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4 texto 8 ESTETICA DA RECEPCAO Mirian Hisae Yaegashi Zappone CARACTERIZACAO GERAL E INSERGAO HISTORICA DA ESTETICA DA RECEPCAO (© que fazemos ao ler ou que processos desencadeiam-se quando lemos? Essa é uma pergunta que te6ricos de diversas dreas de conhecimento tm se preocupado em responder. Dos estudos cognitivistas, aos Tingifsticos e até histéricos, a leitura enquanto processo, habilidade ¢ atividade social ou coletiva tem sido vastamente estudada, como comprova firta bibliografia sobre o tema. Emibora a relacio leitura e literatura seja bastante evidente, o campo dos estudos literirios 86 passou a tematizé-la a partir das primeiras décadas do século XX e, de forma mais sistemtica, a partir da década de 1960. Pode-se dizer que esse interesse € tributério, em grande parte, do redimensionamento das nogSes de auctor, de texto © de liter. Com relacio a0 autor, assistiti-se & sua morte nas iltimas décadas: ele morreu enquanto entidade “detentora do sentido” do texto que escrevesEmbora seja o produtor do texto, ou seja, aquele que articula lingiisticamente idéias, sentimentos, posigdes, entende-se, hoje, que ele nio controla (3) sentido(s) que sua produgio pode suscitar. O autor nio é mais considerado © “dono” do sentido do pelos leitores, nem pelos responséveis por editar ou transformar um original em objeto {que vai ser lido. © texto, por sua vez, desvencilhou-se das amarras estruturalistas/funcionalistas que atribufam exclusivamente & textualidade as chaves para a interpretagio de uma obra. A partir de novas abordagens da linguagem (pragmitica, teoria da enuneiagio, andlise do discurso), que passaram a considerar mais enfaticamente a relagao linguagem-sociedade, o texto deixou de ser mera Ofginizagio lingiifstica que “carrega” ou que “transmite” pensamentos, informagdes ou idéias de seu produtor. A linguagem passou a ser entendida, nos estudos lingtifsticos contempordneos, comoyincapaz de traduzir todas as intencOes do falante. Tal concepcio de linguagem influenciow a caracterizagio do texto como estrutura cheia de lacunas ¢ de nio-ditos (Ona, se 0 texto jf nao diz tudo, nem seu autor é o dono de um sentido para cle, o leitor tem sido considerado pega fundamental no proceso de leitura, Seja individualmente, seja coletivamente, 0 on TJEORTA LITERARTA aD leitor é a instincia responsével por atribuir sentido aquilo que Ie. A materialidade do texto, o preto no branco do papel s6 se transformam em sentide quando alguém resolve ler. E, assim, os textos so lidos sempre de acordo com uma dada experiéncia de vida, de leituras anteriores ¢ num certo momento histérico, transformando o leitor em instincia fundamental na construcio do processo de significagio desencadeado pela leitura de textos (sejam eles literfrios ou nao). ~p E é esse leitor, com novo status, o principal elemento da Estética da Recepgio, Embora com -s¢ dizer que o principio geral das vérias vertentes da Estética da Recepgio € recuperar a experiéncia de leitura e apresenti-la como base para se pensar tanto o fenémeno literdrio quanto a propria historia literéria. Em suma, trata-se de uma estética Fundada na experiéncia do leitor (saliente-se que a palavra leitor tem diferentes sentidos para os diversos representantes da estética da recepeio), como se verd com mais detalhes adiante. Como jj se disse, o interesse pela leitura ¢ pela figura do leitor como elementos importantes para se pensar a caracterizagio da literatura & fato bastante novo. Ao comentar sumariamente 0 desenvolvimento da moderna teoria literéria, Eagleton (1989, p. 80) sugere trés grandes fases: a primeira, marcada pelos modelos da critica romantica, que teria vigorado até meados do século XIX, € cuja tonica residia nos estudos biegnfcas do autor, sendo a obra literdria © fruto de uma genialidade, O segundo momento estaria delimitado as primeiras décadas do século XX ¢ seria marcado pela excessiva preocupagio conto texto, como se pode notar nas tendéncias tanto do Formalismo (énfase nas estratégias verbais que faziam de um texto literatura) quanto do New Criticism (Enfase nas relagées entre os tragos lingifsticos ¢ as conseqiiéncias destes no sentido do texto, uso de técnicas de leitura cerrada dos textos). O terceiro momento abarcaria certas tendéncias mais contemporaneas de estudos literdrios que privilegiam a figura do leitor, como a Estética da Recepcio em suas varias vertentes, Como sugere a proposta de desenvolvimento da teoria literaria de Eagleton (1989), cada um dos elementos envolvidos na leitura desempenhou certa influéncia sobre os modelos tedricos que se preocuparam com o estudo da literatura: primeiramente © autor, posteriormente 0 texto ¢, finalmente, o leitor. Essas_mudangas te6ricas, normalmente, so decorrentes do desenvolvimento de modelos filos6ficos que proporcionam novas formas de ver a realidade ¢ 0 mundo, O advento da Estética da Recepgio como um modelo tcérico de leiturvinterpretacio do texto literirio e de elaboragio da historia literdria esta dirctamente relacionado a uma dessas mudangas, cujo centro de irradiagio parece ter sido a Fenomenologia. Em linhas muito gerais ¢ sumérias, a Fenomenologia surgi dos trabalhos desenvolvidos, no comego do século XX, pelo alemio Edmund Husset! (1859-1938). Ele propunha que se repensasse 0 problema da separagio entre sujeito ¢ objeto, consciéncia ¢ mundo, enfocando-se a realidade fenoménica dos objetos ou, em outras palavras, a maneira pela qual os objetos ¢ a realidade sio percebidos pela consciéncia, A base do método fenomenolégico de Husserl consiste em ver todas as realidades como puros fenéntenos, ou seja, a partir do modo como elas se apresentam em nossa mente. A fenomenologia consiste num método filoséfico na medida em que procura questionar as préprias condigées que tornam possivel qualquer forma de conhecimento. © conhecimento é possivel quando se compreende um fendmeno qualquer de maneira total e pura, 0 que pata Husserl significava aprender dele o essencial ¢ o imutivel A chave bisica de ligagio entre a Fenomenologia ¢ a Estética da Recepcio é explicitada por Eagleton: nuancas diferenciadas, pode Sea fenomenologia asseyurava, de um lado, um mundo cognoscivel, por outro estabelecia a centralidade do sujeito humano, Na verdade, ela prometia ser nada menos do que uma ciéncia da propria subjetividade. © mundo € aquilo que postulo, ou que “pretendo” postular: deve ser apreendido em relagio a mim, como uma correlagio de minha consciéncia (EAGLETON,1989, p, 63), Trazendo fais consideragdes para o campo da literatura, um texto seria um puro fendineno se se apreendesse sua esséncia, o que s6 poderia dar-se através da experiéncia de um sujeito, ou seja, de um leitor. Pensando iia experiéncia da leitura, a obra litersria seria aquilo que € dado 3 154 (8) ESTETICA DA RECEPCAO consciéncia do leitor. No sentido dessas consideragSes de Husserl, 0 texto literario nio seria tuma realidade independente de uma consciéncia que o percebesse. Ele sé seria um texto literdrio mediante uma consciéncia que © experienciasse, ¢ tal experiéncia s6 seria propiciada mediante ay atuagio de um leitor. \ ‘Um fendmeno, qualquer que seja, ¢ afetado pela percepgio que dele tem aquele que 0 apreende por meio da consciéncia e, claro, da propria subjetividade, Nesse sentido, ler é, também, criar.o, texto) Por isso, pode-se afirmar que as rafzes da Estética da Recepgio situam-se em prineipios da fenomenologia e que as vertentes da Estética da Recepcio sio uma espécie de fenomenologia direcionada para o leitor. ESTETICA DA RECEPGAO E OUTRAS TEORIAS BASEADAS NO ASPECTO RECEPCIONAL Representando, pois, um dos diversos ramos da moderna teoria literdria, as teorias orientadas para o aspecto recepcional valorizam a figura do leitor, fizendo da leitura ou dos mecanismos ou atividades que ela pressupde uma forma de desvendamento do texto literério ¢ de compreensio da literatura e de sua histéria. Muitos sio os autores que discorreram sobre a literatura a partir do enfogue recepcional: Roman Ingarden, com seu A obra de are literéria, de 1931, Roland Barthes em O. prazer do texto, de 1937, Hans Robert Jauss com A histria da literatura como desafio d teoria literdria, de 1967, Umberto Eco com Leiturs do texto literdrio, de 1979, Wolfgang Iser com O ato da leitura: wma teoria do ofitoesético de 1976, Stanley Fish com Is there a text in this cass? (1980), Robert Escarpit com © seu Sociologia da literauwra, de 1958 e, mais atualmente, trabalhos como A ordem dos lives, de 1992, Prticas de leiturt, de 1985, ¢ outros estudos produzidos por Roget Chartier. (O que esses autores tém em comum, efetivamente, & 0 foco a partir do qual estudam a literatura, de sua recepgio, pois se por um ldo podem ser colocados sob a rubrica de autores de uma toria recepcional, por outro seus pontos de vista sobre 0 que enfocar da recepcio parecem ter suas particularidades. Esses diferentes olhares sobre a recepgio de um texto literério ganharam status de vertentes da Teoria da Recepsic. Deve-se ressaltar que 0 titulo deste capitulo foi escolhide em razao de ser esta a rubrica sob a qual mais freqiientemente se valoriza a figura do leitor, © que a expressio Esética da Reeepeao relaciona-se de modo especifico as idgias formuladas por Hans Robert Jauss, © mais importante representante das teorias orientadas para o aspecto recepcional. Tendo em vista essa informacio, para 6 objetivo deste item, seria melhor pensar em Teorias da Recepgio, ot seja,/aquelas abordagens tedricas que propoem a figura dos receptores/leitores © mesino o ato da leitura como elementos fandamentais para'a caracterizacio do fato literério.| Nesse senitido, podem-se divisar trés linhas de abordagem das Teorias da Recepcio: 1) Jauss (1978; 1994) aparece como um dos autores mais exponenciais e mais significativos entre os {que colocam © leitor ¢ a Ieitura como elementos privilegiados nos estudos literarios. As idéias de Jauss sio particularmente conhecidas sob 2 rubrica de Eviéica da Recepcio. Além de pensar 0 ‘cariter artistico de um texto em razio do efeito que este gera em seus Icitores, Jauss também propde uma nova abordagem da hist6ria lierdria pautada também no aspecto recepcional. Sua proposta de historia literdria articula tanto a recepcio atwal de um texto (aspecto sincrOnico) quanto sua recepgio a0 longo da histéria (aspecto diacrdnico), € ainda a relagio da literatura com 6 processo de construgio da experiéncia de vida do leitor. Jauss reivindica que se tome como principio historiogrifico da literatura © modo como as obras foram Tidas e avaliadas por seus diferentes piblicos na hist6ria 2) Outra vertente da teoria recepcional, o Reader-Response Criticism, desenvolveu-se mais nos dominios norte-americanos, Seus representantes mais difundidos em nosso meio sio Stanley Fish (1980), Jonathan Culler, e seu represcntante alemio, Wolfgang Iser (1999). © que esses te6ricos tém em ‘comum parece ser o fato de pensarem mais especificamente nos gfites que os textos desencadeiam em seu leitor. Contrapondo-se Tadicalmente 3 idéia de que o texto é uma estratura de onde emana um sentido, esses autores considcram que o texto s6 ganha existéncia no momento da leitura eos “resultados” ou “efeitos” dss leitura sio fiandamentais para que se pense seu sentido. 155

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