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Pensamento decolonial:

teoria crítica desde a América Latina

Grupo de Estudos Elisée Reclus - América Latina

Aula 5: A colonialidade do poder

Como vimos anteriormente, colonialidade é uma das noções centrais no pensamento


decolonial. Sua elaboração está ligada ao trabalho do sociólogo peruano Aníbal
Quijano, cuja atividade intelectual esteve ligada à análise das formas que o poder
adquire no processo de expansão do capitalismo à escala global e, em particular, acerca
das formas que adquire e suas implicações na história da América Latina. Nessa seção
veremos alguns dos elementos centrais da teoria da colonialidade do poder e sua relação
com outras propostas teóricas vinculadas ao projeto de pensamento decolonial.

Na seção anterior abordamos a teoria do sistema mundo moderno, cujos principais


aportes se devem ao trabalho de Inmanuel Wallerstein. E vimos como tal teoria é
fundamental para compreender os enfoques do pensamento decoloníal na análise da
modernidade. Vários elementos são cruciais no aporta da teoria do sistema mundo
moderno. Na seção anterior mencionamos três: a definição do sistema-mundo moderno
como unidade básica para a compreensão do social; a introdução de uma perspectiva de
longa duração em tal análise; e a perspectiva centrada em um sistema mundo em
particular, o da economia-mundo capitalista.

Para Wallersteis, a expansão global desse sistema mundo moderno está ligada em suas
origens ao "descobrimento" da América e sua colonização, e a instauração de um
conjunto de instituições, relações de poder e formas de pensar que legitimam o domínio
eurocentrado sobre o planeta. A instituição desse sistema e suas lógicas de poder se
expressa na instauração de uma hierarquia interestatal que "define" lugares desiguais
para as sociedades do planeta, sendo as sociedades europeias as que se localizam no
topo da pirâmide. De maneira complementar, na América, tal hierarquia se expressa ao
interior das sociedades colonizadas, como sistema desigual de localização nas relações
de poder entre populações (brancos, mestiços, índios, negros).

Para Wallerstein, a expansão global deste sistema mundo moderno la expansión global
de este sistema mundo moderno está ligada en sus orígenes al ‘descubrimiento’ de
América y su colonización, y la instauración de un conjunto de instituciones, relaciones
de poder y formas de pensar, que legitiman el dominio eurocentrado sobre el planeta. La
institución de este sistema y sus lógicas de poder, se expresa en la instauración de una
jerarquía interestatal que ‘define’ lugares desiguales para las sociedades del planeta,
siendo las sociedades europeas las que se ubican en la cúspide de la pirámide. De
manera complementaria, en América, dicha jerarquía se expresa al interior de las
sociedades colonizadas, como sistema desigual de ubicación en las relaciones de poder
entre poblaciones (blancos, mestizos, indios, negros).

Ainda que Wallerstein introduza o conceito de colonialidade, sua elaboração é distinta


da que posteriormente farão alguns membros do programa modernidade/colonialidade.
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Vale a pena deter-nos brevemente nessas diferenças. Wallerstein introduz a noção de
colonialidade para problematizar a ideia (moderna) da igualdade entre os estados do
mundo. Ao contrário, nos diz o autor, desde seu nascimento no século XV, é evidente
que existem alguns estados com maior poder do que outros. Durante os processos de
colonização, isso parecia mais claro ao observar as diferenças entre as metrópoles e as
colônias; não obstante, uma vez terminada a colonização, permaneceu essa forma de
pensar, esse esquema mental que justifica as desigualdades entre estados no sistema
moderno mundial (como um sistema de hierarquias entre os estados e sociedades do
centro e os da periferia); isto é, a colonialidade. Uma característica fundamental da
colonialidade é que permanece, ainda que o sistema colonialista tenha culminado.

Essa elaboração é muito próxima à que propõem Wallerstein e Quijano em 1992, em um


conhecido artigo intitulado La americanidad como concepto, o América en el moderno
sistema mundial; nesse artigo encontramos uma série de ideias que nos ajudam a
compreender a maneira como se foi dando forma às análises da modernidade no
pensamento decolonial. Não obstante, é necessário definir mais precisamente que tal
elaboração não permanece imutável na obra de Quijano, tal como se pode observar nas
leituras estudadas para essa sessão. Estas últimas foram publicadas na última década
(2000, 2003) e ali Quijano elabora novas ênfases em sua proposta teórica; algo sobre o
qual voltaremos na sequência.

