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Luc;

NovoTestamento -2
Emanuence Digital
e
Mazinho Rodrigues

Volume 9
Comentário Bíblico Broadman
Comentário
Bíblico
Broadman
Volume 9
Lucas — João

T R A D U Ç Ã O D E A D IE L A L M E ip A D E O L IV E IR A e
IS R A E L B E L O D E A Z E V E D O

3f Edição
Todos os direitos reservados. Copyright © 1969 da Broadman Press. Copyright © 1983
da JUERP, para língua portuguesa, com permissão da Broadman Press.
O texto bíblico, nesta publicação, é da Versão da Imprensa Bíblica Brasileira, baseada
na tradução em português de João Ferreira de Almeida, de acordo com os melhores textos
em hebraico e grego.

Comentário Bíblico Broadman/ Tradução de Adiei Almeida de


C732c Oliveira e Israel Belo de Azevedo. — Rio de Janeiro: JUERP, 1983—
12v.
Titulo original: The Broadman bible commentary.
Publicação em português dos volumes j-2 e 8-12.
Conteúdo: v. 1. Artigos Gerais. Gênesis-Êxodo — v. 2. Levítico-Rute
— v. 3. ISamuel-Neemias — v. 4. Ester-Salmos — v. 5 Provérbios-Isaías
— v. 6. Jeremias-Daniel — v. 7. Oséias-Malaquias — v. 8. Artigos Gerais.
Mateus-Marcos — v. 9. Lu^as-João — v. 10. Atos-Coríntios — v. II.
2Coríntios-Filemom — v. 12. Hebreus-Apocalipse.
I. Bíblia — Comentários.
CDD - 220.7

Capa: Walter Karklis

Código para Pedidos: 216Õ32


Junta de Educação Religiosa e Publicações da
Convenção Batista Brasileira
Rua Silva Vale, 781 Cavalcânti — CEP: 21370
Caixa Postal 320 — CEP: 20001
Rio de Janeiro, RJ, Brasil

3.000/1991

Impresso em gráficas próprias.


COMENTÁRIO BÍBLICO BROAD MAN
Volume 9

Junta Editorial

EDITOR GERAL

Clifton }. Allen, Ex-Secretârio Editorial da lunta de Escolas Dominicais


da Convenção Batista do Sul, Nashville, Tennessee, Estados Unidos.

Editores Consultores do Velho Testamento


John I. Durham, Professor Associado de Interpretação do Velho Testamen­
to e Administrador Adjunto do Presidente do Seminário Batista do Sudoes­
te, Wake Forest, North Carolina, Estados Unidos.
Roy L. Honeycutt jr., Professor de Velho Testamento e Hebraico, Seminá­
rio Batista do Centro-Oeste, Kansas City, Missouri, Estados Unidos.

Editores Consultores do Novo Testamento


J. W. MacGorman, Professor de Novo Testamento, Seminário Batista do
Sudoeste, Forth Worth, Texas, Estados Unidos.
Frank Stagg, Professor de Novo Testamento da James Buchanan Harrison,
Seminário Batista do Sul, Louisville, Kentucky, Estados Unidos.

CONSULTORES EDITORIAIS
Howard P. Colson, Secretário Editorial, Junta de Escolas Dominicais da
Convenção Batista do Sul, Nashville, Tennessee, Estados Unidos.
William J. Fallis, Editor Chefe de Publicações Gerais da Broadman Press,
Nashville, Tennessee, Estados Unidos.
Joseph F. Green, Editor de Livros de Estudo Bíblico da Broadman Press,
Nashville, Tennessee, Estados Unidos.
Prefácio

O COMENTÁRIO BÍBLICO BROADMAN apresenta um estudo bíblico


atualizado, dentro do contexto de uma fé robusta na autoridade, adequação e
confiabilidade da Bíblia como a Palavra de Deus. Ele procura oferecer ajuda e
orientação para o crente que está disposto a empreender o estudo da Bíblia como
um alvo sério e compensador. Desta forma, os seus editores definiram o escopo e
propósito do COMENTÁRIO, para produzir uma obra adequada às necessidades
do estudo bíblico tanto de ministros como de leigos. As descobertas da erudição
bíblica são apresentadas de forma que os leitores sem instrução teológica formal
possam usá-las em seu estudo da Bíblia. As notas de rodapé e palavras são
limitadas às informações essenciais.

Os escritores foram cuidadosamente selecionados, tomando-se em consideração


sua reverente fé cristã e seu conhecimento da verdade bíblica. Tendo em mente as
necessidades de leitores em geral, os escritores apresentam informações especiais
acerca da linguagem e da história onde elas possam ajudar a esclarecer o
significado do texto. Eles enfrentam os problemas bíblicos — não apenas quanto à
linguagem, mas quanto à doutrina e à ética — porém evitam sutilezas que tenham
pouco a ver com o que devemos entender e aplicar da Bíblia. Eles expressam os
seus pontos de vista e convicções pessoais. Ao mesmo tempo, apresentam opiniões
alternativas, quando estas são esposadas por outros sérios e bem-informados
estudantes da Bíblia. Os pontos de vista apresentados, contudo, não podem ser
considerados como a posição oficial do editor.

O COMENTÁRIO é resultado de muitos anos de planejamento e preparação.


A Broadman Press começou em 1958 a explorar as necessidades e possibilidades
deste trabalho. Naquele ano, e de novo em 1959, líderes cristãos — especialmente
pastores e professores de seminários — se reuniram, para considerar se um novo
comentário era necessário e que forma deveria ter. Como resultado dessas
deliberações, em 1961, a junta de consultores que dirige a Editora autorizou a
publicação de um comentário em vários volumes. Maiores planejamentos levaram,
em 1966, à escolha de um editor geral e de uma Junta Consultiva. Esta junta de
pastores, professores e líderes denominacionais reuniu-se em setembro de 1966,
revendo os planos preliminares e fazendo definidas recomendações, que foram
cumpridas à medida que o COMENTÁRIO se foi desenvolvendo.

No começo de 1967, quatro editores consultores foram escolhidos, dois para o


Velho Testamento e dois para o Novo Testamento. Sob a direção do editor geral,
esses homens trabalharam com a Broadman Press e seu pessoal, a fim de planejar
o COMENTÁRIO detalhadamente. Participaram plenamente na escolha dos
escritores e na avaliação dos manuscritos. Deram generosamente do seu tempo e
esforços, fazendo por merecer a mais alta estima e gratidão da parte dos
funcionários da Editora que trabalharam com eles.

A escolha da Versão da Imprensa Bíblica Brasileira “ de acordo com os melhores


textos em hebraico e grego” como a Bíblia-texto para o COMENTÁRIO foi feita
obviamente. Surgiu da consideração cuidadosa de possíveis alternativas, que
foram plenamente discutidas pelos responsáveis pelo Departamento de Publica­
ções Gerais da Junta de Educação Religiosa e Publicações. Dada a fidelidade do
texto aos originais bem assim à tradução de Almeida, amplamente difundida e
amada entre os evangélicos, a escolha justifica-se plenamente. Quando a clareza
assim o exigiu, foram mantidas as traduções alternativas sugeridas pelos próprios
autores dos comentários.

Através de todo o COMENTÁRIO, o tratamento do texto bíblico procura


estabelecer uma combinação equilibrada de exegese e exposição, reconhecendo
abertamente que a natureza dos vários livros e o espaço destinado a cada um deles
modificará adequadamente a aplicação desta abordagem.

Os artigos gerais que aparecem no Volume 8 têm o objetivo de prover material


subsidiário, para enriquecer o entendimento do leitor acerca da natureza da
Bíblia. Focalizam-se nas implicações do ensino bíblico com as áreas de adoração,
dever ético e missões mundiais da igreja.

O COMENTÁRIO evita padrões teológicos contemporâneos e teorias mutáveis.


Preocupa-se com as profundas realidades dos atos de Deus na vida dos ho­
mens, a sua revelação em Cristo, o seu evangelho eterno e o seu propósito
para a redenção do mundo. Procura relacionar a palavra de Deus na Escritura e na
Palavra viva com as profundas necessidades de pessoas e da humanidade, no
mundo de Deus.

Mediante fiel interpretação da mensagem de Deus nas Escrituras, portanto, o


COMENTÁRIO procura refletir a inseparável relação da verdade com a vida, do
significado com a experiência. O seu objetivo é respirar a atmosfera de relação com
a vida. Procura expressar a relação dinâmica entre a verdade redentora e pessoas
vivas. Possa ele servir como forma pela qual os filhos de Deus ouvirão com maior
clareza o que Deus Pai está-lhes dizendo.
Emanuence Digital
e
Mazinho Rodrigues

Sumário

Lucas Malcolm O. Tolbert


Introdução.............................................................
Comentário Sobre o T e x to ..................................

João William E. Hull


Introdução.............................................................
Comentário Sobre o T e x to ..................................
Lucas
Lucas
MALCOLM O. TOLBERT

Introdução elementos inerentes a esse início. Assim,


temas, que de outra forma poderiam
I. Unidade Literária de Lucas e parecer de menor importância ou até
Atos passar despercebidos no Evangelho, são
Lucas e Atos foram escritos pela mes­ apresentados com o seu pleno significado
ma pessoa. Esta opinião é esposada tão em Atos.
amplamente e é tão incontrovertível, que
é desnecessário defendê-la aqui. Estilo, II. O Autor
vocabulário, motivos característicos e
desenvolvimento de acordo com Embora um cabeçalho identificando o
nõ unificãdõr são sinais de um a autoria autor provavelmente estivesse apenso ao
comum, que devem ser detectados em manuscrito original, o terceiro Evange-
cada seção de ambos os livros. Juntos. lho é anônimo, na forma em que chegou
eles expressam as duas fases da história até nós. O titulo que lhe damos repre­
redentom êsBocadl em Lucfls 24^4^47 senta a tradição que unanimemente^ atri­
uma cumprida na vida d e J ^ F é T o u tra bui ambos — tanto o Evangelho como
na missão dajgreia. Pelo uso de artifícios Ates — a Lucàs, médico e companheiro de
literários estabelecidos, o autor indicou Paulo. Podemõs começar á~documentar ^
que Lucas e Atos eram duas partes da esta tradição de maneira definida a par­

Ao
mesma obra. Tais artifícios são, por tir da época de Irineu (c. 180 d.C.), que
exemplo, a referência ao volume ante- diz que Lucas compôs o seu trabalho
rior, feita em AtosJL l, o ejidereçamento depois da morte de Paulo. Q Cânon f i f )
cíe ãmbos a Teôfilo e as seções super­ Muratoriano, representando a opinião''"
postas no fim do terceiro Eva~ngeffiò e o da Igreja de’Roma no fim do segundo
começo de Atos. . século, ta m b é m riá testemunho de que
A natureza da relação entre Lucas e Lucas foi o autor dEsseslivros. O proíógo ( j
Atos deve ser levada em consideração no “antimarcionita,, do Evangelho apre**-“
estudo de qualquer um desses volumes. sentaalguns detalhes interessantes adi­
Ambos se originaram da mesma situação cionais a respeito de Lucas. Embora o
circunstancial e foram moldados segun­ seu valor histórico esteja sendo questio­
do a mesm a' perspectiva teológica. Õ nado, algumas^ das informações podem”
objetivo, ou objetivos, de cada um desses êsíaf~arçâígãBas em fatos. De acordo
livros deve ser definido no contexto da com este testemunho, Lucas era um sírio ^
obra toda. Os motivos característicos são de Antioquia, médico profissipnal e com- «
comuns a arri^)õs”5Ívolum es. O Eyange- panheiro de Paulo, depois de a princípio,
Iho apresenta a história do q u e O e su s ter sido seguidor dos apóstolos,. Esse
começou a fazer e ensinar” (At. 1:1), prólogo também declara que ele vivera
enquanto{Atos descreve a evolução dos celibatário até a morte. escreveu o Evãn-
gelho em Acaia e morreu com a idade de bart y chegou à conclusão, mediante as
oitenta e quatro anos na Beócia. suas investigações, que ocaso da vocação
Os únicos dados inquestionavelmente médica do autor estava provado de ma­
confiáveis a respeíto dè Lúcas7 são as neira meridiana. Ele baseou as suas con­
inforrnações encontradas no próprio No- clusões em estuáos de paralelos entre a
vo Testamento (Col. 4:14; ~Filem. 24; terminologia médica dos escritos de
II Tim. 4ÍTi77Três fatos a respeito dele Lucas com os de médicos gregos, como
emergem desse escasso material: (1) Ele Galeno, Hipócrates, Discórides e Areteu.
era gentio. Esta conclusão está baseada fPara provar esse ponto de vista, todavia, i
em Colossenses 4:10,11. onde o nome de íé também necessário mostrar que os mé-
Lucas não é incluído entre os “homens dicos gregos empregavam uma termino- j
da circuncisão” que eram companheiros logia completamente diferente da dos I
de Paulo quando foi pteso. (2) Ele era \ escritores não-médicos, o que Hobarjj
médico. (3) Ele era companheiro de ^deixou de levar em consideração. {H. J.
P a uloT Estes três itens de informação Cadbury 3^ expôs este engano da meto- "*
devem ser corroborados pela evidência dologi^deH obart,quandõ^ demonstrou
interna de Lucas-Atos, se é correta a que as expressões médicas de Lucas tam­
atribuição tradicional da obra a Lucas. bém se encontravam na Septuaginta, em
1. O autor era gentio? As evidências Josefo, Plutarco e Luciano. A verdade é " ?
existentes têm levado a grande maioria íque nenhum vocabulário técnico espe-
dos eruditos a crer que era. O prefácio ao jcificamente médico existia no mundo
Evangelho indica que ele se identifica* j antigo, cujo uso pudesse distinguir exata-
com os literatos helénicos. O seu domí­ J mente um especialista de um leigo eru-
nio dó idioma grego o coloca, juntamente I dito. ' ~
com o autor de Hebreus, na frente dos ^ Não obstante, é injusto descartar
escritores do Novo Testamento, a este J pêrempToríamént5 o aparente interesse e
respeito. Com a exceção de uns poucos o ‘conHeciménto de medicina demonstra­
usos de “amém” , ele evita çompletamen- dos pelo terceiro evangelista. Na verda­
te as palavras semitas. Ò evangelista trai de, ele faz uso exato de terminologia,
os seus antecedentes não palestinos, helé­ empregada por médicos, em inúmeras
nicos^ em muitos pontos, como, por passagens (4:38; 5:18,31; 7:10; 8:44;
exemplo, em 6:47 e s.; 8:16; 11:33; 21:34; At. 5:5,10; 9:40)*’Além disso, a
12:54; 13:9). A tendência de omitir refe­ omissão,, feita por Lucas, da referência
rências e conflitos, a respeito dfe assuntos preiudicíaLà profissão-médica (cf. Mar.
dFTeT judâica, tamBSm indica um autor 5:26 e Luc. 8:43)^>ode ser um indício
especialmente significativo das tendên­
Indubitavelmente, an escolha
..... ~ aue ele
• ~~ cias do autor.
faz dos materiais e o seu estilo literário Em conclusão, embora as evidências
são influenciados, até certo ponto, pelos ^internas de Lucas-Átos não provem nada
antecedentes dos gentios helénicos, para ^definidamente, acerca da profissão do
^ q u e m a obra é escrita. Mas têm-se à “ i áHtofr inÜTneras referências são adequa-
v imípTêssao~~gênérica de que ele está se ias à tradição de que ele era médico.
dirigindo a pessoas cuja herança racial e 3. Foi o autor companheiro de Paulo?
cultural ele compartilha. Esta é uma pergunta crucial, per­
2. Era médico o autor de Lucas-Atos? gunta sobre que as opiniões eruditas
Chegou um tempo quando respeitados divergem mais amplamente,. Os que
eruditos do Novo Testamento estavam
convencidos de que eles haviam estabe­ 1 The Medical Language of St. Lake (Dublin: Hodges,
Figgis & Co, 1882).
lecido uma resposta indisputavelmente 2 The Beginnings of Christianity, ed. E. J. Foakes-Jackson
afirmativa a esta pergunta. (W. K. Ho- e Kirsopp Lake (London: Macmillan, 1942), II, 349-355.

14 V I ZZj
1>- 5?
apoiam a ppsiçãojradiciqnal chamam a detalhes. A qualidade pessoal — de pri­
ate n ç ã o p ara a ^ m id aa e de certas carac; meira pessoa — da narrativa jerm ite
terísticas do terceiro Evangelho e impor­ pouca dúvida de que essas seções estão
tantes _ênfases paulinas. Entre essas, se baseadas na expenencia pessoal de um
encontram a nota de um a salvação uni-, companheiro de Paulo. As escassas evi­
versai (4:27; 24:47), a ênfase na alegria dências disponíveis indicam Lucas como
(1:T4; 2:10; 10:17,20; etc.), a preocupa­ um provável autor dessas passagens. Isto
ção com os pecadores (15:1 e ss.) e o uso é, pode ser demonstrado que Lucas esta-
de algumas palavras e expressõesencon- va, provavelmente, com Paulo dur^nte os
tradas, dentre os outros livros do Novo períodos mencionados nas seções “nôs” .
Testamento, apenas em Paulo.3 enquanto alguns dios outros companhei­
Por outro lado, tem sião afirmado que ros de Paulo devem ser excluídos.
o conceito que Lucas possui acerca do Além do mais, as seções “nôs” são
sigmficado dà"lnor1:y d e Jesus difere tão marcadas pelo estilo e vocabulário carac-
agudamente do de Paulo, a ponto de fênstico dé outras porções dé Lucas-
excluir a p os síblUdade de u m relaciona­ Atos. O mesmo homem colocou toda a
mento mais íntimo entre os dois. No oljraem forma final. Ora, se esse homem
terceiro Evangelho, é não foi o autor das seções registradas no
apresentada como uma necessidade di- estilo de um diário, estamos nos defron­
vinà. um pré-requisito para a exaltação tando com um fenômeno incomum. Ele
, Vde Jesus (9:22:24:26). e não lhe é dado. elaborou esse m ate n ard e maneira tão
o significado redentor que Paulo lhe atri- cuidadosa que fê-la como sua, marcada,
*651., TambériT notamos duas omissões em cada parte, por seu estilo literário
particularmente importantes: p a r c o s distintivo. Ao mesmo tempo, ele cometeu
10:45 não é encontrado em Lucas; nem o mais incomum erro de reyis§o, deixari-
são encontradas as palavras “ que por 3o de mudar o pronome pessoal não
muitos é derramado” (Mar. 14:24;Luc. apenas uma, porém várias vezes.
22:17 e s j . No entanto, a opinião de Da mesma forma, também não pode­
que Lucas-Atos foi escrito por um com­ mos resolver o problema conjecturando
panheiro de Paulo não é seriamente que “nós” é um artifício deliberado,
ameaçada por argumentos baseados em adotaão peTo autõr para emprestar mais
evidências encontradas no Evangelho. Os autenticidade à sua narrativa. “Nós”
maiores problemas se levantam em re^ aparece de forma tão desprovida de arte,
que dificilmente pode ser considerado
*■ ' Uma inquirição quanto à autoria de como uma coisa inventada. Um pres­
Lucas-Atos .gira em torno de duas per­ suposto mais natural é de que o autor das
guntas basicas: (1) Quem escreveu ãs seções registradas no estilo de um diário
íéçÕeFdiánas cíe Atos? E, (2) será que o também é o autor de Lucas-Atos, que
mesmo homem escreveu o restante de inconscientemente conservou os “ri5s” ‘
nos pontos em que foi participante pes­
seções “ nós” , de Atos (16:10-17; 20:5- soal dos acontecimentos. Nesse caso, o
2Í:18; 27:1-28:16), são marcadas por autor bem pode ter sido Lucas.
duas características distintas: a narrativa Adicionemos a isto o fato de que Lucas
começa abruptamente, para ser feita na é um dos personagens menores, quase
primeira pessoa do plural, e é caracte­ insignificante, jlo Novo Testamento. Ele
rizada por um a incomum precisão de teria passado despercebido, se não fosse
mencionado pela tradição como autor de
3 Sir John Hawkins, in Horae Synopticae (Oxford: Cia- considerável porção do Novo Testamen­
rendon, 1899), apresenta um a lista de cento e uma
palavras das cartas paulinas que se encontram apenas to. Uma pessoa assim dificilmente seria
em Lucas-Atos, em o Novo Testamento (p. 198 e s.)* escolhida para desempenhar este papel,
se não houvesse alguma base em fatos coríntios. Provavelmente, ele nem conhe-
para ligar o seu nome com Lucas e Atos.4 ceu Paulo até algum tempo depois do
_ | |__ .. ____ i ■K “ i i ir l i . . „1 ------*----------- — - ~

