com o problema da classe. Não se trata, pois, de atributos
"naturais", mas sim de construções sociais mediadas pelo poder.
Na mesma lógica que o poder, as classes sociais não podem ser pensadas como
entidades discretas, dadas de uma vez e para sempre. Ao contrário, são heterogêneas,
descontínuas e conflitivas, e o eixo que as articula em uma estrutura comum de poder, é
a colonialidade do poder (Quijano, 2000, p.369). De tal forma, a ideia de um sujeito
histórico ou comunidade constituído por um conjunto de pessoas que em determinado
momento ocupa certo lugar nas relações de poder, é problemático desde a análise
histórica concreta. Isto é, que um grupo de pessoas, uma população, que em
determinado momento suporta uma condição de dominação/exploração, não constitui
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por isso um sujeito histórico nem encarna necessariamente um projeto político (este é o
problema com a ideia de classe social do marxismo vulgar, e com não poucas noções de
sujeito subalterno em voga hoje em dia).
A ideia de sujeito e subjetificação proposta por Quijano não é uma ideia determinista ou
essencialista, na qual aqueles que vivem a dominação encarnam, por essa condição, o
projeto político da libertação. Para compreendê-lo melhor é necessário ter presente a
distinção entre identidade e classificação social. Para Quijano, é possível que se dêem
processos de subjetificação social, de formação de identidades, sem que isso implique
necessariamente na proposição de um conflito frente ao padrão de poder existente. Isto
é, que a formação de identidades coletivas ou individuais não pressupõe projetos
políticos alternativos ou algum tipo de questionamento ao poder. Para colocá-lo em
outros termos: a identidade não é suficiente. Nas palavras do autor, "desde nossa
perspectiva, somente os processos de subjetificação cujo sentido é o conflito em torno
da exploração/dominação, constituem um processo de classificação social". Isto é, que a
classificação social é uma relação de luta, de disputa frente ao padrão de poder,
heterogêneo, descontínuo e conflitivo do capitalismo, e não basta com a constituição de
um sujeito coletivo que se identifica em relação com um desses âmbitos da vida social;
acima de tudo se continua concebendo-se como separado dos outros âmbitos e lutas
pelo controle do poder.
Bibliografia: