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m ó d u l o
Ana Maria Serra - Ins titut o de Terapia Cognitiva São Paulo-SP

Objetivo: aprimorar os conhecimentos de estudantes


e profissionais da Psicologia sobre a Terapia Cognitiva.
Elaboração: Ana Maria Serra, PhD.
ITC – Instituto de Terapia Cognitiva, São Paulo-SP

suicídio
int er v enção em cr ise
depr essã o
Coordenação: Claudia Stella, Psicóloga Clínica,
Doutora em Educação, Docente em Psicologia e
Editora da revista Psicologia Brasil.
Módulos: oito módulos que serão publicados em
revistas seqüenciais.

Conteúdo dos módulos:

1 Introdução à Terapia Cognitiva

2 Conceitos e preconceitos sobre Terapia Cognitiva

3 Terapia Cognitiva e Intervenção em Crise


Terapia Cognitiva e Depressão
Terapia Cognitiva e Suicídio

4 Terapia Cognitiva e Transtornos de Ansiedade


Tópicos especiais em Terapia Cognitiva aplicada aos
Transtornos de Ansiedade, TOC (Transtorno Obssessivo-
Compulsivo), Fobias, Transtorno de Pânico, TEPT (Transtorno
de Estresse Pós-Traumático), Ansiedade Associada à Saúde

5 Terapia Cognitiva e Dependência Química


Terapia Cognitiva e Transtornos Alimentares
Terapia Cognitiva nas Organizações

6 Terapia Cognitiva com Casais e Famílias


Terapia Cognitiva com Crianças e Adolescentes
Terapia Cognitiva e Prevenção de Depressão em
Crianças e Adolescentes

7 Terapia Cognitiva e Transtornos de Personalidade


Terapia Cognitiva e Esquizofrenia
Terapia Cognitiva e Transtorno Bipolar

8 Resistência em Terapia Cognitiva


Terapia Cognitiva com pacientes difíceis
A aliança terapêutica em Terapia Cognitiva
Questões relacionadas a treinamento em Terapia Cognitva
Crises estarão presentes em um momento da com que a crise será superada. Em outras palavras,
vida da maioria dos indivíduos, decorrentes de algumas situações podem significar uma crise
situações em que o limiar individual de controle para um indivíduo e não para outro, ou a mesma
e resposta a estressores internos e externos situação pode significar uma crise para um indivíduo
do indivíduo é ultrapassado. em um momento de sua vida, mas não em outro,
Uma crise se define como um estado temporário devido ao fato de que a disponibilidade de recursos
de distúrbio grave e conseqüente desorganização, para o gerenciamento de crises pode variar em
durante o qual o indivíduo se percebe incapaz de diferentes fases e contextos de vida. Há pacientes
enfrentar uma determinada situação, através da em crise que apresentam uma história pregressa
utilização dos mesmos recursos que habitualmente de recursos adequados de enfrentamento, e
utiliza para resolução de problemas. Crises têm o para os quais a crise representa uma situação
potencial de um resultado radicalmente negativo, atípica. Há outros pacientes propensos a crises,
ativando, portanto, a vulnerabilidade dos indivíduos com dificuldades de gerenciamento emocional e
envolvidos. Crises caracterizam-se por um período comportamental, e que experienciam sucessivas
em que o equilíbrio de um ou mais indivíduos é crises que periodicamente irrompem. Ambos os
perturbado, afetando, temporariamente ou não, grupos podem necessitar de ajuda profissional.
sua capacidade para perceber e gerenciar Situações críticas podem se apresentar de
situações de modo efetivo. Sob crise, diferentes formas e em diferentes contextos,
indivíduos manifestam sintomas cognitivos e individuais ou coletivas. Podem apresentar-se
comportamentais e algum grau de desorganização, relacionadas à enfermidade aguda ou crônica, do
que se refletem através de uma redução em próprio indivíduo e de outros significativos; à morte
suas habilidades e recursos para processamento de outros significativos; a conflitos e rupturas nas
de informação, enfrentamento, resolução de relações interpessoais e afetivas; a acidentes
problemas e modulação emocional. A percepção envolvendo o próprio indivíduo ou outros indivíduos
da própria situação de crise pode ser afetada, em ou grupos; a desastres naturais; a situações de
conseqüência da ativação emocional que favorece violência familiar, social e política, com violação
distorções no processamento da natureza da dos direitos civis individuais e coletivos; a abuso de
situação. Os recursos de enfrentamento podem substâncias psicoativas etc. Tais situações críticas
se tornar limitados e estratégias ineficazes de geram estresse, que se traduz em angústia e em
resolução de problemas podem ser aplicadas, um sentido aumentado de vulnerabilidade frente
muitas vezes de forma estereotipada. ao real objetivo ou subjetivo, ou ambos.
A capacidade habitual do indivíduo para a Em crise, indivíduos apresentam, segundo
flexibilidade cognitiva, necessária para o Freeman (2000), desconforto, disfunção,
gerenciamento das emoções, pode ser descontrole e desorganização. Desconforto
seriamente afetada, implicando no uso de refere-se à experiência subjetiva de angústia
estratégias compensatórias disfuncionais, como diante da percepção, real ou não, de insolubilidade
negação ou esquiva. Crises mais graves podem da situação. Disfunção refere-se à limitação dos
ainda originar estados psicóticos temporários, recursos de enfrentamento com os quais os
devido à desestruturação cognitiva e emocional indivíduos normalmente contam. Descontrole
gerada pela percepção da situação como insolúvel. refere-se à experiência, subjetiva e objetiva, de
Em uma situação de crise, os recursos comumente incapacidade em determinar ou alterar o
disponíveis podem se mostrar insuficientes; nesses curso da situação. E desorganização reflete-se
casos, os indivíduos envolvidos podem necessitar na incapacidade de formular ou ativar um plano
acessar reservas de recursos pouco usadas, específico para resolver a situação, identificando
como força e coragem, podem criar sistemas problemas, gerando objetivos e estratégias
temporários de enfrentamento, e, na maioria dos de resolução e priorizando e implementando
casos, necessitarão mobilizar os sistemas de apoio essas estratégias.
familiar e social. Situações de crise podem demandar a intervenção
Observamos diferenças inter-individuais e intra- clínica. Nesses casos, a Terapia Cognitiva pode ser
individuais com relação à natureza e à gravidade especialmente indicada, tendo em vista seu caráter
das crises, à disponibilidade de recursos que serão breve e estruturado, bem como várias outras de suas
mobilizados em seu gerenciamento, e à eficácia características aplicadas, que discutimos a seguir.
TERAPIA COGNITIVA EM terapêuticas não apenas fornece estrutura e
SITUAÇÕES DE CRISE direciona a intervenção, mas também facilita
a avaliação periódica do progresso clínico e
Os objetivos imediatos do terapeuta cognitivo, assegura que paciente e terapeuta estejam
diante de um paciente em crise, podem ser assim desenvolvendo esforços na mesma direção. O
resumidos: avaliar a natureza da situação e os aspecto didático do processo clínico em Terapia
elementos precipitadores da crise; explorar e Cognitiva possibilita o esclarecimento do paciente
avaliar fatores de risco de violência contra si e com relação às dificuldades internas e externas
outros, como suicídio ou homicídio; explorar e avaliar que ele está experienciando; além disso, determina
o repertório de recursos de enfrentamento com os o desenvolvimento, pelo paciente, de estratégias
quais o indivíduo conta ou já contou em situações próprias de enfrentamento e resolução de
anteriores; estabelecer um plano de resolução problemas, tarefa que vai muito além do
da crise, gerar alternativas de processamento objetivo terapêutico de simplesmente ajudá-lo
da situação e alternativas de comportamentos. a resolver os problemas que apresenta nesse
O profissional deve manter em mente o momento de sua vida.
caráter transitório da crise e da perturbação e Outro aspecto importante na intervenção de
desorganização do processamento da situação crise refere-se à aliança terapêutica, baseada
pelo indivíduo. Esse aspecto temporário abre na empatia entre o terapeuta e o paciente,
espaço para o questionamento e o desafio e cujo desenvolvimento e manutenção é de
cognitivo, e sugere a necessidade de estrutura responsabilidade do terapeuta. A aliança
na condução da intervenção e na implementação fornece ao paciente a impressão de não estar
do processo de resolução dos problemas sozinho diante da crise, de ter um apoio efetivo
envolvidos, a fim de otimizar o aproveitamento na pessoa do terapeuta, o qual, dependendo da
do tempo terapêutico. Finalmente, o terapeuta natureza da crise, pode até funcionar como um
deve atuar para reduzir o potencial de ações defensor na preservação dos direitos do paciente.
radicais e negativas pelo paciente. Finalmente, referindo-nos a esquemas cognitivos,
Várias características do modelo aplicado da sabemos que estas estruturas organizam os
Terapia Cognitiva a tornam especialmente indicada elementos da nossa percepção do real; através
no atendimento a pacientes em situações de do processo clínico em Terapia Cognitiva, não
crise. O caráter breve da intervenção se adequa apenas os esquemas e crenças disfuncionais
a intervenções em situações críticas. O caráter do paciente representam focos importantes de
ativo e colaborativo da intervenção encoraja a intervenção e que favorecerão a visão realista da
participação ativa do paciente no processo de situação de crise e o reconhecimento, mobilização
mudança, sugerindo a idéia de controle sobre a e desenvolvimento de recursos de resolução e
situação. O aspecto dinâmico da interação entre enfrentamento; mas a própria situação de crise
terapeuta e paciente possibilita a exploração pode prover um espaço de treinamento de novas
rápida de cognições e emoções, facilita a auto- habilidades cognitivas e de resolução de problemas,
revelação pelo paciente e, dessa forma, o favorecendo o desenvolvimento de um sistema
direcionamento mais imediato da intervenção aos funcional de esquemas e crenças, em
aspectos disfuncionais das cognições, atitudes e substituição ao sistema anterior disfuncional.
comportamentos do paciente. O caráter diretivo Diante de situações críticas verdadeiramente
do modelo aplicado possibilita ao terapeuta adversas, são esperados sintomas de depressão
formular hipóteses de conceituação cognitiva, que ou ansiedade, ou ambos. No trabalho clínico,
refletem os esquemas e crenças disfuncionais que mostra-se muito útil encorajar o paciente em
integram o sistema cognitivo do paciente; utilizar o crise a distinguir entre, de um lado, respostas
questionamento socrático, em nível de intervenção esperadas de tristeza ou ansiedade realista, que
funcional, o que possibilita a modulação emocional ainda possibilitam o ajustamento e enfrentamento
pelo paciente; explorar colaborativamente os eficazes, e, de outro, sintomas de depressão ou
focos de problemas e definir metas e estratégias de um transtorno de ansiedade, que rendem o
de resolução e enfrentamento, o que encoraja indivíduo disfuncional e requerem atenção
o paciente a funcionar como sua própria fonte terapêutica focalizada.
de recursos. A definição colaborativa de metas
Conclusão uma recorrência nos 10 anos seguintes à
Situações de crise não ocasionam necessariamente recuperação, mesmo tendo-se mantido estáveis
resultados ou conseqüências negativas. A crise durante os primeiros cinco anos após o término
pode ser utilizada como uma arena, onde o do tratamento inicial (Frank, 1991).
paciente e o terapeuta poderão, colaborativamente, Esses dados apontam para a necessidade, entre
desenvolver novos recursos, mobilizar recursos outras medidas, da disponibilidade de planos
existentes de maneira concertada e criativa, eficazes de prevenção e tratamento da depressão.
assegurar o paciente das escolhas que lhe estão A TC vem-se demonstrando útil em ambos os
abertas, e aproveitar-se das estratégias de aspectos, quais sejam, na prevenção da depressão
resolução utilizadas no sentido de formular novas e como uma forma de psicoterapia eficaz. Sua
formas de resolução de problemas, de neutralização relevância se faz ainda maior se considerarmos
de estressores e de adaptação e enfrentamento que seu surgimento veio preencher uma grave
das dificuldades inerentes à vida. lacuna, visto que os modelos comportamental e
psicanalítico, anteriormente desenvolvidos, não
TERAPIA COGNITIVA E DEPRESSÃO se demonstraram particularmente eficazes no
Edela A. Nicoletti e Ana Maria M. Serra tratamento do transtorno depressivo. Movido por
preocupações teóricas, e em uma tentativa de
O impacto da depressão na população geral tem expandir os limites da psicoterapia e de comprovar
sido grandemente subestimado. Em recente princípios psicanalíticos através do emprego da
estudo promovido pelo Banco Mundial e pela metodologia científica, Aaron Beck propôs um
Organização Mundial da Saúde, ficaram evidentes modelo de depressão inovador, o modelo cognitivo,
os devastadores efeitos da depressão. Nesse no qual ele conceituou a depressão como um
estudo, a depressão representou a quarta maior transtorno de processamento de informação, e não
causa de incapacitação, sendo responsável como um transtorno emocional.
por mais de 10% dos anos de incapacitação de
indivíduos em todo o mundo. As projeções para as Antidepressivos e Psicoterapia
próximas décadas refletem um agravamento da A eficácia da TC no tratamento da depressão
presente situação, esperando-se que a depressão mostra-se relevante especialmente em vista
venha a representar, em 2020, a segunda maior do sucesso limitado do uso exclusivo dos
causa de incapacitação, abaixo apenas das doenças antidepressivos. Primeiramente, os índices gerais
cardíacas. Atualmente, a depressão afeta cerca de recaída e suicídio não se reduziram com o
de 12% da população adulta (8% feminina e 4% crescente emprego dos antidepressivos. Estima-se
masculina), contra apenas 3% no início do século que entre 35 e 40% de portadores de depressão
XX. Estima-se que aproximadamente l5% da não respondem satisfatoriamente a antidepressivos,
população será vítima de pelo menos um episódio e parte dos que respondem satisfatoriamente
depressivo a cada ano de sua vida adulta. Cerca de recusam-se a tomá-los ou descontinuam o
75% das internações psiquiátricas têm episódios tratamento devido aos efeitos colaterais. O
depressivos como causa principal ou secundária. depressivo tratado com farmacoterapia incorre
em um problema de atribuição, tendendo a atribuir
Outros dados confirmam a gravidade dessa
sua melhora ao medicamento e, dessa forma,
situação. As estatísticas, em âmbito mundial,
reforçando a idéia de doença e de lócus de controle
nas três últimas décadas, indicam não apenas
externo. Por outro lado, a melhora do paciente em
um aumento gradual da incidência de depressão
psicoterapia vai além do simples alívio da depressão;
na população em geral, mas, ao mesmo tempo,
ele “aprende” de sua experiência psicoterapêutica
uma redução na idade de ocorrência do primeiro
de maneira abrangente e desenvolve-se em várias
episódio depressivo, com aproximadamente 9%
áreas de sua experiência, processos que previnem
dos adolescentes apresentando um episódio de
novos episódios. Finalmente, antidepressivos
depressão severa antes dos 14 anos de idade.
não combatem a “desesperança”, um construto
Além disso, a depressão, para a maioria das
cognitivo e que constitui o fator determinante da
pessoas, é uma enfermidade recorrente e crônica.
ideação e comportamento suicidas.
Um estudo prospectivo aponta que 85% dos
pacientes recuperados de um episódio depressivo Segundo a atual percepção de que quadros
sofreram pelo menos uma recorrência durante os depressivos importantes, para a grande maioria
15 anos seguintes, e 58% deles apresentaram dos pacientes, representam uma condição
recorrente, tem sido levantada a questão de que esquemas e crenças do depressivo, e restabelecer
a capacidade de uma intervenção de prevenir o a flexibilidade cognitiva, que conjuntamente lhe
retorno dos sintomas depressivos após o término possibilitariam a modulação emocional diante dos
do tratamento pode ser ao menos tão importante problemas e das dificuldades inerentes à vida.
quanto sua capacidade de tratar o episódio atual.
Fatores de vulnerabilidade à depressão
Não há evidências de que a farmacoterapia forneça
A TC adota um modelo de vulnerabilidade/
qualquer proteção contra o retorno dos sintomas
estressor para explicar a instalação e manutenção
após a sua suspensão. Contudo, defensores das
do transtorno depressivo. Segundo esse modelo,
intervenções psicoterápicas argumentam que estas
a vulnerabilidade à depressão, compreendendo
provêem ganhos permanentes, que persistem
fatores biológicos e cognitivos, seria inversamente
após a descontinuação das sessões e reduzem os
proporcional à apresentação de estressores
riscos subseqüentes. Um estudo conduzido por
ambientais; desse modo, um indivíduo apresentando
Hollon e colaboradores, em 1996, comparando o
alta vulnerabilidade à depressão necessitaria de
tratamento da depressão com TC, medicamentos
apenas um pequeno estressor para a ativação de
ou um misto de ambos constatou que os
um episódio depressivo, e vice-versa. Essa noção
resultados, em curto prazo, são os mesmos em
auxilia na avaliação, conceituação e intervenção
qualquer das situações, mas que as recidivas são
sobre os quadros de depressão. Quanto aos
muito menor entre aqueles tratados com TC.
fatores de vulnerabilidade à depressão, e refletindo
A hipótese de Vulnerabilidade a adoção de modelos multifatoriais, a TC aponta
Cognitiva como um modelo de depressão fatores de predisposição biológicos; fatores
A hipótese de vulnerabilidade cognitiva, a pedra hereditários; fatores de predisposição cognitivos,
fundamental do modelo cognitivo de depressão, adquiridos ou familiarmente transmitidos; déficit
refere-se à tendência aumentada nos depressivos, em habilidades de resolução de problemas; fatores
em relação à população em geral, de aplicar um ambientais e contingenciais, como problemas
viés negativo no processamento de informação; e crises vitais; fatores de personalidade, como
além disso, uma vez feita uma interpretação introversão, neuroticismo, traços obsessivos;
exageradamente negativa, eles tendem ainda a estados subjetivos de desamparo e desesperança,
resistir à desconfirmação de sua interpretação entre outros. Quanto aos fatores cognitivos
inicial ou ao reconhecimento de interpretações em particular, destacam-se os estilos de
alternativas. Dessa forma, a depressão resultaria processamento de informação que denotam
do fenômeno que chamamos de “espiral negativa extremismo e rigidez, como pessimismo e
descendente”: interpretações exageradamente perfeccionismo. Contudo, faz-se necessário refletir
negativas resultam em uma queda de humor, que sobre se a negatividade comum nos depressivos
por sua vez conduz a interpretações ainda mais refletiria uma distorção da realidade ou um excesso
negativas, e assim por diante, em um processo de realismo. Estudos na área de Psicologia Cognitiva
que explica a instalação e a manutenção do demonstram que o pessimista é mais realista
transtorno depressivo. No caso da depressão, o do que o otimista, isto é, os últimos distorcem
conteúdo das cognições dos depressivos refletiriam mais a realidade, e a seu favor, do que o fazem os
atribuições e avaliações pessimistas a respeito primeiros. Entretanto, estudos em TC demonstram
dos três vértices da tríade cognitiva: o depressivo que o pessimismo é um fator necessário, embora
avalia-se autodepreciativamente, como desprovido não suficiente, nos quadros depressivos. Essas
de qualidades e habilidades, percebe o mundo evidências, portanto, parecem sugerir que certo
externo como hostil, injusto e rejeitador, e imagina grau de otimismo é necessário para neutralizar
que, no futuro, sua insatisfação com seu presente a desesperança e o desamparo, que predispõem
permanecerá ou poderá aumentar. Beck propôs a indivíduos à depressão.
idéia de esquemas cognitivos, de crenças básicas
e crenças condicionais, que se desenvolveriam Classificação ou diagnóstico de
a partir das experiências relevantes de vida e depressão e a análise cognitiva funcional
refletiriam a idéia do indivíduo a respeito das Vários sistemas diagnósticos foram desenvolvidos,
regularidades do real. O objetivo fundamental da os quais apontam critérios para o diagnóstico da
TC seria, portanto, promover a re-estruturação depressão. Entretanto, diagnósticos implicam
cognitiva, ou seja a mudança no sistema de no conhecimento de fatores etiológicos. E como,
no presente estágio de conhecimento, temos validado modelo para a conceituação e tratamento
apenas hipóteses sobre a etiologia da depressão, da depressão, em associação ou não à medicação.
sendo o diagnóstico feito com base nos sintomas Além de seu desenvolvimento nas áreas de
apresentados, então vários autores argumentam, intervenção e eficácia, mais recentemente os
com boa dose de razão, que o que fazemos é, estudos sobre processos cognitivos na depressão
na verdade, uma classificação da depressão, e e processos que viabilizam resultados clínicos
não o seu diagnóstico. Contudo, essa discussão vêm igualmente recebendo atenção crescente
tem apenas uma relevância parcial para a TC, de pesquisadores, em um sinal inequívoco de
devido ao fato de que, em TC, o planejamento da progresso nos níveis conceitual e aplicado, e
intervenção e o próprio processo psicoterapêutico explicando a preferência pela TC por clínicos ao
apóia-se em uma análise funcional do quadro redor de todo o mundo.
específico de cada paciente depressivo. Para a
formulação de uma análise funcional, exploramos TERAPIA COGNITIVA E SUICÍDIO
as seguintes dimensões relevantes do quadro Arnaldo Vicente e Ana Maria M. Serra
depressivo: (1) alterações de humor, que se A TC vem-se demonstrando eficaz para uma
referem à característica central da depressão, daí ampla gama de transtornos emocionais, que inclui
a denominação genérica de “transtornos afetivos”; o suicídio. Sua eficácia na área da prevenção
(2) alterações do estilo cognitivo, que se refletem no do suicídio reveste-se de especial relevância,
pensamento lento e ineficiente, baixa concentração, tendo em vista os dados que demonstram um
déficits de memória, indecisão; (3) alterações de aumento na incidência de suicídio entre adultos
motivação, como perda de interesse em trabalho e adolescentes. O preparo técnico do terapeuta
ou lazer, isolamento social, comportamentos de cognitivo para o atendimento adequado ao
fuga ou esquiva, incluindo o suicídio; (4) alterações paciente suicida é de fundamental importância,
de comportamento, como passividade, inatividade, especialmente em vista da imprevisibilidade
choro, reclamação ou demanda excessivas, e da presença de comportamentos suicidas em
dependência; (5) alterações biológicas, como pacientes depressivos que procuram ou são
aumento ou redução do apetite ou sono, que podem encaminhados para a psicoterapia. Quando é
resultar de alterações estruturais ou bioquímicas. identificada, pelo terapeuta, a presença de ideação
Conclusão e comportamentos suicidas no paciente, todos os
Com relação ao processo terapêutico em TC demais objetivos terapêuticos são negligenciados,
para a depressão, note-se que o planejamento concentrando-se a ação do terapeuta na
da intervenção e a condução do processo clínico intervenção direta sobre esses elementos.
seguem os moldes gerais da abordagem, ou o Comportamentos Suicidas
que denominamos de “TC Padrão”, conforme já Primeiramente, necessitamos distinguir entre os
delineados no primeiro módulo dessa série de vários níveis de comportamentos suicidas, desde
Estudos Transversais. a ideação suicida, em que o paciente começa a
Em uma palestra memorável oferecida durante o contemplar o suicídio como uma solução viável
congresso da EABCT em Manchester, Inglaterra, para os seus problemas, até propriamente a
em setembro de 2004, Beck declarou que, quando tentativa de suicídio e o suicídio consumado.
ele propôs o modelo cognitivo de depressão, Comportamentos suicidas podem apresentar-se
conceituando-a de forma inovadora como um disfarçadamente: decisões súbitas de, por exemplo,
transtorno de pensamento e não como um preparar um testamento; afirmações que denotam
transtorno emocional, ele foi percebido, por desesperança, como “minha vida não vai melhorar”;
comportamentalistas e psicanalistas, como um idéias de que os demais estariam melhor com
“cavalo de Tróia”, explicando: “temiam que se minha morte, como “sou um peso para todos”;
me aceitassem entre eles, eu destruiria seus idéias de fracasso em satisfazer as expectativas de
modelos por dentro”. Contudo, não tardou para outros, como “desapontei a todos” etc. Uma criança
que a consistência e a eficácia do novo modelo de 6 anos, gravemente deprimida após um acidente
chamassem a atenção de estudiosos e clínicos em que faleceram a mãe e o irmão menor, começou
ao redor do mundo, que testaram e replicaram a expressar aos familiares o desejo de ir para o céu
os achados de Beck e seus associados. Hoje, o para rever a mãe e o irmão e, como eles, “ficar com
modelo cognitivo constitui o mais eficaz e melhor os anjinhos”, fala que indicava ideação suicida, na
tentativa de escapar da situação difícil em que se suicidas, indicando que é a medida relevante na
encontrava a família após a tragédia. avaliação objetiva do risco de suicídio em pacientes
Deve-se notar que o desejo de morrer é depressivos que buscam ou são encaminhados
inversamente proporcional ao desejo de comunicar para a psicoterapia.
a intolerabilidade à situação de vida presente; o Fatores Cognitivos de Risco
indivíduo que efetivamente deseja morrer, por ver a Além de fatores demográficos e sociais de risco
morte como a única solução para seus problemas, crônico e agudo, estudos sugerem vários fatores
não comunica seu desejo, para evitar ser impedido. cognitivos de risco, que devem ser investigados.
Por outro lado, o indivíduo que comunica seu desejo A desesperança tem-se demonstrado, segundo
de morrer pode estar comunicando, na realidade, os estudos, como um fator de risco crônico e
um pedido de ajuda. agudo. Sugere um esquema relativamente
Há ainda outras formas de avaliarmos a estável, em que a dimensão da tríade cognitiva
intencionalidade. Devemos inquirir o paciente a implicada é o “futuro”.
respeito de seu conhecimento sobre possíveis Outro fator de risco refere-se ao autoconceito.
métodos que ele consideraria utilizar, sobre a Em adultos, o autoconceito indica um fator de
letalidade dos métodos, sobre como teria acesso risco, independente da desesperança.
a esses métodos e sobre medidas que já pode haver Em crianças, porém, o autoconceito está
empregado para investigar sobre os diferentes relacionado à depressão e à intenção suicida,
métodos e acessar estratégias instrumentais. porém apenas quando na presença da
Essas informações, em conjunto, permitem ao desesperança. O autoconceito refere-se à
terapeuta avaliar a gravidade da intenção dimensão “eu” da tríade cognitiva.
suicida versus o desejo de comunicar a intenção
Quanto à forma de processamento de informação,
como um pedido de ajuda.
o suicida demonstra tendência aumentada a
A investigação direta da ideação e comportamento distorções na interpretação de seu real. As formas
suicidas é recomendada, sem o uso de eufemismos mais freqüentes de distorções, que refletem
e evitando inadvertidamente reforçar preconceitos em termos gerais uma rigidez cognitiva, são: a
sociais, culturais e religiosos contra o suicídio e o abstração seletiva, em que o indivíduo abstrai de
suicida. Alguns clínicos defendem a idéia de que seu real apenas as evidências que confirmam suas
abordar diretamente o suicídio, inclusive usando os expectativas pessimistas e negligencia evidências
termos “suicídio” e “suicida”, pode induzir o paciente contrárias; a supergeneralização, em que o
a considerar essa alternativa. Contudo, os estudos indivíduo utiliza-se de termos generalizantes
sugerem a improbabilidade dessa alternativa, como “nunca”/”sempre”, “tudo”/”nada”; e o
e indicam ainda que a evitação do assunto ou a pensamento dicotômico, que denota uma forma
referência velada podem sugerir ao paciente que extremista e perfeccionista de avaliar seu real
o terapeuta compartilha do preconceito social e em termos de, por exemplo, “ótimo” ou “péssimo”,
cultural, e talvez até religioso, contra suicidas. ou seja, não considerando possibilidades
Avaliação Objetiva intermediárias mais realistas.
Embora todos os suicidas sejam depressivos, os Quanto ao conteúdo de suas cognições, os temas
estudos demonstram que a desesperança é o mais freqüentes no processamento do real pelo
construto central de risco para o suicídio. Beck suicida são crenças perfeccionistas, que se
e associados criaram escalas para a avaliação refletem nas expectativas irrealistas que o
objetiva da depressão e da desesperança. O indivíduo tem de si, nas expectativas que o indivíduo
BDI (Beck Depression Inventory), o Inventário de tem dos outros, e nas expectativas que o indivíduo
Depressão de Beck, mostra-se correlacionado ao acredita que os outros têm de si. Dentre essas,
suicídio em amostras heterogêneas, por exemplo, as expectativas que o indivíduo acredita que os
na população em geral, ao discriminar entre outros têm de si correlacionam-se ao mais
depressivos e não depressivos. Porém, o BHS alto risco de suicídio.
(Beck Hopelessness Scale), a Escala de Quanto aos estilos de atribuição para explicar
Desesperança de Beck, mostra-se correlacionado a eventos negativos em suas vidas, o suicida tende a
suicídio em amostras homogêneas de depressivos, fazer atribuições internas (“os males da minha vida
isto é, discrimina entre depressivos suicidas e não devem-se a mim”), estáveis (“os fatores internos
que levaram a tais males permanecerão ao longo responsabilidade legal, sob pena de ser considerado
do tempo”) e globais (“os fatores internos que judicialmente como cúmplice, e ética de impedir o
levaram a tais males afetam todas as áreas da suicida de consumar seu plano, mobilizando todos
minha vida”). Essa tendência – fazer atribuições os recursos disponíveis, inclusive o envolvimento
de eventos negativos – reflete pessimismo e de outros significativos do paciente. Consideradas
desesperança, os fatores determinantes da as posições pessoais do terapeuta, ele poderá
ideação e comportamentos suicidas. justificar sua ação, no sentido de impedir o suicídio,
com base na suposição de que o suicida não está,
Déficit em Habilidades para
nesse momento, funcional e de posse de recursos
Resolução de Problemas
habituais de enfrentamento. Caberá, portanto,
Os estudos demonstram que o déficit cognitivo
ao terapeuta o desenvolvimento da flexibilidade
básico no suicida, semelhantemente a depressivos,
cognitiva e de habilidades de resolução de
refere-se a uma reduzida habilidade para resolução
problemas, que dotarão o paciente de recursos
de problemas. Quando suas estratégias habituais
de enfrentamento.
para resolver problemas falham, suicidas ficam
paralisados e demonstram inabilidade para gerar
novas estratégias de resolução, insistindo de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
forma estereotipada em estratégias ineficazes. Ao
BECK, A.T.; RUSH, A.J.; SHAW, B.F.; EMERY, G.
fracassar em resolver problemas, acreditam que o
(1997) Terapia Cognitiva da Depressão,
suicídio é a única solução eficaz.
Porto Alegre: ArtMed.
Suicidas falham em todas as etapas do processo
de resolução de problemas. Apresentam DATTILIO, F. M.; FREEMAN, A. (Eds.) (2004)
dificuldades em identificar claramente problemas Estratégias Cognitivo-Comportamentais
e metas, em gerar estratégias alternativas de de Intervenção em Situações de Crise,
resolução e inclusive resistem a reconhecer Porto Alegre: ArtMed.
estratégias viáveis de resolução quando estas SALKOVSKIS, P.M. (Ed.) (2004) Fronteiras da
lhes são sugeridas. Têm dificuldade, ainda, em Terapia Cognitiva, São Paulo: Casa do Psicólogo.
implementar estratégias de resolução devido à
desmotivação inerente à depressão, em avaliar
estratégias e monitorar resultados, e em gerar
estratégias alternativas de resolução quando as
estratégias iniciais falham. Finalmente, suicidas Ana Maria Serra
demonstram uma reduzida tolerância à ansiedade PhD em Psicologia e Terapeuta
inerente ao processo de resolução de problemas Cognitiva pelo Institute of
e ao tempo de latência entre a identificação de Psychiatry da Universidade
um problema e a sua resolução. de Londres, Inglaterra.
Vários programas de treinamento em habilidades Presidente Honorária da ABPC
de resolução de problemas para depressivos e – Associação Brasileira de
suicidas são relatados na literatura especializada. Psicoterapia Cognitiva.
No caso específico da TC, o treinamento em Diretora do ITC – Instituto de
habilidades de resolução de problemas faz
Terapia Cognitiva, que atua nas
parte integrante de seu modelo aplicado,
representando um dos dois pilares sobre os
áreas de clínica, pesquisa,
quais se apóia a intervenção cognitiva, ao lado consultoria e treinamento
da re-estruturação cognitiva. de profissionais, oferecendo
regularmente Cursos e Palestras,
O papel do psicoterapeuta
Profissionais devem refletir sobre esse aspecto dentre os quais um Curso de
e definir seu posicionamento filosófico a respeito Especialização em Terapia Cognitiva
dessa difícil questão. Porém, alguns pontos devem credenciado pelo CFP – Conselho
ser destacados. O psicoterapeuta tem uma Federal de Psicologia.
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