No entanto, muitos estudiosos afir­ Concilio de Jerusalém, e, como gentio,


mam que Lucas não poderia ter escrito dificilmente deve ter ^sentido a impor­
Lucas-Ato‘srdWidffJà"am pIádivergência tância das suas decisões. Os problemas
quanto aos gontos de vista teológicos, mais sérios, para a posição tradicional,
entre Atos e as epístolas pauíinas, em ocorrem em conexão com eventos desse
assuntos tão importantes como sóterio- período, em que supomos que Lucas não
logia, cristologia, escatologia e a lei. Eles estava com Paulo.
também vêem, em Atos, um conceito Também devemos perguntar: Que
posterior e modificado acerça da lgreia. mudanças podem ter sido operadas com
um retrato de Paulo como subserviente o passàr de tres décadas? O ambiente
à comunidade cristã judaica e a seus político e social diferente daTgréjà',' as
líderes, e uma falha em enfatizar a auto­ exigências contemporâneas do discipu-
ridade apóstolica de Paulo. lado cristão e a dificuldade de trabalhar à
Mais sérias do que todas estas, con­ Üistância, com acontecimentos conhe­
tudo, são as diferenças de informações, cidos "mediante relatórios orais, são al­
que podem sei- verificádás ào sè compa­ guns dos fatores que devem ter interfe­
rar o relato feito em Atos, acerca das rido na criação dos problemas com que
experiências-de Paulo desde a conversão os eruditos se debatem. E, sobretudo,
até o Concílio de Jerusalém (At. 9:1 e ss.; estamos trabalhando com fragmentos de
15:1 e ss.), com os dados autobiográficos evidência que não contam toda"a hfstó-
encontrados nas cartas, especialmente ria.
em Gálatas 1:11-2:10. Um problema Portanto, concluímos que a hipótese
especial liga-se à resolução do Concílio de trabalho mais satisfatória é que o
de Jerusalém, registrada em Atos 15: autor do terceiro Evangelho foi Lucas, o
19-21. Esta freqüentemente é conside­ ■meãfcõ, um dos companheiros de Paulo
rada como inadmissível, à luz da decla­ durante a última parte do seu ministério
ração feita por Paulo em Gálatas 2:9,10. que nos é conhecido.
Grande parte da crítica levantada con­
tra a autoria de Lucas não convence, LQ. Fontes
porque se baseia em pressupõstõs^que"
jiã o são necessariamente verdadeiros. Lucas não participou dos aconteci­
Eles exigem que creiamos que Lucas era mentos descritos no terceiro Evangelho
Í um companheiro de Paulõ durante muito
i tempo, completamente dominado pelos
(1:1-4). Devido a isto, ele dependeu de
fontes, para obter as informações de que
necessitou. Estas fontes podem ser divi­
| pontos de vista deste, plenamente equi- didas convenientemente em quatro cate­
| pado para interpretar-lhe as lutas e emo- gorias: (1) Marcos, (2) Q, (3) L e (4) as
j cionalmente envolvido na batalha contra narrativas a respeito do nascimento e
| o legalismo judaico. infância de João Batista e de Jesus.
Tanto quanto somos capazes de deter­ 1. Marcos. Uma conclusão ampla­
minar, Lucas não esteve com Paulo mente aceita, dos estudos críticos do
durante as grandes crises expressàs tlá Novo Testamento, é de que Lucas teve
correspondência com os gálatas e os acesso e usou extensivamente um a cópia
4 Um ponto de vista diferente tem sido sugerido por de Marcos, substancialmente equivalente
^Cadbu^jjEIe presume que o fato de se atribuir Lucas- ao texto que possuímos. Aproximada­
AtoslPCucas, companheiro de Paulo, é uma conclusão
lógica, baseada nos dados disponíveis em Atos e nas
mente, de trezentos a trezentos e cin­
Epístolas, e que ela começou a circular no segundo sécu­ qüenta versículos, do total de mil cento e
lo (Op. cit., II, 260 e ss.; cf. The Mabfaig of Lnke-Acts, dezenove versículos de Lucas, ou cerca de
p. 351 e ss.).
vinte e oito por-cento do Evangelho deri­ Várias explicações têm sido oferecidas
vou dessa fonte. para o fato de Lucas não ter usado nada,
Cerca de setenta por-cento da substân­ absolutamente, desta longa passagem.
cia de Marcos aparece em Lucas, na sua Tem sido argumentado que essa seção
maioria em grandes blocos, de acordo estava faltando na cópia que Lucas tinha
com a tendência, de Lucas, de usar uma de Marcos (Streeter, p. 172 e ss.), mas
fonte de cada vez. Contrastantemente, esta idéia não ganhou ampla aceitação.
Mateus mistura passagens das suas fon­ A omissão, mais provavelmente, foi deli­
tes, alinhavando-as, para formar seções berada, resultando de vários motivos:
mais ou menos homogêneas, relaciona­ (1) Marcos 6:45-52 é muito semelhante à
das com certos temas principais. história de Lucas 8:22-25 (Mar. 4:35 e
Lucas usou consideravelmente menos ss.); (2) Marcos 6:53-56 não é usado,
de Marcos do que Mateus fez uso. O provavelmente (cf. VincentTaylor, p. 91)
fator determinante do fato de ele não ter porque Lucas pensa em Genezaré mais
usado todo o material pode ter sido falta como um lago do que como uma região;
de espaço. Não obstante, em cada caso (3) Marcos 7:1-23 fala da hostilidade
precisamos perguntar: Por que esta pas­ entre Jesus e os líderes judeus, acerca de
sagem, ao invés de outra? Em inúmeros pontos da lei judaica, tipo de passagens
exemplos, a resposta é, aparentemente, o evitadas por Lucas; (4) Marcos 7:24-37
fato de que Lucas tinha um a passagem fala de uma viagem a terras gentias e,
semelhante, à qual deu preferência. por conseguinte, não se coaduna com o
Desta forma, o relato de Marcos, da princípio de Lucas, de confinar o minis­
vocação dos primeiros discípulos (1:16- tério de Jesus a território judeu (Taylor,
20), é substituído pela história encontra­ p. 91); (5) Marcos 8:1-21 pode ser con­
da em Lucas 5:1-11. A controvérsia acer­ siderado duplicata de Marcos 6:35 e ss.
ca de Belzebu (Mar. 3:22-30) não é usa­ (Luc. 9:12 e ss.); (6) Marcos 8:22-26
da, porque Lucas possuía uma versão de descreve de forma tal a cura de um cego,
Q (11:14-22). O mesmo acontece com a que pode ter sido considerada como
Parábola do Grão de M ostarda (Mar. impugnando o poder de curar imediata­
4:30 e ss.; cf. Luc. 13:18,19), cuja com­ mente e completamente.
panheira, a Parábola da Semente (Mar. O material proveniente de Marcos
4:26-29) também falta em Lucas. Outras determina a estrutura básica do terceiro
passagens de Marcos, também omitidas, Evangelho. Com a exceção de quatro
para as quais há paralelos,, pelo menos deslocamentos, Lucas respeita a ordem
parciais, em Lucas, são: Marc. 6:1-6 — de Marcos.
Luc. 4:16 e ss.; Marc. 10:1-12 — Luc. Lucas segue a sua fonte com um grau
16:18; Mar. 11:12-14,20-25 — Luc. notável de fidelidade, usando tanto
13:6-9; Mar. 12:28-34 — Luc. 10:25-28. quanto sessenta e oito por-cento das pró­
O pedido dos filhos de Zebedeu (Mar. prias palavras de Marcos, em algumas
10:35 e ss.) é omitido, porque Lucas passagens. Uma grande proporção das
manifesta a tendência de suprimir mate­ alterações de Marcos, feitas por Lucas,
riais que mostrem os discípulos sob luz tem significado teológico pequeno ou
desfavorável. O fato de ele não registrar nulo. Ele efetua muitas modificações em
a execução de João Batista (Mar. 6:17 passagens de Marcos, com o intento de
e ss.) precisa ser considerado em conexão melhorar a linguagem e o estilo. Todos os
com o tratamento singular que Lucas dá aramaísmos, com exceção do amén (seis
a outras passagens acerca do Batista vezes) são rejeitados; inúmeros barba-
(cf. Conzelmann, p. 22 e ss.). rismos latinos são traduzidos em termos
A chamada “grande omissão” (Mar. gregos; o presente histórico é eliminado,
6:45-8:26) constitui um caso especial. exceto em um exemplo; expressões mais
sofisticadas substituem grande parte do parábolas e nenhuma narração de mila­
estilo repetitivo de Marcos; os particípios gres, tanto quanto somos capazes de
são substituídos pelo primeiro elemento determinar. (Lucas 7:1 e ss. geralmente
de verbos compostos ligados por kai (e); não é classificada como narrativa de
partículas conectivas são acrescentadas, milagre.) Há também apenas uma ou
de acordo com o bom estilo grego; e duas referências a exorcismo, nesse ma­
variações são introduzidas, com o fim de terial. Q consistia primordialmente de
tomar o texto mais claro para os leitores palavras de Jesus, preservadas, porque
gentios. Por outro lado, há um paradoxo eram importantes para suprir as neces­
no estilo de Lucas; ele freqüentemente sidades e problemas que a comunidade
usa construções e expressões gramaticais cristã enfrentava. O lugar original em
que esperava-se que um escritor grego que a maioria dessas palavras havia sido
evitasse.5 proferida perdeu-se, e nenhuma tenta­
Como foi notado acima, algumas mo­ tiva foi feita para suprir essa lacuna. Por
dificações são resultado da admiração de esta razão, o intérprete se defronta com
Lucas pelos primeiros discípulos (veja, problemas especiais, quando encontra no
v.g., Mar. 4:13 — Luc. 8:11; Marc. 4:40 texto uma série de palavras de Jesus sem
— Luc. 8:25; Mar. 9:28es. — Luc. 9:43; nenhuma conexão íntima verdadeira.
etc.). Também, a reverência de Lucas A extensão exata de Q não pode ser
por Jesus leva-o a fazer certas alterações. definida exatamente. Tanto Mateus
Por exemplo, fortes emoções humanas quanto Lucas, ao que se pensa, contêm
não são atribuídas a Jesus (v.g., Mar. passagens de Q sem paralelos um no
1:41 — Luc. 5:13; Mar. 3:5 — Luc. 6:10; outro. E, também, algo de Q pode ser
Mar. 6:34 — Luc. 9:11). Ele não usa que não seja encontrado em nenhum dos
Marcos 3:20,21, onde a família de Jesus dois Evangelhos, embora seja bem im­
diz que ele está “fora de si” . Também provável que seria uma extensão signi­
não temos o grito de desolação (Mar. ficativa. A reverência pelas palavras de
15:34; cf. Luc. 23:46). Jesus trabalhou contra a omissão desse
2. Q. Muitas passagens que em Lu­ tipo de material.
cas não provieram de Marcos são pa­ Embora essas generalizações sejam
ralelas a partes de Mateus. Estas são perigosas, podendo levar-nos a caminhos
derivadas de outra fonte comum à qual errados, geralmente se admite que Lucas
tem sido dada a designação de Q. Lucas tende a preservar a ordem original de Q,
deve a Q cerca de duzentos e vinte a e reproduzir o texto em sua forma mais
duzentos e trinta versículos, ou cerca de primitiva.
vinte por-cento do material do terceiro As seguintes passagens de Lucas po­
Evangelho. Numerosas passagens de Q, dem ser derivadas de Q: 3:7-9,16,17;
em Lucas, são muito semelhantes às suas 4:1-13; 6:20-49; 7:1-10,18-34; 9:57-60;
paralelas em Mateus — em alguns casos, 10:2-16,21-24, e outras.
ipsis litteris. E, também, há lugares em 3. Material Especial de Lucas. A
que é seguida a mesma ordem de passa­ maior parte do terceiro Evangelho está
gens. Isto indica que Q era um docu­ baseada em fontes usadas apenas por
mento grego escrito, do qual ambos os Lucas. Cerca de quinhentos e trinta a
escritores possuíam um a cópia. Por de­ quiiihentos e oitenta versículos, repre­
trás dele, situa-se um original aramaico, sentando mais de cinqüenta por-cento da
escrito ou oral. Q continha muito poucas sua obra total, não encontram paralelos,
quer em Marcos quer em Mateus. O
5 Veja Xavier Léon-Dufour, “The Synoptic Gospels” ,
símbolo L geralmente é usado em relação
Introduction to the New Testament, ed. André Robert e ao material especial de Lucas, menos nos
André Feuillet (New York: Desclee, 1954), p. 223 e ss. dois primeiros capítulos.
Uma vista d’olhos nas seguintes pas­ diosos têm advogado a tese de que essas
sagens, incluídas em L, indicará como a narrativas são traduções gregas de um
comunidade cristã seria máis pobre sem original hebraico. Outros, ainda, chega­
o terceiro Evangelho: 3:1,2,5,6,10-14, ram à conclusão de que elas foram colo­
23-38; 4:14-30; 5:1-11; 6:24-26; 7:11-17, cadas em sua presente forma por Lucas,
36-50; 8:1-3; 9:51-56,61,62; e outras. que cònscientemente produziu-as no esti­
Quando discutimos idéias características lo da Septuaginta, a fim de enfatizar o
de Lucas, aproveitamo-nos grandemente ambiente hebraico em que se desenro­
destas passagens. O interesse em cole­ laram. Este argumento não pode ser
tores de impostos, samaritanos, pecado­ provado pelas evidências disponíveis. O
res e mulheres, bem como a preocupação que pode ser afirmado é que a evidência
que ele demonstra por assuntos como indiscutível do estilo de Lucas está pre­
oração e saúde, encontram amplas ilus­ sente nesta seção, bem como no restante
trações no material de L. de Lucas-Atos. Em outras palavras, ele
Aqui também encontram-se os mais as colocou em sua forma final.
abundantes rastos do estilo e vocabulário Esse material é apresentado em uma
do editor-escritor do terceiro Evangelho. série de narrativas encadeadas, o que por
Por esta razão e devido à ausência de si mesmo é um fenômeno inusitado nos
qualquer esquema definido de organi­ Evangelhos. Na sua maior parte — sendo
zação, podemos concluir que os mate­ exceção significativa a história da paixão
riais chegaram a Lucas pouco a pouco, — as palavras, histórias, parábolas, etc.,
em forma oral. Eles provavelmente, re­ de que os Evangelhos foram formados,
presentam os resultados da investigação circularam, independentemente, em
que ele fez pessoalmente (cf. 1:3). Essas unidades autônomas e pequenas, que os
passagens trazem a marca registrada de eruditos chamam de perícopes, durante o
uma tradição de Jerusalém. Se puder­ período da transmissão oral.
mos presumir que Lucas, companheiro As histórias acerca do nascimento e da
de Paulo, foi o autor do terceiro Evange­ infância de João Batista e de Jesus, con­
lho, podemos chegar à conclusão de que tadas por Lucas, centralizam-se em Jeru­
ele adquiriu a maior parte desse material salém, e, provavelmente, chegaram às
especial durante a sua permanência em suas mãos vindas da comunidade cristã
Cesaréia, depois da prisão de Paulo, de Jerusalém. Elas coincidem com as
Como pessoa de inclinações literárias, suas correspondentes em Mateus, com
pode ser que ele tivesse acumulado esse referência à descrição dos pais de Jesus, a
material em um a espécie de caderno afirmação do nascimento virginal e a
pessoal, para o dia em que pudesse ser designação de Belém como lugar da na­
útil. tividade e de Nazaré como lugar em que
4. Narrativas do nascimento e infan­ Jesus foi criado.
da de loão Batista e de Jesus. As histórias
relacionadas com o nascimento e infân­ IV. A Composição de Lucas
cia de João Batista e de Jesus pertencem
ao material especial de Lucas, mas a sua Uma das questões interessantes a res­
característica singular exige que elas peito do terceiro Evangelho relaciona-se
sejam consideradas em categoria sepa­ com o procedimento usado pelo autor
rada. para colocar em ordem os materiais pro­
A linguagem em que essas narrativas vindos das suas várias fontes. Os fatos
foram escritas é muito semelhante à da principais são os seguintes:
Septuaginta (tradução grega do V.T.). 1. Há dois capítulos introdutórios, que
Devido à facilidade com que podem ser situam-se à parte do restante de Lucas,
traduzidas para o hebraico, alguns estu­ devido ao seu conteúdo, linguagem e
estilo. Se, por algum acidente da histó­ rejeição em Nazaré. Terminava com a ver­
ria, esses dois capítulos tivessem se per­ são de Lucas acerca da paixão e ressur­
dido, ninguém poderia perceber que algo reição. Mais tarde, Lucas adquiriu uma
estava faltando no terceiro Evangelho. cópia de Marcos, que inseriu, primeira­
2. Lucas 3:1 e ss. serve de começo bem mente em blocos, no Evangelho já escri­
plausível para o Evangelho, do ponto de to. A esta obra foram acrescentadas,
vista literário. E, visto que os aconteci­ como introdução, as narrativas do nasci­
mentos essenciais do Evangelho come­ mento e da infância de Jesus. O Evan­
çam com o batismo de João (At. 1:21, gelho foi completado com a composição
22), este é também um bom começo da de um prefácio para servir de introdução
perspectiva da compreensão da igreja para o todo.
primitiva acerca da história da salvação. Para início de qualquer discussão,
3. A genealogia, em Lucas 3:23-38, está ninguém ainda demonstrou satisfatoria­
em um contexto de fato incomum, se mente que um documento composto de
supusermos que os capítulos 1 e 2 per­ Q mais L pode ser considerado composi­
tencem a Lucas desde o princípio. Seria ção viável, que tivesse existência inde­
mais natural que ela estivesse ao lado do pendente. Além disso, a estrutura do
relato do nascimento de Jesus, como em Evangelho indica que não estamos li­
Mateus. dando com uma composição literária
4. Marcos é usado primordialmente em secundária, calcada sobre uma obra an­
grandes blocos. Uma longa seção do terior. Por exemplo, as referências à ces­
segundo Evangelho não é usada abso­ sação das tentações do Diabo, em 4:13,
lutamente. e à sua atividade renovada, em 22:3, têm
5. A história contada por Lucas, acerca sido mostradas como a indicar o con­
da Ültima Ceia e da paixão (22:14 e ss.), ceito do autor a respeito do começo e do
mostra diferenças marcantes em relação fim do ministério público de Jesus (Con-
à narrativa de Marcos, e parece depender zelmann, p. 16, 28 e 80). Em outras
grandemente de uma fonte diferente. palavras, essas são referências-chave,
6. Lucas tem a sua própria fonte para essenciais ao plano total de Lucas-Atos, e
as narrativas da ressurreição, que têm indícios fundamentais da compreensão
por palco Jerusalém e seus arredores. do autor a respeito da história da salva­
Marcos, por outro lado, leva-nos a espe­ ção. Lucas 4:13 está ligado com uma
rar aparições pós-ressurreição na Gali- passagem de Q, enquanto 22:3 encontra-
léia (16:7; cf. Luc. 24:6-7), que é o que se em um contexto de Marcos.
encontramos em Mateus (28:16).
Numerosos eruditos notáveis, especial­ O tema de viagem dá a Lucas ocasião
mente B. H. Streeter (The Four Gospels) para introduzir a seção de consideráveis
e Vincent Taylor (Behind the Third Gos- passagens heterogêneas, provindas de Q
pel) chegaram à conclusão de que esses e L (encontradas em 9:51-19:27), no ar­
fenômenos são melhor explicados pela cabouço do ministério de Jesus. E é ao
hipótese de que um evangelho anterior, esboço, que Marcos faz, das atividades
mais resumido, está por detrás do atual de Jesus, que Lucas deve a idéia desse
Evangelho de Lucas. A essa obra eles têm tema (Mar. 10:1; 11:1).
dado o nome de proto-Lucas. De acordo O episódio de Nazaré, outra vez uma
com esta teoria, Proto-Lucas era com­ passagem-chave em Lucas-Atos, pres­
posto dos materiais atribuídos a Q e a L. supõe obras miraculosas que foram feitas
Começava com a nota histórica de 3:1 e em Cafarnaum (4:23)'. É precisamente a
s., seguida de um relato acerca do minis­ narrativa feita por Marcos, de milagres
tério do Batista, do batismo de Jesus, da operados em Cafarnaum (Luc. 4:31 e
genealogia, da tentação de Jesus e de sua ss.), que ilustra esta referência. O prefá-
cio a Atos descreve o Evangelho como um do ministério de Paulo mais abrupta­
relato de “ tudo quanto Jesus começou a mente do que o relato que faz sobre as
fazer e a ensinar” . De fato, o terceiro atividades de Pedro, acerca de quem
Evangelho começa a sua apresentação também somos deixados sem respostas
das atividades de Jesus com um progra­ satisfatórias às nossas interrogações. Há
ma de milagres em Cafamaum e suas também bons argumentos para sustentar
circunvizinhanças (Marcos). Só depois que certos aspectos de Lucas são inte­
Lucas, diferentemente de Mateus, narra ligíveis apenas se esse livro foi escrito
o ministério didático de Jesus, em depois da perseguição movida por Nero e
6:12-49, uma passagem provinda de Q. da guerra judaico-romana de 66 a 70 d.C.
Estas considerações justificam a con­ Por outro lado, Lucas-Atos tem sido
clusão de que Lucas-Atos foi composto datado em época bem avançada do se­
sobre um plano cuja execução reuniu os gundo século. O argumento mais notável
materiais recebidos das fontes de Lucas contra uma data muito posterior a 90
na forma de uma unidade literária, que d.C. todavia, é o fato de o escritor apa­
virtualmente exclui a possibilidade de rentemente não tomar conhecimento das
um Evangelho anterior. epístolas paulinas, que estavam come­
çando a circular amplamente no fim do
V. Data e Lugar em Que Foi primeiro século.
Escrito Inúmeros fatores parecem requerer
uma data entre 70 e 90 d.C. Entre eles,
Lucas deve ser colocado entre Marcos
estão os seguintes: '
e Atos, sendo o primeiro uma fonte e o
sêgúndcT um volume posterior, escrito 1. Marcos é datado, pela maioria dos
pelo mesmo autor (At. 1:1). Isto significa eruditos, por vplta da época da perse­
que os limites externos para a datação guição movida por Nero. 74 d.C.. que, se
do terceiro Evangelho são determinados verdadeiro, obsta a que Lucas seja data­
datando-se Marcos e Atos. do em época extremamente anterior.
Uma data mais antiga, anterior a 2. Duas passagens em Lucas podem ser
67 d.C., tem sido recomendada. Alguns explicadas melhor se o Evangelho foi
comentaristas a colocariam até mesmo escrito depois da guerra judaico-romana.
antes da perseguição de Nero (64 d.C.). A descrição do cerco de Jerusalém, em
Os argumentos usados para sustentar Lucas 19:43,44, apresenta um quadro
uma data anterior são baseados no que é exato desse acontecimento desastroso,
considerado o fim abrupto de Atos, a como é relatado por contemporâneos.
falta de referências à perseguição movida Pode também ser dito, por outro lado,
por Nero, o fato de não se falar a respeito que esperava-se que um parágrafo como
do que aconteceu com o julgamento de esse, se fosse escrito depois da guerra,
Paulo, e um aparente desconhecimento devia ter minúcias mais específicas.
da destruição de Jerusalém. A passagem mais importante é Lucas
Estes argumentos não são convincen­ 21:20, onde a referência apocalíptica à
tes. Uma boa discussão pode ser feita “abominação da desolação” , feita por
para sustentar a posição de que Atos não Marcos, é transformada em uma decla­
termina abruptamente, mas que é levado ração sobre o cerco de Jerusalém. O co­
a uma conclusão dramaticamente apro­ mentário de Streeter a este respeito resu­
priada e satisfatória.6 Da mesma forma, me a situação: “Visto que, em 70 d.C., o
Lucas também não termina o tratamento aparecimento do anticristo não aconte­
ceu, mas as coisas que Lucas menciona
6 Cf. Frank Stagg, O livro de Atos (Rio de Janeiro: sucederam, a alteração é mais razoavel­
JUERP, 1982), p. 15es. mente explicada como devida ao conheci-
mento do autor acercai desses fatos” VI. Objetivos
(p. 540),
3. Devia ter passado tempo suficiente Lucas-Atos é semelhante a uma sin­
para Lucas elaborar o tratamento da fonia, em que podemos detectar vários
Parousia (veja abaixo). Esse assunto, na temas, que emergem repetidamente. Um
forma pela qual Lucas o tratou, parece desses, na verdade, pode ser o tema do­
requerer algum tempo depois da morte minante. Desta forma, os escritores têm
da primeira geração de testemunhas afirmado que esta obra precisa ser enten­
cristãs. dida, por exemplo, como polêmica polí­
4. A polêmica contra os judeus toma-se tica, como um a explicação da missão aos
mais lógica quando atribuímos Lucas- gentios, como uma defesa contra o gnos-
Atos a um período após o cisma entre o ticismo ou uma solução definitiva do
cristianismo e o judaísmo ter-se amplia­ problema de uma Parousia adiada. Tal­
do a tal ponto que uma divisão definitiva vez o melhor que pode ser feito, em uma
se estabeleceu. A guerra judaico-romana introdução ao Evangelho, é relacionar
foi o ponto em que se tornou impossível algumas das principais preocupações que
um retorno nas relações judaico-cristãs, aparentemente influenciaram o escritor,
porque os judeus cristãos se recusaram a em sua escolha e adaptação dos materiais
sustentar o messianismo nacionalista de que constituem o terceiro Evanglho.
seus conterrâneos. 1. O autor queria contar um a história
5. A apologética política de Lucas-Atos que apresentasse fielmente os aconteci­
parece originar-se de um período poste­ mentos sobre os quais o Evangelho estava
rior à época quando o movimento cristão baseado. Provavelmente, a multiplici­
já havia experimentado a perseguição, dade de fontes, então existentes, tanto
devido à má compreensão de sua natu­ escritas como orais, eram, para ele, um
reza e seus motivos. No entanto, ainda desafio. O seu esforço, ao que parece, foi
havia esperança de que o governo roma­ colocar os materiais, que havia encon­
no, corretamente informado, continuasse trado, em seqüência lógica, encerrados
a ser a espécie de poder protetor que no âmbito de um volume. Ele também
demonstrou ser, em várias ocasiões, no desejava acrescentar a seqüência indis­
decorrer do livro de Atos. A perseguição pensável aos atos e palavras de Jesus.
movida por Nero preenche esses requisi­ Desta forma, isto constituiria um registro
tos. Por outro lado, a perseguição movida completo do que havia sido “realizado”
por Domiciano provavelmente destruiu ( 1:1).
efetivamente todas as esperanças de que Pensamos que o terceiro evangelista
o governo viesse a ser o protetor do movi­ foi um historiador, mas precisamos ter
mento cristão. Portanto, dataremos cuidado para não julgá-lo mediante o
Lucas entre as perseguições nos governos critério, ou critérios, da historiografia
de Nero e Domiciano, ou em cerca de moderna. A sua afinidade é com escri­
80-85 d.C. tores que existiram há dois milênios,
O prólogo “ antimarcionita” ao Evan­ v.g., Políbio, Tácito e Josefo, e não com
gelho de Lucas declara que ele foi escrito autores de época mais recente. E, sobre­
na Acaia, mas isso é, provavelmente, tudo, ele escreve como um cristão apai­
nada mais do que uma suposição. Várias xonadamente dedicado ao seu ponto de
sugestões têm sido feitas, em tempos vista, ao invés de fazê-lo como observa­
mais recentes — Roma, Cesaréia e Acaia dor desapaixonado, objetivo, científico.
— nenhuma das quais pode ser confir­ Ele, juntamente com os outros evange­
mada adequadamente. Ê inútil e infru­ listas, escreveu “ de fé em fé” .
tífero especular a respeito do lugar em Um dos frutos da erudição moderna
que esse livro foi composto. tem sido uma recuperação da perspectiva
adequada, a partir da qual podemos anos em Nazaré, o que pode representar
abordar os Evangelhos. Eles são docu­ uma limitação imposta a Lucas por falta
mentos teológicos, e não “vidas de de uma fonte que lhe provesse essas
Jesus” . Não obstante, trata-se de teologia informações. No entanto, parece correto
arraigada na história, e para a qual a concluir-se que as histórias que nos fo­
verdade acerca do que aconteceu é extre­ ram preservadas servem integralmente
mamente importante. Podemos crer que ao propósito do escritor.
não era menos importante para Lucas. A No corpo do Evangelho, a continuidade
suprema verdade, para ele, não era, entre Jesus e as promessas das Escrituras
todavia, um fenômeno objetivamente é confirmada (3:4-6). Logo no começo,
verificável. A sua convicção era de que fica claro que o programa do seu minis­
Jesus de Nazaré era o exaltado Senhor da tério cumpre os requisitos proféticos
Igreja. Desta perspectiva, ele abordou a (4:18,19). Na conclusão do Evangelho, o
sua tarefa como repórter de uma cadeia Senhor ressurrecto diz, aos seus discí­
de acontecimentos extremamente impor­ pulos, que a sua experiência devia ser
tante. entendida como cumprimento de tudo o
2. Ele estava interessado em delinear a que fora escrito a respeito dele nas Escri­
relação entre o cristianismo e o judaísmo. turas (24:44-46).
À maneira pela qual ele tratou desse Lucas faz um esforço para estabelecer
assunto é determinada pela brecha enor­ o fato de que a brecha que existia em sua
me que já separava essas duas religiões época, entre o judaísmo e o cristianismo,
na época em que escreveu. Isto levou-o a não havia sido criada por Jesus e seus
(1) estabelecer a continuidade entre o cris­ seguidores. De fato, o oposto realmente
tianismo e a história redentora judaica, foi o caso, de acordo com o terceiro
e (2) mostrar como a alienação entre os evangelista.
dois movimentos ocorreu. No terceiro Evangelho, Jesus começa o
No Evangelho, está claro que o cristia­ seu ministério apresentando-se aos habi­
nismo teve o seu início na matriz do tantes de sua cidade natal, isto é, ao seu
judaísmo ortodoxo e que Jesus era o próprio povo, mas eles o rejeitam. Lucas
Messias das expectações judaicas. O é o único escritor que retrata Jesus cho­
Templo de Jerusalém é o palco do pri­ rando sobre Jerusalém (Luc. 19:41-44).
meiro episódio do Evangelho; as pessoas As palavras de Jesus, nessa ocasião, são
nele envolvidas são descritas como judeus um testemunho pungente do desejo que
impecavelmente ortodoxos e piedosos. ele tinha de ser aceito pelo seu povo.
Zacarias estava executando um dos ri­ Desta forma, a atitude de Jesus, em
tuais mais importantes da adoração no relação à sua pátria, é colocada em
Templo, quando lhe apareceu o mensa­ contraste com a rejeição que ele experi­
geiro celestial. mentou.
As histórias da infância de Jesus ser­ Atos continua este mesmo tema, tor­
vem para ligá-lo ao judaísmo: (1) ele foi nando-o muito mais explícito, pois os
circuncidado (2:21); (2) ele foi apresenta­ esforços de Paulo, para ganhar os seus
do no Templo (2:22-24); (3) Simeão e concidadãos, continuam até o fim. A
Ana, representantes dos judeus genuina­ rejeição que ele enfrenta é semelhante à
mente piedosos, reconheceram-no como que Jesus experimentara em Nazaré.
o Messias esperado (2:25-38); (4) ele foi Os judeus não entenderam as Escri­
levado a Jerusalém com a idade de doze turas, e, por isso, reagiram contra os
anos e, quando foram em sua busca, ao eventos que as cumpriam. Por este moti­
notarem sua ausência, encontraram-no vo, o judaísmo da época de Lucas negou
conversando com os rabis no Templo as suas origens. A comunidade cristã era
(2:41-50). Nada se diz dos seus primeiros o verdadeiro Israel. Em contraste ao
judaísmo contemporâneo, ela entendeu ticas. Ao reagir favoravelmente às exi­
o Velho Testamento e tornou-se, de fato, gências da pessoa de Jesus, Zaqueu não
o seu cumprimento. Lucas parece atri­ repudia a sua profissão; pelo contrário,
buir aos judeus primeiramente o papel de declara a intenção de usar a sua riqueza
perturbadores, responsáveis pela falta de para exercer caridade e reparar a ex­
entendimento, que se estendeu a outros ploração do próximo que porventura ti­
grupos, a respeito da fé cristã. Eles tra­ vesse cometido.
maram, através de suas acusações falsas A terceira ilustração da atitude expres­
e através da pressão exercida sobre Pila- sa em Lucas, em relação ao pagamento
tos, a morte de Jesus. Essa hostilidade de impostos, é encontrada em 20:19^26^
também foi dirigida contra os primeiros onde a questão dos tributos é levantada.
cristãos, especialmente contra o apóstolo O comentário editorial (20:19; cf. Mar.
Paulo. A maior parte de suas dificul­ 12:13) mostra que a intenção dos líderes
dades com as autoridades foram causa­ 'judaicos era encontrar alguma desculpa
das por acusações falsas feitas contra ele para acusar Jesus de subversão. É tam-í1
por seu próprio povo. bém demonstrado que a conspiração foi
3. Lucas escreveu para provar que o realçada (v. 26) e que Jesus, ao contrário!
cristianismo não era nenhuma ameaça \das esperanças dos seus inimigos, san-'
para a autorÍdadê~polfficã~do Império. cionava o pagamento de impostos.
Se, na verdade, como é bem~prõvável, Estas passagens constituem o pano de
(TeòfiÍÔ)era um oficial romano que tinha fundo para a descrição que Lucas faz do
um conceito distorcido a respeito do julgamento de Jesus, em que o tema
caráter político dõ~Tffovimento cristão apologético vem à tona. Os próprios
(veja 1:3), entendemos o prefácio a Lucas líderes judaicos montaram as acusações
como uma introdução à apologética contra Jesus (23:2). Essas acusações são
política que percorre Lucas-Atos de patentemente falsas, à luz de passagens
ponta a ponta. O reconhecimento de Lu­ como as mencionadas acima. Por três
cas de que a Igreja podia continuar a vezes Pilatos afirma a inocência de Jesus,
existir no contexto do Império fez neces­ a respeito dos crimes de que é acusado
sário que ele, durante algum tempo, se (23:4,14,22). A isto acrescenta-se tam­
houvesse com o problema do relaciona­ bém o testemunho de Herodes Antipas,
mento entre o cristianismo e o Estado tetrarca da Galiléia (23:15). Finalmente,
(Conzelmann, p. 138). o centurião presente à crucificação, ter­
A natureza não-política, e até apro­ ceiro representante do governo imperial
priada, da mensagem da Igreja é expres­ mencionado na narrativa, exclama: “Na
sa, antes de tudo, nas admoestações de verdade, este homem era justo!” (23:47;
João Batista aos servos do Império, na cf. Mar. 15:39). A responsabilidade pela
pessoa de coletores de impostos e solda- morte de Jesus é colocada completamen­
dos (3:12-14). Em ambos os casos, não te nos ombros dos líderes judaicos e seus
há nenhuma sugestão de que o serviço seguidores. Eles haviam feito as acusa­
prestado ao Estado é intrinsecamente ções, e pode-se inferir que eles super­
errado. visionaram a crucificação (23:25,26 — o
Ç Jesu^estabeleceu o seu programa mes- sujeito de “eles” é encontrado em 22:66).
siânicoem termos que são facilmente A própria atitude deles em relação ao
vistos como apolíticos. Através de Lucas- governo imperial é demonstrada pela sua
Atos, a realeza de Jesus é definida de insistência na libertação de Barrabás,
forma que não constitui ameaça ao um genuíno revoltoso (23:25; cf. Mar.
governaaõrromano. 15:15).
A história deÇZaqueu^J o publicano 4. Lucas escreveu a fim de apresentar
(19:1-10), também tem implicações polí­ uma solução~para o problema que se
havia levantado: de opiniões erradas Hans Conzelmann elaborou detalha­
acerca da Parousia ou chamada segunda damente o que ele entende como a solu­
vinda.- Isto pode ser percebido tanto pela ção de Lucas para o problema causado
maneira como ele edita a sua fonte de pelo adiamento da Parousia (p. 16). Ele
Marcos, como no material especial que descobre uma concepção de história da
introduz. salvação que se desdobra em três partes:
(1) período de Israel, (2) período do
Antes de tudo, percebe-se o esforço ministério de Jesus e (3) período da Igre­
para guardar-se contra a idéia de que a
ja. Desta forma, o ministério de Jesus é
Parousia necessariamente devia acon­
removido de sua posição como evento
tecer logo. Não achamos Marcos 1:15: escatológico decisivo, como prelúdio
“O tempo está cumprido, e é chegado o imediato do fim da história. Pelo contrá­
reino de Deus.” Pelo contrário, Lucas rio, o seu ministério se torna o ponto
enfatiza a proclamação das boas-novas médio da história da salvação. A época
do reino, isto é, a natureza do reiriò, ao de Jesus é separada da Parousia pela
invés de sua iminência (cf. 4:17-21,43;
época da Igreja. Desta forma, Lucas deu
16:16; também o texto grego de At. 1:3). uma solução definitiva para o problema
O reino de Deus é uma realidade futura,
da escatologia, não importando quão
transcendente, escatológica, que é colo­
grande seja a demora até o fim. A solu­
cada além do contexto da'história. Por ção de Lucas é considerada um substi­
tanto, não se pode falar de sinais nem dô
tuto da expectativa de uma Parousia
tempo da sua vinda (17:20,21; 21:8; At.
iminente, que havia prevalecido até
1:6,7). A vinda do reino está separada de
então.
acontecimentos como guerras messiâ­
nicas (2Í.9; cf. Mar. 13:7), a perseguição Não obstante, é possível exagerar a
dos cristãos (21:12) e a destruição de diferença entre Lucas e seus predeces­
Jerusalém (21:20-24). Estes são aconte­ sores. Há uma diferença de ênfase, em
cimentos da história, e não devem ser vez de uma compreensão totalmente
considerados como portentos do fim dos nova e diferente da história redentora. A
tempos. afinidade de Lucas com os seus prede­
cessores é demonstrada pela presença, no
Em Lucas 19:11-27, uma experiência
Evangelho, de textos como 3:9,17; 10:9,
dos discípulos é relatada, para dar a
11; 18:7 e s.; 21:32. Todos estes são
espécie de advertência que Lucas queria
também susceptíveis de uma interpreta­
fazer aos seus contemporâneos. O erro
ção que sustente a expectativa de uma
dos discípulos fora o de esperarem uma
Parousia iminente.
vinda iminente do reino, que resultou de
eles terem-na relacionado com a entrada Além disso, descobrimos que Marcos
de Jesus em Jerusalém. As advertências também dá azo a uma missão aos gen­
de Marcos contra os falsos messias (Mar. tios (13:10), embora se pensasse que,
13:6), Lucas acrescenta a admoestação afinal de contas, ela poderia ser bastante
contra o sermos levados pelos apocalíp­ breve. E, em Romanos 9-11, Paulo de­
ticos, que proclamam: “O tempo é che­ senvolve uma teoria de história da salva­
gado!” (21:8). A pergunta dos discípulos ção em que a missão aos gentios desem­
a respeito do tempo em que o reino virá é penha um papel essencial, não incom­
rejeitada como inoportuna (At. 1:6,7). patível com a estrutura dè Lucas. Paulo
Eles também são repreendidos por esta* parecia estar mais dominado por -uma
rem olhando para os céus (At. 1:10,11). percepção do fim dos tempos e por uma
Eles devem, se desincumbir de suas tare­ sensação da sua proximidade do que
fas cingidos da confiança de que Jesus Lucas. Ir mais longe do que isto parecè
voltará como foi levado para cima. não ser garantido ou aconselhável.
Lucas teve o cuidado de se guardar 2. Oração. Lucas é único em relacio­
contra os excessos de um exagerado apo- nar a oração a inúmeros eventos essen­
calipticismo, mas também queria pre­ ciais do ministério de Jesus. Entre esses,
venir os problemas causados pelos desa­ estão o batismo (3:21), a vocação dos
pontamentos e desilusões que o passar doze (6:12), a confissão (9:18) e a trans­
dos anos podiam causar aos cristãos, que figuração (9:28 e ss.). Só ele relata que a
haviam vivido na expectativa da vitoriosa Oração Dominical foi resposta a um
vinda de seu Senhor (v.g., 12:35-40; pedido inspirado pela experiência de
17:22-37; 18:1-8). A sua contribuição Jesus em oração (11:1). Em Lucas, Jesus
peculiar ao Novo Testamento tornou-se faz uma oração de regozijo pelo sucesso
possível porque ele reconhecia o papel da da missão dos discípulos (10:21), inter­
Igreja na história da salvação. É possível cede por Pedro (22:32) e ora na cruz
concordar com muitos intérpretes, que (23:34,46). As parábolas do amigo im­
este conceito é a reação correta ao mi­ portuno (11:5-8), da viúva insistente
nistério de Jesus. Ele é baseado na con­ (18:1-8) e do fariseu e o publicano (18:9-
vicção de que a intenção de Jesus era 14) são exemplos dos ensinos de Jesus
criar uma comunidade que desse conti­ acerca da oração.
nuidade, na história, à obra que ele havia 3. Preocupação Social. Uma atenção
colocado em movimento. especial é dada a pessoas que estavam
VII. Temas Característicos de fora do pálio da responsabilidade reli­
Lucas giosa e social. A Parábola do Bom Sama-
Uma comparação de Lucas com os ritano é apresentada apenas por Lucas
outros Evangelhos mostra que ele trata (10:25-37). Dos dez leprosos que foram
inúmeros temas de maneira especial. curados, um samaritano é apresentado
1. O Espírito Santo. Há dezessete como exemplo de genuína gratidão
referências ao Espírito Santo em Lucas, e (17:11-19).
cinqüenta e sete em Atos. Em contraste, A simpatia de Jesus pelos coletores de
Marcos contém apenas seis, e Mateus, impostos é atestada especialmente por
doze. Estas referências ocorrem com Lucas. Os publicanos que foram a João,
freqüência inusitada nos primeiros dois pedindo o batismo (3:12,13), a Parábola
capítulos do Evangelho, primordial­ do Fariseu e o Publicano (18:9-14) e
mente para mostrar que o dom de pro­ Zaqueu (19:1-10) fazem parte do mate­
fecia havia sido revivificado sob a inspi­ rial especial de Lucas.
ração do Espírito Santo (1:41,67; 2:25-
27). Este foi um sinal de que a longa­ O contraste entre a atitude de Jesus e a
mente esperada era do Messias havia dos líderes religiosos, em relação aos
raiado. Jesus é mencionado como pecadores, é ilustrado pela história da
“cheio do Espírito Santo” (4:1), e pelo mulher penitente (7:36-50), pelas pará­
poder do Espírito ele faz milagres (4:14) bolas do capítulo 15 e pelo encontro com
e cura os enfermos (5:17). O Espírito Zaqueu (19:1-10). Só Lucas fala do la­
Santo é o bom presente de Deus aos seus drão penitente (23:39-43).
filhos (11:13). Em tempos de persegui­ O Evangelho enfatiza que os humildes
ção, os discípulos receberão a ministra- e os pobres são os recipientes do reino de
ção do Espírito (12:12). Os discípulos Deus (1:48,51-53; 4:18). Jesus nasce em
não devem ficar preocupados a respeito um ambiente pobre (2:7), enquanto
da época da Parousia (At. 1:6-8), mas, humildes pastores são os primeiros a
pelo contrário, devem esperar “a pro­ receber notícias do seu nascimento (2:8-
messa do Pai” , isto é, o Espírito (24:49; 14). Bênçãos são pronunciadas sobre os
At. 1:8). A igreja deve viver no poder do pobres (6:20); ais, sobre os ricos (6:
Espírito até a Parousia. 24-26).
4. Mulheres. Lucas dá, em seus 1. Os Nascimentos de João e de Jesus
escritos, um lugar de proeminência às (1:5-2:20)
mulheres. Maria e Isabel figuram proe­ 1) A Anunciação a Zacarias (1:5-
minentemente nas narrativas do nasci­ 25)
mento. No material especial de Lucas, 2) A Anunciação a Maria (1:26-38)
encontram-se histórias como a da ressur­ 3) A Visita de Maria a Isabel (1:
reição do filho da viúva (7:11-17), da 39-56)
mulher penitente (7:36-50), da visita a 4) O Nascimento de João (1:57-80)
Maria e M arta (10:38-42) e da cura da 5) O Nascimento de Jesus (2:1-20)
mulher aleijada (13:10-17). Também 2. A Infância de Jesus (2:21-52)
encontramos o interessante detalhe, 1) Circuncisão e Apresentação
informando-nos que algumas mulheres (2:21-40)
providenciavam sustento para Jesus e 2) O Menino Jesus no Templo
seus discípulos (8:1-3). 2:41-52)
5. Riqueza. Uma atitude caracterís­
tica, em relação à riqueza, percorre todo
o terceiro Evangelho. Geralmente sus­ II. Introdução ao Ministério de Jesus(3:-
peita, ela é chamada “riquezas da injus­ 1-4:13)
tiça” (16:9), embora a posse de riquezas, 1 .0 Ministério de João (3:1-20)
por si mesma, não seja condenada. Duas 1) A Vocação de João (3:1-6)
das parábolas mais vívidas, a do fazen­ 2) A Pregação de João (3:7-14)
deiro insensato (12:13-21) e a do rico e 3) João e Aquele Que Vem (3:15-
Lázaro (16:19-31), indicam a insensatez 17)
de uma abordagem secular da vida. O 4) A Prisão de João (3:18-20)
pecado desses dois homens foi que eles 2. A Preparação de Jesus (3:21-4:13)
usaram a sua riqueza apenas para a gra­ 1) O Batismo de Jesus (3:21,22)
tificação pessoal, ao passo que ela devia 2) A Genealogia de Jesus (3:23-38)
ter sido compartilhada com os que dela 3) A Tentação de Jesus (4:1-13)
eram privados (3:11; 12:33). A conversão
de Zaqueu é assinalada por esta atitude III. O Ministério na Galiléia (4:14-9:50)
apropriada em relação às suas possessões 1. Ensino nas Sinagogas (4:14-30)
(19:8). 1) Aceitação náGaliléia (4:14,15)
O evangelho, da forma como é apre­ 2) Rejeição em Nazaré (4:16-30)
sentado por Lucas, se relacionava com os 2. Obras Poderosas de Jesus (4:31-
grandes problemas sociais daquela 5:16)
época. Ele é colorido, em todo o seu 1) O Endemoninhado (4:31-37)
decorrer, por uma compaixão pelos 2) Curas Fora da Sinagoga (4:38-
explorados e desprezados. O terceiro 41)
Evangelho nos leva a lembrar que faze­ 3) A Partida de Cafarnaum (4:42-
mos vioíência à mensagem de Jesus 44)
Cristo quando a separamos de uma pre­ 4) Os Primeiros Discípulos (5:1-
ocupação pelos problemas sociais do 11)
homem. 5) A Curadeum Leproso(5:12-16)
3. Conflitos com os Líderes Religio-
Esboço do Evangelho ligiosos(5:17-6:ll)
1) Á Cüra de um Paralítico (5:17-
Prefácio(l:l-4)
26)
I. As Narrativas dos Nascimentos e In­ 2) Associação com os Párias (5:27-
fâncias de João Batista e de Jesus 32)
(1:5-2:52) 3) A Questão do Jejum (5:33-39)
4) Desatenção às Tradições Sabá­ 3) A Alimentação de Cinco Mil
ticas (6:1-5) (9:10-17)
5) O Homem com a Mão Atrofia­ 4) A Grande Confissão (9:18-22)
da (6:6-11) 5) O Custo do Discipulado (9:23-
4. A Escolha e Instrução dos Dçze 27)
(6:12-49) 6) A Transfiguração (9:28-36)
1) A Nomeação dos Doze (6:12-16) 7) Cura de um Epiléptico (9:37-
2) O Cenário do Sermão (6:17-19) 43a)
3) As Beatitudes (6:20-23) 8) A Segunda Palavra Acerca da
4) Os Ais (6:24-26) Paixão (9:43b-45)
5) Amor aos Inimigos (6:27-31) 9) Concernente à Grandeza (9:46-
6) A Natureza do Genuíno Amor 48)
(6:32-36) 10) Concernente aos Estranhos
7) Advertência Contra Julgar (6: (9:49,50)
37-38)
8) A Trave e o Argueiro (6:39-42) IV. Da Galiléia a Jerusalém: Parte
9) A Manifestação do Carater (6: Um (9:51-13:30)
43-45) 1. O Começo da Viagem (9:51-62)
10) Confissão e Atos (6:46-49) 1) Rejeitado Pelos Samaritanos
5. A Natureza da Missão de Jesus (9:51-56)
(7:1-50) 2) As Severas Exigências de Jesus
1) Os Poderosos Atos do Messias (9:57-62)
(7:1-17) 2. A Missão dos Setenta (10:1-24)
2) A Pergunta de João (7:18-23) 1) Instruções aos Setenta (10:1-12)
3) Avaliação de João Feita por 2) Conseqüências da Rejeição (10:
Jesus (7:24-30) 13-16)
4) As Crianças Brincando (7:31- 3) A Volta dos Setenta (10:17-20)
35) 4) O Regozijo de Jesus (10:21-24)
5) A Mulher Penitente (7:36-50) 3. Ensinos Acerca de Relacionamen­
6. Missão Itinerante (8:1-56) tos (10:25-42)
1) Os Companheiros de Jesus (8: 1) A Pergunta do Doutor da Lei
Í-3) (10:25-28)
2) A Parábola do Semeador (8: 2) O Bom Samaritano( 10:29-37)
4-8) 3) M arta e Maria (10:38-42)
3) Explicação da Parábola (8:9- 4. Ensinos Acerca da Oração (11:1-
15) 13)
4) Segredo a Ser Revelado (8:16- 1) A O raçãoM odelo(ll:l-4)
18) 2) O Amigo Importuno (11:5-13)
5) A Verdadeira Família de Jesus 5. Reações Desfavoráveis a Jesus (11:
(8:19-21) 14-54)
6) Tempestade Acalmada (8:22- 1) A Controvérsia Acerca de Belze-
25) bu (11:14-23)
7) O Endemoninhado Geraseno 2) O Espírito Imundo (11:24-26)
(8:26-39) 3) Resposta ao Louvor de uma
8) Milagre Duplo (8:40-56) Mulher (11:27,28)
4) O Sinal do Filho do Homem
7. Revelações aos Doze (9:1-50) (11:29-32)
1) A Missão dos Doze (9:1-6) 5) Receptividade à Luz (11:33-36)
2) A Perplexidade de Herodes 6) Controvérsia Acerca de Lavar
(9:7-9) (11:37-41)
7) Ais Sobre os Fariseus (11:42-44) 3. Os Termos do Discipulados (14:
8) Ais Sobre os Doutores da Lei 25-35)
(11:45-54) 4. A Alegria de Deus com a Recupe­
6. Admoestações Quanto às Persegui­ ração do Perdido (15:1-32)
ções (12:1-12) 1) A Atitude dos Líderes (15:1,2)
1) Advertência Contra a Hipocri­ 2) A Ovelha Perdida (15:3-7)
sia (12:1-3) 3) A Dracma Perdida (15:8-10)
2) O Cuidado de Deus no Perigo 4) O Filho Pródigo (15:11 -32)
(12:4-7) 5. Mais Ensinos Acerca de Riqueza
3) Confissão de Cristo Diante dos (16:1-31)
Homens (12:8-12) 1) O Mordomo Infiel (16:1-9)
7. Ensinos Acerca da Riqueza (12:13- 2) O Correto Uso da Riqueza (16:
34) 10-13)
1) O Fazendeiro Rico (12:13-21) 3) Comentários a Alguns Fariseus
2) O Pecado da Ansiedade (12:22- (16:14-18)
31) 4) O Rico e Lázaro (16:19-31)
3) O Tesouro Celestial (12:32-34) 6. O Caráter do Discípulo (17:1-10)
8. Atitudes Apropriadas em Relação 1) A Responsabilidade Para corn­
aoFuturo(12:35-13:9) os Outros (17:1-4)
1) A Volta Inesperada (12:35-40) 2) A Necessidade de Fé (17:5,6)
2) O Servo Infiel (12:41-48) 3) Serviço Incondicional (17:7-10)
3) A Crise Provocada por Jesus 7. A Cura de Dez Leprosos (17:11-
(12:49-53) 19)
4) Cegueira Quanto aos Tempos 8. O Reino de Deus e o Filho do Ho­
(12:54-56) mem (17:20-18-14)
5) Preparação Para o Juízo (12:57- 1) O Reino Está Dentro de Vós
59) (17:20,21)
6) Necessidade de Arrependimen­ 2) Os Dias do Filho do Homem
to (13:1-5) (17:22-37)
7) O Perigo da Esterilidade (13: 3) A Viúva Importuna (18:1-8)
6-9) 4) O Fariseu e o Publicano (18:9-
9. A Cura de uma Mulher Encurvada 14)
(13:10-17) 9. A Entrada no Reino (18:15-30)
10. A Natureza do Reino (13:18-30) 1) Jesus e as Crianças (18:15-17)
1) O Grão de Mostarda e o Fer­ 2) O Moço Rico (18:18-30)
mento (13:18-21) 10. A Aproximação de Jerusalém (18:
2) Surpresas do Reino (13:22-30) 31-19:27)
1) A Terceira Palavra Acerca da
V. Da Galiléia a Jerusalém: Parte Paixão (18:31-34)
Dois (13:31-19:27) 2) A Cura de um Cego (18:35-43)
1. O Destino de Jesus e de Jerusalém 3) A Conversão de Zaqueu (19:
(13:31-35) 1- 10)
2. Ensinamentos Durante uma Refei­ 4) As Dez Minas (19:11-27)
ção (14:1-24)
1) OHidrópico(14:l-6) VI. O Ministério em Jerusalém (19:28-
2) Instruções aos Convivas (14:7- 23:56)
U) 1. Jesus Apresenta as Suas Reivindi­
3) Instruções ao Hospedeiro (14: cações Messiânicas (19:28-48)
12-14) 1) A Sua Aproximação de Jerusa­
4) O Grande Banquete (14:15-24) lém (19:28-40)
2) O Lamento de Jesus Sobre Jeru­ 5) Jesus Diante de Herodes (23:6-
salém (19:41-44) 12)
3) A Purificação do Templo (19: 6) A Condenação de Jesus (23:13-
45-48) 25)
2. Controvérsias no Templo (20:1- 2. A Crucificação de Jesus (23:26-
21:4) 56a)
1) A Questão da Autoridade (20: 1) As Mulheres Que Choravam
1 - 8) (23:26-31)
2) Os Lavradores Maus (20:9-18) 2) A Execução de Jesus (23:32-38)
3) A Questão do Tributo (20:19- 3) O Ladrão Penitente (23:39-43)
26) 4) A Morte de Jesus (23:44-49)
4) A Questão da Ressurreição(20: 5) O Sepultamento de Jesus (23:
27-40) 50-56a)
5) A Pergunta Acerca do Messias
(20:41-44) VIII. A Ressurreição de Jesus (23:56b-
6) A Condenação dos Escribas 24:53)
(20:45-47) 1. As Mulheres Vão ao Sepulcro (23:
7) O Louvor à Viúva(21:l-4) 56b-24:ll)
3. Ensinos Acerca dos Acontecimen­ 2. A Aparição a Dois Discípulos (24:
tos do Fim (21:5-38) 13-35)
1) O Perigo de Ser Enganado (21: 1) A Conversa no Caminho de
5-9) Emaús (24:13-27)
2) Distúrbios e Perseguições (21: 2) O Reconhecimento em Emaús
10-19) (24:28-35)
3) A Destruição de Jerusalém (21: 3. A Aparição em Jerusalém (24:36-
20-24) 53)
4) A Vinda do Filho do Homem 1) A Prova da Ressurreição (24:
(21:25-28) 36-43)
5) O Sinal da Figueira (21:29-33) 2) Interpretação da Escritura (24:
6) A Necessidade de Estar Alerta 44-49)
(21:34-36) 3) A Despedida Final (24:50-53)
7) O Ministério no Templo (21:
37,38)
4. A Preparação Para a Paixão (22: Bibliografia Selecionada
1-53)
BARRETT, C. K. The Holy Spirit and
1) A Conspiração Para Matar the Gospel Tradition. London: S.P.
Jesus (22:1-6) C.K., 1966.
2) A Ültima Ceia (22:7-38) CADBURY, HENRY J. The Making of
3) No Monte das Oliveiras (22: Luke-Acts. London: S.P.C.K., 1958.
39-46) CAIRD, G.B. The Gospel of St. Luke.
4) Jesus É Preso (22:47-53) “The Pelican Gospel Commentaries” ,
ed. D.E. NINEHAM. Baltimore:
VII. A Paixão de Jesus (22:54-23:56a) Penguin Books Inc., 1963.
1. O Julgamento de Jesus (22:54-23: CONZELMANN, HANS. The Theology
25) of St. Luke. Tr. GEOFFREY BUS-
1) Pedro Nega Jesus (22:54-62) WELL. New York: Harper and Row,
2) Zombam de Jesus (22:63-65) 1960.
3) Jesus Diante do Sinédrio (22: CREED, JOHN MARTIN. The Gospel
66-71) According to St. Luke. New York:
4) Jesus Diante de Pilatos (23:1-5) Macmillan and Co., 1965.
ELLIS, E. EARLE. The Gospel of Luke. Commentary” ed. JAMES MOF­
“The Century Bible” . London: Tho­ FATT. New York: Harper & Bros.,
mas Nelson and Sons Ltd., 1966. n.d.
GILMOUR, S. MAcLEAN. “The Gos­ PLUMMER, ALFRED. The Gospel
pel According to St. Luke” . The In­ According to St. Luke. “The Interna­
terpreter’s Bible, ed. GEORGE AR­ tional Critical Commentary” , 5® ed.
THUR BUTTRICK, Vol. VIII. New Edinburgh: T. and T. Clark, 1964.
York: Abingdon Press, 1951. RICHARDSON, ALAN. The Miracle
GRUNDMANN, WALTER. Das Evan­ Stories of the Gospels. London: SCM
gelium nach Lukas. Berlin: Evange­ Press Ltd., 1959.
lische Verlagsanstalt, p. 141. STAGG, FRANK. New Testament
JEREMIAS, JOACHIM. The Parables Theology. Nashville, Tenn.; Broa-
of Jesus. Tr. S. H. Hooke. New York: dman Press, 1962.
Charles Scribner’s Sons, 1963. STRACK, HERMANN L. e BILLER-
KITTEL, GERHARD, (ed.). BROMI- BECK, PAUL. Kommentar zum
LEY, GEOFFREY W. (trans.). Theo­ Neuen Testament aus Talmud und Mi­
logical Dictionary of the New Testa­ drasch. Munich: C.H. Bech’sche Ver­
ment. Grand Rapids: William B. lagsbuchhandlung, 1924.
Eerdmans Publishing Co. STREETER, BURNETT HILLMAN.
LEANEY, A.R.C. The Gospel Accor­ The Four Gospels. London: Mac­
ding to St. Luke. “Black’s New Testa­ Millan and Co., 1956.
ment Commentaries” , 2 - ed. London: TAYLOR, VINCENT. Behind the Third
Adam and Charles Black, 1966. Gospel. Oxford: Clarendon Press,
MANSON, WILLIAM. The Gospel of 1926.
Luke. “The Moffatt New Testament

Comentário Sobre o Texto

O uso de um prefácio era comum entre outros, de sua espécie, quanto ao obje­
os escritores helénicos. A sua presença, tivo: nele há referências à obra de pre­
no começo do terceiro Evangelho, indica decessores, à preparação do próprio
que Lucas, mais do que qualquer outro autor para escrever e ao objetivo de sua
escritor do Novo Testamento, considera­ obra. Lucas também segue a prática
va que a sua obra era uma contribuição comum de colocar o nome do destinatá­
para o mundo literário mais amplo da­ rio nesse lugar.
quela época. Aparentemente, ele estava
escrevendo não apenas para a Igreja,
mas também com a esperança de causar Prefácio (1:1-4)
um impacto em classes de não-cristãos
instruídos e influentes. 1 V isto que m u ito s tê m e m p re e n d id o f a ­
z e r u m a n a r r a ç ã o c o o rd e n a d a d o s fa to s que
O prefácio ao terceiro Evangelho con­ e n tre n ó s se r e a liz a r a m , 2 se g u n d o no-los
siste de uma sentença só, bem construí­ tr a n s m itir a m os q u e d e sd e o p rin c íp io fo­
da, composta de palavras cuidadosa­ ra m te s te m u n h a s o c u la re s e m in is tro s d a
mente escolhidas. Segundo o julgamento p a la v r a , 3 ta m b é m a m im , d ep o is d e h a v e r
in v e stig a d o tu d o c u id a d o s a m e n te d e sd e o
comum, ele se aproxima do estilo grego co m eço , p a re c e u -m e b e m , ó ex c e le n tíssim o
clássico em maior proporção do que Teófilo, e s c re v e r-te u m a n a r r a ç ã o e m
qualquer outra passagem do Novo Testa­ o rd e m , 4 p a r a q u e c o n h e ç a s p le n a m e n te a
mento. Esse prefácio é semelhante a v e rd a d e d a s c o isa s e m q u e fo ste in s tru íd o .
O autor torna claro que não é inova­ Lucas tinha de sua própria obra. Qual­
dor em suas tentativas de preservar a quer conceito adequado, de inspiração
tradição cristã em forma escrita. Muitos do registro bíblico, precisa haver-se com
outros o haviam precedido, dando-lhe isto: a declaração autobiográfica única
tanto o incentivo, embora ele não o diga de um escritor evangélico a respeito do
diretamente, como as fontes usadas, seu método. Ele não é nenhum autô­
para a sua obra. mato, cujo único papel é transcrever uma
Que entre nós se realizaram expressa a revelação literal que recebera de alguma
convicção do escritor de que os eventos forma mágica, extraterrena. Ele é um
que está para narrar não foram nem erudito cristão, motivado por uma con­
vagos nem fortuitos. A frase seria melhor vicção acerca do significado redentor de
traduzida “ que entre nós se cumpriram” . certos acontecimentos, usando as fontes
Estes fatos, inclusive a narrativa do à sua disposição, e os recursos do inte­
Evangelho e o livro de Atos, cumpriram o lecto, energia e tempo, em cuidadosa
propósito de Deus conforme expresso no investigação e relato fiel. Devido às suas
Velho Testamento, quando interpretado qualificações e propósitos, essa espécie
adequadamente (cf. 24:45-47). A história de pessoa podia ser o instrumento pecu­
que se segue, portanto, fala do que Deus liar, usado pelo Espírito Santo, para
fez. preservar a história evangélica por escri­
O autor não era membro da primeira to, para as gerações subseqüentes.
comunidade de cristãos. Desta forma, ele Lucas se propõe a escrever uma nar­
dependeu de outros, que haviam sido ração coordenada; não obstante, o seu
testemunhas oculares e ministros da método é incluir outros materiais, no
palavra. Ele reclama, para o conheci­ arcabouço básico de Marcos, com o re­
mento da Igreja a respeito de Jesus, o sultado de que o esboço que ele faz, do
firme fundamento do testemunho apos­ ministério de Jesus, é realmente o esboço
tólico. Segundo a definição de Lucas, um de Marcos. Talvez narração coordenada
apóstolo, ou seja, um dos doze, era al­ (kathexés) devia ser entendida como refe­
guém que havia estado com Jesus desde o rência às diversas fontes que Lucas usa
princípio, a saber, desde “o batismo de (veja a Introdução). Ele reunira as infor­
João até o dia em que dentre nós (Jesus) mações existentes, acerca do ministério
foi levado para cima” (At. 1:22). Duran­ de Jesus, que agora se propõe a reunir em
te aqueles primeiros formativos anos do seqüência lógica, abrangendo os limites
movimento cristão, a garantia para a de um volume.
fidelidade dos relatórios, acerca dos O título excelentíssimo provavelmente
acontecimentos do ministério de Jesus, distingue Teófilo como oficial romano de
eram as pessoas que podiam dizer: “Nós alguma importância e influência, no
conhecemos os fatos, porque ouvimos o nível de procurador ou acima. Teófilo
que ele disse e vimos o que ele fez.” A significa, em grego, “amigo de Deus” , e
intenção de Lucas era passar adiante possivelmente era um pseudônimo usado
essas informações, segundo havia sido para ocultar a verdadeira identidade da
relatado pela primeira geração de teste­ pessoa. Devido à falta de dados concretos
munhas. O terceiro Evangelho, portanto, a respeito dele, qualquer sugestão sobre
tinha o desígnio de desempenhar a fun­ sua identidade é mera suposição.
ção, para as gerações posteriores, que as Há duas opções, na interpretação da
testemunhas oculares haviam desempe­ referência a Teófilo. A idéia tradicional e
nhado para a primeira geração de cris­ mais comum é que ele havia sido ins­
tãos. truído no evangelho, por pessoas que
Os versículos 3 e 4 fornecem uma estavam procurando ganhá-lo para o
compreensão valiosa do conceito que cristianismo. Deste ponto de vista, ele
era interessado ou estava a ponto de se As evidências indicam que o movimen­
tornar cristão. to cristão enfrentou um desafio signifi­
Uma possibilidade totalmente diferen­ cativo da parte dos seguidores de João
te tem sido levantada por outra sugestão. Batista, nos estágios iniciais de sua his­
De acordo com ela, Teófilo era um oficial tória. Parece que uma seita derivada do
romano que tinha uma noção distorcida Batista ensinava que João era o Messias
a respeito do cristianismo, devido a infor­ e, conseqüentemente, era superior a
mações errôneas, que havia recebido. 7 Jesus, a quem batizara (veja 3:21). As
O seu conceito sobre o cristianismo histórias que cercam o nascimento de
havia-lhe sido ministrado pelos inimigos Jesus, no Evangelho de Lucas, têm o
da fé, cujas noções haviam contribuído objetivo de desmentir essa reivindicação.
para um mal-entendido acerca do seu Elas são apresentadas como uma série de
caráter e objetivos políticos. Isto signi­ cinco episódios, ou quadros, ligados, de
fica que a sua noção provavelmente re­ maneira bastante livre, por comentários
presentava uma atitude comum, nos cír­ editoriais. Os papéis distintos de Jesus e
culos governamentais, onde o movimento João são apresentados neles de maneira a
cristão havia sido considerado com enfatizar o significado de cada um deles,
vários graus de hostilidade e suspeita, mas ao mesmo tempo reafirmar a supe­
desde os tempos de Nero. A esperança do rioridade de Jesus.
autor era consertar essa situação, ini­ Mais importante, para alcançar o
ciando, desta forma, um processo que objetivo de Lucas, portanto, é a afirma­
mudasse a atitude geral em relação ao ção feita, nesta seção, de que Jesus é o
cristianismo. A verdade pode ter um Messias de Israel, o Rei e Libertador há
significado semelhante à frase “os verda­ muito esperado. Embora o tema do
deiros fatos” . cumprimento assuma uma nuança algo
Seja qual for o caso, podemos presu­ diferente em Lucas, em relação a Ma­
mir que Lucas pretendia que a sua obra teus, é tão significativo quanto em Ma­
alcançasse mais de um homem. O patro­ teus. Possivelmente, ele responda às
cínio de Teófilo provavelmente podia ameaças das idéias gnósticas, que que­
assegurar um círculo ledor mais amplo, riam separar o cristianismo dos seus ali­
para a obra, entre uma classe mais influ­ cerces históricos, fundados em o Novo
ente e instruída. Testamento e no judaísmo (veja p. 21,
rodapé 8).
I. As Narrativas dos Nascimentos
e Infâncias de João Batista e de 1) A Anunciação a Zacarias (1:5-25)
Jesus (1:5-2:52)
5 H ouve, nos d ia s d e H e ro d e s, re i d a Ju -
1. Os nascimentos de João e de Jesus d é ia , u m s a c e rd o te c h a m a d o Z a c a ria s , d a
(1:5-2:20) tu r m a de A b ia s; e s u a m u lh e r e r a d e s c e n ­
d e n te d e A rão , e c h a m a v a -s e Is a b e l. S A m ­
Três principais temas propiciam uni­ bos e r a m ju s to s d ia n te de D eu s, an d an d o
dade ao material dos dois primeiros capí- irre p re e n s ív e is e m todos os m a n d a m e n to s e
iulos: (1) o relacionamento entre João e p re c e ito s do S en h o r. 7 M a s n ão tin h a m fi­
lhos, p o rq u e Is a b e l e r a e s té ril, e a m b o s
Jesus; (2) o íntimo relacionamento entre e ra m a v a n ç a d o s e m id a d e.
o judaísmo e o cristianismo, no momento 8 O ra, e sta n d o e le a e x e rc e r a s funções
quando este último começou; (3) o dom s a c e rd o ta is p e r a n te D eu s, n a o rd e m d a su a
do Espírito Santo e o reavivamento da tu r m a , 9 seg u n d o o c o stu m e do sa ce rd ó cio ,
profecia como sinal de que a era messiâ­ coube-lhe p o r so rte e n tr a r no s a n tu á rio do
S enhor, p a r a o fe re c e r o in c e n so ; 10 e to d a a
nica estava raiando. m u ltid ã o do povo o ra v a d a p a rte de fo ra , à
h o ra do in cen so . 11 A p a re ce u -lh e , e n tã o , u m
Cf. Cadbury, op. cit., II, 510. an jo do S en h o r, e m p é à d ir e ita do a lt a r do
in cen so. 12 E Z a c a ria s , vendo-o, ficou t u r ­ venção de Deus em favor do seu povo,
b ad o e o te m o r o a s s a lto u . 13 M a s o a n jo lhe oprimido e afrontado.
d is se : N ão te m a s , Z a c a ria s ; p o rq u e a tu a Os sacerdotes judaicos se dividiam em
o ra ç ã o foi o u v id a, e Is a b e l, tu a m u lh e r, te vinte e quatro turmas, sendo a de Abias
d a r á à lu z u m filho, e lh e p o rá s o n o m e de
João; a oitava (I Crôn. 24:10). Nos comentários
14 e te r á s a le g r ia e reg o zijo , introdutórios, acerca de Zacarias e Isa­
e m u ito s se a le g r a r ã o co m o seu n a s c i­ bel, a ênfase se exerce nas suas creden­
m e n to ; ciais religiosas impecáveis. Ser sacerdote
15 p o rq u e e le s e r á g ra n d e d ia n te do S e­
n h o r;
e ser casado com uma mulher de linha­
n ão b e b e rá vinho, n e m b e b id a fo rte ; gem sacerdotal era uma dupla honra.
e s e r á cheio do E s p írito S an to Zacarias e Isabel eram notáveis repre­
j á d e sd e o v e n tre d e s u a m ã e ; sentantes da piedade ortodoxa judaica.
16 C o n v e rte rá m u ito s dos filhos de Is ra e l Contudo, a despeito de sua conduta ir­
a o S en h o r se u D e u s ;
17 i r á a d ia n te d ele no e sp írito e p o d er de repreensível, Deus não havia abençoado
E lia s , p a r a c o n v e rte r o s c o ra ç õ e s dos aquele casal com filhos. E também não
p a is a o s filh o s, e o s re b e ld e s à p ru d ê n ­ havia nenhuma esperança razoável de
c ia dos ju s to s , que aquela lamentável situação pudesse
a fim d e p r e p a r a r p a r a o S en h o r u m
povo a p e rc e b id o . mudar, visto que o casal passara da
18 D isse en tã o Z a c a ria s ao a n jo : Como te re i idade em que podia procriar. Desta for­
c e rte z a disso? P o is e u sou v elh o , e m in h a ma, o autor sublinha o caráter mira­
m u lh e r ta m b é m e s tá a v a n ç a d a e m id a d e . culoso dos acontecimentos que está para
19 Ao q u e lh e re sp o n d e u o a n jo : E u sou descrever.
G ab riel, q ue a s s is to d ia n te d e D eu s, e fui
en v iad o p a r a te f a l a r e te d a r e s ta s b oas- De acordo com algumas estimativas,
n o v a s; 20 e e is q u e fic a rá s m u d o , e n ã o havia aproximadamente vinte mil sacer­
p o d e rá s f a la r a té o d ia e m q u e e s ta s c o isa s dotes na Palestina, naquela época. Cada
a c o n te ç a m ; p o rq u a n to n ão c re s te n a s m i­
n h a s p a la v r a s , q ue a se u te m p o h ão de
uma das vinte e quatro turmas minis­
c u m p rir-se . 21 O povo e s ta v a e sp e ra n d o trava no Templo durante uma semana,
Z a c a ria s , e se a d m ir a v a d a s u a d e m o ra no duas vezes por ano. Visto que havia cen­
sa n tu á rio . 2,2 Q uando sa iu , p o ré m , n ão lh es tenas de sacerdotes em uma turma, eles
p o d ia f a la r , e p e rc e b e r a m q u e tiv e ra u m a eram escolhidos por sorte para oficiar em
v isão no s a n tu á rio . E fa la v a -lh e s p o r a c e ­
nos, m a s p e rm a n e c ia m u d o . 23 E , te r m in a ­ certos rituais. O privilégio de queimar
dos os d ia s do se u m in is té rio , voltou p a r a incenso, que tinha lugar todas as manhãs
c a sa . e todas as tardes, era concedido por sorte
24 D epois d e s s e s d ia s Is a b e l, s u a m u lh e r, a um sacerdote não mais do que uma vez
conceb eu , e p o r cinco m e s e s se ocultou,
d izen d o : 25 A ssim m e fez o S en h o r nos d ia s
em toda a vida. A multidão, formada de
em qu e a te n to u p a r a m im , a fim d e a c a b a r israelitas do sexo masculino, estava reu­
co m o m e u o p ró b rio d ia n te d o s h o m e n s. nida no pátio de Israel, enquanto o sa­
cerdote, dentro do santuário propria­
Herodes, o Grande, que fora nomeado mente dito, realizava o ritual. O templo
re! da Judéia (Palestina) pelo Senado era um lugar apropriado para Deus reve­
Romano, em 40 a.C., morreu em 4. a.C. lar a um genuíno israelita que um mo­
De acordo com as evidências dos regis­ mento significativo havia chegado na sua
tros dos Evangelhos, João e Jesus nasce­ vida e na história do seu povo.
ram antes de sua morte (Mat. 2:1). Eram As palavras hebraica e grega que são
tempos difíceis e turbulentos para os traduzidas como aiqo, ambas significam
judeus, a maioria dos quais se ressentia mensageiro. Nos primeiros livros do
profundamente do domínio romano, que Velho Testamento, o anjo de Yahweh é o
Herodes representava. De fato, muitos intermediário de Deus para tratar com os
criam que estavam vivendo nos dias ime­ homens. O anjo apresentava uma forma
diatamente anteriores â esperada inter­ de pensar e de falar acerca da presença
de Deus, que pessoalmente não podia ser to positivo da sua consagração é que ele
visto pelos homens. As referências testi­ será cheio do Espírito Santo desde o nas­
ficam de uma fé em um Deus santo, que cimento, o que o marca para exercer um
é exaltado acima do homem e do seu papel profético de significado incomum.
universo. Elas também expressam a con­ Aqui encontramos a primeira menção ao
vicção de que esse Deus transcendental é Espírito Santo em Lucas. Na literatura
capaz de se comunicar com os homens e rabínica, o Espírito de Deus é primeira­
de se envolver no processo histórico. O mente o Espírito de profecia, associado
anjo é o enviado de Deus ao homem; a especialmente com a renovação esperada
sua mensagem é a mensagem de Deus. durante a época messiânica, quando os
Seja o que for que o homem moderno homens de novo ouviriam a voz de Deus
faça, com as referências a anjos no regis­ diretamente.
tro bíblico, ele precisa haver-se com as João deve conclamar Israel ao arrepen­
duas perguntas básicas que elas levan­ dimento, para que o povo seja prepara­
tam: Existe um Deus que transcende o do, ou apercebido, para a visitação de
mundo do homem? É esse Deus capaz de Deus, há tanto tempo esperada. De
se envolver com a vida daqueles que acordo com Malaquias 4:5,6, em que
precisam desempenhar os seus papéis no esta passagem se baseia o profeta Elias
contexto do espaço, tempo e história? apareceria antes da chegada do “grande
A fé precisa preocupar-se, em última e terrível dia do Senhor” . A comunidade
análise, com estes assuntos, e não com a cristã cria que João devia ser identificado
natureza das visitações angélicas. com o Elias das expectações judaicas,
A que oração está se referindo o anjo? sendo revestido com o espírito e poder do
Pedindo um herdeiro? Ou pedindo o profeta. Como precursor de Jesus, João
nascimento do Messias? Esta última havia cumprido o papel previsto em M a­
hipótese seria mais inteligível, dadas as laquias.
circunstâncias, mas o contexto parece
requerer a primeira. João, nome a ser Zacarias acha incrível a idéia de que
dado ao filho prometido, significa “Deus ele deve ter um filho na sua idade, sendo
é gracioso” . insuficiente, a palavra sem confirmação
O mensageiro celestial descreve o efei­ de um mensageiro desconhecido, para
to do esperado ministério de João (v. 14), vencer a sua incredulidade; então o anjo
suas qualificações para exercê-lo (v. 15), se identifica. Ele é Gabriel, um dos anjos
e a natureza desse ministério (v. 16 e 17). da Presença, que aparece em escritos
A experiência de alegria será a reação judaicos posteriores (cf. Dan. 10:13;
natural daqueles que ficarem sabendo do 12:1; Enoque 9:1; 10:11). Além disso,
poderoso ato de salvação, executado por Zacarias recebe um sinal, que ao mesmo
Deus, na série de acontecimentos que tempo é punição pela sua dúvida: ele não
começam a se manifestar com o nasci­ poderá falar até que as palavras do anjo
mento de João, o Batista. se cumpram.
Conforme o padrão do mundo, os Qualquer demora no santuário era
grandes homens da época eram os Césa­ causa de inquietação entre o povo que
res e os Herodes. Conforme o padrão de esperava. Havia possíveis perigos, rela­
Deus, a verdadeira grandeza pertencia a cionados com a execução de um ritual
um profeta obscuro, humilde, relegado tão sagrado como oferecer incenso (cf.
ao deserto. A marca da consagração Núm. 16; Lev. 10:1,2; II Crôn. 26:16-
especial de João a Deus será a sua absti­ 21). Quando saiu, Zacarias não conse­
nência de vinho e bebida forte. Este é um guiu pronunciar a costumeira bênção
dos aspectos da condição de consagra­ sobre o povo, o que foi interpretado como
ção do nazireu (cf. Núm. 6:1-8). O aspec­ sinal de que ele tivera uma visão. O
sábado trouxe um fim aos dias do seu tiva cria na concepção sobrenatural de
ministério. Jesus. São Mateus 1:18-25 e Lucas 1:34-
A idéia corrente em Israel era de que 37. Alguns estudiosos acham que essa
uma mulher sem filhos era inferior às que idéia estava interpolada no texto original
tinham filhos (cf. Gên. 16:4). O estigma de Lucas, e que ela representava um de­
que Isabel havia carregado por tantos senvolvimento posterior. Não há razão
anos estava para ser removido. Dificil­ substancial para se rejeitar a conclusão
mente acreditaria que esse fato estivesse de que a crença no nascimento virginal
acontecendo, enquanto irrespondíveis antecedia tanto Mateus como Lucas, e
evidências físicas de sua gravidez não era uma convicção geral, sustentada pe­
aparecessem. Ao fim de cinco meses esta­ los primeiros cristãos.
ria claro para todos que Isabel de fato No entanto, não há referências ao nas­
estava para tornar-se mãe. cimento virginal em outras passagens do
Novo Testamento. Além do mais, nem
2) A Anunciação a Maria (1:26-38) em Mateus nem em Lucas ele é usado
para apoiar reivindicações a respeito da
26 O ra, no sex to m ê s, foi o a n jo G a b rie l pessoa de Cristo. Este conceito a respeito
en v iad o p o r D eu s a u m a c id a d e d a G aliléia ,
c h a m a d a N a z a ré , 27 a u m a v irg e m d e sp o ­ do nascimento de Jesus não figura proe­
s a d a com u m v a rã o cujo n o m e e r a J o s é , d a minentemente na apologética cristã pri­
c a s a de D a v i; e o n o m e d a v irg e m e r a mitiva, de que Lucas-Atos é um exem­
M a ria . 28 E , e n tra n d o o a n jo o nde e la e s t a ­ plo de escol. As reivindicações a respeito
v a, d is s e : S alv e, a g r a c ia d a ; o S en h o r é c o n ­
tigo. 29 E la , p o ré m , a o o u v ir e s ta s p a la v r a s ,
de Cristo são baseadas primordialmente
tu rb o u -se m u ito e põs-se a p e n s a r que s a u d a ­ em sua ressurreição. Não obstante, a
ção s e r ia e s s a . 30 D isse-lh e e n tã o o a n jo : convicção de que o Cristo ressurrecto era
N ão te m a s , M a r ia ; p o is a c h a s te g r a ç a d i­ também o Cristo encarnado e preexis­
a n te de D eus. 31 E is que c o n c e b e rá s e tente, reforça a teologia de todos os escri­
d a rá s à luz u m filho, ao q u a l p o rá s o n o m e
de J e s u s . tores neotestamentários.
32 E s te s e r á g ra n d e e s e r á c h a m a d o filho E, então, surge a pergunta: A que
do A ltíssim o ; propósito serve a história do nascimento
o S en h o r D eu s lhe d a r á o tro n o d e D av i, virginal, contada por Mateus e Lucas?
se u p a i ;
33 e r e in a r á e te r n a m e n te so b re a c a s a de
Há várias respostas possíveis. Era uma
Ja c ó , afirmação da peculiaridade de Jesus. Os
e o se u re in o n ã o te r á fim . seus seguidores criam que ele era Filho
34 E n tã o M a ria p e rg u n to u a o a n j o : C om o se de Deus em sentido último, diferente de
f a r á isto , u m a v e z q u e n ã o co n h eço v a rã o ? qualquer pessoa que já tivesse vivido ou
35 R espondeu -lhe o a n jo :
V irá so b re ti o E s p írito S anto, que fosse aparecer. A história do nasci­
e o p o d e r do A ltíssim o te c o b rirá co m a mento virginal fazia essa peculiaridade
su a so m b ra ; remontar ao princípio, mostrando que
p o r isso o q u e h á d e n a s c e r s e r á c h a m a d o Deus, e somente Deus, era responsável
sa n to ,
F ilh o d e D eus.
pelo seu nascimento.
36 E is que ta m b é m Is a b e l, tu a p a re n ta , A história também demonstrava que o
conceb eu u m filho e m s u a v e lh ic e ; é e s te o Filho de Deus, na verdade, havia nascido
sex to m ê s p a r a a q u e la q u e e r a c h a m a d a de mãe humana, e havia entrado no
e s té r il; 37 p o rq u e p a r a D eu s n a d a s e r á im ­ mundo como verdadeiro ser humano. A
possível. 38 D isse e n tã o M a r ia : E is a q u i a
s e r v a do S e n h o r; c u m p ra -se e m m im s e ­ ênfase na gênese divina não diminui o
gundo a tu a p a la v r a . E o a n jo a u se n to u -se fato de que, desde o momento de sua
d ela. concepção, Jesus se desenvolveu como
qualquer outra criança, e que entrou no
Duas passagens da Escritura propi­ mundo através de processos humanos
ciam as evidências de que a igreja primi­ completamente normais. Desta forma, a
história do nascimento de Jesus serve Maria pretende apresentar duas idéias:
para anular a influência dos mestres que Maria ainda era virgem, e ela estava
ensinavam que o Cristo divino não tinha desposada com José. Esse tipo de despo-1
identidade verdadeira como ser humano. "samento era um relacionamento muito
I Que Jesus não era o Cristo era um axio~ mais sério do que o noivado moderno,
I ma da cristologia gnóstica posterior. 8 A pois a mulher era considerada como
história do nascimento virginal procla- esposa legal do homem com quem tinha j
| mava, em termos ineludíveis, que o Jesus o compromisso. Geralmente passava-se
humano e o Cristo divino eram o mesmo. determinado período de tempo entre o
A anunciação a Maria é paralela T clispõsamento e a celebração , do casa­
anunciação a Zacarias, artifício que mento propriamente dito, quando o casal
capacita o escritor a estabelecer a supe­ começaria a viver junto como marido e
rioridade de Jesus em relação a João. mulher. Esperava-se que o Messias fosse
Claro que não se faz nenhuma tentativa descendente de Davi, fato ao qual se
para denegrir João, mas existe a clara atribui a identificação de José.
afirmação de que Jesus é o filho de Davi,_ _Não há base, no texto, para a idéia de
isto é, o Messias. Era também essencial que Maria era “cheia de graca” no sen­
mostrar, como Lucas o faz nos capítulos tido de que dessa forma éüTse tornou
1 e 2, que Jesus e João não representam ,uma[fonte de graça^O particípio passado
movimentos divergentes, opostos. _A” traduzido como agraciada declarava que
^ unidade entre eles é a unidade que tarru Maria eraj objeto da graça ou imergeidp
bém abrange os profetas e a Igreia. em favor de Deus^] A maior glória a que uma
uma corrente progressiva de ação e reve­ jovem judia podia aspirar era o privilégio
lação divinas. Mas não pode haver rival de ser a mãe do Messias. Quando o
para a posição central neste drama da evento finalmente acontece, Deus escolhe
redenção, pois esta pertence apenas a como instrumento do seu milagre uma
Jesus. simples jovem galiléia. Aqui esta à
A anunciação a Maria é feita no sexto maravilha! Este não é nada mais do que
mês da gravidez de Isabel, por razões que outro exemplo dos caminhos surpre­
se tornam claras, à medida que a história endentes de Deus, que “escolheu as coi­
se desenrola. O instrumento da revelação sas loucas dó~nmndo para confundir os
divina é Gabriel também neste caso. A sábios” e “as coisas fracas do mundo
informação de que Nazaré é uma cidade pãFa confundir as fortes” (I Cor. 1:27).
da Galiléia é uma recordação de que A perturbada reação de Maria, à sau­
Lucas está escrevendo para um público dação do anjo, acarreta a necessidade de
leitor gentio, desinformado acerca da uma tranqüilização adicional. Ela não
geografia da Palestina. deve temer nada a respeito daquela visita
Em Mateus, a história do nascimento celestial, pois o mensageiro vem para
virginal circula ao redor de José e seu trazer notícias alegres: Deus a havia
problema. Na história de Lucas, Maria é escolhido para a honra pela qual muitas
o centro das atenções. A descrição de mulheres judias haviam orado. Jesus é a
tradução grega da palavra hebraica
8 O gnosticismo, movimento que constituía um desafio Joshua, que significa “Yahweh é salva­
radical ao cristianism o, é encontrado pela prim eira vez
na literatura do segundo século. Já no prim eiro século, ção” . Esse nome não é definido no relato
todavia, idéias gnósticas com eçaram a se dissem inar no de Lucas, mas todo o Evangelho é um
m undo grego-romano. Um dos seus dogmas caracterís­
ticos era igualar a m atéria com o m al, o que levava à
desdobramento do seu significado.
negação da realidade da encarnação. E sta idéia tam bém ' Nos versículos 32 e 33, o futuro Filho é
resultou no ensinam ento de que o D eus que criara o descrito de tal forma que Maria saiba
m undo, o Yahweh do judaísm o, era um ser inferior,
m au, que não devia ser identificado com o Deus de
que ela está para dar à luz o Messias de
Cristo, que era absolutam ente Espírito. Israel. Filho do Altíssimo é um título
messiânico. O restante da declaração é adequado para descrever Aquele que
feito de forma a afirmar que o nasci­ estava para entrar no mundo. O titulo
mento de Jesus é o cumprimento de pro­ Filho de Deus marca Jesus como dife­
fecias como II Samuel 7:13-16 e Isaías rente de todos os outros homens, pois
9:6,7. Em outras passagens, a perspec­ atribui a ele um relacionamento com a
tiva de Lucas emergirá, mas por ora o divindade que nenhum outro ser humano
autor se contenta em deixar a história reivindica.
cumprir o seu objetivo. Jesus é o cumpri­ A gravidez de Isabel é citada, a Maria,
mento das esperanças e expectativas do como sinal do poder de Deus, que nunca
seu próprio povo, o Messias das profecias é frustrado pelos fatores naturais que
do Velho Testamento. No entanto, ele vai limitam os homens. O Deus que operara
além do conceito messiânico popular, ao um milagre na vida de Isabel podia rea­
afirmar a sua soberania eterna. lizar o que falara a Maria. Diferente­
Um velho manuscrito latino omite o mente de Zacarias, Maria parece não
verso 34. Alguns estudiosos crêem que requerer qualquer sinal, mas humilde­
esse versículo é uma interpolação e que a mente se submete à vontade de Deus
história, da forma como foi originalmen­ para a sua vida. Ela se considera serva
te escrita, não ensinava a concepção ou, literalmente, “escrava” do Senhor.
sobrenatural de Jesus. A evidência apre­
sentada pelos manuscritos, bem como a 3) A Visita de Maria a Isabel (1:39-56)
interpretação natural do verso 27 indicam
que o texto geralmente aceito é original. 39 N aq u e les d ia s le v an to u -se M a ria , foi
A maneira pela qual Maria apresenta o a p re s s a d a m e n te à re g iã o m o n ta n h o sa , a
seu problema mostra que ela entende que u m a c id a d e d e J u d á , 40 e n tro u e m c a s a de
a concepção deverá acontecer antes da Z a c a ria s e sa u d o u a Is a b e l. 41 Ao o u v ir
Is a b e l a s a u d a ç ã o d e M a ria , sa lto u a c r ia n ­
consumação do seu casamento. c in h a n o se u v e n tre , e Is a b e l fico u c h e ia do
No verso 35 está a resposta para a per­ E s p irito S an to, 42 e e x c la m o u e m a lt a voz:
gunta de Maria: Como se fará isto (v. 34)? B e n d ita é s tu e n tr e a s m u lh e re s , e b e n d ito é
Não é uma explicação, mas, antes, uma o fru to do te u v e n tr e ! 43 E d onde m e p ro v é m
isto , q u e v e n h a v is ita r-m e a m ã e d o m e u
afirmação. O Filho especial de Maria S en h o r? 44 P o is logo q u e m e soou a o s o u v i­
viria ao mundo como resultado do poder dos a voz d a tu a sa u d a ç ã o , a c ria n c in h a
criador do Espírito de Deus. Espírito, no salto u d e a le g r ia d e n tro de m im . 45 B em -
grego, é neutro; a palavra hebraica cor­ a v e n tu r a d a a q u e la q u e c re u q u e se h ã o d e
c u m p r ir a s c o is a s q u e d a p a r te do S en h o r
respondente ruah é geralmente feminina. lhe fo ra m d ita s . 46 D isse e n tã o M a r ia :
Não há base, no Velho Testamento, para 47 A m in h a a lm a e n g ra n d e c e ao S enhor,
a idéia de que o Espírito é o princípio e o m e u e s p irito e x u lta e m D e u s, m e u
masculino. O verbo vir sobre “denota S a lv a d o r;
ação não-material, e, assim, de acordo 48 p o rq u e a te n to u n a co n d iç ã o h u m ild e de
s u a se rv a .
com o seu freqüente uso na LXX, tam­ D e sd e a g o ra , p o is, to d a s a s g e ra ç õ e s
bém cobrirá, que nunca é usado em m e c h a m a rã o b e m -a v e n tu ra d a ,
relação à relação sexual” (Barrett, p. 7). 49 p o rq u e o P o d e ro s o m e fez g ra n d e s
O Espírito de Deus é ativo em trazer à c o isa s;
e sa n to é o s e u n o m e .
existência uma nova criação, uma nova 50 E a s u a m is e ric ó rd ia v a i d e g e ra ç ã o
humanidade ou um novo Adão, segundo e m g e ra ç ã o so b re os q u e o te m e m .
a terminologia paulina, em quem se 51 C om o se u b ra ç o m a n ife sto u p o d e r;
corporificará o novo Israel. O que acon­ d issip o u os q u e e r a m so b erb o s n o s p e n ­
tece, portanto, é criação, em vez de s a m e n to s d e s e u s c o ra ç õ e s ;
52 d ep ô s dos tro n o s o s p o d ero so s,
concepção, como geralmente se entende. e e le v o u os h u m ild e s.
Filho de Deus vai além da descrição dos 53 Aos fa m in to s e n ch e u d e b e n s,
versículos 32 e 33. Filho de Davi não é e v az io s d e sp e d iu o s rico s.
54 A uxiliou a Is r a e l, se u serv o , Há duas possibilidades de se traduzir a
le m b ra n d o -se d e m is e ric ó rd ia última cláusula do verso 45, dependendo
55 (com o falo u a n ossos p a is )
p a r a co m A b ra ã o e s u a d e sc e n d ê n c ia de como se entende a conjunção grega
p a r a s e m p re . subentendida. Ao invés da tradução que
56 E M a ria ficou com e la c e rc a d e tr ê s temos na versão da IBB, o “que” pode
m e s e s ; e depois voltou p a r a s u a c a s a . ser substituído por ‘‘porque~,~ãpresen-
tando, assim, uma razão panTcT fato de
A visita de Maria a Isabel serve para Maria ser bem-aventurada. Maria re­
unir os dois fios da história, de forma a presenta a genuína israelita que çjê nas
ilustrar dramaticamente o relaciona­ promessas deJ J eus. Tal pessoa é bem-
mento entre os filhos que as duas mulhe­ áventuradjTou feliz, porque Deus cum­
res dariam à luz. pre a sua palavra.
Maria reage à revelação do anjo indo Magnificat, a primeira palavra do cân­
apressadamente visitar Isabel, ostensi­ tico de Maria na Vulgata, serve como seu
vamente para confirmar o sinal que lhe título. Levanta-se uma interrogação
havia sido dado. É impossível identificar acerca da atribuição do Magnificat a
a cidade mencionada como o lugar onde Maria. Em alguns poucos manuscritos
Isabel habitava. Região montanhosa é o latinos, Isabel é a oradora, redação essa
nome da topografia de Jerusalém, dado apoiada por evidências expressas por
tanto por Josefo como por Plínio. Uma vários Pais da Igreja.
viagem de Nazaré até uma cidade da
Judéia, nas vizinhanças de Jerusalém, Algumas evidências internas também
seria da distância de cerca de cento e apoiam a atribuição a Isabel. O Magni­
vinte quilômetros, uma longa viagem ficat segue o padrão do cântico de Ana,
para uma moça de então. de regozijo e louvor, transcrito em I
O objetivo da visita, isto é, a verifi­ Samuel 2:1-10. A experiência de Isabel,
cação pessoal da gravidez de Isabel, tendo passado muito tempo sem filhos, o
perde-se de vista na história. Ao som da que terminou pela misericórdia especial
voz de Maria, a criança ainda não nas­ de Deus, tem grande semelhança com a
cida se move no ventre de Isabel. O verbo de Ana. Além do mais, o verso 48 se refe­
traduzido como saltou significa um mo­ riria mais naturalmente a Isabel. Con­
vimento causado por alegria. A declara­ dição humilde descreveria mais natural­
ção de que Isabel ficou cheia do Espírito mente a humilhação sofrida, como resul­
Santo focaliza-a como uma profetiza da tado de uma experiência frustrante,
nova era (veja, a respeito, o v. 15). como o estigma da esterilidade de Isabel.
O tema da história é a superioridade E, também, o verso 56 seria gramatical­
do filho de Maria sobre o de Isabel. mente mais claro, se Isabel fosse a autora
Isabel abençoa Maria porque ela seria a do Magnificat. O pronome ela dessa
mãe do Senhor dela, isto é, a mãe do forma teria um antecedente lógico, e a
Messias. Donde me provém isto é tra­ repetição do nome de Maria seria menos
dução de uma frase semita que significa: esquisita.
“Como isto pode acontecer a alguém tão Alguns intérpretes chegaram à con­
indigno?” clusão de que o Magnificat se originou
Isabel explica como chegara a reco­ entre seguidores de João Batista, e por
nhecer o significativo papel de Maria eles foi atribuído a Isabel. Não obstante,
como mãe do Messias. Talvez o leitor o peso esmagador da evidência textual,
deva entender que Maria tinha já con­ incluindo todos os manuscritos gregos,
cebido. Neste caso, a idéia pode ser que sustenta a atribuição do cântico a Maria.
João saltou de alegria porque estava na Ele é um hino de regozijo messiânico,
presença de Jesus. que, no contexto de Lucas, expõe o sig­
nificado do nascimento de Jesus mais para ser realizados no futuro. Neste
apropriadamente do que o de João. espírito, este hino fala acerca do que
A estrutura do Magnificat é composta Deus fará como se aquilo já tivesse acon­
pelo entretecimento de frases e idéias tecido.
tomadas de diferentes partes do Velho Os soberbos, os poderosos e os ricos
Testamento. Seguindo o padrão do cân­ descrevem pessoas que usam a sua posi­
tico de Ana, ele se divide em duas partes. ção e poder para explorar e oprimir. Por
A primeira (46b -50) é uma expressão de outro lado, os humildes e os pobres são
louvor por bênçãos pessoais. A segunda pessoas que colocaram a sua confiança
(51-55) descreve o significado desse somente em Deus, e esperam confia-
grande ato de Deus para Israel. O intér­ damente nele, por sua libertação. Por­
prete comete um erro, se entender esta e tanto, a terminologia usada tem nuanças
outras referências a Maria em Lucas 1 e 2 religiosas e morais que modificam a des­
em sentido exageradamente pessoal. crição das classes. A vinda do Messias é
Maria, em sua humilhação, representa considerada como um desafio de Deus
um povo humilde e oprimido. É a nação para com as estruturas de poder da
judaica que, na pessoa de Maria, dá à sociedade. Deus age para subverter o
luz Jesus. O que Deus fez por ela, fez por opressor e libertar o oprimido.
Israel. É claro que esta passagem se refere ao
Alma e espírito são termos paralelos, início da era messiânica, havia tanto
pelos quais o pronome “eu” pode ser tempo esperada. O propósito de Deus é a
substituído. Alma (psuche) corresponde redenção de Israel. Ele está respondendo