Em primeiro lugar, no artigo mencionado os autores nos propõem que a América "foi o
ato constitutivo do moderno sistema mundial". A agregam: "Uma economia mundo
capitalista não teria acontecido sem a América" (1992, p.583). A americanidade, nos
dizem, "foi o levantamento de um gigantesco escudo ideológico para o moderno sistema
mundial. Estabeleceu uma série de instituições e maneiras de ver o mundo que
sustentavam o sistema, e inventou tudo isso a partir do receptáculo americano" (1992, p.
586). As características da americanidade são quatro, uma das quais é a colonialidade;
as outras são: a etnicidade, o racismo e a própria ideia de novidade (1992, p.584).

Wallerstein e Quijano parecem coincidir aqui com Dussel quanto ao papel da América
como condição de partida ou condição de possibilidade para um processo de
consequências globais. No que diz respeito a qual seria tal processo, para haver
diferenças. Para os primeiros, a América é o ato constitutivo de um sistema mundo
capitalista; para Dussel, a América marca o primeiro momento da modernidade. Para
Mignolo é "a origem".

"Para Hinkelammert ou para De Sousa Santos "o descobrimento da América"


(isto é, a emergência do circuito comercial do Atlântico e com ele a afirmação do
capitalismo mercantil e a instauração do racismo e da diferença colonial) não é
fundamental como é para aqueles que nas Américas contribuem para construir um
"paradigma outro" com consciência crítica da colonialidade ou, melhor ainda, dos
fundamentos históricos (com o descobrimento da América) da
modernidade/colonialidade. Para Quijano, Dussel e outros "o descobrimento da
América", isto é, a invenção da América com todas as suas consequências) é uma
"origem" tão "origem" como é a Grécia para a história da Europa e da civilização
ocidental. "Nossa Grécia é azul, não branca: o Atlântico. E também negra, como
sugeriu Paul Gilroy ao conceituar o Atlântico negro. E, finalmente, marrom, o
marrom dos habitantes originais" (Mignolo, 2003, p.57).

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Essas reflexões são necessárias para entender os posteriores usos que se dão no
pensamento decolonial sobre o sistema mundo moderno, modernidade, colonialidade e
colonialidade do poder. Ao que parece, o que acontece em elaborações posteriores é que
se tomam a colonialidade do poder de Quijano e a modernidade de Dussel e, a partir daí,
se elabora a noção de modernidade/colonialidade (como em Mignolo).

Para autores como Mignolo e Walsh, por exemplo, a colonialidade adquire sentido de
uma maneira distinta ao que propõe Quijano, ainda que tomando uma parte de sua
argumentação. Retomam de Quijano o argumento de que o descobrimento da América
dá lugar à imposição de um sistema hierárquico de classificação de populações,
articulado sobre a ideia de raça, mas "esquecem" com frequência as formas de controle
sobre o trabalho e seus produtos, que é outro dos elementos chave da análise de
Quijano. Além disso, esses autores tendem a apontar ao sujeitos racializados um lugar
de privilégio político no projeto decolonial/ algo que Quijano não parece compartilhar, a
julgar por sua teoria da classificação social que veremos ao final desse texto.

De todos esses elementos, é necessário ir destacando aqueles que adquirem certa


permanência nas análises posteriores do projeto. É óbvio que a perspectiva de longa
duração foi um aspecto de grande importância. Uma análise enfocada nas origens da
expansão planetária do sistema capitalista, a modernidade, ou a
modernidade/colonialidade (segundo a ênfase em cada caso) mostra as possíveis
influências da teoria do sistema mundo moderno. O poder e suas formas de operação e
legitimação, constitui um segundo traço fundamental. As maneiras de entender a
colonialidade, com seus diferentes matizes, nos chamam a atenção sobre os âmbitos e
mecanismo em que po poder se re-produz e legitima (formas de controle de populações,
raça, conhecimentos - eurocentrismo).

Por último, a perspectiva sistemática da análise é chave para compreender as


implicações e interações entre múltiplos elementos que conformam a totalidade
(heterogêna). Não se trata de análises intra-estatais.

A colonialidade do poder e o pensamento decolonial

É inegável que a obra de Aníbal Quijano exerceu uma notória influência no pensamento
decolonial, tal como pudemos constatar na apresentação do projeto de
modernidade/colonialidade na primeira sessão, no trabalho de Mignolo da sessão
anterior e o veremos mais adiante na obra de outros autores vinculados ao projeto.

No pensamento decolonial, o aporte da obra de Quijano é reconhecido principalmente


por meio da noção de colonialidade do poder, que o autor desenvolve ao longo de sua
produção acadêmica e que encontramos nos textos estudados para esta sessão. Na
continuação, ressaltaremos alguns elementos dessa proposta que podem ser de especial
relevância para nossas análises. Não é demais colocar que a proposta Quijano tem sido
objeto de múltiplas leituras e usos, assim que tentaremos centrar-nos nos argumentos do
autor.

Comecemos dizendo que para o pensamento decolonial a modernidade é um assunto


essencial. Isto é, que para aqueles que participam desse projeto, entender a modernidade
(junto com a globalidade e a diferença, como assinala Escobar no texto lido em nosso
primeiro encontro), de maneiras outras, é, talvez, seu problema central. Suas perguntas
e propostas teóricas estão enfocadas na compreensão da experiência da modernidade.
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Não obstante, alguns autores como Quijano, cuja obra inicia muito tempo atrás, não
necessariamente percorreram ou compartilham essa mesma linha em suas elaborações.
Quijano elabora sua proposta da colonialidade do poder a partir da análise da expansão
do capitalismo como padrão global de poder. Isto é, sua análise parece estar mais
familiarizada com a teoria do sistema mundo moderno, com a qual manteve fortes
vínculos. Quijano trabalhou junto com Wallerstein, publicaram juntos e compartilham o
vínculo com a teoria da dependência.

A colonialidade e a modernidade operam, para Quijano, como eixos do padrão mundial


de poder capitalista, que se expande ao conjunto do planeta com a constituição da
América. Nas palavras do autor: "com a América (Latina) o capitalismo se torna
mundial, eurocentrado, e a colonialidade e a modernidade se instalam associadas como
eixos constitutivos de seus específico padrão de poder, até hoje" (Quijano, 2000, p.342).
O específico da colonialidade é o fato de que "se funda na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo (...) e opera em cada um dos planos,
âmbitos e dimensões, materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e na escala
societal" (Quijano, 2000, p.342).

Tal classificação racial/étnica, produzida com a arrancada do capitalismo à escala


mundial, vai dando forma a novas identidades societais da colonialidade (a "diferença
colonial" de Mignolo) e às geoculturais do colonialismo. Isto é, que o sistema de
classificação opera sobre as pessoas e os territórios. A modernidade é, então, um
universo particular de relações intersubjetivas de dominação, de hegemonia
eurocentrada, que funde as experiências do colonialismo e as da colonialidade com as
necessidades do capitalismo.

Para Mignolo, "o dispositivo ou a força motriz que constituiu, transformou e continua
reproduzindo a diferença colonial e a diferença imperial se chamara, seguindo a
proposta de Aníbal Quijano, a colonialidade do poder" (Mignolo, 2003, p.36).

Um elemento que talvez seja importante e que nos parece chamativo no texto de
Quijano é uma breve passagem na qual ele se refere à "revolta intelectual" contra o
eurocentrismo, na qual diz: "Quando se trata do poder, é sempre desde as margens que
pode ser melhor observado, e mais ainda, porque entra em questão a totalidade do
campo de relações e de sentidos que constituem tal poder" (Quijano 2000, p.344).
Parece haver ali uma ideia próxima a do pensamento de fronteira ou fronteiriço
(Mignolo).

A colonialidade do poder em Quijano

A noção de colonialidade proposta por Quijano está estreitamente ligada a um conjunto


de elementos que vale a pena apontar mais precisamente. Tomaremos, de momento,
dois: sua conceituação de poder e sua teoria da classificação social.

Começando pelo poder. Ressaltaremos três elementos centrais para compreender a


noção de poder desenvolvida Aníbal Quijano: a ideia de poder como rede de relações; a
noção de heterogeneidade estrutural e a idéia de totalidade.

Quijano propõe um esquema de análise do poder como rede de relações sociais (de
exploração/dominação/conflito), que são articuladas na disputa por quatro âmbitos da
existência social.
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"Tal como o conhecemos historicamente, na escala societal o poder é um
espaço e uma malha de relações sociais de exploração/dominação/conflito
articuladas, basicamente, em função e em torno da disputa pelo controle dos
seguintes âmbitos de existência social: (1) o trabalho e seus produtos; (2)
como dependência do anterior, a "natureza" e seus recursos de produção; (3)
o sexo, seus produtos e a reprodução da espécie; (4) a subjetividade e seus
produtos, materiais e intersubjetivos, incluído o conhecimento; (5) a
autoridade e seus instrumentos, em particular de coerção, para assegurar a
reprodução desse padrão de relações sociais e regular seus câmbios"
(Quijano, 2000, p.345).

Essa concepção é chave para entender as formas em que estabelece o padrão de poder
capitalista. Quijano critica e busca transcender as visões do poder características do
liberalismo e do marxismo, as quais assinala como incapazes de compreender os
diferentes âmbitos em que estes operam, ao estarem marcados por sua visão mecânica
da sociedade (seja sistêmica ou orgânica), e seu a-historicismo. Se para o liberalismo as
relações entre os diferentes âmbitos de são em um plano horizontal em que o poder está
ausente, e para o materialismo histórico são relações hierárquicas em um plano vertical,
em que um dos âmbitos determina os demais, para Quijano, é necessário entender o
poder em sua heterogeneidade histórico-estrutural.

Ali faz sentido o segundo aspecto que queremos assinalar, o da heterogeneidade


estrutural. É necessário compreender que tipo de interações se dão entre os elementos
que constituem o sistema, que não correspondem às lógicas mecânicas ou funcionais do
estruturalismo e do funcionalismo. Isto é, existe um padrão de poder que articula os
diferentes elementos que constituem a sociedade, mas dito padrão de poder não é
simples, como não o são os elementos que constituem a sociedade. "As determinações
não são, pois, nem podem ser, unilineares nem unidirecionais. E não são apenas
recíprocas. São heterogêneas, discontínuas, inconsistentes, conflitivas, como
corresponde a relações entre elementos que têm, todos e cada um, tais características"
(2000, p. 351). Mas, é necessário insistir, tais determinações não são nem estruturais
nem funcionais.

O que está em debate é a forma de entender a relação entre o todo e as partes, e a


possibilidade de decifrar as causas que permitem a existência do todo através do tempo,
apesar da heterogeneidade de suas partes. Se existe um elemento que permite entender a
permanência de uma determinada formação social através do tempo, ele é o poder; mas
não um poder em abstrato, e sim um poder operando em relações concretas. Isto é, que
não é possível compreender a forma em que existe uma determinada formação social e a
maneira em que opera o poder que a configura se não analisamos as formas históricas
em que se dão as relações de dominação/exploração/conflito que articulam as disputas
em seus diversos âmbitos, e se não se leva em conta a heterogeneidade de relações de
determinação que definem seu comportamento. Mas, ao mesmo tempo, é necessário
identificar os diversos componentes que a constituem, qual ou quais deles operam como
eixos articuladores do conjunto. Isto é, o que é o que faz com que uma estrutura
heterogênea se comporte como uma totalidade?

(...) para que uma estrutura histórico-estruturalmente heterogênea tenha o


movimento, o desenvolvimento, ou se preferimos, o comportamento de uma
totalidade histórica, não bastam tais modos de determinação recíproca e
heterogênea entre seus componentes. É indispensável que um (ou mais) entre eles
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tenha a primazia - no caso do capitalismo, o controle combinado do trabalho e da
autoridade - mas não como determinante ou base de determinações no sentido do
materialismo histórico, mas sim, estritamente, como eixos de articulação do
conjunto (2000, p.351).

A ideia de totalidade é o terceiro elemento que queremos propor em relação à noção de


Quijano sobre o poder. Como vimos, para o autor a totalidade é um campo de relações
que articula um conjunto de elementos heterogêneo, descontínuo e conflitivo. Não
obstante, a totalidade não é um ente maior que determina as partes. Mais, a totalidade é
o campo de relações em que um determinado acontecimento social pode ser explicado e
adquire sentido.

Uma totalidade histórico-social é um campo de relações sociais estruturado pela


articulação heterogênea e descontínua de diversos âmbitos de existência social, cada um
deles, por sua vez, estruturado com elementos historicamente heterogêneos,
descontínuos no tempo, conflitivos. Isso quer dizer que as partes em um campo de
relações de poder societal não são somente partes. O são no que diz respeito ao conjunto
do campo, da totalidade que este constitui. Em consequência, se movem em geral dentro
da orientação geral do conjunto. Mas não o são em sua relação separada com cada uma
das outras. E acima de tudo cada uma delas é uma unidade total em sua própria
configuração porque igualmente tem uma constituição historicamente heterogênea.
Cada elemento de uma totalidade histórica é uma particularidade e, ao mesmo tempo,
uma especificidade, inclusive, eventualmente, uma singularidade. Todos eles se movem
dentro da tendência geral do conjunto, mas têm ou podem ter uma autonomia relativa e
que pode ser, ou chegar a ser, eventualmente, conflitiva com a do conjunto. Nisso reside
também a moção do câmbio histórico-social (Quijano, 2000, p.354-355).

A ideia do câmbio histórico-social, as possibilidades de transformação da sociedade,


parece mais distante diante da complexidade das formas em que opera o poder. Não
obstante, Quijano introduz a ideia de totalidade e, com isso, coloca de manifesto a
existência do poder e a relação entre as partes que compõe dita totalidade, não para
assumir uma atitude do tipo "fim da história", mas sim para chamar a atenção sobre a
multiplicidade de âmbitos e relações em que se produzem as tramas do poder, cuja
compreensão é um passo fundamental para chegar a transformá-los.

Uma concepção do poder como rede de relações tem múltiplas implicações, entre elas
uma que assinala Mignolo, e é que:

os esforços e lutas pela emancipação/libertação implicam também a emancipação


e a libertação da exploração/dominação nos quatro âmbitos. Mais ainda, no
âmbito do trabalho, a exploração/dominação está governada pela economia
capitalista; a do gênero/sexo, pela estrutura da "sagrada família" que revela a
cumplicidade entre capitalismo, cristianismo e família burguesa. No âmbito da
autoridade, o controle e os conflitos são gerados na ordem do Estado; e quanto ao
âmbito da subjetividade, seu controle e seus conflitos se materializam na ordem
do conhecimento (Mignolo, 2003, p.50).

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Dali surgem uma série de desafios interessantes em relação às propostas que se
construam desde a perspectiva do pensamento decolonial quanto aos focos e estratégias
de uma luta por construir alternativas frente ao padrão de poder imperante. Em termos
do próprio Quijano:

Hoje, a luta contra a exploração/dominação implica, sem dúvida, em primeiro


lugar, a luta pela destruição da colonialidade do poder, não somente para terminar
com o racismo, mas sim por sua condição de eixo articulador do padrão universal
do capitalismo eurocentrado. Essa luta é parte da destruição do poder capitalista,
por ser hoje a trama viva de todas as formas históricas de exploração, dominação,
discriminação,materiais e intersubjetivas. O lugar central da "corporeidade" neste
plano leva à necessidade de pensar, de repensar, vias específicas para sua
libertação, isto é, para a libertação das gentes, individualmente e em sociedade, do
poder, de todo poder. E a experiência histórica até aqui aponta a que não há
caminho distinto que a socialização radical do poder para chegar a esse resultado.
Isso significa a devolução às próprias pessoas, de modo direto e imediato, o
controle das instâncias básicas de sua existência social: trabalho, sexo,
subjetividade, autoridade (Quijano, 2000, p.380).

Sobre a classificação social

Outro elemento central na elaboração de Quijano sobre a colonialidade do poder, é sua


teoria da classificação social. Mediante ela, o autor elabora uma forma de análise sobre
como se configura o padrão de poder capitalista como resultado das disputas pelo
controle dos âmbitos básicos da existência social. Essa teoria permite ir mais além da
teoria das classes sociais, cujo eurocentrismo lhe imprime um caráter a-histórico e
reducionista.

Quijano elabora uma genealogia da noção de classe, mostrando sua origem lugada à
noção de classe resultado dos estudos da natureza do século XVIII; e chama a atenção
sobre a impronta cognoscitiva dessa origem naturalista nas análises sociais construídas
desde a perspectiva eurocêntrica. Em tais análises, se observa como as classes sociais
são pensadas como categorias dadas, e não como construções sociais históricas, produto
das disputas pelo controle dos diversos âmbitos da vida social. Isto é, que se lhes
naturaliza, e de esta maneira aparecem como inquestionáveis, se lhes apresenta como
fatos dados e não como construções históricas; pior ainda, ao aparecer como "naturais",
deixam de lado e ocultam o problema do poder. "Mas com a questão das classes sociais,
o que realmente está em jogo e esteve desde o começo no propósito daqueles que
introduziram a ideia é algo radicalmente distinto: a questão do poder na sociedade"
(Quijano, 2000, p.367).

Não obstante, a noção de classe social no materialismo histórico também deve ser
problematizada. Quijano chama a atenção sobre seu reducionismo, que é produto de
uma análise estruturada sobre um único âmbito do poder: o do controle sobre o trabalho
e seus recursos e produtos. Além disso, de uma visão linear (evolutiva) do tempo na
qual a Europa se instala como ponto de chegada.

Aqui é conveniente recordar as operações epistêmicas que estruturam a diferença


colonial: a colonização do tempo, a colonização do espaço e a negação da
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contemporaneidade (Mignolo, 2003, p.40). Essas operações epistêmicas estão presentes
na perspectiva eurocêntrica do conhecimento, que se vê refletida na ideia das classes
sociais no momento de ser elaborada entre os séculos XVIII e XIX e que perdura até o
presente:

Na Não-Europa existiam nesse mesmo momento, século XIX, todas as formas não-
salariais de trabalho. Mas desde o saintsimonismo até hoje, no eurocentrismo são o
passado "pré-capitalista" ou "pré-industrial". Isto é, essas classes sociais são "pré-
capitalistas" ou não existem. Na Não-Europa haviam sido impostas identidades "raciais"
não-europeias ou "não-brancas". Mas elas, como a idade ou o gênero entre os
"europeus", correspondem a diferenças "naturais" de poder entre "europeus" e "não-
europeus". Na Europa estão em formação ou já estão formadas as instituições
"modernas" de autoridade: os "estados-nação modernos" e suas respectivas
"identidades". Na Não-Europa, então, só são percebidas as tribos e as etnias, o passado
"pré-moderno". Elas serão substituídas em algum futuro por Estados-Nação-como-na-
Europa. A Europa é civilizada. A Não-Europa é primitiva. O sujeito racional é Europeu.
Não-Europa é objeto de conhecimento. Como corresponde, a ciência que estudaria aos
Europeus se chamará "Sociologia". A que estudaria aos Não-Europeus se chamará
"Etnografia" (p. 366-367).

Dados seu reducionismo e sua a-historicidade, próprios do eurocentrismo em que se


produz, a teoria das classes sociais é insuficiente para compreender a história, as
condições e as determinações de uma particular distribuição das relações de poder em
uma sociedade e se requer, segundo Quijano, passar a uma teria da classificação social.
"E a classificação social se refere aos lugares e aos papéis das pessoas no controle do
trabalho, seus recursos (incluídos os da "natureza") e seus produtos; do sexo e seus
produtos; da subjetividade e de seus produtos (diante de todo o imaginário e o
conhecimento); e da autoridade, seus recursos e seus produtos (Quijano, 2000, p.368).

E aqui é necessário não esquecer a teoria do poder construída pelo autor, assim como o
já mencionado em relação com o problema da classe. Não se trata, pois, de atributos
"naturais", mas sim de construções sociais mediadas pelo poder.

Porque é essa distribuição do poder entra as pessoas de uma sociedade o que as


classifica socialmente, determina suas recíprocas relações e gera suas diferenças
sociais, já que suas características empiricamente observáveis e diferenciáveis são
resultados dessas relações de poder, seus sinais e suas pegadas. Pode-se partir
destas para um primeiro momento e um primeiro nível de apreensão das relações
de poder, mas não tem sentido fazer residir nelas a natureza de seu lugar na
sociedade. Isto é, sua classe social (Quijano, 2000, p.368).

Na mesma lógica que o poder, as classes sociais não podem ser pensadas como
entidades discretas, dadas de uma vez e para sempre. Ao contrário, são heterogêneas,
descontínuas e conflitivas, e o eixo que as articula em uma estrutura comum de poder, é
a colonialidade do poder (Quijano, 2000, p.369). De tal forma, a ideia de um sujeito
histórico ou comunidade constituído por um conjunto de pessoas que em determinado
momento ocupa certo lugar nas relações de poder, é problemático desde a análise
histórica concreta. Isto é, que um grupo de pessoas, uma população, que em
determinado momento suporta uma condição de dominação/exploração, não constitui
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por isso um sujeito histórico nem encarna necessariamente um projeto político (este é o
problema com a ideia de classe social do marxismo vulgar, e com não poucas noções de
sujeito subalterno em voga hoje em dia).

Por outro lado, não obstante, a simples negação de toda possibilidade de


subjetificação de um conjunto de pessoas, de sua constituição como sujeito
coletivo sob certas condições e durante um certo tempo, vai diretamente contra a
experiência histórica, se não admite que o que pode chamar-se "sujeito", não
somente coletivo, senão inclusive individual, está sempre constituído por
elementos heterogêneos e descontínuos e que chega a ser uma unidade somente
quando esses elementos se articulam em torno de um eixo específico, sob
condições concretas, a respeito de necessidades concretas e de modo transitório
(Quijano, 2000, p.370).

A ideia de sujeito e subjetificação proposta por Quijano não é uma ideia determinista ou
essencialista, na qual aqueles que vivem a dominação encarnam, por essa condição, o
projeto político da libertação. Para compreendê-lo melhor é necessário ter presente a
distinção entre identidade e classificação social. Para Quijano, é possível que se dêem
processos de subjetificação social, de formação de identidades, sem que isso implique
necessariamente na proposição de um conflito frente ao padrão de poder existente. Isto
é, que a formação de identidades coletivas ou individuais não pressupõe projetos
políticos alternativos ou algum tipo de questionamento ao poder. Para colocá-lo em
outros termos: a identidade não é suficiente. Nas palavras do autor, "desde nossa
perspectiva, somente os processos de subjetificação cujo sentido é o conflito em torno
da exploração/dominação, constituem um processo de classificação social". Isto é, que a
classificação social é uma relação de luta, de disputa frente ao padrão de poder,
heterogêneo, descontínuo e conflitivo do capitalismo, e não basta com a constituição de
um sujeito coletivo que se identifica em relação com um desses âmbitos da vida social;
acima de tudo se continua concebendo-se como separado dos outros âmbitos e lutas
pelo controle do poder.

Não por acaso, manter, acentuar e exasperar entre os explorados/dominados a


percepção dessas diferenciadas situações em relação ao trabalho, à raça e ao
"gênero" tem sido e é um meio extremamente eficaz dos capitalistas para manter o
controle do poder. A colonialidade do poder teve, nessa história, o papel central
(Quijano, 2000, p.372).

Bibliografia:

1 • Quijano, Aníbal. 2000. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of


World-System Research. (2): 342-386.

2 • Quijano, Aníbal. 2000. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América


Latina. Edgardo Lander (ed.), La Colonialidad del saber: Eurocentrismo y Ciencias
Sociales. Perspectivas Latinoamericanas. pp. 201-245. Caracas: CLACSO.

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