ao hebraico nephesh, e descreve o ho­ à opressão e abandono dos seus servos,
mem como um ser animado. O conceito em cumprimento à promessa já cente­
popular de alma como uma espécie de nária.
espírito desencarnado é totalmente ina­ Três meses adicionados aos seis do
dequado para se entender o uso bíblico verso 36 leva a narrativa ao término do
desse termo (cf. Stagg, p. 28-32). En­ período de gestação de Isabel. Aparen­
grandece significa louvar a Deus, decla­ temente, o leitor deve entender que M a­
rando a sua grandeza. A demonstração ria terminou a sua visita antes do nasci­
do poder de Deus em favor de sua serva mento de João, que é descrito no episódio
é uma manifestação do seu caráter como subseqüente. O leitor moderno levanta
Salvador ou Libertador. uma pergunta a que o escritor não res­
Os intérpretes têm, freqüentemente, ponde: Foi para a casa dos seus pais que
indicado que não há nada especifica­ Maria voltou?
mente cristão no Magnificat propria­
4) O Nascimento de João (1:57-80)
mente dito. Só com referência ao con­
texto pode-se entender que o hino de a. Circuncisão e Nome (1:57-66)
louvor de Maria ao poder e misericórdia 57 O ra , c o m p leto u -se p a r a Is a b e l o te m p o
de Deus é inspirado pelo nascimento de d a r à luz, e te v e u m filho. 58 O u v ira m
prometido de Jesus. Este acontecimento se u s v izin h o s e p a r e n te s que o S en h o r lhe
é a evidência da fidelidade de Deus ao m u ltip lic a ra a s u a m is e ric ó rd ia , e se a le ­
g ra v a m co m e la . 59 S u ced eu , p o is, no o itav o
seu próprio caráter, no fato de derramar d ia , q u e v ie r a m c irc u n c id a r o m e n in o ; e
a sua mercê sobre os que o temem, de q u e ria m d a r-lh e o n o m e de se u p a i, Z a c a ­
geração em geração, isto é, para sempre ria s . 60 R e sp o n d e u , p o ré m , s u a m ã e : D e
e sem exceção. m odo n e n h u m , m a s s e r á c h a m a d o Jo ã o . 61
A certeza do profeta, de que Deus será Ao que lhe d is s e ra m ; N in g u ém h á n a tu a
p a re n te la que se c h a m e p o r e ste n o m e. 62 E
fiel à sua palavra, é freqüentemente p e rg u n ta v a m p o r a c e n o s ao p a i com o q u e ria
demonstrada em lançar no tempo pas­ que se c h a m a s s e . 63 E , p edindo ele u m a
sado acontecimentos que ainda estão tã b u in h a , e s c re v e u : S eu n o m e é Jo ã o . E
todos se a d m ir a r a m . 61 Im e d ia ta m e n te a Aqui ele é descrito como estando surdo
b o ca se lh e a b riu , e a lín g u a se lh e s o lto u ; e também, visto que as pessoas precisam
fa la v a , louvando a D eu s. 65 E n tã o veio
te m o r so b re to d o s os se u s v izin h o s; e e m
empregar acenos para se comunicarem
to d a a re g iã o m o n ta n h o s a d a Ju d é ia * fo ra m com ele. A tabuinha era uma espécie de
d iv u lg a d a s to d a s e s ta s c o is a s. 66 E todos os tabuleta feita de madeira e coberta com
que d e la s s o u b e ra m a s g u a rd a v a m no c o r a ­ cera. Zacarias corroborou por escrito a
ção, d izen d o : Q ue v ir á a s e r , e n tã o , e ste escolha feita por Isabel a respeito do
m en in o ? P o is a m ã o do S e n h o r e s ta v a co m
ele. nome para o filho deles, indicando, dessa
forma, a sua convicção de que João era o
O nascimento de um filho a uma mu­ filho da promessa do anjo. Isso deu fim
lher estéril era considerado sinal distin­ ao tempo do seu castigo, e a sua fala
tivo de misericórdia divina. Especial­ voltou.
mente isto se referia a Isabel, cuja avan­ Os acontecimentos incomuns que cer­
çada idade faria a procriação impossível, caram o nascimento de João e a atribui
se não fosse a intervenção sobrenatural ção de um nome a ele inspiraram uma
de Deus. A circuncisão, sinal do pacto atitude de temor ou admiração reverente,
entre Deus e o seu povo (Gên. 17:11), apropriada aos que reconheciam que
fazia com que o indivíduo se tornasse Deus estava fazendo coisas estranhas e
membro da comunidade do pacto. Tinha maravilhosas no meio deles. Ao ouvir
ela lugar no oitavo dia, isto é, uma sema­ notícias de testemunhas acerca daqueles
na depois do nascimento. Todas as refe­ extraordinários acontecimentos, os ha­
rências pré-cristãs indicam que o nome bitantes da região guardavam no cora­
era dado à criança por ocasião do nasci­ ção, isto é, armazenavam-nos em sua
mento. A evidência mais antiga, fora do memória, para o dia em que o mistério
Novo Testamento, para se dar nomes por de tudo aquilo fosse revelado. A narra­
ocasião da circuncisão vem do oitavo tiva termina com uma nota de grande
século. No entanto, é difícil crer que o expectativa, pois o povo previa um des­
autor teria afirmado que João e Jesus tino extraordinário para alguém m ar­
(2:21) receberam o seu nome durante a cado por sinais tão arrebatadores do
circuncisão, se isso fosse discordante com envolvimento de Deus na sua vida como
o costume contemporâneo reconhecido. sucedeu com João.
Dar nome a um filho era negócio sério,
pois o nome representava o caráter ou b. A Profecia de Zacarias (1:67-80)
personalidade essencial da pessoa que o 67 Z a c a ria s , se u p a i, fico u ch e io do E s p í­
ostentava. A sugestão para que a criança rito S an to e p ro fetiz o u , d iz e n d o :
recebesse o nome do pai, Zacarias, pos­ 68 B en d ito s e ja o S e n h o r D eu s d e Is ra e l,
sivelmente foi feita por parentes e amigos p o rq u e v isito u e re m iu o se u povo,
que se haviam reunido na ocasião. A 69 e p a r a n ó s fez s u r g ir u m a sa lv a ç ã o
p o d e ro s a n a c a s a de D av i, se u s e r v o ;
objeção quanto à escolha de Isabel no que 70 a s s im co m o d e sd e os te m p o s a n tig o s
diz respeito ao nome da criança baseia-se te m a n u n c ia d o p e la b o c a dos se u s s a n ­
no argumento de que nenhum parente se to s p r o f e ta s ;
chamava João. Eles não conseguiam en­ 71 p a r a nos liv r a r dos nossos in im ig o s
e d a m ã o d e to d o s os q u e nos o d e ia m ;
tender que aquela criança fora escolhida 72 p a r a u s a r d e m is e ric ó rd ia co m nossos
por Deus para um papel que a distinguia p a is , e le m b ra r -s e do seu s a n to p a c to
de todos os outros membros da família. O 73 e do ju ra m e n to q u e fez a A b raão ,
seu nome, portanto, não fora escolhido no sso p a i,
por homens, mas determinado por Deus 74 d e co n ced er-n o s q u e , lib e rta d o s d a m ão
d e n o sso s in im ig o s, o s e rv ís s e m o s se m
(cf. Gên. 17:5; 32:28). te m o r,
O castigo pela dúvida demonstrada 75 e m s a n tid a d e e ju s tiç a p e ra n te ele,
por Zacarias foi afonia ou mudez (v. 20). to d o s os d ia s d a n o s s a v id a .
76 E tu , m en in o , s e r á s c h a m a d o p ro fe ta testamentárias. Deus é intimamente
do A ltíssim o ; identificado com Israel, que, por seu
p o rq u e i r á s a n te a fa c e d o S en h o r, a turno, é chamado de seu povo. A reden­
p r e p a r a r os s e u s c a m in h o s, p a r a d a r
77 a o se u povo co n h e c im e n to d a s a lv a ç ã o , ção esperada pelos judeus desde 63 a.C.
n a re m is s ã o d o s se u s p e c a d o s, era primordialmente a libertação do
78 g r a ç a s à e n tr a n h á v e l m is e ric ó rd ia do poderio de Roma. A expressão salvação
no sso D eu s, p e la q u a l n o s h á de v is ita r poderosa, no original, é “chifre de sal­
a a u r o r a lá do a lto ,
79 p a r a a lu m ia r a o s q u e ja z e m n a s tr e v a s
vação” , pois chifre era, em termos pic­
e n a s o m b ra d a m o r te , a fim d e d ir ig ir tóricos, símbolo de força, por ser a arma
os nossos p é s no c a m in h o d a p a z . de vários animais. O povo judaico espe­
80 O ra , o m en in o c re s c ia , e se ro b u s te c ia rava que o seu poderoso libertador res­
e m e s p írito ; e h a b ita v a n o s d e s e rto s a té o taurasse a dinastia davídica. Um judeu
d ia d a s u a m a n ife s ta ç ã o a Is r a e l.
desconhecido, dessa época, expressou as
Zacarias é a segunda pessoa que se aspirações de muitos dos seus compa­
toma profeta nessa nova era, como resul­ triotas, quando orou: “Senhor, olha para
tado de ter sido cheio do Espírito Santo eles, e levanta-lhes o seu rei, o filho de
(cf. v. 41 e 42). Benedictus, primeira Davi, no tempo que tens visto, ó Deus,
palavra da versão latina deste seu hino, é que ele reinará sobre o teu servo Israel”
o nome pelo qual ele é conhecido. O (Salmos de Salomão XVII. 23). Jesus
Benedictus é dividido em duas partes. A reinterpretou esta esperança, e redire-
primeira (v. 68-75) descreve o papel de­ cionou-a para alvos espirituais e uni­
sempenhado pelo Libertador de Israel, o versais.
Messias de Deus. A segunda (v. 76-79) Os atos do Messias, de acordo com as
descreve o papel do Precursor. Em gran­ palavras da promessa de Deus, aos pro­
de parte, o hino retrata a obra do Mes­ fetas (v. 70), cumpriram o pacto feito
sias em termos da esperança nacionalista com Abraão (cf. Gên. 22:16-18). Liber­
de libertação. Mas há algumas impor­ tação é produzir uma condição de liber­
tantes modificações deste tema na última dade religiosa em que o povo de Deus
parte. será capaz de expressar a sua vida reli­
Duas crenças básicas determinam a giosa sem temor de hostilidade e perse­
abordagem, que se faz do Velho Testa­ guição (v. 74 e 75).
mento, nos primeiros escritos cristãos. A
primeira era a convicção de que Deus, Profeta do Altíssimo deve ser contras­
que se revelara em Jesus Cristo, era tado com Filho do Altíssimo (v. 32).
também o Deus do Velho Testamento, e Desta forma, o papel de João Batista é
que havia coerência entre a sua revelação delineado como sendo o de mostrar o
em Jesus e a sua atividade na história de significado maior de Jesus. Aqui, como
Israel. A segunda, que os primeiros cris­ no verso 17, João é identificado com
tãos criam que Jesus Cristo era a revela­ Elias, identificação que Lucas evita no
ção escatológica ou última de Deus na corpo do seu Evangelho. Nesse ponto, o
história, e, portanto, era a chave para Benedictus avança para um novo nível,
se interpretar o que Deus já fizera ante­ quando a salvação é mencionada em ter­
riormente. Sobretudo, Lucas considerava mos mais espirituais e universais.
a Igreja como o verdadeiro Israel de João deve dar conhecimento da salva­
Deus, e entendia passagens como as do ção. Este conhecimento não é a gnose
Benedictus segundo essa perspectiva. ou sabedoria esotérica exaltada no pen­
Nos primeiros versículos do Benedic­ samento gnóstico. Pelo contrário, é aque­
tus, a esperança messiânica é expressa le conhecimento que se origina de uma
nos termos nacionalistas mais extrema­ experiência, a saber, a remissão dos...
dos, baseados em várias fontes vetero- pecados.
Aurora... do alto é difícil de se tra­ esposado por todos os escritores dos
duzir. Há possibilidades de que ela seja Evangelhos, de que a fase crucial da his­
igualada à palavra hebraica traduzida tória de redenção começa com a história
como “ramo” , visto que é usada para de João Batista. A íntima relação entre
traduzir o título messiânico na LXX. 1:80 e 3:2 é um ponto a favor da unidade
Neste caso, significa “Messias de Deus” . original do Evangelho de Lucas, da ma­
De acordo com alguns manuscritos, o neira como hoje ele se nos apresenta.
verbo visitar deve ser colocado no pas­
sado. No entanto, o texto é, provavel­
mente, correto, visto que toda essa frase, 5) O Nascimento de Jesus (2:1-20)
começando com o verso 76, é colocada no
futuro. O objetivo da referência que Lucas faz
A nota universal, tão proeminente no a um censo é mostrar por que Maria e
corpo principal do Evangelho, aflora à José precisaram estar em Belém quando
superfície pela primeira vez nesta con­ Jesus nasceu. Várias interrogações,
juntura. Lucas identifica os que jazem algumas de natureza relativamente sem
nas trevas com os gentios. O Messias deve importância, têm sido feitas a respeito da
guiar o seu povo no caminho da paz, e exatidão histórica da narrativa. Qual­
não em uma guerra de libertação nacio­ quer acontecimento relacionado com o
nal. nascimento de Jesus deve ser datado
Os desertos são geralmente identifi­ como sendo pouco antes da morte de
cados com o deserto da Judéia, a oeste do Herodes, o Grande, que ocorreu em
Mar Morto. Há uma grande possibili­ 4 a.C. Os governadores ou, mais propria­
dade de que João, de quem tanto a mo­ mente, legados da Síria, no período cru­
cidade como o ministério são localizados cial de que falamos, eram Sentius Satur-
nos desertos, tivesse mantido alguma ninus 9-6 a.C. e Quintilius Varus, 6-4
espécie de ligação com a seita de Qum- a.C. É fato bem conhecido, portanto,
ran. Essa é a região em que esse grupo que Quirino não se encaixa na sucessão
ascético judeu havia restabelecido a sua de legados no tempo devido.
comunidade, depois da morte de Hero- Além disso, Josefo silencia a respeito
des, o Grande. Mas a proximidade geo­ de um recenseamento durante o reinado
gráfica não é o único indício de um de Herodes, o Grande. Ele fala de um
relacionamento entre João e Qumran. O realizado por Quirino, em 6 d.C. Esse re­
seu ascetismo, sua escatologia, sua diver­ censeamento, ordenado com o objetivo
gência do judaísmo ortodoxo e a prática de compor relações de impostos, foi,
do batismo podem também consistir em para os judeus, uma expressão enfure-
elos com essa seita. 9 Por outro lado, cedora de sua subjugação a Roma. Ele
João é bem diferente, pelo fato de não ter atiçou um profundo ressentimento, que
procurado formar uma comunidade iso­ explodiu na revolta abortada, liderada
lada e monástica. Da mesma forma, ele por um certo Judas da Galiléia.
não simpatizava com a ênfase em ritua- Muitos estudiosos crêem que este é o
lismo religioso, especialmente na forma acontecimento descrito por Lucas. Eles
de abluções purificadoras, tão importan­ afirmam que ele cometeu o erro de fazer
tes para a comunidade do Mar Morto. o censo remontar a vários anos antes, e
Manifestação pode ser entendida como usou-o erroneamente, para responsabi­
o início do ofício divinamente ordenado lizá-lo pelas circunstâncias do nasci­
de João. Ela enfatiza o ponto de vista, mento de Jesus.
A defesa mais enérgica da exatidão
9 Cf. Charles Scobie, John The Baptist (London: SCM, histórica do relato feito por Lucas foi
1964), p. 37-40, 46,58, 59,102 e ss. feita muitos anos atrás, por Sir William
Ramsay. 10 Ela é fundamentada na pos­ como soberano semi-independente, difi­
sibilidade de que Quirino estava na Síria, cilmente teria permitido uma intromis­
encarregado de missões militares contra são dessas nos negócios internos do seu
rebeldes, durante pelo menos parte do reino. Mais uma vez deve ser dito que, na
governo de Saturninas. Ramsay sugere ausência de evidências, o intérprete não
que Quirino e Saturninus desempenha­ pode afirmar dogmaticamente o que
vam papéis administrativos duplos, na Herodes teria ou não feito. Todo o mun­
Síria, ao tempo do recenseamento, o do é uma hipérbole, referindo-se ao Im­
primeiro quanto a assuntos militares, e o pério Romano. Mas um recenseamento
segundo, quanto a assuntos internos. O simultâneo, em todo o império, parece
termo governador é susceptível à uma estar excluído, segundo as notícias his­
ampla interpretação, e bem pode aplicar- tóricas existentes, que mostram que
se a uma posição de autoridade militar. recenseamentos de diferentes regiões
Ramsay conclui que o censo de Herodes eram realizados em épocas diferentes.
foi “tribal e hebraico, e não antina- Todo o mundo pode ser uma tradução
cional” e que “ele estava completa­ errada de uma expressão aramaica, que
mente desligado de qualquer esquema de significava “todo o povo” , isto é, todo o
taxação romano” (p. 108). Por que ele povo judeu (Manson, p. 16).
suscitou pequena reação popular, passou Devido a recenseamentos, como o que
despercebido a Josefo. De acordo com começou no Egito em 20 d.C., que eram
esta reconstituição da situação, o nasci­ usados para computar relações de im­
mento de Jesus teria ocorrido, aproxima­ postos, requeria-se que os habitantes se
damente, em 8 a.C. registrassem onde viviam e possuíam
propriedades. Como tem sido sugerido,
a. Nascido em Belém (2:1-7)
a exigência de que os judeus voltassem ao
1 N a q u e le s d ia s s a iu u m d e c re to d a p a r te seu lar ancestral, como é especificado no
de C é s a r A ugu sto , p a r a q u e to d o o m u n d o relato feito por Lucas, podia ter o desíg­
fo sse re c e n s e a 3 õ . 2 E s te p rim e iro re c e n ­
s e a m e n to foi fe ito q u a n d o Q u irin o e r a g o v e r­ nio de juntar um a complacência menos
n a d o r da S íria . 3 E to d o s ia m a lis ta r-s e , melindrosa com uma medida desagra­
c a d a u m à s u a p ró p r i a c id a d e . 4 S ubiu ta m - dável, dando-lhe forma nacionalista. 11
b é m J o s é , d a G a lilé ia , d a c id a d e d e N a z a ré , José, descendente de DavT, dirigiu-se "à
à J u d é ia , à c id a d e d e D av i, c h a m a d a B e lé m ,
p o rq u e e r a d a c a s a e f a m ília d e D av i, 5 a fim
cidade de Davi (cf. I Sam. 17:12). De
d e a lis ta r-s e co m M a r ia , s u a e sp o sa , q u e acordo com Miquéias 5:2, Belém era a
e s ta v a g rá v id a . 6 E n q u a n to e s ta v a m a li, cidade de que viria aquele que estava
chegou o te m p o e m q u e e la h a v ia d e d a r à destinado a “reinar em Israel” .
luz, T e te v e à se u filho p rim o g ê n ito ; en v o l­ Sua esposa tem sido traduzido como
veu-o e m fa ix a s e o d eito u e m u m a m a n je ­
d o u ra , p o rq u e n ã o h a v ia lu g a r p a r a eles. n a- “sua prometida” , versão apoiada pelas
e s ta la g e m . melhores testemunhas do texto. Alguns
poucos manuscritos citam “sua esposa” ,
Jesus nasceu durante o reinado de
que é preferível, por motivos óbvios.
César Augusto, grande gênio adminis­ A tendência que culminou na doutrina
trativo, que governou o Império Romano da virgindade perpétua explicaria por que
de 27 a.C. a 14 d.C. Não há notícias, a um escriba teria mudado esposa, colo­
não ser neste Evangelho, que liguem
cando “prometida” .
Augusto com um recenseamento do Im­
Lucas, bem como os outros evangelis­
pério, mas um argumento baseado no
tas afirmam que Maria foi mãe de vários
silêncio não é conclusivo. Algumas pes­
filhos, de quem Jesus era o primogênito
soas também têm dito que Herodes,
ou mais velho (cf. Luc. 8:20). Nenhum
10 Was Christ Bom in Bethlehem? (New York: Putnam,
1898). 11 Cf. Ramsay, ibid., p. 107
argumento verdadeiro pode ser apresen­ história dos pastores. Os simples pasto­
tado contra o claro sentido do texto res de ovelhas pertenciam ao “povo da
nessas passagens. Se Lucas tivesse dese­ terra” , aquela multidão de homens
jado dizer que Jesus era filho único, ele comuns que eram considerados como
teria usado uma palavra mais apro­ estranhos ao pálio da respeitabilidade
priada: monogenés. religiosa. A sua ocupação e forma de vida
As humildes circunstâncias do nas­ faziam com que fosse impossível que eles
cimento de Jesus são pintadas nesta his­ satisfizessem os requisitos dos rituais
tória. A palavra traduzida como esta­ religiosos de pureza cerimonial. Visto
lagem na verdade significa quarto. Como que os pastores estavam apascentando os
um grande afluxo de hóspedes tivesse seus rebanhos durante as vigílias da
ocupado todos os lugares do quarto em noite, a cena não poderia ser possível no
que os viajantes dormiam, os pais de inverno. A tradição que coloca o nasci­
Jesus precisaram procurar alojamento no mento de Jesus em 25 de dezembro é
estábulo, ou talvez até em um redil relativamente moderna, atestada apenas
aberto. O primeiro berço a receber o seu depois do quarto século, e não é digna de
filho foi uma manjedoura, literalmente, confiança. 12 Os pastores estavam no
um cocho. Desta forma começou a sua campo de março até novembro.
"vida, esse “Homem para os outros” . E o Só no primeiro capítulo do Evangelho,
fez apropriadamente, pois não existem Lucas menciona os mensageiros celestiais
barreiras em um estábulo. Categorias su­ que aparecem em sua narrativa. Em
perficiais, de raça e classe, bem como outros lugares, ele segue o costume ju ­
noções escrupulosas a respeito de germes daico anterior, de designar cada um
e sujeira não têm importância aqui. To­ como um aiyo do Senhor. A reação à
dos os pobres, insignificantes e esqueci­ glória do Senhor ou ao fulgor da presen­
dos do mundo podem se reunir ao redor ça de Deus, talvez devendo ser entendida
da manjedoura, e podem ousar crer que como uma nuvem luminosa, foi grande
o Menino que ali estava deitado real­ temor.
mente pertencia a eles. As primeiras palavras do visitante
b. Anunciado a Pastores (2:8-14) celestial trazem confiança; ele é arauto
de novas de grande alegria. Alegria,
8 O ra , h a v ia n a q u e la m e s m a re g iã o p a s ­ tema que se repete constantemente em
to re s q u e e s ta v a m no c a m p o , e g u a rd a v a m ,
d u ra n te a s v ig ília s d a n o ite , o se u re b a n h o . Lucas, é a reação adequada ao ato salva­
9 E u m a n jo do S en h o r a p a re c e u -lh e s, e a dor de Deus. O povo (laos) é o povo de
g ló ria do S en h o r os c e rc o u d e re s p le n d o r; Deus. Por ocasião do nascimento de
p elo q ue se e n c h e ra m d e g ra n d e te m o r. Jesus, ele era Israel, e mais tarde se
10 O a n jo , p o ré m , lh e s d is se : N ão te m a is ,
p o rq u a n to vos tr a g o n o v a s d e g ra n d e a le ­ tornou a Igreja, de acordo com a opinião
g ria , q u e o s e r á p a r a todo o p o v o ; 11 È q u e de Lucas, a respeito da história reden­
vos n a s c e u h o je , n a c id a d e d e D a v i, ». S a l­ tora.
v a d o r, q u e é C risto , o S en h o r. 12 E is to vos As boas-novas são o nascimento de um
s e r á p o r s in a l: A c h a re is u m m e n in o envolto
e m fa ix a s , e d e ita d o e m u m a m a n je d o u ra .
Salvador, título incomum para Jesus, nos
13 E n tã o , de re p e n te , a p a re c e u ju n to ao a n jo Evangelhos. No mundo antigo, um sal­
g ra n d e m u ltid ã o d a m ilíc ia c e le stia l, lo u ­ vador era primordialmente um libertador
v an d o a D eu s e d iz e n d o : de doenças, de perigo ou das limitações
14 G ló ria a D eu s n a s m a io re s a ltu ra s , humanas, no mundo. Governantes, tanto
e p a z n a t e r r a e n tr e o s h o m e n s de b o a
v o n tad e. gregos como romanos, eram chamados
A verdade de que o evangelho se des­ 12 Veja o ensaio de Oscar Cullmann: “The Origin of
Christmas”, em The E arlj Church, ed, Á. J. B. Higgins
tinava aos desprezados e economica­ (ed. resumida; London: SCM, 1966), p. 21 e ss., para
mente oprimidos é levada a efeito pela encontrar uma discussão dessa tradição “cristã” .
de salvadores. Esse título era freqüente­ vontade entre os homens” , não tem a
mente dado a deuses gregos, especial­ devida sustentação textual. A paz que o
mente às divindades das religiões dé mis­ recém-nascido Messias estava paràTrazer
tério. Na LXX, Deus é chamado de Sal­ pertence
Jsrr"— -■ aos homens^de - '.js boa vontade,7
vador (v. g. Sal. 24:5; assim também em referindo-se àqueles que Deus agradou-
Luc. 1:47). Proclamar Jesus como Salva­ se em escolher para si como seus (cf.Xiic]
dor, no ambiente helenista da missão aos j3:22). À p azque Jesus trouxe foi recon-
gentios, era afirmar que ele era o Liber­ Iciliação entre Deus e o homem, e a
tador universal* pelo qual ò povo ansia- I reconciliação corolária entre o homem e
vã, que podia fazer por eles o que nem |o seu próximo. Esta paz é possível aos
governantes nem os seus deuses haviam indivíduos “ de boa vontade” , mesmo em
podido realizar. Só ele podia realmente I meio a caos, tensões e ódios da sociedade
libertar o homem de sua escravidão ao j humana. Não depende de circunstâncias
mal, destino, morte e corrupção. exteriores, mas de uma reação pessoal à
Cristo, o Senhor, é tradução de uma I iniciativa da graça divina.
expressão difícil, que consiste da justa­
posição de dois nomes no caso nomina­ c. A Visita dos Pastores (2:15-20)
tivo, sem um artigo interveniente; literal­
mente: “Cristo Senhor” . Muitas conjec­ 15 E logo q u e os a n jo s se r e t ir a r a m d eles
turas, acerca do significado desta expres­ p a r a o c é u d iz ia m o s p a s to re s u n s a o s o u ­
tr o s : V a m o s j á a té B e lé m , e v e ja m o s isso
são, têm sido feitas. Algumas pessoas que a c o n te c e u e q u e o S en h o r n o s d eu a
crêem que a primeira palavra deve ser c o n h e ce r. 16 F o ra m , p o is, a to d a a p re s s a , e
entendida como adjetiva e traduzida a c h a r a m M a r ia e J o s é , e o m e n in o d e ita d o
“Senhor ungido” . Outras a traduzem n a m a n je d o u ra ; 17 e, vendo-o, d iv u lg a ra m a
p a la v r a q u e a c e r c a d o m e n in o lh e s fo ra d i t a ;
“Cristo e Senhor” , levando a expressão a 18 e to d o s os q u e a o u v ira m se a d m ira v a m
significar que o Messias é Yahweh. A do q u e os p a s to re s lh e s d iz ia m . 19 M a ria ,
explicação mais provável e què âconteceu p o ré m , g u a rd a v a to d a s e s ta s c o is a s, m e d i­
uma corruptela do original aramaico, ta n d o -a s e m se u c o ra ç ã o . 20 E v o lta ra m os
que devia ser traduzido como “O Cristo p a s to re s , g lo rific a n d o e lo u v a n d o a D eu s p o r
tu d o o q u e tin h a m o u v id o e v isto , co m o lh es
dc Senhor’!* conforme em Lucas 2:26. fo ra dito .
Senhor representa a tradução da Septua-
ginta, do nome divino de Yahweh, e Seguindo as instruções que lhes ha­
devia ser entendido aqui desta forma, viam sido dadas, os pastores acharam a
embora em o Novo Testamento esse criança que os anjos haviam descrito.
título seja freqüentemente dado a Jesus. Logo em seguida, divulgaram, aos pais,
O Salvador que nasceu, portanto, é o tudo o que o anjo lhes havia dito acerca
Messias que Deus prometera a Israel. do menino. De acordo com o verso 18,
Quando os pastores encontraram, na outras pessoas também estavam pre­
cidade de Davi, o bebê recém-nascido, sentes, e ouviram os pastores contarem a
deitado em uma maiyedoura, souberam sua experiência incomum.
que haviam descoberto a criança da qual A descrição da reação de Maria à
o anjo falara. revelação dos pastores dá a entender que
O coro celestial é composto dos servos Lucas pensava nela como fonte original
celestiais de Deus descritos em Daniel das informações em que o seu relato se
7:10. O seu hino se inicia com uma atri­ baseou (cf. também 2:51). Naquela hora,
buição de louvor ao Deus transcendental, Maria conseguiu apenas meditar... em
que levara á efeito esse maravilhoso seu coração, isto é, ponderar acerca do
evento. A segunda parte descreve o resul- possível significado dos sinais incomuns
tado do ato redentor de Deus: paz'na que cercavam o nascimento do seu filho.
terra. A tradução alternativa “ paz boa Ela e os outros vieram a entender o mis­
tério do papel de Jesus, no propósito De acordo com Levítico 12, o ritual da
redentor de Deus, somente à luz dos purificação tinha lugar trinta e três dias
desenvolvimentos posteriores, especial­ depois da circugcisitCLda. cria n ça , e acar-
mente a sua morte e ressurreição. retava o sacrifício de um cordeiro de um
ano comõlrferta queimada, e um a pom­
2. A Infância de Jesus (2:21-52) ba ou uma rola como oferta pelo pecado.
1) Circuncisão e Apresentação (2:21-40) Aos pobres que não tinham condições de
a. O Nome de Jesus (2:21) oferecer um cordeiro, permitia-se ofere­
cer outra pomba ou rola como oferta
21 Q uando se c o m p le ta r a m os oito d ia s queimada. Neste caso, o sacrifício de um
p a r a s e r c irc u n c id a d o o m e n in o , foi-lhe d a d o par de rolas ou dois pombinhos coloca a
o n o m e d e J e s u s , q u e pelo a n jo lh e fo ra p o sto família de Jesus entre os pobres.
a n te s d e s e r co n cebido.
A referência à “purificacão deles” é
Como no caso de João, Jesus foi cir­ feita em algumas traduções, e é obscura,
cuncidado e recebeu um nome no mesmo visto que, de acordo com a lei, só a mãe
dia (veja 1:59). A nota acerca da circun­ era considerada impura. Há pequena
cisão mostra que Jesus era uma criança evidencia, em manuscritos, para a reda­
genuína da comunidade do pacto. Mas ção “purificação dela” , que seria uma
a atribuição do nome divinamente dado forma correta de entender o ritual. A
é o acontecimento central aqui. As cir­ redação da maioria dos manuscritos,
cunstâncias que cercaram o ato de se citando a “purificação deles” , pode indi­
dar um nome a Jesus dão testemunho car uma relutância, que se desenvolvera
de que a criança tinha um destino divi­ bem cedo, em relação a Maria como
namente pré-ordenado. pecadora e necessitada de purificação.
Para as exigências referentes à reden­
b. O Testemunho de Simeão a Respeito
ção do primogênito, yeja Êxodo 13:2,
de Jesus (2:22-32)
12-16. De acordo com Números 18:16
22 T e rm in a d o s os d ia s d a p u rific a ç ã o , o preço da redenção do rebento macho
se g u n d o a le i d e M oisés, le v a ra m -n o a J e r u ­ era cinco moedas. O cumprimento da~
s a lé m , p a r a a p re s e n tá -lo a o S e n h o r 23 (c o n ­
j exigência devia ter lugar quando a crian- j
fo rm e e s t á e s c rito n a lei d o S e n h o r: Todo
p rim o g ê n ito s e r á c o n sa g ra d o a o S en h o r), [_ça tinha um mês de idade. Nessa ocasiãoT’
24 e p a r a o fe re c e re m u m sa c rifíc io seg u n d o os pais de Jesus levaram-no a Jerusalém,
o d isp o sto n a ' ei do S e n h o r: u m p a r d e ro la s , ao Templo, coisa que não era necessária,
ou dois pom bL ihos. 25 O ra , h a v ia e m J e r u ­
s a lé m u m h o m e m cu jo n o m e e r a S im e ã o ; e
mas apropriada. O relato aparentemente
e s te h o m e m , ju s to e te m e n te a D eu s, e s p e ­ funda-0s~J-ituais- de purificacão e de re­
r a v a a co n so la ç ã o d e I s r a e l; e o E s p írito denção do primogênito.
Santo e s ta v a so b re e le. 26 E lh e fo ra r e v e ­ Simeão, como Zacarias e Isabel repre-
lad o p elo E s p írito S an to q u e e le n ã o m o r ­
r e r ia a n te s d e v e r o C risto do S en h o r
• sentava os mais elevados atributos da fé e
21 A ssim , pelo E sp írito foi a o te m p lo ; e moralidade judaicas. A sua devoção era
q u an d o os p a is tr o u x e ra m o m e n in o J e s u s , expressa no cuidado com que ele cum­
p a r a fa z e re m p o r ele seg u n d o o c o stu m e d a pria os deveres religiosos prescritos.
lei, 28 S im eão o to m o u e m se u s b ra ç o s , e Além do mais, ele fazia parte de um
louvou a D eu s, e d is s e :
29 A g o ra, S enhor, d e sp e d e s e m p a z o te u
grupo de pessoas zelosas (cf. v. 38), que
se rv o , estavam esperando a consolação de
seg u n d o a tu a p a l a v r a ; Israel. Esta frase era usada, pelos rabis,
30 po is os m e u s olhos j á v ir a m a tu a para designar o cumprimento da espe­
sa lv a ç ã o , rança messiânica (cf. Is. 40:1). Visto que
31 a q u a l tu p r e p a r a s te a n te a fa c e de
todos os p o v o s ; o Espírito Santo estava sobre ele, Simeão
32 luz p a r a re v e la ç ã o ao s g en tio s, possuía a energia profética essencial para
e g ló ria do te u povo Is ra e l. discernir os propósitos de Deus que se
estavam desabrochando. O cumprimento são apresentados no verso 32: (1) o alcan­
da promessa que lhe fora feita teve lugar ce universal da salvação de Deus, e (2) o
no Templo, onde ele entrou pelo Espí­ cumprimento da religião de Israel em
rito, o que significa que estava em um Jesus.
estado de êxtase profético.
c. A Predição de Simeão a Maria (2:33-
O breve cântico de Simeão é chamado
35)
o Nunc Dimittis, as primeiras duas pala­
vras da tradução latina. O orador declara 33 E n q u a n to isso , se u p a i e s u a m ã e se
a d m ir a v a m d a s c o is a s q u e d e le se d iz ia m .
que agora ele estava preparado para 34 E S im e ã o os a b e n ço o u , e d is se a M a ria ,
morrer, visto que a promessa de Deus, m ã e do m e n in o :
feita a ele, se cumprira. Ele podia partir E is q u e e s te é p o sto p a r a q u e d a e p a r a
em paz, sem pesar nem sentimento de le v a n ta m e n to d e m u ito s e m Is r a e l,
frustração. Ele foi uma das pessoas afor­ e p a r a s e r a lv o d e c o n tr a d iç ã o ;
35 sim , e u m a e s p a d a tr a s p a s s a r á a tu a
tunadas que chegou ao fim do caminho p ró p r ia a lm a , p a r a q u e se m a n ife s te m os
com a convicção de que a vida não p e n s a m e n to s d e m u ito s co ra ç õ e s .
poderia ter sido mais compensadora e
significativa. Simeão dá a si mesmo o A despeito da inclusão da história a
nome de servo de Deus, literalmente respeito da concepção de Jesus, Lucas
escravo de Deus. Ele parece representar, fala muito naturalmente de José como
em Lucas, o ideal para Israel, o povo pai de Jesus (veja também 2:41,48). A
servo. Em sua fidelidade aos ensina­ surpresa dos pais é causada pela descri­
mentos do judaísmo, e ao reconhecer que ção feita por Simeão acerca do signifi­
Jesus era o cumprimento da esperança cado da criança. Aqui, como em 2:18,19
profética, Simeão assume a atitude con­ e 2:50,51, enfatiza-se o ponto de que
veniente a Israel, nessa crucial conjun­ Maria e José, na verdade, não enten­
tura da história da salvação. De fato, em deram todo o significado do que estava
sua dedicação ao melhor no passado, e acontecendo.
em sua abertura para as surpresas do Notando a surpresa dos pais, Simeão se
futuro de Deus, ele bem podia servir dirige à mãe pela primeira vez. A vinda
como modelo para o servo de Deus em de Jesus introduzira uma crise, que divi­
qualquer geração. diria a nação. A sua presença constitui
Em Jesus, Simeão viu a consecução da uma exigência de decisão da parte do
enunciação profética de Isaías 52:10. seu povo. Aqueles que o rejeitarem cai­
Aqui o tema universal emerge distinta­ rão, enquanto aqueles que o aceitarem
mente, em uma passagem entremeada de serão levantados. Isto está de acordo com
textos de Isaias. Alguns paralelos, em o tema da degradação dos orgulhosos e
Isaias (cf. 42:6; 49:6), mostram como o exaltação dos humildes, que é proemi­
conceito do Servo Sofredor, ali encon­ nente em Lucas. Alguns intérpretes
trado, é importante para Lucas entender acham que a “pedra de tropeço” (8:14)
Jesus. e “pedra preciosa de esquina” (28:16)
Todos os povos pode ser usado para de Isaías são a chave para a figura usada
referir-se apenas a Israel, mas neste caso aqui. (Veja Caird, p. 64, para outra
abrange toda a humanidade. A salvação explicação plausível.)
de Deus é definida como luz para os Em sua própria pessoa, Jesus constitui
gentios e glória para os judeus. É a luz o sinal de Deus para a nação, a evidência
que dissipará as trevas em que os gentios ineludível e irrefutável do raiar do go­
estavam habitando. É a glória de Israel, verno de Deus. Todavia, este sinal não é
pelo fato de ser a culminação da obra moldado para enquadrar-se com as exi­
redentora de Deus através de sua nação gências do homem, e, conseqüente­
serva. Dois proeminentes temas de Lucas mente, é inaceitável para muitos.
A mãe participará, em certa medida, que a capital judaica seria libertada dos
do sofrimento do Filho, pois a crueldade seus invasores estava incluída na espe­
rança messiânica (v.g. Is. 52:1 e ss.).
a ele dirigida será como um a espada que
traspassará a sua alma. A reação para e. A Volta a Nazaré (2:39,40)
com Jesus será um desvendamento ^do
39 A ssim q u e c u m p r ir a m tu d o seg u n d o a
que o homem é por dentro: “ os pensa­ lei do S en h o r, v o lta r a m à G a liléia , p a r a su a
mentos secretos de muitos serão expos­ c id a d e d e N a z a ré . 40 E o m e n in o ia cres-
tos” (NEB). Portanto, já nesta seção, cendo e fo rta le c e n d o -se , fic a n d o cheio de
focaliza-se a atenção na natureza pessoal
da crise que Jesus provocará. Não são as
distinções superficiais de raça ou classe
que farão a diferença, mas a qualidade
da reação da pessoa para com o chamado*
t s a b e d o ria ; e a g r a ç a d e D eu s e s ta v a so b re
ele. —p Jeja-J
Visto que a viagem a Jerusalém é
descrita como uma volta à Galiléia, en­
tendemos que Nazaré era o endereço
CnYCà. â&- 4 L

de Deus em Jesus, para um a decisão residencial da família, naquele período


pessoal. de tempo. Mas, da narrativa feita por
d. O Testemunho de Ana Acerca de Mateus, o leitor pode ter a idéia de que
Maria e José residiram em Belém até a
Jesus (2:36-38)' 8a Para 0 Egito. Depois da volta do
trv w ç /w k © h A e U i f k ^ c o Cf ^
36 H a v ia ta m b é m u m a p ro fe tis a , A n a, 4 Egito, foram para Nazaré, e não para a
filh a d e F a n u e l, d a trib o d e A se r. E r a j a > j udéia, porque tinham medo de Arque-
a v a n ç a d a e m id a d e , te n d o v iv id o co m o _ , ~ . *=, • j- ,
m a rid o se te a n o s, d e s d e a s u a v ir g in d a d e ; ,2 u ^ 2.22 e S.). E mendianamente
37 e e r a v iú v a , d e q u a se o ite n ta e q u a tro claro que tanto Mateus como Lucas es­
an o s. N ão se a f a s ta v a do te m p lo , se rv in d o a creveram independentemente, e que os
D eus noite e d ia e m je ju n s e o ra ç õ e s. 38 L seus relatos a respeito da infância de
C hegando e la n a m e s m a h o ra , d e u g r a ç a s a
D eu s, e falo u a re s p e ito do m e n in o a todos os
^ Jesus se originaram em fontes diferentes.
qu e e s p e r a v a m a re d e n ç ã o d e J e r u s a lé m . | Os materiais são demasiadamente limi-
tados, para permitir uma explicação defi-
O estilo literário de Lucas é grande­■ nitiva do relacionamento entre as duas
mente influenciado por sua predileção narrativas.
por pares, demonstrada aqui na maneira Quando as pessoas possuíam capa­
como ele equilibra o episódio acerca de cidade incomum, encontravam o sucesso
Simeão, o profeta, com outro, acerca de e boa sorte, escapavam do perigo, etc.,
Ana, a profetisa. A descrição da idosa dizia-se que eram objetos da graça de
viúva é marcada por um número inco- Deus. Nesta passagem, esta frase afirma
mum de detalhes preciosos. A passagem que, mesmo nesse período inicial de de­
não fala de ela ser revestida do Espírito, senvolvimento, o menino demonstrava
mas a chama de profetisa, o que é o, que estava revestido com dons incomuns.
mesmo. $ 2) O Menino Jesus no Templo (2:41-52)
A preocupação mais importante pare-■ 41 O ra , se u s p a is ia m todos os a n o s a
ce ser enfatizar a extraordinária devoção^ J e r u s a lé m , à f e s ta d a p á s c o a . 42 Q uando
de Ana desde que enviuvara. Na sua fre­ J e s u s co m p leto u doze a n o s, s u b ira m ele s
qüência ao Templo, nos jejuns e orações, se g u n d o o costurrie d a fe s íã ; 43 e , te r m i­
ela ia muito além do que até o mais n a d o s a q u e le s d ia s, a o r e g r e s s a r e m , fico u o
m en in o J e s u s e m J e r u s a lé m s e m o s a b e r e m
devoto dos seus contemporâneos. Ela se u s p a is ; 44 ju lg a n d o , p o ré m , q u e e s ti­
acrescentou o seu testemunho ao de v e sse e n tr e os c o m p a n h e iro s d e v ia g e m ,
Simeão, dizendo, aos que esperavam a a n d a r a m c a m in h o de u m d ia , e o p r o c u r a ­
redenção de Jerusalém, que Jesus era o v a m e n tr e os p a re n te s e c o n h e cid o s; 45 e,
n ã o o a c h a n d o , v o lta r a m a J e r u s a lé m , e m
cumprimento de sua esperança. Reden­ b u sc a d e le . 46 E a c o n te c e u q u e, p a ss a d o s
ção de Jerusalém é sinônimo de conso­ tr ê s d ia s , o a c h a r a m n o t em p lo , se n ta d o no
lação de Israel (veja 2:25). A crença de m eio d o s d o u to re s, ouvindo-os e in te rro -
g an d o -o s. 47 t? todos os que o o u v ia m se ou região, era muito fácil acontecer a
a d m ira v a m d a s u a in te lig ê n c ia e d a s su a s ausência despercebida de um garoto de
re s p o sta s . 48 Q uando o v ir a m , fic a ra m
m a ra v ilh a d o s, e d isse-lh e s u a m ã e : F ilh o ,- *doze anos, até chegar a hora de acampar,
p o r qu e p ro c e d e s te a s s im p a r a co n osco? E is durante a noite.
que teu p ai «Teu a n sio so s te p rõ c u ra v a m o s . Relatos legendários posteriores ten-
49 R esp o n d eu -lh es e le : P o r q u e m e pro cu - denTa fazer do menino Jesus um garoto
rá v e is ? N ao sa b íe is q ue e u d e v ia e s t a r n a
c a s a d e m e u P a i? 50 E le s , p o re m , n ao e n te n ­
■maravilha. Desta forma, no JEvangelho^
d e ra m a s p a la v r a s qu e lh e s d is s e ra . 51 E n ­ $ de Tomé, ele silencia os mestres e se
tã o , d escen d o co m e le s , foi p a r a N azaré,, e I -íÕrnaseiTTnstrutor. Este nãoé o casg.no
e ra -lh e s s u je ito . E s u a m ã e g u a rd a v a to d a s relato feito porfLucasT^em que(Jesus^é
e s ta s c o isa s e m se u c o ra ç ã o . § retratado como aprenmz, ouvindo-os, e
52 E c re s c ia J e s u s e m sa b e d o ria , e m
e s ta tu r a e e m g r a ç a d ia n te d e D eu s e dos interrogando-os, e, por sua vez — quase
h o m en s. t»com certeza — respondendo a perguntas
A Lei mandava que todos os judeus do a ele dirigidas. 0 seu interesse incomum >
sexo masculino fossem a Jerusalém, para Cem assuntos religiosos e a sua inteli-l
participar das festas da Páscoa. Pente­ ( gência são descritos na história.
costes e Tabernáculos (cf. Ex. 23:14-17: Qualquer pai que tenha experimen­
34:23; Deut. 16:16). Para os muitos tado a angústia de procurar uma criança
judeus que viveram, depois do Exílio, em perdida pode avaliar o significado da
regiões distantes de Jerusalém, o cumpri­ repreensão queixosa dirigida por Maria
mento dêssè rêqüisito se toTnara impos­ ão seu filho. Ela, naturalmente, achava'^
sível. Os residentes na Palestina faziam Jque havia sido tratada com pouco caso. 1
um esforço para estar em Jerusalém pelo Por outro lado, a resposta de Jesus
menos uma vez por ano, em uma das mostra a sua completa surpresa pelo
festas. (Jose)estava seguindo o costume fato de Maria e José não estarem sabendo
usual, a saber, agindo segundo o cos­ o seu paradeiro. “Só então” , escreve
tume, bem como segundo a Lei (v. 42), Teãney^“ torna-se claro para ele que elesí
em sua visita anual a Jerusalém, para a [não percebiam as suas intuições pessoais ]
observância da Páscoa. Embora as mu- le privadas, de que até então ele presu-
lheres não fossem por reauenmento |mira inconscientemente que eles compar­
da Lei, muitas delas, como O laria? tilhassem” (p. 103).
acompanhavam os membros mascu- A expressão traduzida como casa de
linos de suas famílias, nessas peregri- meu Pai também pode ser traduzida
como ‘^engajado_nos negócios d_e meu
____________ os meninos judeus se Pai” (veja, v.g., a tradução antiga da
tomavam filhos da Lei, e membrõs~res- IBB). A tradução feita na versão atual da
ponsáveis da comunidade do pacto, IBB é, provavelmente, mais correta. C ff
“obrigados a cumprir os requisitos da Lei. fsentido da declaração de Jesus é de que /
Conseqüentemente, na idade de doze j Maria e José deviam saber que ele seria!
anos, Jesus juntou-se aos seus pais, em í encontrado no Templo, e, portanto, não
j j ^sua peregrinação anual. I precisavam procurá-lo. —1
De acordo com a Lei, a Festa dos Pães A descrição que Jesus faz do Templo
Asmos, que se seguia imediatamente a como a casa d o s e u Pai._atirma o seu
"celebração da Páscoa, devia ser observa­ __ relacionamento com ___ o Israel,
da durante sete dias (Êx. 23:15). No acima e contra o ensinamento gnóstico,
entanto, muitos peregrinos partiam de que negava a identificação do Deus de
Jerusalém depois dos dois dias reque­ Jesus com o Yahweh do Velho Testa­
ridos para a sua participação no ritual da mento (veja nota de rodapé de n9 5).
Páscoa. Em uma caravana, composta de .O versículo 49 também levanta a inter-
'=“" 3 — "— r.- — 3------- nr~
parentes e conhecidos da mesma cidade rogaçao emgmatica acerca da conscien-
cia que Jesus tinha de sua identidade e outras pessoas para com uma pessoa
missão, visto que ela implica em laço graciosa.
peculiar entre ele e Deus, seu Pai. Qual­
quer esforço para compreender Jesus que II. Introdução ao Ministério de
leve a sério a-encarnação precisa começar Jesus (3:1-4:13)
com o reconhecimento de que ele, como 1. O Ministério de João (3:1-20)
qualquer outro ser humano, tinha que
aprender a andar, falar, alimentar-se, 1) A Vocação de João (3:1-6)
etc. Levanta-se a questão: E m jju e js tá ; 1 No d é c im o q u in to an o do re in a d o de
gio de sua_vida Ifisus_coxoecou a ter_a T ib ério C é sa r, sen d o P ô n cio P ila to s g o v e r­
convigçãP acercando seuj apel decisivo na n a d o r d a J u d é ia , H e ro d e s te t r a r c a d a G ali-
história da salvação,_e como essa convic- lé ia , se u irm ã o F ilip e t e t r a r c a d a re g iã o d a
I tu r é ia e d e T ra c o n ite s, e L is ã n ia s te t r a r c a
ça5~sédesenvõ]v é u ? NMÃuma resposta^ de A bilen e, 2 sen d o A n ás e C a ifá s su m o s
cíogmaticapodêTser dada a essas per­ sa c e rd o te s, v eio a p a la v r a d e D e u s a Jo ã o ,
guntas. Porém a história acerca de Jesusl filho de Z a c a ria s , no d e se rto . 3 E e le p e rc o r­
íno Templo indica que, nessa tenra idade, I re u to d a a c irc u n v iz in h a n ç a do J o rd ã o , p r e ­
Jesus já estava avançando para um a] g an d o o b a tis m o d e a rr e p e n d im e n to p a r a
re m is s ã o de p e c a d o s, 4 com o e s tá e sc rito no
percepção do caráter singular de sua 1 liv ro d a s p a la v r a s do p ro fe ta I s a í a s :
I relação com Deus. ** Voz d o q u e c la m a no d e s e r to :
O leitor é levado a entender que, na­ P r e p a r a i o c a m in h o do S e n h o r;
quela ocasião, a experiência no Templo e n d ire ita i a s s u a s v e re d a s .
5 Todo v a le se e n c h e r á ,
não alterou a condicão de Jesus no lar e se a b a ix a r á to d o m o n te e o u te iro ;
[Logo que voltou a Nazaré, ele continuou o q u e é to rtu o so se e n d ir e ita rá ,
a levar a vida normal e que se espera de e o s c a m in h o s e sc a b ro so s se a p la n a ­
[uma criança, sendo obediente a José e rã o ;
[Maria. Esta é a última referência a (fose ; 6 e to d a a c a rn e v e r á a s a lv a ç ã o d e D eu s.
em Lucas, dando azo à conjectura de que Quando Augusto César morreu, em
ele faleceu antes do começo do minis­ 14 d.C., Tibério sucedeu-o como gover­
tério público de Jesus. nante do Império Romano. Conseqüen­
Os episódios da infância de Jesus, rela­ temente, um evento datado do décimo
tados em Lucas, afirmam, todos, a quinto ano do seu reinado pode ter ocor­
observância extrita de costumes religio­ rido em 28 ou 29 d.C. Depois da morte
sos no ambiente e na forma pela qualele de Herodes, o Grande, a Palestina foi
foi treinado. Cinco vezes encontramos a dividida entre três dos seus filhos. Filipe
declaração de que um ato é realizado (4a.C.-34 d.C.), principal beneficiário do
“conforme- a lei” (v.g., 2:22,39). O testamento de Herodes, recebeu Bata-
palco da maior parte do material é néia, Ituréia, Traconites e alguns terri­
o Templo de Jerusalém. Por outro lado, tórios a d ja c e n te s.Herodes A ntipas
os primeiros anos em~Nàzaré são cober­ (4 a.C.-39 d.C.) foi feito tetrarca da Gali-
tos por sumários editoriais (v. 40 e 52), Iéia e Peréia. Arquelau (4 a.C.-6 d.C.),
que não contêm episódios específicos. principal beneficiário do testamento de
Oj^ersículo52^é um eco de I Samuel Herodes, foi nomeado etnarca, e foram-
2:25TEle enfatiza o desenvolvimento de lhe dados a Judéia e a Iduméia. Quando
ÇJesuQ igual em crescimento físico, per­ provou-se que ele era incapaz de admi­
cepção moral e tracos de caráter. Graça nistrar a sua região, foi deposto. A Ju­
é tradução da palavra charis, do grego. déia tornou-se província imperial, diri­
Graça pode descrever as qualidades que gida por um governador. Só mais tarde
tornam uma pessoa atraente. Pode tam­ essa espécie de oficial foi chamado pro­
bém descrever a atitude de aprovação, curador, de forma que a aplicação desse
respeito ou boa vontade, exercida por título a Pilatos, feita por Tácito, prova­
velmente é um anacronismo. Pôncio Mar. 1:6). Seria isto devido a uma relu­
Pilatos (26-36 d.C.), o quinto desses tância em identificá-lo com Elias (Con-
governadores, exerceu o seu mandato zelmann, p. 22 e ss.)?
durante o ministério de Jesus. Além do João é retratado como pregador peri-
Novo Testamento, não há outros dados patético, que andava pela circunvizi­
claros acerca do Lisânias, mencionado nhança do Jordão. Não existe resposta
aqui. conclusiva para a pergunta acerca da
Tendo colocado o começo do ministé­ origem do batismo de João. A sua prática
rio de João no seu contexto político, podia estar ligada ao batismo de prosé­
Lucas o relaciona com a situação reli­ litos (convertidos) ao judaísmo, com a
giosa corrente. Tecnicamente, Anás não significativa diferença de que ele chama­
era sumo sacerdote, tendo sido deposto va judeus para se submeterem ao seu
em 15 d.C. Supunha-se que os sumos batismo. Devido à impossibilidade de
sacerdotes devessem exercer o seu man­ estabelecer definidamente uma data tão
dato a vida toda, mas, sob o domínio posterior para o batismo de prosélitos,
tanto de sírios como de romanos, eles não se pode ser dogmático a respeito
tinham mandato incerto e freqüente­ desta posição. Têm sido feitas também
mente breve (cf. Josefo, Antig. 20, 10). tentativas para identificar o rito de João
Caifás, genro de Anás, ocupou esse cargo com o ritual sacramental mandeano, mas
durante a vida pública de Jesus. Pode ser os argumentos se apoiam em bases histó­
presumido que Anás exercia um poder e ricas extremamente precárias. Os esfor­
influência que advinham do fato de ele ços para relacioná-lo com o batismo,
ter sido sumo sacerdote. requerido para admissão na comunidade
A semelhança entre Lucas 3:1 e s. e a de Qumran são baseados em evidências
descrição feita por Tucídides, do começo mais plausíveis, mas longe de serem con­
da Guerra do Peloponeso (II.2), tem sido clusivas. 13
freqüentemente notada. Mas os paralelos Que o batismo de João era novo e
do Velho Testamento, especialmente o diferente é estabelecido pelo fato de que
relato da vocação de Jeremias (1:1-3), ele era conhecido como “o batizador”
oferecem uma associação mais notável (Mar. 1:4). Esse apelido não se teria
ainda. O ambiente histórico elaborado, apegado a ele se a sua prática tivesse
ligado ao solene refrão: veio a palavra de coincidido com a de outros, amplamente
Deus a João, identifica João com os conhecida e usada. O seu batismo pro­
grandes profetas do passado. Lucas dá vavelmente era um ato de significado
notícias de que o silêncio dos séculos profético, através do qual ele reuniu uma
havia sido quebrado. Mais uma vez há comunidade, um remanescente tirado de
um profeta, em Israel, que desafia o povo Israel, desta forma esforçando-se para
com a mensagem de Deus. “preparar para o Senhor um povo aper­
O deserto não é identificado, mas a cebido” (1:17; cf. Barrett, p. 32 e s.). Ele
sua localização exata não é importante. é precursor do batismo “no Espírito
O que é importante são as idéias reli­ Santo e em fogo” , a ser administrado por
giosas e associação histórica, evocados Aquele que havia de vir (v. 16, mais
pela menção do deserto. Ali Deus se adiante). Ele pode ter sido considerado
havia manifestado como o salvador do como cumprimento de passagens como
seu povo; e, no deserto, assim criam Isaías 1:16 e Jeremias 4:14.
muitas pessoas, o drama final e decisivo A palavra grega baptisma, que ocorre
da redenção teria início. Desta forma, o aqui, é diferente, pois é usada apenas em
deserto era um palco apropriado para a relação ao batismo praticado por João e
vocação de João. A descrição da roupa e
dieta de João é omitida (cf. Mat. 3:4; 13 Scobie, op. cit., p. 102 e ss.
os primeiros cristãos. Isto separa este priada a João, a voz profética procla­
costume deles dos ritos batismais de mando no deserto que havia chegado a
outros grupos. Há poucos argumentos hora para a poderosa visitação há tanto
contra a opinião de que este batismo era esperada. Lucas estende a citação além
uma experiência não repetível, que acar­ de Marcos, para incluir Isaías 40:4,5,
retava a imersão de todo o corpo. devido ao tema universal. A salvação a
O arrependimento qualifica o batis­ ser revelada não está limitada a Israel,
mo, diferenciando-o de cerimônias de mas é destinada a toda a raça humana.
ablução ritual. O batismo de João era Ele também omite a citação de Mala-
“de arrependimento” , isto é, baseava-se quias 3:1, encontra em Marcos 1:2. Isto
ou caracterizava ou expressava uma acontece, provavelmente, porque Lucas
atitude de arrependimento. A palavra sabe que ela não provém de Isaías.
grega significa literalmente “mudança de
mente” , mas a palavra hebraica por 2) A Pregação de João (3:7-14)
detrás dela é shubh, que significa tornar
ou retornar. O arrependimento é tanto 7 J o ã o d iz ia , pois, à s m u ltid õ e s q u e s a ía m
p a r a s e r b a tiz a d a s p o r e le : R a ç a de v íb o ­
voltar as costas ao pecado como voltar-se ra s , q u e m v o s e n sin o u a fu g ir d a ir a v in ­
para Deus, uma mudança fundamental e d o u ra ? 8 P ro d u z i, p o is, fru to s d ig n o s de
decisiva de direção na vida. a rr e p e n d im e n to ; e n ã o c o m e c e is a d iz e r e m
vós m e s m o s : T e m o s p o r p a i a A b ra ã o ;
Para remissão de pecados não significa p o rq u e e u v o s d ig o q u e a té d e s ta s p e d ra s
que o perdão é determinado por uma D eu s p o d e s u s c ita r filhos a A b ra ã o . 9 T a m ­
b é m j á e s tá p o sto o m a c h a d o à ra iz d a s
atitude ou ato humano. Nem o arrepen­ á r v o r e s ; to d a á rv o r e , p o is, q u e n ã o p ro d u z
dimento nem o batismo podem roubar b o m fru to , é c o rta d a e la n ç a d a no fogo.
a Deus a sua soberana liberdade de agir 10 Ao q u e lh e p e rg u n ta v a m a s m u ltid õ e s :
Que fa re m o s , p o is? 11 R e sp o n d ia -lh es e n ­
como ele bem quiser. A preposição para tã o : A qu ele q u e te m d u a s tú n ic a s, r e p a r ta
(eis) tem um significado de premonição, co m o q u e n ã o te m n e n h u m a , e a q u e le que
de vistas para o futuro; descreve movi­ te m a lim e n to s, f a ç a o m e sm o .
12 C h e g a ra m ta m b é m u n s p u b lic an o s
mento para a frente. No contexto esca- p a r a s e r e m b a tiz a d o s, e p e rg u n ta ra m -lh e :
tológico da pregação de João, essa frase M e s tre , q u e h a v e m o s nós d e fa z e r? 13 R e s ­
p o n d eu -lh es e le : N ão c o b re is a lé m d aq u ilo
aberta com “para” determina a espe­ que v o s foi p re s c rito . 14 In te rro g a ra m -n o
rança da pessoa que está sendo batizada ta m b é m u n s so ld a d o s: E nós, q u e fa re m o s ?
e que se arrepende. Ela espera receber o D isse -lh e s: A n in g u é m q u e ir a is e x to rq u ir
c o isa a lg u m a ; n e m d e is d e n ú n c ia fa ls a ; e
perdão, em vez de condenação, por oca­ c o n te n ta i-v o s co m o vo sso soldo.
sião do julgamento.
A passagem de Isaías 40:3-5 (v. 4-6) As denúncias de João acarretam a
originalmente era uma profecia de re­ necessidade de genuíno arrependimento
torno dos exilados da Babilônia para a antes do batismo. Em Lucas, a sua pre­
Palestina. O deserto era a terra árida que gação é dirigida às multidões, ao invés de
separava, os cativos, de sua terra natal a “fariseus e saduceus” , como em M a­
— símbolo da desesperança de sua situa­ teus 3:7. Víboras significa cobras vene­
ção. Mas Deus devia guiá-los, como um nosas. O assunto é a malignidade do
Rei poderoso, por uma estrada prepara­ povo, que ele (povo) mesmo ainda não re­
da para ele, através de terreno difícil. No conhecia e a ela não renunciava. A sua
texto Massorético, a frase no deserto insinceridade e superficialismo religioso
modifica preparai, como pode ser visto eram aparentes. Eles estavam simples­
na tradução de Isaías 40:3, feita pela mente procurando salvar-se do holocaus­
IBB, versão que estamos usando. A to iminente. É claro que João não atribuía
LXX, versão seguida por Lucas, fá-la poderes mágicos ao batismo. O rito
modificar a voz do que clama. Desta não tem nenhum valor, se não houver
forma, ela é aplicada de maneira apro­ uma reação sincera do indivíduo a Deus.
João requeria, de seus ouvintes, que se profetas. Amós caracterizara os injustos
provassem a si mesmos, mediante uma como os que “pisam os necessitados e
nova qualidade de vida, expressa através destroem os miseráveis da terra” (8:4).
de atos apropriados, que podem ser des­ Segundo a mesma perspectiva, Isaías
critos como frutos dignos de arrependi­ dissera que o justo reparte o seu pão com
mento. o faminto, recolhe em casa os pobres
O orgulho especial dos judeus era o desamparados, e cobre o nu (58:7).
descenderem de Abraão; nisso também se Túnicas eram a roupa interior, e não a
baseava a sua esperança para o futuro. veste exterior essencial, ou capa (cf. Luc.
Moisés havia contendido com Deus, para 6:29). Os viajantes freqüentemente ves­
sustar a destruição do povo, por respeito tiam duas túnicas, mas, na verdade, não
a Abraão, Isaque e Jacó (Êx. 32:13). precisavam de mais do que uma. Ao
Aquele pretexto não valia nem era sufi­ invés de ter mais do que o essencial para
ciente na crise proclamada por João. A si, a pessoa afortunada devia repartir
raça não será fator que valha no julga­ com outro ser humano que estivesse em
mento de Deus. Os ouvintes judeus não necessidade.
devem supor que são importantes para os De acordo com esta narrativa, João
propósitos de Deus, porque ele pode atraía as mesmas espécies de pessoas que
suscitar filhos até das pedras. Isto pode gravitaram ao redor de Jesus. Os publi-
ser um jogo de palavras, visto que os dois canos mencionados em o Novo Testa­
vocábulos são muito semelhantes em mento eram, em sua maior parte, agentes
hebraico. coletores de baixo escalão. O pagamento
de impostos, sempre desagradável, ficava
João se considera como profeta do fim ainda mais repugnante devido à explo­
dos tempos. A crise final é iminente. ração comumente* praticada pelos cole­
A vinda de Yahweh significa tanto salva­ tores. O homem a quem uma região
ção como juízo, nos termos do Velho tivesse sido atribuída, mediante lances
Testamento. Da mesma forma para competitivos, como num leilão, podia
João, mas ele estava dominado pela idéia enriquecer pedindo muito mais impostos
de juízo. Talvez isso acontecesse devido à do que seria, por sua vez, obrigado a
sua sensibilidade aos pecados do seu entregar aos seus superiores. Entre os
povo. Ele entendia que o seu ministério judeus, os coletores de impostos eram
era um prelúdio ao julgamento — o considerados particularmente odiosos,
último momento de oportunidade para porque, como instrumentos de um poder
arrependimento. O período restante da estrangeiro odiado, se enriqueciam
história é tão breve que pode ser compa­ exaurindo os seus próprios conterrâneos.
rado ao momento de tempo requerido A quantidade adequada de taxas a
para que o lenhador levante o seu ma­ serem coletadas era determinada por lei
chado, para dar o primeiro golpe no ou costume. Os coletores de impostos
tronco da árvore. Na mensagem de João, foram instruídos, por João, para não
as árvores representam os indivíduos, o cobrarem mais. Há uma implícita sanção
que significa que o julgamento deve pro­ do pagamento de impostos. Aparente­
cessar-se em bases pessoais. Pessoas que mente, João repudiou os revolucionários
não se arrependem, infrutíferas, enfren­ incendiários de sua época.
tam o fogo consumidor da ira de Deus. O contexto dá a impressão de que os
Quando o povo pede orientação, res­ soldados são judeus, pois João se dirige
ponde João com uma descrição da jus­ apenas aos seus concidadãos. A sugestão
tiça, em termos de relacionamentos de Plummer (p. 92), de que eles eram
sociais concretos. Isto está em consonân­ judeus recrutados para assistir os publi-
cia com os melhores pensamentos dos canos locais, é plausível. O uso enfático
do pronome pessoal é bem traduzido no A resposta de João, à especulação do
texto: E nós, que faremos? Isto dá a povo, é uma rejeição frontal dessa idéia.
entender que os soldados são identifica­ Pelo contrário, ele lhes indica alguém
dos com os publicanos. É-lhes dito tam­ que vem. “Aquele que vem” , uma forma
bém para não usarem o poder de sua participial do verbo usado na sua res­
posição para aumentar a sua renda. Esta posta, parece ter sido um título messiâ­
seção toda separa as origens do cristia­ nico. 14 As multidões aclamaram Jesus
nismo das correntes revolucionárias, que como o Messias e se referiram a ele como
finalmente irromperam em rebelião con­ Aquele Que Vem, quando ele entrou em
tra Roma, na guerra de 66-70 d.C. Ao Jerusalém (Luc. 19:38). A pergunta de
mesmo tempo, não é certamente seguro João, a Jesus através dos seus discípulos,
pensar nas funções de um estado pagão foi “És tu aquele que havia de vir?”
como determinantes da atitude cristã (Luc. 7:19).
quanto a questões de governo, guerra e A negação de João, quanto ao seu
paz, etc. A situação dos cristãos, na messianismo, é expressa da maneira
Roma pagã e totalitária, significava que mais enfática. Ele está tão longe de ser o
as possibilidades deles eram muito mais Messias, que não é digno de desatar a
limitadas e as suas responsabilidades correia das alparcas dele. De acordo com
pelo Estado muito menores do que a o Talmude, um dos deveres dos escravos
dos cristãos, em uma sociedade demo­ era tirar os sapatos de seu senhor (cf.
crática ocidental. Strack-Billerbeck, II, 1). Com efeito,
3) Joãoe Aquele Que Vem (3:15-17) João admite que não é digno nem mesmo
de ser escravo do Messias.
15 O ra , e sta n d o o povo e m e x p e c ta tiv a e O batismo de João era em água. Isto é,
a rra z o a n d o to d o s e m se u s c o ra ç õ e s a r e s ­ o seu ministério era de preparação, de
p eito d e J o ã o , se p o rv e n tu ra s e r ia e le o
C risto, 16 resp o n d eu Jo ã o a todos, d izen do : chamar o povo ao arrependimento, de
E u , n a v e rd a d e , vos b atizo e m á g u a , m a s forma que ele se preparasse para o raiar
v e m a q u e le q u e é m a is p o d e ro so do q u e eu , da nova era. Em contraste, Aquele que
d e q u e m n ão so u digno d e d e s a t a r a c o rr e ia
d a s a lp a r c a s ; e le vo s b a tiz a r á n o E s p írito Havia de Vir iria batizar no Espírito
S anto e e m fogo. 17 A su a p á ele te m n a m ã o Santo e em fogo. A natureza enigmática
p a r a lim p a r b e m a s u a e ir a , e re c o lh e r o
trig o a o se u c e le iro ; m a s q u e im a r á a p a lh a desta expressão é indicada pela varie­
e m fogo in e x tin g u ív e l. dade de interpretações que lhe são suge­
ridas. Antes de tudo, o texto de alguns
A pregação do profeta do deserto manuscritos e Pais da Igreja não contém
ateara um fervor de expectativa messiâ­ a palavra “Santo” . Tem sido sugerido
nica e provocara especulação a respeito que Espirito Santo é um a glosa dos cris­
do papel de João, na crise que se apro­ tãos primitivos que não representa o
ximava. O texto expressa bem a atitude ensino de João. Porém não há razão
de incerteza, denotada pelo modo opta­ nisto, porque João não podia ter predito
tivo do verbo: se porventura seria ele o o derramamento do Espírito como sinal
Cristo. João não demonstrava as espera­ e bênção da era messiânica, idéia que já
das características do Messias. Ele não era corrente (Ez. 36:27; Is. 44:3; Joel
era descendente de Davi; também não 2:28). E, também, o peso grandioso da
realizava as obras poderosas esperadas evidência textual é em favor da retenção
do Messias. Há evidências de uma crença dessa expressão.
de que o Messias estava presente incóg­
nito entre o povo, e não se revelava, por
causa dos pecados deles. Talvez algumas 14 Veja Scobie, ibid., p. 63 e ss., para uma discussão
dessa idéia. Cf. o artigo por Johannes Schneider no
pessoas pensassem que João era esse Theological Dictionary of the New Testament, de
Messias oculto. Kittel, II, 670/
Se o intérprete permitiu que a estru­ era dirigida. Mas as boas-novas da reden­
tura gramatical da expressão fosse deci­ ção de Deus também levam os homens a
siva, seria forçado a chegar à conclusão se colocarem sob o julgamento de Deus, e
de que batismo pelo Espírito e por fogo tornam-nos responsáveis por suas de­
são dois aspectos da mesma experiência. cisões.
Ambas as palavras parecem se referir ao A nota acerca do seu aprisionamento
mesmo grupo de pessoas. Nesse caso, conclui o relato acerca do ministério de
entender-se-ia fogo como o processo João. Por razões inteiramente suas,
purificador, refinador, a ser realizado Lucas evidentemente desejava terminar o
pelo Espírito. Não obstante, o fogo é retrato que pintara de João, tanto quanto
sempre ligado com juízo, na pregação de possível, antes de começar a apresenta­
João, e, provavelmente, deve ser enten­ ção do ministério de Jesus (cf. Conzel-
dido como o fogo vindouro da ira de mann, p. 21).
Deus, a ser derramado pelo Messias. Em sua denúncia da imoralidade de
Desta forma, João aponta para além de si Herodes Antipas, João demonstra que
mesmo, para outro, para alguém que merece ser contado com os seus grandes
havia de vir, que seria portador tanto da predecessores Elias e Natã. Eles também
redenção quanto da ira de Deus. não haviam temido expor o mal que
No processo primitivo, de malhar havia em altas esferas. Lucas não dá o
grãos, estes eram separados da palha nome do primeiro marido de Herodias,
sendo lançados ao ar. O grão, mais pesa­ que era meio-irmão de Antipas. Josefo o
do, cai ao solo, enquanto a palha, mais chamou de Herodes. Marcos se refere a
leve, é levada pelo vento. João declara ele como Filipe, mas ele não era o tetrar­
que o juízo de Deus será como este ca da Ituréia (Mar. 6:17).
processo de debulha, pelo fato de separar A fim de casar-se com Herodias, Hero­
os verdadeiros israelitas daqueles que são des Antipas havia-se divorciado da filha
falsos e inúteis. Depois da época da de Aretas, monarca nabateano vizinho,
debulha, os fazendeiros se livravam da precipitando uma crise de proporções
palha, destruindo-a com fogo. Mas o internacionais. Quando João reprovou o
fogo do julgamento de Deus será inex­ tetrarca, por suas ações, foi aprisionado.
tinguível. Isto é, será inescapável, e, uma O Novo Testamento interpreta este fato
vez iniciado, nada pode deter o seu como uma reação de culpa da parte de
curso. Antipas; mas ele pode também ter sido
motivado politicamente, como sugere
4) A Prisão de João (3:18-20)
Josefo (Antig. 18, 5, 2). As penetrantes
lg A ssim , p o is, com m u ita s o u tr a s e x o r­ reprimendas do popular profeta podiam
ta ç õ e s a in d a , a n u n c ia v a o e v a n g e lh o ao
povo. 19 M as o t e t r a r c a H e ro d e s, sen d o r e ­ ter agravado uma situação política já
p re e n d id o p o r e le p o r c a u s a d e H e ro d ia s, sensível. Antipas não estava agindo mo­
m u lh e r d e se u ir m ã o , e p o r to d a s a s m a ld a - vido por seu caráter, ao tratar João bru­
d es q u e h a v ia fe ito , 20 a c re s c e n to u a to d a s
e la s a in d a e s ta , a d e e n c e r r a r J o ã o no talmente, pois essa foi nada mais do que
c á rc e r e . mais uma das maldades que ele fez. A
derrota subseqüente de Herodes, pelo
Lucas reconhece que o seu relatório magoado Aretas, foi interpretada po­
acerca do ensino do Batista é conden­ pularmente, como julgamento de Deus
sado; João fez muitas outras exortações. sobre ele, pela execução de João Batista.
Visto que a sua preocupação era o juízo
vindouro e o terrível destino das pessoas 2. A Preparação de Jesus (3:21-4:13)
que não estivessem preparadas para ele, 1) O Batismo de Jesus (3:21,22)
a sua pregação dificilmente consistia em 21 Q uando to d o o povo f o r a b a tiz a d o ,
boas-novas para aqueles contra quem ela te n d o sid o J e s u s ta m b é m b a tiz a d o , e e s ta n ­
do e le a o r a r , o c éu se a b r i u ; 22 e o E s p írito sibilidade de uma interpretação meta­
S anto d e sc e u so b re e le e m fo r m a c o rp ó re a ,
com o u m a p o m b a ; e ouviu-se do céu e s ta fórica de sua descrição, mediante a frase
v oz: T u é s o m e u F ilh o a m a d o ; e m ti m e em forma corpórea. Ele afirma que a
c o m p ra z o . descida do Espírito estava sujeita a veri­
Certos problemas foram produzidos, ficação visual.
na comunidade cristã primitiva, pelo Há uma séria questão textual relaciona­
batismo de Jesus. O fato de que ele fora da com o verso 22. O peso das evidências
batizado por João foi usado, por alguns apresentadas pelos manuscritos se exerce
dos seguidores de João, como evidência do lado do texto adotado pelos tradu­
da superioridade do Batista. Jesus tam­ tores da IBB. No entanto, em algumas
bém aceitou um batismo do tipo “de testemunhas muito importantes, a men­
arrependimento” , ao qual os pecadores sagem celestial é uma citação de Salmos
eram chamados. Mas, “em seu próprio 2:7. Alguns eruditos acham que essa era
ensino, não há nenhuma evidência de a redação original, e que foi rejeitada por
que ele alguma vez experimentou a escribas posteriores, porque implicaria
alienação de Deus, que é a mais perni­ em uma cristologia adocionista. 15 Este
ciosa conseqüência do pecado” (Caird, julgamento é difícil de ser sustentado.
p. 76). O autor de Hebreus aplica o mesmo texto
A narrativa do Evangelho enfrenta ao Cristo preexistente (1:5), mostrando
essas dificuldades de várias maneiras. que ele percebia a incongruência em tal
Mateus mostra que João batizou Jesus aplicação. Pais da Igreja, como Justino,
relutantemente, e concordou apenas por Clemente de Alexandria e Agostinho,
insistência do candidato (3:14,15). João não viam um problema teológico no uso
não menciona o batismo de Jesus. Lucas desse texto. É provável, portanto, que a
descreve o acontecimento com um parti- redação mais bem comprovada (a do
cípio passivo, que remove a necessidade texto) seja correta, e a variante repre­
de se mencionar o nome de João em sente uma assimilação posterior do texto
conexão com o batismo. O batismo de veterotestamentário.
Jesus também é isolado do batismo do Amado pode ser um título messiânico
povo. A estranheza gramatical extrema, (cf. Ef. 1:6). O pronunciamento seria,
dos versículos 21 e 22, é contornada pela então: “Tu és o meu Filho, o Messias.”
construção mais gramatical do tradutor A mensagem da voz celestial é muito
em português. A passagem parece dizer: semelhante à versão de Isaías 42:1, cita­
(1) O batismo de Jesus seguiu-se ao batis­ da em Mateus 12:18. Esta parece identi­
mo de todo o povo, a saber, a multidão ficar Jesus como o Servo Sofredor de
com quem João estava tendo um diálogo. Isaías. O batismo de Jesus e experiências
(2) A descida do Espírito seguiu-se ao associadas da descida do Espírito cons­
batismo de Jesus. (3) Esta experiência tituem a sua ordenação para um minis­
ocorreu enquanto Jesus estava orando. tério como Servo Sofredor-Messias. De
Em todos os Evangelhos, a vinda do sua parte, o batismo é a sua entrega
Espírito sobre Jesus é comparada à des­ pública à vontade de Deus para a sua
cida de uma pomba. Esta comparação do vida. Como tal, ele acarretava, anteci­
Espírito de Deus com uma pombá é padamente, no sofrimento e sacrifícios
incomum. O paralelo mais próximo que se seguiriam, e especificamente a sua
parece ser o encontrado no Targum, no morte.
Cântico de Salomão 2:12, que diz que a Quando e como Jesus chegou à convic­
“voz da pomba” é a “voz do Espírito ção de que devia desempenhar um papel
Santo de Redenção” . Barrett apresenta
15 Idéia de que Jesus tom ou-se o Filho de Deus por
uma boa discussão do simbolismo da adoção n a ocasião do seu batism o que, n a verdade,
pomba (p. 35 e ss.). Lucas exclui a pos­ envolve a negação de sua preexistência.
tão singular, na história da salvação, Pode ser por isso que a genealogia é
deverá continuar um mistério. O seu colocada aqui, em vez de sê-lo com as
batismo foi, provavelmente, o clímax de narrativas do nascimento, onde parece
um longo período de reflexão, luta inte­ que ela se encaixaria mais logicamente.
rior e percepção cada vez mais profunda. Este arranjo também pode ter sido influ­
De qualquer forma, o batismo é consi­ enciado pelo fato de que as narrativas do
derado como o acontecimento com que se nascimento e a genealogia vieram de
iniciou o ministério público de Jesus. fontes diferentes.
Há diversas variações entre a lista dos
2) A Genealogia de Jesus (3:23-38) ancestrais de Jesus apresentados por
23 O ra , J e s u s , a o c o m e ç a r o se u m in is té ­ Mateus e a por Lucas. Só Lucas trata do
rio , tin h a c e r c a d e tr in t a a n o s ; sen d o (co m o
se c u id a v a ) filho d e J o s é , filho d e E l i ; 24 E li período entre Adão e Abraão. A partir de
d e M a ta te , M a ta te de L e v i, L ev i de M elqui, Abraão a Davi, há uma concordância
M elqui de J a n a i , J a n a i d e Jo s é , 25 J o s é de genérica entre Mateus e Lucas. O pro­
M a ta tia s , M a ta tia s d e A m ó s, A m ós d e
N a u m , N a u m d e E sli, E sli d e N a g ai, 26 blema de fontes não é suscitado, porque
N a g a i de M a a te , M a a te d e M a ta tia s , M a ta ­ as relações do Velho Testamento tinham
tia s d e S em ei, S e m e i de Jo s e q u e , J o s e q u e de
Jo d á , 27 J o d á d e J o a n ã , J o a n ã d e R e sa , autoridade (I Crôn. 1 e 2). Lucas traça a
R e sa de Z o ro b ab el, Z o ro b a b e l d e S a la tie l, descendência de Davi através de Natã,
S a la tie l d e N eri, 28 N eri d e M elqui, M elqui enquanto a linhagem apresentada por
d e A di, A di d e C osão, C osão d e E lm o d ã ,
E lm o d ã d e E r , 29 E r de Jo s u é , J o s u é de Mateus passa por Salomão. Zorobabel e
E lié z e r, E lié z e r d e J o r im , J o r im d e M a ta te , Salatiel são os dois únicos descendentes
M a ta te d e L ev i, 30 L ev i d e S im eão , S im eão
d e J u d á , J u d á d e J o s é , J o s é d e J o n ã , J o n ã de de Davi encontrados em ambas as listas.
E lia q iiim , 31 E lia q u im d e M e ie á , M e leá de Têm sido feitas várias tentativas para
M en á, M en á d e M a ta tá , M a ta tá d e N a tã , conciliar as duas árvores genealógicas,
N a tã d e D av i, 32 D a v i d e J e s s é , J e s s é de
O bede, O bede de B oaz, B o az d e S a lá , S a lá d e sugerindo que Lucas traça a genealogia
N a so m , 33 N a so m de A m in a d a b e , A m ina- de Jesus através de Maria, em contraste
d a b e de A d m im , A d m im d e A ra i, A rn i de com Mateus, que a traça através de José.
E s ro m , E s r o m d e F a r é s , F a r é s de J u d á , 34
J u d á de J a c ó , J a c ó d e Is a q u e , Is a q u e de Neste caso, a expressão como se cuidava
A b raão , A b ra ã o d e T a r á , T a r á d e N a o r, é considerada parentética, como, na
35 N a o r d e S e ru q u e , S e ru q u e d e R a g a ú ,
R a g a ú de F a le q u e , F a le q u e d e E b e r, E b e r
verdade, está na versão da IBB. Assim
d e S a lá , 36 S a la d e C a in ã , C a in ã d e A rfa- sendo, o verso 23 é interpretado como di­
x a d e , A rfa x a d e de S em , S em d e N oé, N oé d e zendo que Jesus, na verdade, era filho de
L a m e q u e , 37 L a m e q u e de M a tu s a lé m , M a
tu s a lé m d e E n o q u e , E n o q u e d e J a r e d e , F.li (neto’)..pai de Maria, embora se supu­
J a r e d e d e M aleleel, M a le le e l d e C a in ã , 38 sesse que ele fosse filho de José. Sem se
C a in ã d e E n o s, E n o s d e S ete , S ete d e A dão, e considerar a improbabilidade desta
A dão de D eu s.
exegese, ela ainda presume uma prática
Visto que Jesus nasceu antes da morte contrária à normal. A árvore genealógica
de Herodes, o Grande (4 a.C.), e come­ era comumente traçada através do pai.
çou o seu ministério no décimo quinto E, sobretudo, o fato de Lucas ter aceita­
ano do reinado de Tibério (28-29 d.C.), do a concepção sobrenatural de Jesus não
ele devia ter trinta e dois ou, possivel­ o impedia de traçar a árvore genealógica
mente, trinta e seis anos de idade por de Jesus através de José, como forma
ocasião do seu batismo. Lucas diz que válida de estabelecer uma reivindicação à
Jesus tinha cerca de trinta anos, o que ascendência davídica.
deixa espaço para os ajustamentos reque­ A característica significativa da genea­
ridos pelos dados que temos. logia de Lucas é ter-se estendido até
A descrição da unção de Jesus como Adão. Isto estabelece a conexão de Jesus
Messias é acompanhada pela prova con­ com toda a humanidade. Nenhum grupo
vencional de que ele cumpria os requi­ pode reclamá-lo apenas para si; ele per­
sitos para o ofício, por ser Filho de Davi. tence a todos. Pelo mesmo gabarito, a
sua missão não era estreita e provincial. correto, tão autêntico, pode começar a
Era universal, em sua simpatia e alcance. parecer, em retrospecto, obscuro, irreal,
Sobretudo, qualquer pessoa que se iden­ insensato, visionário.
tifique com este filho de Adão, ao fazê- As tentações marcaram* o começo do
lo, transcende o seu próprio círculo racial ministério de Jesus, mas também reve­
ou social. Ela se coloca no contexto mui­ lam a tensão em que ele se procedeu.
to mais amplo da “nova raça” do povo de Havia uma luta básica entre o seu come­
Deus, juntado de todas as terras e tribos. timento e as idéias dos seus contemporâ­
3) A Tentação de Jesus (4:1-13) neos. As. fortes pressões do seu meio
ambiente tentavam forçá-lo a amoldar-se
1 J e s u s , p ois, cheio do E s p írito S an to , v o l­ à forma messiânica criada pelas idéias
to u do J o r d ã o ; e e r a le v a d o p elo E s p írito no
d e s e rto , 2 d u ra n te q u a r e n ta d ia s , sen d o te n ­ populares e ambições inconfessadas. Ele
ta d o pelo D iab o . E n a q u e le s d ia s n a o c o m e u lutou contra essas forças desde a experi­
c o isa a lg u m a ; e , te rm in a d o s e le s , te v e ência do deserto até a agonia do Getsê-
fo m e. 3 D isse-lh e e n tã o o D ia b o : Se tu é s
F ilh o d e D eu s, m a n d a a e s t a p e d r a q u e se mane.
to rn e e m p ã o . 4 J e s u s , p o ré m , lh e re s p o n ­ A chave para a interpretação das ten­
d e u : E s t á e s c r ito : N e m só d e p ã o v iv e r á o tações nos é dada pelo autor de Hebreus,
h o m e m . 5 E n tã o o D iabo, lev an d o -o a u m
lu g a r e le v a d o , m o stro u -lh e , n u m re la n c e , que diz que Jesus, “como nós, em tudo
to dos os re in o s do m u n d o . 6 E d isse -lh e : foi tentado” (4:15). As tentações são
D a r-te-ei to d a a a u to r id a d e e g ló ria d e ste s
re in o s, p o rq u e m e foi e n tre g u e , e dou a genuínas; as lutas descritas, reais. Assim
q u em e u q u is e r; 7 se tu , po is, m e a d o ra r e s , sendo, o relato tem significado para os
s e r á to d a tu a . 8 R esp o n d eu -lh e J e s u s : E s tá seres humanos, que se encontram asso­
e s c r ito :
Ao S en h o r te u D eu s a d o r a r á s , berbados nas pressões da vida. A forma
e só a e le s e r v irá s . dramática em que a narrativa é feita não
9 E n tã o o lev o u a J e r u s a lé m e o colocou deve ter a possibilidade de influenciar o
so b re o p in ácu lo do te m p lo e lh e d is s e : Se tu
é s F ilh o d e D e u s, la n ç a -te d a q u i a b a ix o ; intérprete, a ponto de levá-lo a entender
10 p o rq u e e s t á e s c r ito : as tentações em termos míticos, total­
Aos se u s a n jo s o rd e n a r á a te u re s p e ito ,
q u e te g u a r d e m ; mente desvinculados com a situação real
lie: da vida.
e le s te s u s te rã o n a s m ã o s , Lucas nos diz que Jesus voltou do
p a r a q u e n u n c a tro p e c e s e m a lg u m a
p e d ra . Jordão. Mas para que lugar? A descrição
12 R esp o n d eu -lh e J e s u s : D ito e s t á : N ão te n ­ dos seus movimentos dificilmente pode-
t a r á s o S e n h o r te u D eu s. 13 A ssim , te n d o o
D iabo a c a b a d o to d a s o rte d e te n ta ç ã o , r e t i­
se dizer que seja clara. Nos paralelos
ro u -se d ele a té o c a siã o o p o rtu n a . (Mar. 1:12; Mat. 4:1) Jesus vai direta­
mente do Jordão para o deserto. Cheio do
A entrega púbüca de Jesus ao propó­ Espírito Santo é uma anotação de Lucas.
sito divino para a sua vida, isto é, ser o Pedro, Barnabé, Estêvão e Paulo tam­
Messias de Deus, é seguida por um perío­ bém são descritos dessa forma. Eles são
do de solidão e reflexão, em que ele luta distinguidos dos outros, cuja possessão
com os significados da sua experiência e pelo Espírito é menos marcante, mais
a direção que a sua vida devia tomar. Há esporádica. Jesus foi levado no em vez de
uma validade existencial na justaposição pelo Espírito: a preposição grega en deve
das duas narrativas: a do batismo e a da exercer, aqui, a sua força locativa. Os
tentação. Num átimo de tempo, Jesus seus dias no deserto foram passados no
havia visto o que outros não podiam ver, ambiente do Espírito. A variação de
havia ouvido o que outros não podiam Marcos 1:12 pode refletir um esforço
ouvir. Agora levanta-se a interrogação: para evitar a sugestão de que Jesus era
A experiência recente agüentará o teste subordinado ao Espírito. O deserto não é
da reflexão e da crítica? O que em deter­ determinado, mas isso não é importante.
minado momento parece tão real, tão É o lugar de provação. No Velho Testa-
mento, quarenta dias é o período costu­ forma, ele também não subordinaria o
meiro desse tipo de experiência. Moisés seu interesse primordial para com o reino
(Deut. 9:9) e Elias (I Reis 19:8) jejuaram de Deus, às necessidades físicas e secun­
quarenta dias. dárias da vida. Ele rejeitou a tentação
O Diabo (Satanás no paralelo de com uma referência à lição que Deus
Marcos) é o adversário de Deus, pro­ havia ensinado a Israel no deserto (Deut.
curando alienar o homem do seu Cria­ 8:3). O homem é mais do que estômago,
dor. Ele tenta a humanidade, com o que precisa ser cheio, e corpo, que pre­
objetivo de produzir a sua queda e des­ cisa ser vestido. Ele é um filho de Deus
truição (cf. Stagg, p. 21 e ss.). O choque que precisa depender sempre de sua
entre Jesus e Satanás é um choque de palavra criativa e sustentadora, para
poderes entre dois reinos: o reino de preencher as mais profundas necessida­
Deus e o reino do mal. des de sua existência, com a certeza de
A fome que Jesus sofre é a ocasião para que todas as outras coisas também lhe
a primeira tentação. A voz, por ocasião serão providas (Mat. 6:33).
do batismo, declara que ele era Filho de A segunda tentação ilustra uma tensão
Deus. Porém, não seria a sua experiência de maiores proporções na vida de Jesus.
de fome e privação no mundo de Deus Muitas pessoas esperavam que o Messias
uma zombeteira contradição desse rela­ fosse um governante mundial que iria
cionamento? Ele necessitava de pão, mas “restaurar o reino a Israel” , tarefa que
ao seu redor havia apenas pedras. Uma muitos achavam que acarretaria um con­
genuína prova de sua identidade não flito militar. Embora uma pessoa não
seria uma exibição de controle sobre a possa ver simultaneamente todos os rei­
criação, transformando uma pedra em nos do mundo, não é impossível um ho­
pão que salvasse a sua vida? Essa é a luta mem visualizar-se como governante do
que os seguidores de Jesus também expe­ mundo, e fazer disso a sua ambição. Esse
rimentam. Se somos filhos de Deus, por­ é o prêmio que Satanás acena diante de
que precisamos sofrer, enquanto outros Jesus.
gozam de saúde? Por que precisamos ser A fé bíblica repousa sobre a convicção
pobres, enquanto outros prosperam? de que a autoridade sobre o mundo
Mas a fé em Deus não deve depender pertence, em última análise, a Deus.
da quantidade de pão que uma pessoa Deus pode dar autoridade a outro poder,
tem. Este fora o pecado de Israel (Ex. ou permitir-lhe que o exerça. Desta for­
16:2 e s), quando se defrontara com uma ma, em o Novo Testamento Satanás é
situação semelhante à em que Jesus se chamado de “príncipe deste mundo”
encontrava. Transformar pedras em pães (João 12:31) ou, ainda mais vividamente,
não provaria a sua filiação. De fato, “o deus deste século” (II Cor. 4:4). Mas
demonstraria exatamente o oposto. A isso deve ser entendido apenas em sen­
filiação não é expressa pelo exercício de tido limitado. Ele é o príncipe de uma era
alguma espécie de poder mágico, mas que está passando. A soberania de Deus
pela fé calma e confiante em Deus, no por fim será estabelecida sobre todos os
meio das circunstâncias mais difíceis da elementos recalcitrantes do universo.
vida. E, também, o amor de Deus não é Aqui Satanás diz ser capaz de trans­
provado pela quantidade de pão que uma ferir à vontade o domínio que está de­
pessoa tem (e nem pelo número de carros baixo de sua soberania. A Jesus ele ofe­
na garagem). Jesus se recusou a cometer o rece o governo do mundo, exigindo,
pecado que outrora Israel cometera. Ele como preço dele, que Jesus o adore.
não cessaria de depender do amoroso Adorar o Diabo é adotar os métodos
cuidado de Deus para suprir o de que satânicos, escolher as armas de poder,
necessitava (cf. 12:22-31). Da mesma violência, e destruição, parà alcançar os
objetivos que se tem em vista. Talvez esta tiria o pecado de Israel. Precisa-se deixar
narrativa deva ser entendida como co­ que Deus aja à sua própria forma e em
mentário acerca das ambições naciona­ seu próprio tempo. A única atitude apro­
listas, que se alteavam tão fortemente em priada a um filho de Deus é de confiante
alguns corações judeus. Elas seriam clas­ fé e espera paciente nele.
sificadas como satânicas. Mais uma vez As tentações de Jesus estão em íntima
Jesus responde com uma citação bíblica relação com a prova de Israel no deserto.
(Deut. 6:13). Ele servirá apenas a Deus, O simbolismo dos quarenta dias, o cará­
o que significa, traduzido em estilo de ter das tentações, e especialmente as res­
vida, que trilhará o caminho de sofri­ postas de Jesus, todas tiradas de Deute-
mento redentor e rejeitará o caminho que ronômio, apontam para as primeiras
parece oferecer aceitação popular — provas de Israel. Há uma grande dife­
sucesso, em sentido convencional — e rença. Enquanto os filhos de Israel
poderio temporal. haviam sucumbido sob as provas do
O cenário da terceira tentação é o deserto, este forte Filho de Deus emerge
templo em Jerusalém. A identificação do vitorioso sobre cada uma das tentações.
pináculo é incerta. Provavelmente, era o Depois de exaurir as possibilidades do
ponto mais alto de uma parede ou ameia, momento, o Diabo se retira, até ocasião
de onde era grande a distância até o solo, oportuna. Isso se refere, possivelmente, à
a cavaleiro de uma ravina (Josefo, nota de Lucas 22:2, acerca dos ataques
Antig., 15,11,5). renovados, desferidos contra Jesus, pelo
O Templo, centro da vida religiosa Diabo. Entre esses dois incidentes, o
judaica, em que multidões de adoradores ministério de Jesus correrá o seu curso
passageiras, fervorosas e patrióticas se predeterminado.
apinhavam nos dias de festa, era o lugar
ideal para uma demonstração dramática III. O Ministério na Galiléia
e sensacional de poder messiânico (cf. (4:14-9:50)
João 7:2 e ss.). Uma manobra como essa
serviria para atrair o povo e iniciar a 1. Ensino nas Sinagogas (4:14-30)
libertação de Jerusalém e o restabeleci­
mento da dinastia davídica. 1) Aceitação na Galiléia (4:14,15)
O desafio é baseado na hipótese em 14 E n tã o volto u J e s u s p a r a a G a lilé ia no
que se baseara a primeira tentação: Se tu p o d e r do E s p ír it o ; e a s u a fa m a c o rre u p o r
és Filho de Deus. Ele é até justificado, to d a a c irc u n v iz in h a n ç a . 15 E n s in a v a n a s
sin a g o g a s d e le s, e p o r to d o s e r a lo u v ad o .
com um texto de prova tirado de Salmos
91:11,12 — uma boa ilustração da fra­ Este comentário editorial propicia um
queza desta maneira de entender a Bí­ laço de transição entre o batismo e a
blia. Jesus rejeita a sugestão de que devia tentação de Jesus, e o seu subseqüente
tentar a Deus, isto é, submetê-lo a um ministério na Galiléia. Mateus (4:12) e
teste assim. Submeter-se a esse tipo de Marcos (1:14) ligam a volta de Jesus para
tentação, não importa quão piedosas a Galiléia e o começo do seu ministério
sejam as racionalizações, resulta em um público com a prisão de João Batista.
esforço em forçar Deus, colocando-o con­ Mas Lucas já descreveu a prisão de João.
tra a parede e levando-o a agir em termos A referência ao Espírito estabelece um
diferentes aos dele mesmo. Esse foi o relacionamento íntimo entre os relatos
pecado de que os filhos de Israel foram precedentes do batismo e tentação e a
culpados (Êx. 17:2), e que Moisés adver­ reportagem seguinte a respeito do minis­
tiu-os a não repetir (Deut 6:16). Estas tério na Galiléia. O poder do Espírito
palavras de advertência constituem a res­ descera sobre Jesus por ocasião do seu
posta de Jesus à tentação. Ele não repe­ batismo, capacitando-o a obter vitória
sobre Satanás, e agora será demonstrado C a fa rn a u m , faze-o ta m b é m a q u i n a tu a
no ministério público que se inicia. É t e r r a . 24 E p ro s s e g u iu : E m v e rd a d e vos
digo q u e n e n h u m p ro f e ta é a c e ito n a s u a
especialmente o seu poder para expulsar t e r r a . 25 E m v e rd a d e vos digo q u e m u ita s
demônios e para curar. Dos evangelistas, v iú v a s h a v ia e m I s r a e l nos d ia s d e E lia s ,
q u an d o o céu se fech o u p o r tr ê s a n o s e se is
apenas Lucas associa desta forma o po­ m e s e s, d e s o rte q u e h o u v e g ra n d e fo m e p o r
der de Deus com o Espírito (1:35; cf. to d a a t e r r a ; 26 e a n e n h u m a d e la s foi e n v ia ­
At. 1:8). do E lia s , se n ã o a u m a v iú v a e m S a re p ta de
Sidom . 27 X a m b é m m u ito s le p ro so s h a v ia
Bem depressa Jesus se tornou o centro e m I s r a e l no te m p o do p ro f e ta E lise u , m a s
de muita atenção pública, à medida que n e n h u m d e le s foi p u rific a d o , se n ã o N a a m ã ,
a sua fama se espalhou. Lucas, com os o sírio . 28 T odos os q u e e s ta v a m n a sin a g o ­
g a , a o o u v ire m e s ta s c o isa s, fic a r a m ch eio s
outros evangelistas, menciona a sinagoga de ir a 29 e, le v a n ta n d o -se , e x p u ls a ra m -n o d a
como centro do ministério de ensino de c id a d e e o le v a r a m a té o d e sp e n h a d e iro do
m o n te e m q u e a s u a c id a d e e s ta v a e d ific a ­
Jesus, nas primeiras fases de sua minis-- d a , p a r a daU o p re c ip ita r e m . 30 E le , p o ré m ,
tração. A hostilidade crescente contra p a ss a n d o p elo m e io d e le s , se g u iu o se u
ele, da parte dos líderes religiosos, apa­ c am in h o .
rentemente forçou-o a sair das sinagogas,
ou levou-o a decidir em continuar o seu O relatório a respeito da rejeição de
ensino e outras atividades ao ar livre. Jesus, em Nazaré, é transposto — de
A reação popular contra ele foi positiva, acordo com a maioria dos intérpretes —
como é descrito no comentário por todos do contexto de Marcos (Mar. 6:1-6) para
era louvado. Porém esta não é a verda­ este lugar. Várias considerações susten­
deira glória de Jesus. Ele vai se dedicar à tam esta conclusão: (1) Ele se encaixa
trilha que leva à glória de Deus, o que muito melhor no contexto de Marcos,
inclui tomar atitudes que levarão o povo que dá tempo para o desenvolvimento do
a não entendê-lo. O seu ministério se ministério de Jesus, e prepara o palco
inicia com ele sendo glorificado pelos para a espécie de reação contra ele aqui
homens, e termina com ele sendo glori­ descrita. (2) Embora ele siga Marcos
ficado por Deus. cuidadosamente, nesta apresentação do
ministério na Galiléia, Lucas omite o
2) Rejeição em Nazaré (4:16-30) relato feito por Marcos, acerca da expe­
riência em Nazaré, quando chega a ela.
16 C hegando a N a z a ré , onde fo ra c ria d o ,
e n tro u n a sin a g o g a no d ia d e sá b a d o , s e g u n ­ Desta forma, ele mostra que já havia
do o se u c o stu m e , e le v a n to u -se p a r a le r . 17 usado este material. (3) A menção a mi­
F oi-lhe e n tre g u e o liv ro do p ro fe ta I s a ía s ; e, lagres em Cafarnaum (4:23) seguiria
abrindo-o, a c h o u o lu g a r e m q u e e s ta v a
e s c rito : mais naturalmente a descrição das ativi­
18 O E sp írito do S en h o r e s tá so b re m im , dades de Jesus nessa cidade (4:31 e ss.).
p o rq u a n to m e u n g iu p a r a a n u n c ia r b o as-
novas aos p o b re s; É dificilmente discutível que a trans­
env io u -m e p a r a p ro c la m a r lib e rta ç ã o a o s posição tenha sido deliberada. A razão
cativ o s, para a liberdade com que Lucas maneja
e re s ta u r a ç ã o d a v is ta a o s ceg o s,
p a r a p ô r e m lib e rd a d e os o p rim id o s, a material é igualmente clara. Desta
19 e p a r a p ro c la m a r o an o a c e itá v e l do forma, Lucas usa um episódio apropria­
S enhor. do aos seus objetivos, com o qual intro­
20 E , fe ch an d o o liv ro , dev olveu-o ao a s s is ­
te n te e a ss e n to u -s e ; e os olhos d e to d o s n a duz o ministério de Jesus. Da maneira
sin ag o g a e s ta v a m fitos n e le . 21 E n tã o c o m e ­ como é apresentado em Lucas, o episódio
çou a d iz e r-lh e s : H oje se c u m p riu e s ta e s c r i­
tu r a a o s vossos ouvidos. 22 E todos lh e d a ­ de Nazaré representa muito bem o qua­
v a m te s te m u n h o , e se a d m ir a v a m d a s dro que o autor está procurando pintar
p a la v r a s d e g r a ç a q u e s a ía m d a s u a b o c a ; em toda a sua obra. De fato, ele é um
e d iz ia m : E s te n ã o é filho d e J o s é ? 23 microcosmo do todo, Lucas-Atos em mi­
D isse-lhes J e s u s : S em d ú v id a , m e d i­
re is e s te p ro v é rb io : M édico, c u ra -te a ti niatura, pode-se dizer. Em esboço, ele
m e s m o ; tu d o o q u e o u v im o s te r e s feito e m corresponde intimamente ao relato de
Marcos, mas as variações e elaborações rença entre Marcos e Lucas, neste ponto.
acrescentam a ênfase característica de Marcos diz que Jesus proclamou a proxi­
Lucas. Especialmente a dialética judai- midade do reino e recomendou arrepen­
co-gentílica, da perspectiva de Lucas, dimento e fé como reações aceitáveis
descortina esta história. (Mar. 1:14,15). Lucas geralmente evita o
Nazaré, cidade natal de Jesus, é a tema da iminência do reino, enfatizando,
primeira parada no itinerário galileu de pelo contrário, que o ensino e pregação
pregações, da forma como se esboça no de Jesus se referiam à natureza do reino
terceiro Evangelho. Jesus oferece, em (cf. 4:43; 16:16). Jesus é o portador das
primeiro lugar, as boas-novas ao seu boas-novas destinadas aos destituídos,
próprio povo, e força sobre eles a neces­ aflitos e oprimidos. Os pobres, cativos,
sidade de tomar uma decisão a respeito cegos, etc., descrevem a bancarrota e
dele. O mais que perfeito fora criado dá a miséria espiritual a que respondem as
inferência de que Jesus estivera ausente boas-novas trazidas por Jesus. O evan­
de Nazaré durante algum tempo, antes gelho é dirigido àqueles cuja única espe­
desta sua visita. Lucas enfatiza que a sua rança é que Deus aja em seu favor, para
visita à sinagoga no dia de sábado estava realizar libertação e cura. As boas-novas
em consonância com o seu costume. Isto são o descobrimento de que de fato é isto
nos leva a ligar Jesus com as práticas que Deus está fazendo. As palavras que
piedosas judaicas, um dos temas que descrevem o povo a quem se dirige o
verificamos nas histórias de seu nasci­ evangelho não devem, todavia, merecer
mento e infância. um tratamento exclusivamente simbó­
Nas reuniões na sinagoga, a primeira lico, pelo fato de Lucas mostrar que
leitura da Escritura era feita da Torah, e Jesus, na verdade, as identificou prima­
seguia um calendário de 155 lições defi­ riamente com as pessoas destituídas
nidas, designadas a completar todo o social, religiosa e economicamente, em
Pentateuco em ciclos de três anos. Na sua época. O ano aceitável do Senhor é a
Palestina e na Babilônia, a leitura de era messiânica que começava, então, na
cada versículo do texto hebraico era pessoa e obra de Jesus.
seguida por uma tradução do aramaico, O assistente que recebeu o rolo de
a língua franca do Oriente Médio. A Isaías, a fim de fazê-lo voltar à caixa, é o
leitura dos profetas seguia à do Torah. chazan. Ele parece ter funcionado como
Não está claro se a escolha dessa passa­ assistente do chefe da sinagoga, em uma
gem foi feita pelo chefe da sinagoga. função semelhante à do diácono na igreja
Talvez a escolha fosse deixada por conta primitiva.
do leitor. Qualquer pessoa podia ser con­ A história agora assume um tom alta­
vidada a ler a lição da Escritura, que era mente dramático. Jesus sentou-se em
seguida por um sermão, quando um mes­ uma atmosfera de um silêncio expectan­
tre competente estava presente. Geral­ te, em que os olhos de todos... estavam
mente, a pessoa fazia a leitura da Escri­ fitos nele. A quietude é quebrada pela
tura de pé, mas proferia o sermão senta­ solene cadência de uma sensacional reve­
da (veja v. 16e20). lação: Hoje se cumpriu esta escritura aos
A citação de I saías é uma versão um vossos ouvidos. Ele, a Pessoa a quem o
tanto livre da Septuaginta, de porções de Espírito havia ungido para ser o servo de
Isaías 61:1,2 e 58:6. A referência ao Yahweh preconizado por Isaías, havia
Espírito faz eco à experiência do batis­ lido, diante daquela congregação, a pas­
mo, quando Jesus fora ungido para a sua sagem que determinava o seu programa.
missão messiânica. A natureza do minis­ Eles haviam sido introduzidos à era mes­
tério de Jesus é delineada em termos da siânica, visto que estavam na presença do
palavra profética. Há significativa dife­ Messias de Deus. O tempo de expecta-
tiva havia terminado: havia chegado o Elias como Eliseu haviam realizado
tempo da decisão. A confrontação deles obras poderosas em favor de estrangei­
com Jesus era o momento crucial, quan­ ros, que não haviam feito para os seus
do Deus pronunciava o “agora” decisivo próprios conterrâneos. Vários pontos,
do cumprimento profético. que são importantes para o desenvolvi­
A reação inicial foi favorável. A con­ mento de Lucas-Atos, emergem aqui: a
gregação achou as suas palavras de graça, hostilidade à mensagem do Velho Testa­
isto é, agradáveis e atraentes. Mas, na mento, por parte do próprio povo que o
verdade, não entendeu quem era Jesus. reclamava como herança sua; a referên­
Para eles, ele era o filho de José, conclu­ cia a gentios, que estabelece os alicerces
são que se situa a distância infinita do para a disseminação do evangelho além
entendimento genuíno de que ele é o Fi­ da raça judaica; a ira assassina da assem­
lho de Deus, conforme retratado por bléia, quando se dá a entender que os
Lucas. desprezados gentios recebem os benefí­
Direis (v. 23) é considerado por alguns cios que lhes são negados.
intérpretes como futuro profético, des­ O despenhadeiro tem sido identificado
crevendo a reação que os feitos de Jesus, divergentemente. O lugar tradicional é
em Cafarnaum, quando relatados, oca­ um precipício de duzentos e cinqüenta a
sionarão em sua própria cidade (cf. Con- mil metros de altura, a sudeste de Naza­
zelmann, p. 34). O provérbio que se ré, a qual está construída na encosta de
segue era comum no mundo antigo. Não uma colina. É certo que o leitor deve
se aplica nitidamente a esta situação, entender que o escape de Jesus da tenta­
visto que se requer que Jesus realize tiva de homicídio, levada a efeito contra
milagres diante dos seus compatriotas, ele, foi realizada por meios sobrenatu­
curando outras pessoas além de si mes­ rais. Há uma relação entre este inciden­
mo. Não obstante, o sentido geral é te e a terceira tentação. O leitor percebe
claro. Da mesma forma como um médico que Jesus, na verdade, possuía os pode­
é desafiado a provar a sua capacidade, res que se recusara a usar sob a espécie
exercendo as artes de sua cura em suas errada de pressão. Outra conexão pode
próprias enfermidades, Jesus é desafiado estar na mente do autor, quando ele
a fazer, em benefício do seu próprio pensa na história futura a ser relatada no
povo, o que fizera em uma cidade vizi­ livro de Atos. Ali, ele contará como o
nha. As suas reivindicações serão susten­ evangelho sobreviveu triunfantemente a
tadas por sinais. A natureza descompro­ atos semelhantes, de hostilidade e rejei­
metida daquela atitude é enfatizada pela ção, da parte dos judeus.
palavra sem dúvida, que é uma forte
afirmativa. É a história das tentações 2. Obras Poderosas de Jesus (4:31-5:16)
ilustrada pelos acontecimentos do mi­ 1) O Endemoninhado (4:31-37)
nistério de Jesus: “ Se você diz ser o
31 E n tã o d e sc e u a C a fa rn a u m , c id a d e d a
Messias, precisa realizar as obras que se G a lilé ia, e os e n s in a v a no s á b a d o . 32 E
espera do Messias, aqui diante de nós.” m a ra v ilh a v a m -s e d a s u a d o u trin a , p o rq u e a
A atitude da congregação é uma ilus­ su a p a la v r a e r a co m a u to rid a d e . 33 H a v ia
tração do axioma de que nenhum profeta n a sin a g o g a u m h o m e m q u e tin h a o e sp írito
de u m d em ô n io im u n d o ; e g rito u e m a lt a
é aceito na sua terra. Em Lucas, a rejei­ v o z: 34 Ah! q u e te m o s n ó s co n tig o , J e s u s ,
ção de Jesus faz parte da constante rejei­ n a z a re n o ? v ie s te d e stru ir-n o s? B em sei
ção dos profetas, da parte do seu próprio q u e m é s : o S a n to d e D eu s. 33 M a s J e s u s o
povo (At. 7:52). Jesus usa duas ilustra­ re p re e n d e u , d ize n d o : C a la -te e s a i d ele. E o
d em ô n io , tendo-o la n ç a d o p o r t e r r a no m eio
ções do Velho Testamento para justificar do povo, sa iu d ele s e m lh e fa z e r m a l a lg u m .
a sua recusa para aceder às exigências do 36 E v eio e s p a n to so b re to d o s, e fa la v a m
seu povo, que pedia um sinal. Tanto e n tr e si, p e rg u n ta n d o u n s a o s o u tro s: Que
p a la v r a é e s ta , p o is co m a u to r id a d e e p o d e r do. Esta expressão é incomum. Em ou­
o rd e n a a o s e s p írito s im u n d o s, e e le s s a e m ? tras partes do Novo Testamento, encon­
37 E se d iv u lg a v a a s u a fa m a p o r to d o s os
lu g a r e s d a c irc u n v iz in h a n ç a . tramos “espírito” , “espírito imundo” ,
“espírito maligno” ou “demônio” , e
Lucas agora começa a seguir Marcos, e umas poucas expressões como “espírito
o faz até 6:19, exceto a interrupção oca­ mudo” . Os demônios, no pensamento
sionada pela inserção de 5:1-11. Cafar- judaico e cristão, são maus ou imundos
naum, importante cidade a noroeste do por definição, e o uso de adjetivos tão
Mar da Galiléia, foi o centro do minis­ descritivos é, portanto, redundante. Tal­
tério galileu de Jesus. Os seus feitos e a vez a expressão de Lucas seja uma aco­
recepção que lhe foi feita ali contrasta­ modação do mundo das idéias helénicas
ram marcadamente a sua experiência em do seu público ledor, em que os demô­
Nazaré. O visitante do Tell Hum, local nios podiam ser bons ou maus.
da antiga cidade de Cafarnaum, encon­ Os antigos explicavam o comporta­
trará as ruínas escavadas de uma sina­ mento errático e aberrativo, causado
goga que data do terceiro século. Ela por distúrbios emocionais, em termos de
pode estar localizada no mesmo local da possessão demoníaca. As pessoas pos­
sinagoga em que Jesus ensinou. suídas de demônios, pensavam os judeus,
O aspecto mais significativo de sua eram habitação de um poder alheio a elas
obra foi a autoridade de sua palavra. A e hostil a Deus. Os demônios estavam
autoridade, em última análise, pertence a serviço do “príncipe deste mundo” .
a Deus. É o ilimitado e incontestável Desta forma, o que o homem falava não é
direito e poder de agir que lhe pertence considerado como dele próprio, mas
como Criador e Governador do universo. como procedente do poder que havia
Ele é exercido unicamente por Jesus, por tomado o controle de sua personalidade.
causa de sua relação com. Deus, como O demônio possuía poderes sobrena­
Filho. Portanto, é a sua liberdade e turais, que o capacitaram a saber quem
capacidade de agir como Filho de Deus. era Jesus. A designação Jesus, nazareno,
O instrumento de sua autoridade é a sua é colocada em contraposição a o Santo de
palavra, que é a palavra de Deus, criativa Deus. A primeira era o que os homens
e vivificadora. Marcos, na passagem pa­ pensavam que ele fosse, enquanto a últi­
ralela, nota, como comentário, que Jesus ma descreve o seu verdadeiro caráter.
não ensinava como os escribas (1:22). Santo significa, basicamente, pessoa
Em outras palavras, ele não documenta­ consagrada a Deus. O demônio reconhe­
va os seus ensinamentos com opiniões ce que Jesus e os demônios não têm nada
dos sábios judeus do passado. Este co­ em comum; representam duas forças
mentário é omitido por Lucas, para antitéticas, opostas. O único destino que
quem a autoridade das palavras de Jesus o demônio pode prever, em situação
é demonstrada em primeiro lugar pelo como esta, é que ele seja expulso de sua
seu poder sobre as doenças e os demônios habitação, que escolhera, e enviado para
(v. 36). Os atos de exorcismo e cura, por o mundo inferior, ao qual pertence (veja
Jesus, são diretos, realizados tão-somen- 8:31).
te pelo poder de sua palavra. Assim Jesus repreendeu o demônio, orde­
sendo, palavras e atos são praticamente nando-lhe silêncio; ele não aceitava o
sinônimos; a palavra de Jesus são seus testemunho que provinha de fontes como
atos. aquela. Por ordem de Jesus, o demônio
O homem que é beneficiário da pri­ saiu do homem, sendo o momento da
meira demonstração (em Lucas) do po­ saída marcado por uma forte convulsão.
der de Jesus, é mencionado como porta­ A admiração dos circunstantes originou-
dor de um espirito de um demônio imun­ se da autoridade com que Jesus exor-
cizou o demônio, e não pelo exorcismo discípulos antes de começar a narrar o
propriamente dito. Afinal de contas, ministério em Cafarnaum (1:16,17).
exorcismo era comum no mundo antigo. Visto que Lucas não usou esse material,
O demônio foi exorcizado por uma única em deferência à narrativa apresentada
palavra de ordem, uma demonstração em 5:1-11, ele deixa de mencionar os
memorável da autoridade da palavra de discípulos, nesta conjuntura.
Jesus. Ficamos sabendo agora que Cafar­
Este milagre, da maneira como nos é naum é a cidade natal de Simão Pedro. A
apresentado no material sinóptico, é tes­ cura de sua sogra é a segunda ilustração
temunho do fato de que em Jesus o reino específica da autoridade da palavra de
de Deus estava chegando ao homem. Jesus. Em nenhum dos casos Jesus, na
O reinado de Satanás estava sendo desa­ verdade, procura oportunidades para
fiado de forma a mostrar claramente os exibir o seu poder, mas age em reação
seus limites, e a profetizar a sua destrui­ aos desafios que se lhe apresentam. Em
ção iminente. O leitor moderno dificil­ outras palavras, ele não é um milagreiro
mente pode apreciar a tremenda mensa­ ambulante ou vendedor de sensações.
gem, contida em histórias como esta, Neste caso, algumas pessoas rogaram a
para o povo que ouvia o evangelho pela Jesus que interviesse em favor da pessoa
primeira vez. Para eles, o próprio ar era doente. Embora a doença dessa mulher
povoado de demônios e maus espíritos, não se igualasse a uma possessão demo­
que eram fonte de toda sorte de aflições. níaca, é um exemplo de como os seres
A mensagem cristã convidava os homens humanos são indefesos, ao ser vitimados
a confiarem em Deus, cuja soberania se pelos poderes deste “presente século
estendia sobre todos os poderes do mal, mau” (veja Stagg, p. 22 e 23). Conse­
no universo, e que, portanto, podia ga­ qüentemente, a abordagem de Jesus é a
rantir a liberdade e o futuro deles (cf. mesma que a do caso precedente, de
Rom. 8:38,39). O penhor da promessa possessão maligna: ele repreendeu a
do evangelho era propiciado pelos feitos febre (cf. 4:35). A validade e perfeição da
de Jesus, que libertava criaturas infelizes cura é provada no fato de a mulher ter
das forças demoníacas que as escravi­ sido capaz de cumprir logo a seguir os
zavam. seus deveres de dona-de-casa.
2) Curas Fora da Sinagoga (4:38-41) Não é correto entender-se o milagre
como história maravilhosa, que prove
38 O ra , le v a n ta n d o -se J e s u s , s a iu d a s in a ­ por si mesma a divindade de Jesus (Ri-
g oga e e n tro u e m c a s a de S im ã o ; e, e sta n d o chardson, p. 20 e ss.). O povo cria na
a so g ra de S im ão e n fe r m a , co m m u ita fe b re ,
ro g a ra m -lh e p o r e la . 39 E e le, in clin an d o -se possibilidade de curas milagrosas, e por
p a r a e la , re p re e n d e u a fe b re , e e s t a a d e i­ isso a capacidade para curar por si mes­
xou. Im e d ita m e n te e la se le v a n to u e os mo que Jesus tinha não o distinguia de
se rv ia . outras pessoas de sua época. Este inci­
40 Ao pôr-do-sol, to d o s os q u e tin h a m e n ­
fe rm o s de v á r ia s d o e n ç a s lh o s tr a z ia m ; e
dente deve ser entendido como um sinal.
ele p u n h a a s m ã o s so b re c a d a u m d e le s e os O que era novo e diferente era a auto­
c u ra v a . 41 T a m b é m de m u ito s s a ia m d e m ô ­ ridade com que Jesus se defrontou com a
nios, g rita n d o e d izen d o : Tu é s o F ilh o de enfermidade, isto é, o poder imediato de
D eus. E le , p o ré m , os re p r e e n d ia , e n ão os
d e ix a v a f a l a r ; po is s a b ia m q u e e le e r a o
sua palavra. Desta forma, ele demons­
C risto. trou ser o Messias de Deus, portador das
boas-novas do reino, para os oprimidos,
Nesta passagem, Lucas menciona liberando-os das forças que os oprimiam.
Simão pela primeira vez, mas omite os Jesus representava o desafio da nova era
nomes dos outros discípulos, dados em para a velha era de trevas, pecado e
Marcos 1:29. Marcos fala da vocação dos doença. Mais uma vez, na cura da sogra
de Simão, ele demonstrou decisivamente 4:18,19). O imperativo divino, sob o qual
que a era da salvação havia raiado. Jesus vivia, abrange a pregação do evan­
Visto que o dia judaico abrangia pôr- gelho em todo o território judaico. Sub­
do-sol a pôr-do-sol, o ocaso marcava o seqüentemente, a igreja receberia a
fim do sábado (v. 31). Liberado das proi­ mesma obrigação de ir além daqueles
bições contra o trabalho, os habitantes limites, “até os confins da terra” (At.
da cidade podiam trazer-lhe os seus 1:8). Pelo menos esta é a maneira de
enfermos. O poder de Jesus sobre demô­ compreender a história da salvação que
nios e doenças agora era demonstrado Lucas dá a entender. Alguns manuscritos
em escala muito maior. grafam Galiléia, em vez de Judéia. Mas
A imposição de mãos pode estar rela­ Judéia é preferível, tanto com base na
cionada com a descida do Espírito, ou evidência dos manuscritos, como nos
pode significar que o poder para curar fundamentos intrínsecos. É a versão mais
fluía de Jesus para a pessoa enferma. Já difícil, e, portanto, a preferível. Lucas
tem sido demonstrado, contudo, que quer dizer que o ministério de Jesus
Jesus pode curar apenas por sua palavra. cobriu todo o território judaico, que in­
Os demônios reconhecem Aquele cujo cluía a Judéia tanto quanto a Galiléia
poder é superior ao deles, mas são impe­ (Conzelmann, p. 40 e s.).
didos de revelar que ele é o Cristo. Isto 4) Os Primeiros Discípulos (5:1-11)
acontece porque ele não quer o teste­
munho que vem de fonte assim? Ou, é 1 C e rta vez, q u a n d o a m u ltid ã o a p e r ta v a
porque ele está relutando em aceitar o J e s u s , p a r a o u v ir a p a la v r a d e D eu s, ele
e s ta v a ju n to a o la g o d e G e n e z a ré ; 2 e viu
título de Cristo (Messias), devido às suas dois b a rc o s ju n to à p r a i a do la g o ; m a s os
conotações nacionalistas? p e sc a d o re s h a v ia m d e scid o d e le s, e e s t a ­
v a m la v a n d o a s re d e s . 3 E n tra n d o e le n u m
3) A Partida de Cafarnaum (4:42-44) dos b a rc o s , q u e e r a o d e S im ão , p ed iu -lh e
42 Ao ro m p e r do d ia sa iu , e foi a u m lu g a r que o a f a s ta s s e u m pouco d a t e r r a ; e, s e n ta n ­
d e s e rto ; e a s m u ltid õ e s p ro c u ra v a m -n o e, do-se, e n s in a v a , do b a rc o , a s m u ltid õ es. 4
vindo a e le, q u e ria m detê-lo , p a r a q u e n ão Q uando a c a b o u d e f a la r , d isse a S im ão :
se a u s e n ta s s e d e la s . 43 E le , p o ré m , lh e s F a z e -te a o la rg o e la n ç a i a s v o ss a s re d e s
d is se : É n e c e s s á rio que ta m b é m à s o u tr a s p a r a a p e s c a . 5 Ao q u e d isse S im ã o : M e stre ,
c id a d e s e u a n u n c ie o e v a n g e lh o do re in o de tr a b a lh a m o s a n o ite to d a , e n a d a a p a n h a ­
D eu s; p o rq u e p a r a isso é q u e fu i en v ia d o . m o s; m a s , so b re tu a p a la v r a , la n ç a re i a s
44 E p re g a v a n a s sin a g o g a s d a J u d é ia . re d e s . 6 F e ito isto , a p a n h a r a m u m a g ra n d e
q u a n tid a d e d e p e ix e s, d e m odo que a s re d e s
Jesus não deve ser possuído por qual­ se ro m p ia m . 7 A c e n a ra m e n tã o a o s c o m p a ­
quer grupo individualmente; da mesma n h e iro s q u e e s ta v a m no o u tro b a rc o , p a r a
forma, o evangelho não pode ser cercado v ire m a ju d á -lo s. E le s , pois, v ie ra m , e e n ­
c h e ra m a m b o s os b a rc o s , de m a n e ira ta l
pelos desejos e planos humanos. A sua que q u a s e ia m a p iq u e. 8 V endo isso S im ão
vida está debaixo do imperativo da von­ P e d ro , p ro s tro u -se a o s p é s d e J e s u s , d iz e n d o :
tade divina, que se coloca contra a von­ R e tira -te de m im , S en h o r, p o rq u e sou u m
tade humana, expressa pelos habitantes h o m em p e c a d o r. 9 P o is , à v is ta d a p e s c a que
de Cafarnaum. Este sentido de impera­ h a v ia m feito , o e sp a n to se a p o d e ra r a d ele e
de todos os que co m e le e s ta v a m , 10 b e m
tivo divino é expresso, em primeiro lugar, com o d e T iag o e J o ã o , filh o s de Z ebedeu,
pelo verbo ser (must, em inglês e é neces­ que e r a m só cio s de S im ão . D isse J e s u s a
sário, na versão da IBB), e, em segundo S im ã o : N ão te m a s ; d e a g o ra e m d ia n te
lugar, pelo verbo fui enviado. Estes ver­ s e r á s p e s c a d o r d e h o m e n s. 11 E , lev an d o
e le s os b a rc o s p a r a a te r r a , d e ix a r a m tu d o e
bos expressam a idéia de que Jesus está o s e g u ira m .
sob a obrigação de cumprir uma missão
para a qual Deus o enviou. Pela primeira Podemos presumir que havia já certa
vez Lucas se refere ao reino de Deus, familiaridade entre Jesus e os discípulos,
tema central do ministério de Jesus (veja que antecedia a vocação para o discipu-
lado. Mas as perícopes isoladas, acerca associação com Jesus, Pedro reconhecia
dos contatos iniciais de Jesus com os que era homem pecador.
discípulos, não fornecem informações A posição de Simão, na comunidade
suficientes, com que possamos recons­ apostólica, demonstra estar firmada não
truir o relacionamento pregresso deles. em suas qualificações, mas na autori­
Lucas fez passar despercebida a história dade das ordens de Jesus ao discipulado.
narrada por Marcos, acerca da vocação A palavra de Jesus, para ele, é tanto
dos primeiros discípulos (Mar. 1:16-20), segurança como chamado. O discípulo,
preferindo a narrativa colocada aqui. O cônscio de sua fraqueza, exige uma pa­
papel especialmente significativo, desem­ lavra de certeza, antes de receber a voca­
penhado por Pedro, em Lucas-Atos, é ção. Ele não é capaz de se desincumbir
prefigurado pela sua proeminência neste da responsabilidade de pescar homens,
relato, em que os outros discípulos são da mesma forma como não fora capaz de
mencionados apenas incidentalmente. A pescar peixes na noite anterior. Mas a
vocação de Pedro está em conexão com obra do reino de Deus não depende da
um milagre, que deve ser entendido capacidade das pessoas chamadas para
como um sinal. A vocação de Jesus é a serem os instrumentos do seu poder. A
exigência do reino de Deus, cujo poder sua eficiência é garantida pelo poder
fora demonstrado no milagre precedente. soberano de quem os chama para o ser­
viço. Quando eles agem em resposta à
A cena é o lago de Genezaré, designa­
palavra de Jesus, obtêm sucesso, mesmo
ção algumas vezes usada neste período,
quando os esforços parecem baldados.
em lugar de Mar da Galiléia, que é mais
Os primeiros discípulos eram pesca­
freqüentemente encontrada. Os versí­
dores, mas isto não significa que eram
culos 1 a 3 mostram como aconteceu
imprudentes. Eram homens de negócios,
Jesus e Simão se encontrarem juntos no
que haviam feito considerável investi­
barco e, desta forma, prepararem o palco
mento em barcos, equipamentos e imple­
para o ponto alto da narrativa. Mais uma
mentos de pesca. Somos informados que
vez, a autoridade e poder da palavra de
eles deixaram tudo, para seguir a Jesus.
Jesus são sublinhados. A reação reque­
Aquele que é chamado precisa estar dis­
rida, de um discípulo, a essa autoridade
posto a negar as exigências dos seus
é incondicional obediência. Desta forma,
velhos compromissos, a fim de viver
diante da palavra falada por Jesus, Si­
debaixo das exigências finais da sua nova
mão lança as redes, a despeito da apa­
dedicação a Jesus.
rente futilidade de tentar apanhar peixes
depois de uma longa noite de esforços 5) A Cura de um Leproso (5:12-16)
infrutíferos. O poder da palavra de Jesus 12 E s ta n d o e le n u m a d a s c id a d e s, a p a r e ­
é ilustrado pelo imediato e espantoso ce u u m h o m e m ch eio d e le p r a q u e , v e n d o a
sucesso do empreendimento dos pesca­ J e s u s , p ro s tro u -se c o m o ro s to e m t e r r a , e
dores. su p lico u -lh e: S en h o r, se q u is e re s , b e m
p o d e s to m a r-m e lim p o . 13 J e s u s , p o is, e s te n ­
A demonstração sobrenatural do po­ d endo a m ã o , to co u -lh e, d iz e n d o : Q u e ro ; sê
der miraculoso de Jesus produziu em lim p o . N o m e s m o in s ta n te d e s a p a r e c e u d e le
Simão Pedro uma sensação de medo e a le p r a . 14 O rd en o u -lh e, e n tã o , qu e a n in ­
g u é m c o n ta s se isto . M a s v a i, d is s e e le, m o s ­
indignidade. Mais tarde, a falha de tr a - te a o s a c e rd o te e fa z e a o fe r ta p e la tu a
Pedro, na hora crucial da prisão e cruci­ p u rific a ç ã o , c o n fo rm e M o isés d e te rm in o u ,
ficação de Jesus, ficou indelevelmente p a r a lh e s s e r v ir d e te s te m u n h o . 15 A s u a
gravada na memória da comunidade de fa m a , p o ré m , se d iv u lg a v a c a d a v ez m a is,
e g ra n d e s m u ltid õ e s se a ju n ta v a m p a r a
crentes primitivos. Aqui a sua confissão ouvi-lo e s e r e m c u r a d a s d a s s u a s e n fe rm i­
pessoal de pecado é registrada para que d a d e s. 16 M as e le se r e t ir a v a p a r a os d e s e r ­
todos vejam que, desde o começo de sua to s, e a li o ra v a .
Lucas agora retorna para a sua fonte Jesus, sem paralelos nos outros Evange­
anterior, Marcos, que ele segue até 6:19. lhos.
A cura de leprosos tinha significado mes­
3. Conflitos com os Líderes Religiosos
siânico especial (cf. Mat. 11:5; Luc.
(5:17-6:11)
7:22), pois os judeus esperavam a extir­
1) A Cura de um Paralítico (5:17-26)
pação dessa enfermidade como uma bên­
ção da era messiânica (Strack-Billerbeck, 17 U m d ia , q u a n d o e le e s ta v a e n sin a n d o ,
a c h a v a m -s e a li s e n ta d o s fa r is e u s e d o u to re s
1, 593 e ss.). d a le i, q u e tin h a m v in d o d e to d a s a s a ld e ia s
Como um pária social, o leproso era d a G a lilé ia e d a J u d é ia , e d e J e r u s a lé m ; e o
excluído de qualquer contato com todos, p o d e r d o S e n h o r e s ta v a co m e le , p a r a c u r a r .
menos dos outros infelizes, que estavam 18 E e is q u e u n s h o m e n s, tra z e n d o n u m leito
u m p a ra lític o , p ro c u r a v a m in tro d u zi-lo e
na mesma situação que ele (Lev. 13:45- pô-lo d ia n te d e le . 19 M as, n ã o a c h a n d o p o r
46). Mas Jesus ousòu tocar até nesse onde o p u d e ss e m in tro d u z ir, p o r c a u s a d a
leproso! Ele se recusava a viver uma m u ltid ã o , s u b ira m a o e ira d o e, p o r e n tr e a s
existência saudável, por detrás de muros te lh a s , o b a ix a r a m c o m o le ito , p a r a o m eio
que conservassem a doença, a sujeira e a d e to d o s, d ia n te d e J e s u s . 20 E , ven d o -lh es a
fé, d is se e le : H o m e m , sã o -te p e rd o a d o s os
miséria humana à distância confortável e te u s p e c a d o s. 21 E n tã o o s e s c r ib a s e os
segura. fa ris e u s c o m e ç a ra m a a r r a z o a r , d izen d o :
Ao invés de fazer uma proclamação Q u em é e s te q u e p ro fe re b la s fê m ia s ? Q uem
pública de sua cura, esse homem devia p o d e p e rd o a r p e c a d o s, se n ã o só D eu s? 22
J e s u s , p o ré m , p e rc e b e n d o o s s e u s p e n s a ­
seguir as exigências da lei mosaica refe­ m e n to s, re sp o n d e u , e d is se -lh e s: P o r q u e
rentes às pessoas curadas de lepra (Lev. a rr a z o a is e m v o sso s c o ra ç õ e s ? 23 Q u a l é
13 e 14). Jesus diz que isto deve servir de m a is fá c il? d iz e r : S ão-te p e rd o a d o s o s te u s
testemunho ao povo. As seguintes alter­ p e c a d o s ; ou d iz e r: L e v a n ta -te e a n d a ? 24
nativas são as possíveis interpretações O ra , p a r a q u e s a ib a is q u e o F ilh o do h o m e m
te m so b re a t e r r a a u to rid a d e p a r a p e rd o a r
desta difícil frase: (1) Jesus estava inte­ p e c a d o s (d isse a o p a ra lític o ), a ti d e d ig o :
ressado na completa reabilitação daquele L e v a n ta -te , to m a o te u le ito e v a i p a r a tu a
homem, o que acarretava a sua reinte­ c a s a . 25 Im e d ia ta m e n te se le v a n to u d ia n te
gração na sociedade. Isto seria possível d e le s, to m o u o le ito e m q u e e s tiv e r a d eita d o
e foi p a r a s u a c a s a , g lo rific a n d o a D eu s.
apenas se ele cumprisse os requisitos 26 E , to m a d o s d e p a s m o , to d o s g lo rific a v a m
legais e fosse declarado curado pelas a D e u s; e d iz ia m , ch e io s d e te m o r : H oje
autoridades competentes. (2) Jesus dese­ v im o s co is a s e x tr a o rd in á ria s .
java demonstrar que não era iconoclasta,
dado à destruição da Lei. Suas instru­ A introdução incomum, desta história,
ções são prova do respeito que ele tinha nos prepara para prever que ela será
por ela. (3) A tradução que usamos dá a diferente do relato anterior, de milagres
entender que a cura desse homem devia de Jesus. Um augusto corpo de líderes
ser uma prova, para o povo, do poder religiosos, de todas as aldeias da Galiléia
messiânico de Jesus. O veredicto do sa­ e da Judéia, e de Jerusalém, havia-se
cerdote provaria que a cura era completa reunido (cf. Mar. 2:2). Os fariseus, ou
e válida. Esta última sugestão provavel­ “separatistas” , constituíam um dos par­
mente é a melhor. tidos judaicos mais influentes da época
O incidente, publicado a despeito da neotestamentária. Embora a derivação e
admoestação de Jesus, aumentou a sua origem desse nome não sejam claras, essa
considerável popularidade. Ele acabou designação, possivelmente, descrevia os
sendo tão solicitado, que achou necessá­ membros da seita, quanto aos seus esfor­
rio afastar-se para alguma região mais ços de evitar contaminação provinda de
solitária, em que pudesse meditar. En­ coisas e pessoas impuras. Além das
contramos, aqui, uma das sete refe­ Escrituras Hebraicas, consistindo do
rências que Lucas faz às orações de Torah, os Profetas, e os Escritos, os
fariseus também aceitavam a tradição autoridade sobre os pecados. Na teologia
oral, que eram comentários interpreta- rabínica, o homem podia ser um instru­
tivos e legais das Escrituras, como tendo mento de cura, mas só Deus podia per­
autoridade. Doutores da lei é um termo doar pecados. Da mesma forma, não há
característico de Lucas, para designar os nenhuma base, nos escritos judaicos,
escribas. Eles eram os peritos na Lei, que para a idéia de que o Messias daria o
se dedicavam à sua interpretação e apli­ perdão de pecados por ter autoridade
cação. para tal (Strack-Billerbeck, I, 495). Aos
O podei do Senhor é um toque dado olhos dos líderes religiosos, Jesus havia
por Lucas. O Senhor (kurios) é usado ultrapassado os limites entre humani­
freqüentemente nas obras de Lucas para dade e divindade; e, pela primeira vez,
se referir a Jesus. Aqui presume-se que em Lucas, começaram a expressar hosti­
ele seja equivalente à tradução de Yah- lidade contra ele.
weh, na Septuaginta. Leaney comenta Blasfêmias — a palavra carregada de
que essa ambigüidade pode ser delibe­ emoções, com capacidade para suscitar
rada (p. 124). hostilidade, até o ponto de tornar-se
As curas realizadas por Jesus são ini­ fúria assassina — é mencionada. Os líde­
ciadas de diferentes maneiras. Aqui res religiosos entendiam Jesus muito
Jesus age em reação à fé dos homens que bem. Ele se havia proposto a agir em seu
haviam ido até tamanhos sacrifícios, próprio nome, tanto que a palavra que
para colocar o paralítico diante dele. ele falara era a direta e não adulterada
Desta forma, é-nos demonstrado que a fé palavra de Deus.
da comunidade também tem um papel Jesus aponta para a incongruência
importante a desempenhar no afã de lógica da atitude dos seus críticos. Afinal
propiciar saúde aos aflitos. Entre as te­ de contas, ele estivera realizando os ou­
lhas indica que o quadro mental de tros atos de cura da mesma maneira
Lucas é uma casa romana, com telhado autoritária. Eles mesmos criam que a
de telhas, em vez do de terra pisada, cura divina era precedida pelo perdão.
comum na Palestina, e pressuposto em Portanto, proferir a palavra de perdão é
Marcos 2:4. essencialmente nada mais do que decla­
Até este ponto, as curas realizadas por rar a palavra de cura. São simplesmente
Jesus haviam ido de encontro às doenças dois lados da mesma moeda (v. 23).
físicas. O poder do mal, expresso em Para que saibais não é uma acomoda­
possessão de demônios, lepra e outras ção para com a cegueira dos críticos.
aflições, que prendiam o homem em suas Pelo contrário, Jesus vai diretamente ao
garras, havia sido desafiado e derrotado. encontro do desafio que eles lançam. A
Mas existe uma enfermidade mais pro­ palavra de cura é declarada de maneira
funda, cujos sintomas nem sempre são tal a ilustrar a autoridade que Jesus
tão visíveis, e que também demanda expressara ao perdoar os pecados do
cura. Nenhum homem é perfeito, en­ homem. A ti te digo enfatiza a sua auto­
quanto for presa de culpa, com sua ridade clara e inequivocamente. Ele não
seqüela de temores, ansiedade e pertur­ conclama outro poder, não há invocação
bações emocionais. ao nome da divindade, não há palavras
Os rabis também ensinavam a neces­ ou movimentos mágicos. É verdade que
sidade fundamental de perdão na cura Jesus tinha estado realizando os seus
completa. Conseqüentemente, não era o outros atos de cura da mesma maneira
fato de Jesus ter tratado da necessidade autoritária, mas somente agora o signifi­
de perdão que causou o problema. Foi a cado daquilo se torna realmente claro.
sua maneira de abordá-lo — a maneira Com efeito, Jesus lança a luva para os
direta e confiante pela qual ele assumiu seus inimigos. Alguém que consiga, des-
sã forma, ordenar a um paralítico que uma ilustração da importância da idéia
ande, pode também perdoar pecados. Ali coletiva no pensamento de Lucas.
está a evidência para que eles vejam que Esse termo é usado fora dos Evange­
o Filho do homem tem sobre a terra lhos apenas em Atos 7:56 e Apocalipse
autoridade para perdoar pecados. Eles se 1:13; 14:14. É a preferida autodesigna-
defrontam claramente com o enigma: De ção de Jesus, e pode ter sido escolhida
onde vem tal autoridade? para evitar o título de Messias, por causa
das indesejáveis conotações ligadas a este
Filho do homem pode significar sim­ termo e por causa das possibilidades
plesmente homem. Esta é a conotação paradoxais mencionadas acima.
em Ezequiel, onde esse termo é empre­ A cura do paralítico produz admiração
gado nas comunicações de Deus ao pro­ e temor. Há um reconhecimento genérico
feta. Pode também referir-se à gloriosa
de que o poder de Deus foi visto em
figura apocalíptica do fim dos tempos,
operação. Todos provavelmente não deve
que esperava-se que viesse, em poder, ser interpretado como incluindo os crí­
para libertar os justos e julgar os ímpios.
ticos, porque a sua hostilidade continua
Esta conotação remonta a Daniel 7:13,
a ser expressa nos episódios subse­
que diz: vinha com as nuvens do céu
qüentes.
um como filho de homem.” O conceito
de uma figura gloriosa, apocalíptica, 2) Associação com os Párias (5:27-32)
associada com o fim dos tempos, é elabo­ 27 D ep o is d isso s a iu e , v en d o u m p u b lica-
rado pelo livro de Enoque. no c h a m a d o L e v i, s e n ta d o n a c o le to ria ,
d is se -lh e : S eg u e-m e. 28 E s te , d e ix a n d o tu d o ,
Algumas vezes “Filho do homem” é le v a n to u -se e o se g u iu .
usado em contexto em que parece signi­ 29 D eu -lh e e n tã o L e v i u m la u to b a n q u e te
ficar simplesmente “eu” . Na maior parte e m s u a c a s a ; h a v ia a li g ra n d e n ú m e ro d e
das vezes, ele tem afinidade com a figura p u b lic a n o s e o u tro s q u e e s ta v a m co m e le s à
messiânica de Daniel e Enoque. No m e s a . 30 M u r m u ra v a m , p o is, o s fa r is e u s e
se u s e s c r ib a s , c o n tr a o s d isc íp u lo s, p e rg u n ­
entanto, há significativas modificações, ta n d o : P o r q u e c o m e is e b e b e is co m p u b li­
que foram produzidas juntando-se o con­ c a n o s e p e c a d o re s ? 31 R esp o n d eu -lh es
ceito de Filho do homem com o do Servo J e s u s : N ão n e c e s s ita m d e m é d ic o os sã o s,
Sofredor de Isaías. Desta forma, encon­ m a s , sim , o s e n fe rm o s ; 32 e u n ã o v im c h a ­
m a r ju s to s , m a s p e c a d o re s , a o a r r e p e n ­
tramos o paradoxo de um Filho do ho­ d im e n to .
mem que é rejeitado e sofre. Mas ele
também é Aquele ressurrecto e exaltado, Onde Lucas contém apenas Levi, M ar­
cuja Igreja confiantemente espera a cos o identifica como filho de Alfeu
sua vinda em poder e glória. Da forma (2:14). O paralelo em Mateus (9:9) cita
como é usado em Daniel, este termo Mateus, em vez de Levi. As várias refe­
parece ser coletivo, representando “ os rências importantes são confusas. Nem
santos do Altíssimo” . Esta idéia coletiva Lucas nem Marcos usam este nome na
é também importante para que se enten­ lista dos apóstolos, mas incluem o nome
da o seu uso em o Novo Testamento. de Mateus (Luc. 6:15; At. 1:13; Mar.
Algumas vezes o Filho do homem é redu­ 3:18). Estas listas mencionam Tiago,
zido a uma pessoa, isto é, Jesus; outras filho de Alfeu, que é também uma reda­
vezes, inclui o povo de Deus, e ostenta ção alternativa, em alguns poucos ma­
semelhanças com o conceito paulino nuscritos, referente a Marcos 2:14. Tra­
acerca do corpo de Cristo (veja 6:22). dicionalmente, Mateus tem sido identi­
Stagg (p. 58 e ss.) apresenta uma discus­ ficado com Levi, mas a evidência esbo­
são mais ampla desse título. Em Atos çada acima é dificilmente conclusiva.
9:4, Paulo, perseguidor dos santos, é Levi, provavelmente, estava ocupado
acusado de perseguir a Jesus, o que é em coletar os impostos lançados sobre o
comércio que se fazia ao longo da estrada igrejas, para outras pessoas, devido a
de Damasco a Acre. O notável aspecto da considerações de raça e classe.
história é que Jesus não apenas se asso­ A resposta de Jesus à crítica é calcada
ciou com pessoas como Levi, mas tam­ em ironia. Os justos são os que pensam
bém incluiu-os no seu mais íntimo grupo que são justos. Eles se medem pelo fra­
de seguidores. casso dos outros em viver segundo a
A ordem é breve e simples: Segue-me. norma que eles aceitam. Desta forma, os
Mas ela dá a entender muita coisa. Ser justos exploram os pecadores. Ficam
seguidor de Jesus significa que a pessoa realmente alegres porque estes são peca­
precisa estar preparada para assumir os dores, pois, de outra forma, não pode­
riscos desse encargo. Também significa riam dizer que são justos. A situação
que não pode haver outras rivais que deles permanecerá inalterada, até que
demandem a sua lealdade. Assim, somos reconheçam a sua própria bancarrota
informados que Levi, deixando tudo, espiritual. E, então, eles verão que diante
“começou a seguir” (tempo imperfeito) a de Deus todas as categorias, como fari­
Jesus. Isto acarretou a desistência de seus, publicanos e pecadores, se tornam
uma posição lucrativa, e o envolvimento irrelevantes. Chamar também significa
em um empreendimento novo e perigoso, convidar, como, por exemplo, à refeição
para o qual não havia garantias. de que Jesus participara. A ambigüidade
Todos os Evangelhos falam do rela­ é mais aguda no texto de Marcos, onde
cionamento de Jesus com os coletores de Jesus parece ser o hospedeiro, e onde,
impostos e pecadores, mas Lucas dá também, não encontramos a frase ao
especial proeminência a essas amizades. arrependimento. Apenas os pecadores,
O fato de Jesus ter comido com eles ou seja, aqueles que sabem que são peca­
consistia em ameaça para as convenções dores, são convidados, porque são os
sociais aceitas. Ter negócios com eles era únicos que atendem ao convite.
uma coisa, mas comer com eles, nas
casas deles, ou convidá-los para a sua 3) A Questão do lejum (5:33-39)
casa era bem outra. As “pessoas decen­ 33 D iss e ra m -lh e e le s : O s d iscíp u lo s de
Jo ã o je ju a m fre q ü e n te m e n te e fa z e m o r a ­
tes” simplesmente não se relacionavam ções, com o ta m b é m o s dos fa ris e u s , m a s os
com tais pessoas. te u s c o m e m e b e b e m . 34 R e sp o n d eu -lh es
Os pecadorés eram o “povo da terra” J e s u s : P o d e is, p o rv e n tu ra , fa z e r je j u a r os
(‘am-ha-aretz’), a multidão de pessoas c o n v id ad o s à s n ú p c ia s e n q u a n to o noivo e s tá
comuns, que não tinham o zelo, ou a co m e le s? 35 D ia s v irã o , p o ré m , e m q u e lh es
s e r á tira d o o n o iv o ; n a q u e le s d ia s , sim , h ão
oportunidade, para observar grande d e je j u a r . 36 P ro p ô s-lh e s ta m b é m u m a
parte das tradições religiosas considera­ p a rá b o la : N in g u é m t i r a u m p e d a ç o d e u m
das essenciais para se evitar a contamina­ v estid o novo p a r a o c o s e r e m v e stid o v elh o ;
ção ritual. do c o n trá rio , n ã o so m e n te r a s g a r á o novo,
m a s ta m b é m o p e d a ç o do novo n ã o c o n d irá
As críticas contra Jesus, em Marcos co m o v elh o . 37 E n in g u é m d e ita vin h o novo
(2:16), são ampliadas, incluindo os dis­ e m o d re s v e lh o s ; do c o n trá rio , o vin h o novo
cípulos, em Lucas 5:30. Desta forma, o ro m p e rá os o d re s e se d e r r a m a r á , e os o d re s
incidente se torna contemporâneo a uma se p e rd e r ã o ; 38 m a s vin h o novo d e v e s e r
época posterior. Os seguidores de Jesus, d eita d o e m o d re s nov o s. 39 E n in g u ém ,
ten d o b eb id o o v elh o , q u e r o n o v o ; p o rq u e
ao menosprezarem as normas aceitas e as d iz : O velho é bo m .
barreiras sociais, consideravam que esta­
vam fazendo nada mais do que seguir o Vários exemplos de jejum são encon­
exemplo do seu Senhor. E de fato esta­ trados no Velho Testamento, especial­
vam! O fenômeno notável é que muitos mente em épocas de tristeza, arrependi­
seguidores nominais, de Jesus, agora fe­ mento, emergência nacional, etc. Mas
cham a porta dos seus lares, clubes e até somente o jejum do Dia da Expiação era
prescrito por lei. Depois da destruição de e tristeza iriam seguir-se, quando o jejum
Jerusalém, quatro dias de jejum foram seria mais apropriado.
estabelecidos em memória daquela catás­ Dois lugares-comuns, porém figuras
trofe (Zac. 7:3,5; 8:19). No judaísmo, o bem elucidativas, ilustram a insensatez
jejum chegou a ser considerado uma de tentar fazer caber a nova força que
prática especialmente meritória e marca Jesus colocara em movimento nas velhas
registrada de piedade religiosa. formas do judaísmo. Ninguém faz com
Somos informados a respeito de ape­ vestidos ou vinho o que os críticos que­
nas um a experiência de jejum no minis­ riam fazer com Jesus e seu evangelho. A
tério de Jesus (Luc. 4:2). Diferentemente idéia da analogia era que forçá-lo seria
de experiências semelhantes no Velho desejar uma harmonia que não existe,
Testamento (v.g., Moisés, em Êx. 34: isto é, o novo não condirá com o velho
28), este jejum não precedeu, mas se­ (mas veja Mar. 2:21). O judaísmo não
guiu-se à recepção de uma revelação pode ser remendado com elementos do
divina. O jejum aparentemente não era evangelho cristão. O vinho novo, que ele
um costume de Jesus e seus seguidores, constitui, destruirá os velhos odres, que
exceto no Dia da Expiação e possivel­ representam o judaísmo. Desta forma, é
mente nos quatro dias mencionados enfatizada a impossibilidade de concilia­
acima. A rejeição desse costume concor­ ção entre Jesus e o judaísmo contempo­
da com o desinteresse de Jesus por outras râneo. De acordo com a tese de Lucas,
práticas religiosas tradicionais. A sua essa impossibilidade de conciliação exis­
atitude também o identifica com os pro­ tia devido ao fracasso dos líderes judaicos
fetas, que haviam reconhecido o perigo em ver que o movimento cristão repre­
de interpretações tão superficiais de sentava a corrente continuadora do ge­
piedade (v. g., Is. 58:1 ess.). nuíno judaísmo.
De acordo com a tradição de que Não importam quais sejam os seus
Moisés subira o Monte Sinai na segunda- méritos, qualquer coisa nova será rejeita­
feira e voltara na quinta, os fariseus da por algumas pessoas, que preferem as
piedosos jejuavam duas vezes por semana formas confortáveis da coisa velha. O
(Luc. 18:12), como também evidente­ versículo 39 provavelmente expressa uma
mente o faziam os discípulos de João atitude judaica comum, encontrada
Batista. O desinteresse de Jesus por esse pelos cristãos primitivos. As reivindica­
costume de jejuar forneceu, aos seus ções de superioridade do judaísmo sobre
críticos, outro ponto estratégico, de onde o cristianismo eram baseadas na sua
podiam atacá-lo. safra mais antiga.
Em sua resposta, Jesus tirou o jejum
da categoria de ato piedoso, e o inter­ 4) Desatenção às Tradições Sabáticas
(6:1-5)
preta, no sentido veterotestamentário,
1 E su c e d e u q u e , n u m d ia d e s á b a d o , p a s ­
como reação apropriada diante de tris­ s a v a J e s u s p e la s s e a r a s ; e s e u s discíp u lo s
teza ou crise. O banquete de casamento ia m co lh en d o e s p ig a s e , d e b u lh a n d o -a s com
forneceu uma boa analogia, porque era a s m ã o s , a s c o m ia m . 2 A lg u n s d o s fa ris e u s ,
uma ocasião festiva e alegre para o noivo p o ré m , p e r g u n t a r a m : P o r q u e e s ta is fa z e n ­
e seus amigos. Os convidados ficavam do o q u e n ã o é líc ito f a z e r nos sá b a d o s ? 3 E
J e s u s , resp o n d e n d o -lh e s, d is s e : N e m ao
livres da obrigação de jejuar, para que a m e n o s te n d e s lido o q u e fez D a v i q u an d o
alegria não fosse ensombrecida. A idéia é te v e fo m e , ele e se u s c o m p a n h e iro s ? 4 C om o
que os discípulos não estavam vivendo e n tro u n a c a s a d e D e u s, to m o u os p ã e s d a
em tempos de tristeza, mas em uma p ro p o siç ão , dos q u a is n ã o e r a líc ito c o m e r,
se n ã o só a o s s a c e rd o te s , e d e le s c o m e u e d eu
época de alegre comunhão com Jesus. ta m b é m a o s c o m p a n h e iro s ? 5 T a m b é m lh e s
Ele convidava os homens para uma festa, d is se : O F ilh o d o h o m e m é S e n h o r do s á ­
e não para um jejum. Momentos de crise b ad o .
Em alguns manuscritos, sábado é mo­ o pão normalmente reservado aos sacer­
dificado com uma palavra peculiar, que dotes, Davi e seus homens subordinaram
pode ser traduzida literalmente como as regras religiosas à satisfação de neces­
“segundo primeiro” (ver comentários sidades físicas, como os discípulos tam­
marginais ao texto grego do Novo Testa­ bém haviam feito.
mento). Isto, provavelmente, é uma. Lucas omite o ditado: “O sábado foi
glosa. Se não, podemos apenas conjec­ feito por causa do homem, e não o
turar quanto ao seu significado. Pode homem por causa do sábado” (Mar.
distinguir este como o “ segundo sábado 2:27). Há um ensino rabínico seme­
depois do primeiro” , mencionado na lhante: “O sábado foi entregue a ti, e
fonte de Marcos e usada por Lucas não tu ao sábado” (Mekilta a Êx. 31:13).
(4:31 e s.; veja Plummer, p. 165 e s.). Mas, na interpretação e aplicação deste
Desatenção pelas tradições sagradas princípio, Jesus diferiu drasticamente
do sábado deram um golpe no centro dos rabis. Isto é expresso pela afirmação:
nervoso do judaísmo. A observância do O Filho do homem é Senhor do sábado.
sábado e a circuncisão eram as duas Se substituirmos Filho do homem por
expressões mais vitais da relação pactuai homem, Marcos 2:28 é um desenvolvi­
entre Israel e Yahweh. A pena cominada mento lógico e significativo de 2:27. O
por não observar o sábado era exclusão contexto em Marcos, portanto, quase
da comunidade (Êx. 31:14) ou até a exige que demos a “Filho do homem” o
morte (Núm. 15:32-36); mas não há evi­ significado de homem (veja Luc. 5:24).
dência de que as pessoas que violassem Os rabis nunca teriam ido tão longe, ao
esse preceito fossem punidas tão severa­ ponto de dizer que o homem é senhor do
mente nojudaísmo. sábado.
O Decálogo contém uma proscrição Desta forma, a história que estamos
geral de trabalho no sábado (Êx. 20:8 e comentando ilustra o conflito entre duas
paralelos). A tradição oral, a “cerca” abordagens da religião diametralmente
que havia sido edificada ao redor da Lei, opostas. Em uma, as regras religiosas e
definia este mandamento em termos requisitos rituais são o centro. O homem
precisos e minuciosos, para os judeus dp é desumanizado e despersonalizado,
primeiro século. Os discípulos eram cul­ porque está subordinado às regras. De
pados de uma múltipla violação dessas acordo com a abordagem de Jesus, o
tradições. Eles haviam contrariado a homem é colocado no centro. O bem-
proibição contra colheita, quando iam estar e as necessidades humanas têm
colhendo espigas. E, debulhando-as com precedência sobre qualquer regra ou
as mãos, haviam desatendido às leis cerimônia. Dizer que o homem é senhor
contra debulha e beneficiamento de do sábado, uma das duas mais importan­
cereais. tes instituições religiosas do judaísmo, é
Jesus demonstra a incongruência da subordinar todas as outras a ele. A histó­
moralidade legalista dos judeus, apelan­ ria mostra que Jesus não era contra o
do a um precedente bíblico para a ação sábado como tal. Ele simplesmente se
dos discípulos (cf. I Sam. 21:1-6). Os opunha a uma interpretação dele que
pães da proposição eram os doze pães não levasse em conta o valor primordial
colocados sobre uma mesa, diante do dos seres humanos.
Senhor, no santuário. Cada sábado, os 5) O Homem com a Mão Atrofiada
pães velhos eram substituídos e subse­ (6 :6-11)
qüentemente comidos pelos sacerdotes,
6 A in d a e m o u tro s á b a d o e n tro u n a s in a ­
no santuário. De acordo com a tradição, g o g a, e p ô s-se a e n s in a r. E s ta v a a li u m
Davi havia executado o ato descrito em I h o m e m q u e tin h a a m ã o d ir e ita a tro fia d a .
Samuel 21:1-6 em um sábado. Comendo 7 E o s e s c r ib a s e o s fa r is e u s o b se rv a v a m -n o ,
p a r a v e r se c u r a r ia e m d ia d e sá b a d o , p a r a Fazendo esse ato bom no sábado, podia-
a c h a r e m de q u e o a c u s a r . 8 M a s e le , c o n h e ­
cendo-lhes o s p e n sa m e n to s, d is se a o h o m e m
se servir a Deus.
qu e tin h a a m ã o a tr o f ia d a : L e v a n ta -te , e Lucas omite a referência à ira de Jesus
fic a e m p é a q u i n o m e io . E e le , le v a n ta n d o - para com os seus críticos (Mar. 3:5),
se, ficou e m p é . 9 D isse-lh e s, e n tã o , J e s u s : causada por sua grosseira desatenção
E u v o s p e rg u n to : É lícito no s á b a d o fa z e r para com o bem-estar de um outro ser
b e m , ou fa z e r m a l? s a lv a r a v id a , ou tirá -la ?
10 E , o lhando p a r a todos e m re d o r, d is se ao humano. Ele, pelo contrário, descreve o
h o m e m : E s te n d e a tu a m ã o . E le a s s im o fez, furor suscitado pelo ato de Jesus. Para os
e a m ã o lhe foi re s ta b e le c id a . 11 M a s e le s se líderes religiosos, aquilo parecia ser uma
e n c h e ra m d e f u r o r ; e u n s c o m os o u tro s afronta impertinente e arbitrária a uma
c o n fe re n c ia v a m so b re o q u e f a r ia m a J e s u s .
das suas mais sagradas instituições. Eles
Esta narrativa contém vários toques agora comprendiam que Jesus represen­
característicos de Lucas (cf. Mar. 3:1-6). tava um a séria ameaça, que precisavam
Lucas declara especificamente que fora a anular.
mão direita a afetada. Ele também se
4. A Escolha e Instrução dos Doze (6:
refere à presença de escribas e fariseus
12-49)
hostis no começo, e não no fim da histó­
ria. Ele omite a referência a herodianos, Lucas usa dois episódios de Marcos
talvez de acordo com a sua apologética para montar o palco para o grande ser­
política. mão de Jesus. A seqüência em que ele os
Os rabis ensinavam que as proibições apresenta consiste em uma transposição
do sábado podiam ser desatendidas, com da ordem de Marcos. A escolha dos doze
o fim de salvar uma vida. Por exemplo, (cf. Mar. 3:13-19) é colocada antes da
uma criança presa em um quarto tran­ nota a respeito de obras poderosas rea­
cado podia ser libertada no sábado, lizadas em meio a uma multidão (cf.
embora a porta precisasse ser arrombada Mar. 3:7-12).
(Tos. Shabbat 15:11 e s.). A cura desse O sermão é apresentado como culmi­
aleijado, todavia, não podia ter prece­ nação de uma série de eventos encadea­
dência sobre a lei do sábado, porque a dos. Jesus passou a noite em oração
sua vida não estava em perigo. Possivel­ (6:12). Ao amanhecer, ele reúne os dis­
mente, ele iria sofrer um pouco mais, se cípulos, e, dentre eles, escolhe os doze
esperasse até o pôr-do-sol, momento em (6:13). Depois, desce do topo da monta­
que a cura poderia realizar-se legitima­ nha, com os doze e os outros discípulos,
mente. para um lugar plano, onde há uma mul­
Mais uma vez, aqui, há uma colisão de tidão esperando (6:17). Depois de curar
duas abordagens divergentes da religião. os doentes endemoninhados entre a mul­
O sábado era interpretado, em grande tidão (6:18,19), Jesus prega o sermão,
parte, em termos negativos, no judaísmo. que dirige especificamente aos discípulos
Na verdade, havia o lado positivo, pois ( 6 :20).
ele era também um dia de alegre adora­ Em 6:20, Lucas começa a usar fontes
ção. A relação do homem com Deus era diferentes de Marcos, e continua a fazê-
enfatizada, mas não a responsabilidade lo até 8:3. Este bloco de material é fre­
corolária para com os outros seres huma­ qüentemente mencionado como a “pe­
nos. Jesus interpretou o sábado positiva­ quena interpolação” .
mente. A questão de primordial impor­ Concorda-se geralmente que Q é a fon­
tância não é a negativa: O que devo me te tanto do “Sermão do Lugar Plano” ,
abster de fazer? Pelo contrário, é: Que em Lucas 6:20-49, quanto do Sermão
bem posso fazer no sábado? da Montanha, em Mateus 5:1-7:27. Há
A resposta a essa pergunta é lógica. muitas semelhanças entre os dois ser­
Havia um homem que precisava de cura. mões. Ambos começam com uma série
de beatitudes, e ambos terminam com a objetivo de ter escolhido os doze fora que
parábola acerca dos dois construtores. eles pudessem “estar com ele” e “serem
Não há paralelos, em Mateus, da série enviados para pregar” . Em outras pala­
de ais encontrados em Lucas 6:24-26. vras, eles eram os delegados escolhidos
Além disso, paralelos de Lucas 6:39-45 de Jesus, para serem enviados, portando
são encontrados em outras partes de a autoridade inerente à designação, feita
Mateus, mas não no Sermão. De outra por ele, de arautos de sua mensagem.
forma, o conteúdo do sermão de Lucas é Para que eles cumprissem esse papel, era
representado no Sermão da Montanha. necessário que passassem algum tempo
No entanto, o sermão encontrado em com Jesus. Nos escritos de Lucas, os
Mateus é muito mais longo do que o apóstolos eram primordialmente teste­
encontrado em Lucas. Pelo menos até munhas que garantiam a autenticidade
certo ponto, isto é devido à propensão de histórica da mensagem da Igreja.
Mateus de agrupar materiais relaciona­ A maior parte dos doze não é nada
dos entre si na mesma seção. Grande mais do que nomes para nós. Simão é
parte do Sermão da Montanha aparece mencionado em primeiro lugar, como
em outros contextos em Lucas. Uma convém à sua posição de líder e porta-voz
notável exceção é a ausência, quase com­ do grupo. O epíteto dado a Simão, por
pleta, da espécie de material encontrado Jesus, é traduzido como Pedro. É o equi­
em Mateus 5:17 e 6: 1 e ss. valente ao substantivo comum “pedra” .
1) A Nomeação dos Doze (6:12-16) As esperanças que Jesus tinha em Simão,
e as possibilidades de grandeza que o
12 N a q u e le s d ia s re tiro u -se p a r a o m o n te
a fim d e o r a r ; e p a ss o u a n o ite to d a e m
Senhor via naquele homem, ainda instá­
o ra ç ã o a D eu s. 13 D ep o is d o a m a n h e c e r, vel, são vistas nesse nome. Jesus via, em
c h a m o u se u s d iscíp u lo s, e e sc o lh e u doze uma pessoa, não apenas o que ela era no
d e n tre e les, a o s q u a is d eu ta m b é m o n o m e momento, mas também aquilo em que
d e ap ó sto lo s; 14 S im ão , a o q u a l ta m b é m ela podia se transformar, e aquilo que ele
c h a m o u P e d ro , e A n d ré, se u i r m ã o ; T ia g o e
J o ã o ; F ilip e e B a rto lo m e u ; 15 M a te u s e desejava para essa vida.
T o m é ; T iag o , filho d e A lfeu, e S im ão , c h a ­ O último lugar é dado a ludas, lem­
m ad o Z elote; 16 J u d a s , filho d e T iag o , e brado principalmente por sua traição.
J u d a s Is c a rio te s , q u e veio a s e r o tr a id o r. O significado de Iscariotes é obscuro.
Somente Lucas nos diz que Jesus orou Algumas pessoas entendem que descreve
a noite toda, antes de escolher os doze. Judas como “homem de Kerioth” . Oscar
Isto acrescenta uma nota de grande sole­ Cullman 16 crê que o significado é
nidade a esse acontecimento importan­ “zelote” .
tíssimo. Os doze são escolhidos dentre o A lista que Lucas faz dos doze difere
grupo mais numeroso de discípulos. O da de Marcos, pelo fato de identificar
número deles, que corresponde ao nú­ André como irmão de Simão, omitir a
mero das tribos de Israel, é, indubita­ descrição de Tiago e João, traduzir o
velmente, significativo. O seu simbolis­ “cananeu” transliterado corretamente
mo indica que a comunidade criada por como zelote e apresentar Judas, filho de
Jesus é nada mais do que o Israel recons­ Tiago, em vez de Tadeu.
tituído, e que ele é o seu Rei-Messias.
Fora de Lucas, apóstolos geralmente 2) O Cenário do Sermão (6:17-19)
tem o sentido genérico de missionários. É 17 E J e s u s , d e sc e n d o co m e le s , p a ro u
n u m lu g a r p la n o , o n d e h a v ia n ã o só g ra n d e
usado freqüentemente por Lucas como n ú m e ro d e se u s d iscíp u lo s, m a s ta m b é m
designação do círculo mais íntimo dos g ra n d e m u ltid ã o do po v o , d e to d a a J u d é ia e
companheiros de Jesus. Mateus e Marcos
o usam desta forma apenas uma vez 16 The State in the New Testament (New York: Scribner's,
(Mat. 10:2; Mar. 6:30). Marcos diz que o 1956), p. 15.
J e r u s a lé m , e do lito r a l de T iro e d e Sidom , n esse d ia , e e x u lta i, p o rq u e e is q u e é g ra n d e
que tin h a m v in d o p a r a ouvi-lo e s e r e m c u r a ­ o vosso g a la r d ã o no c é u ; p o is a s s im fa z ia m
dos d a s su a s d o e n ç a s ; 18 e os q u e e ra m a t o r ­ os se u s, p a is a o s p ro fe ta s .
m e n ta d o s p o r e s p írito s im u n d o s fic a v a m
c u ra d o s. 19 E to d a a m u ltid ã o p ro c u r a v a Beatitudes são comuns na literatura
to c a r -lh e ; p o rq u e s a ía d ele p o d e r q u e c u r a ­ antiga, tanto entre hebreus como entre
v a a todos. gregos. No entanto, as beatitudes de
Jesus são caracterizadas por incomum
A escolha dos dcze marca uma nova originalidade e força. Neste sermão, elas
fase no ministério de Jesus. Dessa hora são todas apresentadas em forma de
em diante, ele é acompanhado, em suas paradoxo. Os benditos são pobres,
viagens, por esse grupo especialmente famintos, tristes, perseguidos. As beati­
selecionado. O encontro com a multidão tudes enfatizam as bases não materialis­
ocorre em um lugar plano, não numa tas e escatológicas da bem-aventurança.
planície, mas um lugar ainda nas mon­ Essa bem-aventurança não é devida à
tanhas, apropriado para a reunião de longevidade, saúde, riqueza e benefícios
multidão como aquela. A nota apresen­ afins, mas à posse do reino de Deus. A
tada em 7:1 indica que essa série de primeira beatitude declara isto, e as
acontecimentos ocorreu nas vizinhanças outras três simplesmente interpretam o
de Cafarnaum. Três grupos de pessoas que significa possuir o reino de Deus.
estão presentes, agora: os doze, grande A construção passiva da cláusula final,
número de seus discípulos, e grande mul­ que apresenta a razão para a bem-aven-
tidão do povo. O tamanho da multidão é turança, é uma perífrase, para evitar
enfatizado, como também a sua natureza mencionar-se o nome divino. É Deus que
representativa. Toda a Judéia provavel­ dá o reino, satisfaz a fome, faz rir e
mente significa a terra judaica, inclu­ recompensa os perseguidos. As beati­
indo-se a Galiléia e a Peréia. Lucas men­ tudes são atribuídas à soberania de
ciona, caracteristicamente, Jerusalém em Deus. Isto justifica a convicção de que a
separado, à parte dos outros territórios natureza final das coisas constituirá uma
judaicos (cf. 5:17; At. 1:8). O povo havia reversão da cena humana com todas as
sido atraído a Jesus por duas razões: suas iniqüidades e injustiças. Elas tam­
desejavam ouvi-lo e serem curados. bém são baseadas na convicção de Jesus
Algumas vezes o poder de Jesus para de que, na sua palavra, o juízo e a graça
curar é descrito quase como se fosse “um de Deus se tornam imediatos e decisivos
fluído físico transferível para outras pes­ para aqueles que ouvem. As beatitudes e
soas, mediante o toque” , como nesta os ais que se seguem (v. 24-26) consti­
passagem, em que Lucas escreve que saía tuem a palavra salvadora de Deus, no
dele poder (Barrett, p. 75). primeiro caso, e no seu chamado ao
arrependimento, no segundo (Walter
3) As Beatitudes (6:20-23) Grundmann, p. 141). Jesus faz os ho­
20 E n tã o , le v a n ta n d o e le o s o lhos p a r a os mens se defrontarem com a realidade do
seus d iscípulos, d iz ia : B e m -a v e n tu ra d o s futuro de Deus, em que está implícita a
vós, os p o b re s, p o rq u e vosso é o re in o de exigência de que eles façam os ajusta­
D eus.
21 B e m -a v e n tu ra d o s v ó s, q u e a g o ra te n ­ mentos necessários com referência ao
d es fo m e, p o rq u e se re is fa rto s. presente. Ao pronunciar as beatitudes,
B em -a v e n tu ra d o s vós, q u e a g o ra c h o ra is, ele cumpre a palavra profética de Isaías
p o rq u e h a v e is d e r ir. 61:1. Desta forma, elas são muito mais
22 B e m -a v e n tu ra d o s s e r e is q u an d o os
h o m en s vos o d ia re m , e q u a n d o v o s e x p u ls a ­
do que palavras sábias, ensinamentos ou
re m d a s u a c o m p a n h ia , e v o s in ju r ia r e m e princípios morais. São o irromper do
re je ita r e m o v o sso n o m e c o m o in d ig n o , p o r reino de Deus, o desafio da velha era pela
c a u s a do F ilh o do h o m e m . 23 R e g o zijai-v o s palavra decisiva de Deus.
Bem-aventurados denota a felicidade pode ser igualado com território, raça,
ou boa sorte daqueles que recebem a ou cultura, visto que Deus é de fato o
salvação de Deus. Nas beatitudes, Jesus governante de todo o universo. O governo
define o que é felicidade. Mas ele o faz de de Deus, portanto, não pode ser pro­
maneira que contradiz completamente as movido pelo homem. Somente pode ser
idéias e valores de uma sociedade mate­ reconhecido, afirmado e proclamado. O
rialista e sensual, que iguala felicidade homem que possui o reino de Deus colo-
com casa, carro ou conta bancária. cou-se sob o domínio soberano de Deus,
Em consonância com o seu programa com tudo o que isto significa, no presente
messiânico, Jesus, em primeiro lugar, e no futuro. Implícita nesta confiança na
proclama “boas-novas aos pobres” (cf. soberania de Deus está a convicção de
4:18). Surpreendentemente, Jesus diz que o governo de Deus será estabelecido
que os felizes, afortunados ou benditos completamente. Isto inclui a eliminação
são os pobres. Pobreza é, basicamente, de todo mal.
uma categoria social e econômica. En­ A expressão que... tendes fome, seme­
sinamentos a respeito dos pobres figuram lhante à palavra pobres, tem uma dupla
proeminentemente no Velho Testamen­ conotação. A fome, por si mesma, pode
to. Deve-se prover às suas necessidades ser uma experiência terrível, trágica.
(Lev. 19:10); Deus ouve os seus clamores Enquanto estas linhas estão sendo escri­
(Sal. 34:6); os ricos são condenados por tas, consciências sensíveis, por toda
explorarem os pobres (Am. 5:11). A parte, estão profundamente preocupadas
demanda de justiça social e econômica é com quadros terríveis de criancinhas
escrita com letras garrafais na Lei e nos inchadas, morrendo de inanição, em
Profetas. Ser pobre também passou a ter uma região sitiada da Ãfrica. Não há
uma conotação religiosa. Os “pobres nada de bendito ou de cristão nisso. A
piedosos” eram os que colocavam a sua ênfase nessa beatitude é no tempo pre­
fé em Deus somente, em vez de na segu­ sente. Os benditos são descritos como os
rança oferecida pelas possessões mun­ que agora tendes fome. Ou seja, eles não
danas. têm satisfação nas fontes oferecidas pelo
No verso 20, vós, pobres, descreve os mundo. Talvez também tenham fome
discípulos. Mateus qualifica os pobres fisicamente. Muitos cristãos primitivos
comaexpressão “de espírito” . Estaéum a sofreram privações econômicas, por
interpretação iluminadora. A pobreza causa da separação entre eles e o mundo,
propriamente dita não é uma fonte de causada por sua dedicação a uma pere­
felicidade. Pelo contrário, pode ser debi­ grinação, cujo alvo estava além das satis­
litante, degradante e escravizadora. Po­ fações mesquinhas e superficiais do pre­
rém uma mudança de valores de nível sente. A sua fome é a única que certa­
mais baixo para mais alto é libertadora e mente será satisfeita, visto que só Deus
enobrecedora. Alguns discípulos haviam pode satisfazer os anseios e necessidades
reconhecido a profundidade de sua po­ da humanidade.
breza (até em meio à abundância mate­ Paradoxalmente, os homens que se
rial) e haviam começado a depender voltaram para Deus e confiantemente
apenas de Deus. Haviam trocado uma enfrentam o futuro que ele lhes propicia,
falsa segurança por uma genuína certe­ agora choram. Choram por causa dos
za, visto que o seu futuro então pertencia seus pecados e suas tristezas. (Eles cho­
a Deus. ram também porque são sensíveis às
Jesus declara que tais pessoas, as que injustiças e desacertos que observam no
dependem inteiramente de Deus, pos­ seu mundo. Choram por causa do ra­
suem o seu reino. Reino significa pri­ cismo, da exploração dos pobres, a trá­
meiramente o governo de Deus. Não gica escravidão de pessoas dominadas
por drogas e álcool, e das dores e sofri­ perseguição, é que desta forma o discí­
mentos dos homens. Eles haverão de rir, pulo se torna parte de um grande exér­
porque o direito de Deus prevalecerá. cito de homens heróicos, os profetas,
Amor, perdão, reconciliação e cura são que experimentaram o mesmo tipo de
as forças que determinarão a forma final tratamento. Mas os cristãos primitivos
das coisas. Deus assim o quis, e assim preferiam se identificar com o próprio
deverá acontecer. Esta é a espécie de Jesus, em seus sofrimentos (cf. Fil. 3:10).
convicção que sublinha as beatitudes, e
4) Os ais (6:24-26)
torna possível a certeza profética com
24 M a s a i d e vós q u e so is ric o s! p o rq u e j á
que elas são pronunciadas. re c e b e s te s a v o ss a co n so lação .
O tipo de perseguição descrito no verso 25 Ai d e vós, o s q u e a g o ra e s ta is fa rto s!
22 é exclusão da comunidade religiosa ju ­ p o rq u e te r e is fo m e.
daica — a sinagoga. Aqueles que são Ai d e v ó s, os q u e a g o r a rid e s 1 p o rq u e vos
perseguidos por causa do Filho do ho­ la m e n ta r e is e c h o ra re is .
26 Ai de vós, q u a n d o to d o s os h o m e n s vos
mem são também declarados bem- lo u v a re m ! p o rq u e a s s im fa z ia m os se u s p a is
aventurados. O Filho do homem pode ter a o s fa lso s p ro fe ta s .
o sentido de uma personalidade coletiva Esta série de ais, encontrados apenas
ou corporativa. Esta idéia é apresentada em Lucas, é uma condenação profética
em Daniel, onde o Filho do homem da perspectiva limitada de pessoas, que
parece representar os “santos do Altís­ são controladas meramente por valores
simo” (cf. Dan. 7:14 e 18). Desta forma, seculares. Jesus declara que os miserá­
Filho do homem pode referir-se a uma veis, desafortunados, são os que são
pessoa, ou seja, Jesus, ou pode também ricos, que estão fartos agora, e que agora
incluir a comunidade que é constituída e riem.
estabelecida por ele. Sofrer por causa do A chave para a compreensão dos ais
Filho do homem, neste caso, significa está na ênfase no tempo presente. Os
sofrer como discípulo, como pessoa que é ricos não são condenados porque pos­
identificada com Jesus como membro do suem riqueza — responsabilidade tre­
novo Israel, a Igreja. Ao invés de produ­ menda, mas não pecado em si. É na sua
zir consternação e perplexidade, a per­ atitude para com a riqueza que está o
seguição deve ser ocasião de júbilo. problema. Eles pensam que são ricos,
Exultai é tradução da mesma palavra isto é, não reconhecem a sua verdadeira
que ocorre em 1:44. No meio de sofri­ pobreza e profunda necessidade. Aqueles
mento, os discípulos podem experimentar que estão fartos agora são os que fruem a
o antegozo de um grande galardão. Essa sua satisfação das coisas presentes e tem­
recompensa não deve ser considerada em porais. Não têm fome daquilo que Deus
sentido crasso, materialista (veja 6:35). provê. Os que riem agora são as pessoas
Seja o que for que os homens recebam de que gozam com as coisas próximas, tan­
Deus, isso vem pela graça. Portanto, não gíveis, temporais, efêmeras. Não se inte­
é uma questão de acertar as contas, isto ressam nem são tocadas pela dor e pela
é, de pagar ao homem algo que ele tristeza dos outros seres humanos.
ganhou. Além do mais, uma interpreta­ As pessoas a quem louvam são clas­
ção de galardão precisa estar em conso­ sificadas com os falsos profetas. São os
nância com o caráter de Deus, e com o sacerdotes do status quo, que não desa­
caráter de discípulo como discípulo. A fiam as injustiças e erros da sociedade em
dedicação ao discipulado é feita com nome do Deus de justiça e misericórdia.
base na auto-entrega e auto-esqueci-
mento, o que exclui qualquer abordagem 5) Amor aos Inimigos (6:27-31)
calculista, interesseira, do serviço a 27 M a s a vós q u e o uvis, dig o : A m ai a
Deus. A segunda causa para alegria, na v ossos in im ig o s, fa z e i b e m a o s q u e vos
o d eiam , 28 bendizei ao s que vos m a ld iz e m , e Deve tomar a iniciativa de maneira intei­
o ra i pelos que vos c a lu n ia m . 29 Ao que te ramente inesperada e incrível: deve ofe­
fe r ir n u m a fa c e , o ferece -lh e ta m b é m a
o u tr a ; e ao q u e te h o u v e r tira d o a c a p a , n ão recer também a outra. Se ele for roubado
lh e n e g u e s ta m b é m a tú n iç a . 30 D á a to d o o de sua capa (roupa exterior), precisa
que te p e d ir ; e, a o q u e to m a r o q u e é te u , n ão estar disposto a deixar o criminoso levar
lho re c la m e s . 31 A ssim com o q u e re is q u e os também a sua túnica (roupa interior).
h o m en s vos fa ç a m , do m e s m o m o d o lh e s
fazei vós ta m b é m . Estabelece-se o princípio de que a hosti­
lidade e violência devem ser enfrentadas
Como devem os necessitados e perse­ com boa vontade ativa, expressa em atos
guidos (v. 20-23) reagir para com os que que estejam em exato contraste com o
os oprimem e exploram? A resposta de que se podia esperar.
Jesus é: amai a vossos inimigos. A ordem O amor requer que sejamos generosos
é absoluta, sem nenhuma possibilidade e de mãos abertas. Isto é enfatizado pela
de excusas ou apoio para racionalizações surpreendente ilustração dada no verso
evasivas. Mas como é que o amor pode 30. Pode-se levantar a interrogação de se o
ser assim exigido? Indubitavelmente, amor algumas vezes não requer a recusa
não pode se interpretarmos o amor de pedidos, no interesse do bem-estar da
apenas como um sentimento ou como outra pessoa. Mas isto não está em ques­
uma emoção. Somos atraídos ou repe­ tão aqui, onde Jesus está descrevendo a
lidos por pessoas, por razões que perce­ generosidade ilimitada e irrestrita que
bemos apenas obscuramente, quando deve caracterizar os seus seguidores.
muito. Mas o amor é muito mais do que De uma forma ou de outra, a Regra
um sentimento. É uma forma de viver e Ãurea (v. 31) é encontrada na herança de
se relacionar com outros seres humanos. várias culturas. Não faltava também no
Podemos agir de forma criativa, útil e judaísmo, como por exemplo, em Tobias
redentora para com pessoas às quais não 4:15: “Acautela-te, não faças nunca a
nos sentimos atraídas — mesmo para outro o que não quererias que outro te
com aquelas que são hostis e vingativas. fizesse” (versão Matos Soares). Jesus o
Esta maneira de agir está sob o controle coloca em forma positiva, que está mais
de pessoas amadurecidas, que foram li­ de acordo com os ensinamentos ante­
bertadas pelo evangelho; e, por conse­ riores. Os seus discípulos não devem
guinte, ele pode ser exigido. apenas refrear-se de fazer o mal aos
As frases que se sucedem interpretam outros. Devem também ministrar com­
o que Jesus quis dizer, ao dar esta ordem.. preensão aos outros, a ajuda que todas as
É elucidativo que a ênfase é primordial­ pessoas necessitam desesperadamente
mente colocada nas ações: fazei bem, dos seus semelhantes.
bendizei, orai. A ação prescrita para o
discípulo é o oposto da ação hostil, exe­ 6) A Natureza do Genuíno Amor (6:32-
cutada contra ele. O discípulo de Jesus 36)
não tem o direito de replicar a injúrias 32 Se a m a r d e s a o s q u e vos a m a m , que
com a mesma moeda. As suas armas não m é rito h á n isso ? P o is ta m b é m os p e c a d o re s
são as palavras duras, o porrete, o fuzil. a m a m a o s q u e os a m a m . 33 E se fiz e rd e s
Ele é armado apenas com amor ativo, b e m a o s q u e v o s fa z e m b e m , q u e m é rito h á
n isso ? T a m b é m os p e c a d o re s fa z e m o m e s ­
boa vontade, amabilidade e perdão. m o. 34 E se e m p r e s ta rd e s à q u e le s de
Jesus apresenta algumas ilustrações con­ q u e m e s p e r a is re c e b e r , q u e m é r ito h á n is ­
cretas do que deseja dizer. Não há insul­ so ? T a m b é m o s p e c a d o re s e m p r e s ta m a o s
to mais direto ou provocante do que ser p e c a d o re s , p a r a re c e b e r e m o u tro ta n to .
35 A m ai, p o ré m , a v o sso s in im ig o s, faz e i
ferido na face. O que deve fazer o discí­ b e m e e m p r e s ta i, n u n c a d e s a n im a n d o ; e
pulo nesse caso? Deve apenas ficar ali e g ra n d e s e r á a v o s s a re c o m p e n s a , e s e re is
se submeter a essa indignidade? Não! filhos do A ltíssim o ; p o rq u e e le é b e n ig n o a té
p a r a co m os in g r a to s e m a u s . 36 S ede m is e ­ mesma forma acontece com os verda­
ric o rd io so s, co m o ta m b é m vo sso P a i é m i­
serico rd io so .
deiros filhos de Deus. O que os faz
diferentes é que o amor de Deus, espon­
Mérito é tradução da palavra grega tâneo, imerecido, transformador, flui
que significa graça, usada no Novo Tes­ através deles para os outros. Esta espécie
tamento com diferenças sutis, difíceis de de relacionamento com Deus, ao se dar
se expressar em traduções portuguesas. aos outros, é a mais preciosa de todas as
Graça é a bondade transbordante de recompensas, visto que é a genuína
Deus, derramada sobre pessoas não me­ expressão do verdadeiro objetivo da vida.
recedoras. Mas a graça de Deus também No paralelo de Mateus ao verso 36, a
traz à tona graça no indivíduo, de forma palavra é “perfeito” , em vez de miseri­
que a pessoa que a recebe torna-se ins­ cordiosos. Porém, ambas têm substan­
trumento para a expressão da mesma cialmente o mesmo significado neste
compaixão para com outrem. Jesus afir­ contexto. A tensão sob a qual o discípulo
ma que não precisamos possuir alguma vive é o caráter de Deus. O caráter de
graça especial ou generosidade de espírito Deus é descrito como misericordioso, o
para sermos capazes de reagir a pessoas que significa que ele está constantemente
que são amorosas e boas para conosco. exercendo, as suas misericórdias, isto é,
Da mesma forma, não é necessário um concretos atos de amor, para com as
espírito de sacrifício ou liberalidade para pessoas que não os merecem. O discípulo
investir em pessoas quando temos a cer­ deve executar as mesmas espécies de atos
teza de receber pelo menos outro tanto de que Deus executa para com o mesmo tipo
volta. Também os pecadores, isto é, de pessoas. O imperativo do evangelho
qualquer pessoa pode pagar favor com exige que nos tornemos, ao viver desta
favor. forma, o que Deus em graça já nos fez,
Mas amar pessoas hostis, críticas, e isto é, filhos.
amá-las muito mais do que elas merecem
ser amadas — isto é graça. Investir a vida 7) Advertência Contra Julgar (6:37,38)
e possessões em pessoas que não podem 37 N ão ju lg u e is, e n ã o se re is ju lg a d o s ;
ou não querem retribuir — isto também n ã o c o n d en e is, e n ã o s e r e is c o n d e n a d o s;
p e rd o a i, e s e r e is p erd o ad o s. 38 D ai, e ser-
é graça. É a expressão concreta, nas v o s-á d a d o ; b o a m e d id a , re c a lc a d a , s a c u ­
relações humanas, da presença e ativida­ d id a e tr a s b o rd a n d o vos d e ita rã o no r e g a ç o ;
de de Deus no seu povo. Esta' espécie de p o rq u e co m a m e s m a m e d id a c o m q u e m e ­
“amor não é motivada pela bondade ou dis, vos m e d irã o a vós.
beleza do outro. Ela procura produzir
bondade e beleza nos outros.” 17 Julgar significa basicamente exercer
Pessoas que agem desta forma têm a discriminação, mas aqui esta palavra
certeza de que “é grande o seu galardão” está baseada no pressuposto de que a
(v. 23, acima). Que espécie de recom­ pessoa tem a capacidade de discernir,
pensa deseja um homem que ama as separando pessoas boas de más. Conde­
pessoas que são difíceis de amar, e que nar tem a idéia um pouco além, pois
investe nelas sem esperança de recom­ significa julgar que a outra pessoa é cul­
pensa? A sua retribuição é essencial­ pada. O desejo das pessoas críticas e
mente o seu relacionamento com Deus e censuradoras é estabelecer não a inocên­
com o homem. Ele é um dos filhos do cia, mas a culpa. Elas querem descobrir
Altíssimo. Um verdadeiro filho ostenta o o que há de pior nas pessoas. Esta ati­
caráter e inculca o espírito de seu pai. Da tude de autojustiça e juízo é exatamente
o oposto do espírito generoso que Jesus
17 Stagg, Frank, Studies in Luke’s Gospel (Nashville: requer. O fato é que as nossas impressões
Convention, 1967), p. 58. a respeito dos outros são, necessaria-
mente, limitadas e superficiais, distor­ Com a mesma medida com que medis
cidas por nossos preconceitos e paixões. não é ameaça. Nem transforma Deus em
O julgamento não pode ser justo, a não uma espécie de guarda-livros celestial. É
ser que leve todos os fatos em conside­ uma simples declaração da maneira que
ração. Visto que tão-somente Deus está as coisas são.
na posse de toda a verdade, a respeito de 8) A Trave e o Argueiro (6:39-42)
qualquer um de nós, ele é a única pessoa
capaz de ser juiz. A pessoa que julga 39 E p ro p ô s-lh e s ta m b é m u m a p a rá b o la :
usurpa o lugar que pertence apenas a P o d e p o rv e n tu ra u m ceg o g u ia r o u tro ceg o ?
n ã o c a ir ã o a m b o s no b a rr a n c o ? 40 N ão é o
Deus. Ela é culpada da pior espécie de d iscíp u lo m a is do q u e o se u m e s tr e ; m a s
idolatria, porque nega as suas próprias todo o q u e fo r b e m in s tru íd o s e r á com o o seu
limitações como criatura, na sua tenta­ m e s tre . 41 P o r q u e v ê s o a rg u e iro no olho de
tiva de fazer de conta que ê Deus. te u ir m ã o , e n ã o r e p a r a s n a tr a v e q u e e s tá
no te u p ró p rio olho? 43 O u, co m o p o d es d iz e r
Quando os homens se assentam para a te u ir m ã o : Ir m ã o , d e ix a -m e t i r a r o a r ­
julgar os seus semelhantes, de fato eles g u eiro q u e e s t á no te u olho, n ã o v en d o tu
estão se excluindo da categoria de peca­ m e s m o a tr a v e q u e e s tá n o te u ? H ip ó c rita !
dores, e, desta forma, se eximem da mi­ ti r a p rim e iro a tr a v e do te u o lh o ; e e n tã o
v e rá s b e m p a r a t i r a r o a rg u e iro q u e e s t á no
sericórdia. Quando perdoam, abrem a olho d e te u irm ã o .
sua vida para a graça. A única maneira
pela qual uma pessoa pode ser aberta Os axiomas desta série não têm uma
para a graça de Deus é reconhecer que é relação óbvia uns com os outros. Os dois
pecadora. O corolário inescapável desta primeiros aparecem em Mateus, em
espécie de conhecimento próprio é a con­ outros contextos, e, provavelmente,
fissão de que, em seu pecado e necessi­ foram inseridos por Lucas neste sermão.
dade, ela está no mesmo nível do seu Em Mateus, os “guias cegos” são os
irmão. Ela e seu irmão estão igualmente fariseus (15:14). No primeiro Evangelho,
necessitados de perdão. Desta forma, o princípio encontrado em 40a é usado
vemos que é impossível estar aberto para para advertir, os discípulos, que não
Deus e fechado ao mesmo tempo para o podem esperar melhor tratamento do
nosso irmão. Jesus não ensina que o que o seu Mestre havia recebido (Mat.
perdão de Deus é uma reação mecânica, 10:24a).
subseqüente e dependente do ato huma­ Quem sabe, no contexto de Lucas,
no de perdão. Pelo contrário, a capaci­ esses axiomas estejam relacionados com
dade de receber perdão e a capacidade de o assunto geral de julgamento, apresen­
perdoar são dois lados da mesma moeda. tado na passagem precedente. Podem ser
Ambas estão alicerçadas no fato de que a considerados como dirigidos especial­
graça de Deus se estende para nós e para mente aos doze, que tinham responsa­
o nosso irmão ao mesmo tempo. bilidades peculiares, como líderes e mes­
Jesus nos assegura que não precisamos tres da comunidade primitiva (Grund-
ter medo de dar amor e compreensão. Se mann, p. 152). O mestre não é juiz dos
nos lançarmos na espécie de aventura a outros. Não obstante, ele funciona como
que ele nos chama, descobriremos que os uma espécie de crítico, devido à própria
recursos que tomam o lugar do que da­ natureza da causa. As pessoas que se
mos nunca se esgotam. Sempre recebe­ colocam debaixo de sua influência deter­
remos uma transbordante medida do minarão o seu curso de ação mediante a
amor e bondade de Deus, que repõem o orientação dele. Se o mestre quer ser útil
nosso suprimento em medida mais do aos outros, precisa conservar a sua pró­
que suficiente. Regaço se refere à dobra pria vida sob constante e rigoroso exame
da roupa que caía por cima do cinto, e introspectivo. O mestre que for cego para
que servia de bolso. com os seus próprios defeitos, dificil­
mente poderá ajudar os outros a verem os te so u ro do se u c o ra ç ã o t i r a o b e m ; e o
seus. De fato, não se pode esperar que o h o m e m m a u , do se u m a u te s o u ro ti r a o m a l ;
p ois do q u e h á e m a b u n d â n c ia n o c o ra ç ã o ,
discípulo se levante acima do nível do seu d isso f a la a b o a .
mestre. Por outro lado, o discípulo bem
instruído, isto é, sobre quem o mestre A qualidade dos atos exteriores de um
exerceu o máximo de influência, será homem é determinada pela sua natureza
como o seu mestre. Mestres cegos pro­ interior. Isto é ilustrado pela analogia
duzirão discípulos cegos. das duas espécies de árvores. M á signi­
Os discípulos não devem julgar, mas fica tanto podre como infrutífera ou inú­
não podem também ser indiferentes para til, mas aqui o que é indicado é a última
com as necessidades morais dos seus acepção. Figos e uvas são exemplos de
irmãos. Isto é tão mau, a seu modo, bom fruto. Espinheiros e abrolhos são
como julgar os outros. Jesus ensina que tipos de plantas inúteis. A árvore é geral­
somos responsáveis pelo bem-estar moral mente julgada pelo seu produto; mas,
e espiritual dos outros (cf. Gál. 6:1 e ss.). por outro lado, a qualidade da árvore
O irmão sempre tem um argueiro no seu determina a qualidade do produto. Há
olho, e precisa de ajuda para tirá-lo. uma espécie de relação básica entre o
Qualquer pessoa que já precisou pedir a caráter e as obras de um homem.
alguém para ajudá-lo a tirar uma partí­ Os atos que são bons e amorosos pro­
cula estranha do olho pode apreciar a cedem de um coração generoso e com­
conveniência desta figura. Porém não passivo. O coração é o centro do homem,
podemos ajudar os outros a resolver os como ser inteligente, volitivo, emocional.
seus problemas, se assumirmos uma Se um homem não está certo no centro
posição de superioridade moral. O peca­ do seu ser, os seus atos são contaminados
do de nosso irmão, em comparação com desde a fonte. Até as chamadas boas
o nosso, precisa ser sempre considerado ações podem ser más, se realizadas com
na proporção de um argueiro, isto é, de motivos errados. O hipócrita proverbial é
um cisco, para com uma trave, que é a o homem muito religioso que faz longas
viga que sustenta o madeiramento de orações e contribui para causas dignas,
uma casa. As pessoas geralmente inver­ mas tudo com motivos errados.
tem a equação, de forma que o pecado do Claro que bem ou mal podem ser
irmão toma-se a trave, enquanto o delas apenas avaliações relativas, quando apli­
mesmas é o argueiro. Isto leva a pessoa a cadas a seres humanos. O bem e o mal
abrir-se para a acusação de ser hipócrita. estão misturados no mesmo indivíduo.
A palavra grega para designar um ator No entanto, atos e palavras genuina­
era hipócrita, e dela vem o significado de mente bons procedem de uma bondade
alguém que pretenda ser algo que não é. íntima que seja genuína.
A pessoa que ostenta justiça própria é
10) Confissão e Atos (6:46-49)
hipócrita, porque não percebe a sua
necessidade de graça. Enquanto ela for 46 E p o r q u e m e c h a m a is : S en h o r, S e­
tão insensível às suas próprias necessida­ n h o r, e n ã o fa z e is o q u e e u vos d igo? 47 Todo
des, não poderá ajudar os outros a car­ a q u e le q u e v e m a m im , e o u v e a s m in h a s
regar os seus fardos morais. p a la v r a s , e a s p r a tic a , e u vos m o s tr a r e i a
q u em é s e m e lh a n te : 48 É s e m e lh a n te ao
9) A Manifestação do Caráter (6:43-45) h o m e m q u e , e d ific a n d o u m a c a s a , cav o u ,
a b riu p ro fu n d a v a la , e p ô s os a lic e rc e s so b re
43 F o rq u e n ã o h á á r v o r e b o a q u e d ê m a u a r o c h a ; e , v in d o a e n c h e n te , b a te u co m
fru to , n e m ta m p o u c o á r v o r e m á q u e d ê b o m ím p e to a to r re n te n a q u e la c a s a , e n ã o a p ô d e
fru to . 44 P o rq u e c a d a á r v o r e se co n h ec e p e lo a b a la r , p o rq u e tin h a sid o b e m e d ific a d a . 49
seu p ró p rio fr u to ; p o is d o s e sp in h e iro s n ã o M a s o q u e o u v e e n ã o p r a t ic a é s e m e lh a n te a
se c o lh e m figos, n e m dos a b ro lh o s se v in ­ u m h o m e m q u e e d ific o u u m a c a s a so b re
d im a m u v a s. 45 O h o m em b o m , do b o m te r r a , s e m a lic e rc e s , n a q u a l b a te u co m
ím p e to a to r re n te , e logo c a iu ; e foi g ra n d e a mento e expressão da cristologia da co­
r u ín a d a q u e la c a s a .
munidade cristã, em contraposição ao
Dois processos diferentes de edificação mundo helénico. Um conceito subli-
sublinham as passagens paralelas em nhador e unificador de todos os seus
Mateus e Lucas (cf. Mat. 7:24-27). Em diferentes usos é a ênfase na autoridade,
Mateus, os dois homens indicam a sua que é primordial, nesta passagem.
sabedoria ou falta dela pela forma de 0 que significa aceitar a autoridade de
escolher o tipo de solo em que edificaram Jesus? Significa muito mais do que ape­
a sua casa. Em Lucas, o sábio construtor nas usar palavras, não importa o quanto
dá-se ao trabalho de cavar até o leito elas sejam sagradas. Os contornos de
rochoso, a fim de encontrar alicerces uma vida devem ser determinados pelas
firmes para a sua casa, enquanto o outro suas exigências. Uma pessoa testifica do
deixa de tomar esta precaução. Em senhorio de Jesus, em sua vida, ouvindo e
Mateus, as casas são açoitadas pelas pondo em prática as suas palavras, das
forças de uma tempestade, isto é, vento, quais, algumas das mais difíceis estão
chuva e inundação. O homem que per­ contidas no sermão que termina com esta
deu a sua casa cometera o erro de edificá- advertência.
la em um leito de rio seco, que com a
5. A Natureza da Missão de Jesus (7:1-
tempestade de verão se tomou uma tor­
50)
rente tumultuosa. Em Lucas, ambas as 1) Os Poderosos Atos do Messias (7:1-
casas são atingidas pela rápida inunda­
17)
ção de um rio transbordante. Esta não é
a. O Servo do Centurião (7:1-10)
uma ocorrência incomum em países
áridos, em que a chuva pode de repente 1 Q u ando a c a b o u d e p r o f e r ir to d a s e s ta s
encher os leitos dos rios que, havia muito p a la v r a s a o s o u v id o s do povo, e n tro u e m
C a fa rn a u m . 2 E u m s e rv o d e c e rto c e n tu ­
tempo, estavam secos, como no caso dos riã o , d e q u e m e r a m u ito e s tim a d o , e s ta v a
rios temporários da Palestina. d o e n te , q u a s e á m o r te . 3 O c e n tu riã o , p o is,
O problema com que a parábola lida é ou vindo f a l a r d e J e s u s , en v io u -lh e u n s a n ­
perene, a saber, a discrepância entre c iã o s d o s ju d e u s , a p e d ir-lh e q u e v ie sse
confissão e prática, da parte dos mem­ c u r a r o se u se rv o . 4 E , c h e g a n d o e le s ju n to
d e J e s u s , ro g a v a m -lh e c o m in s tâ n c ia , d i­
bros da comunidade cristã. Jesus ensina z en d o ; É d ig n o d e q u e lh e c o n c e d a s is to ; 5
que protestos verbais de lealdade não são p o rq u e a m a à n o s s a n a ç ã o , e ele m e s m o nos
alicerce firme com que enfrentar a inun­ ed ifico u a sin a g o g a . 6 I a p o is, J e s u s co m
dação do juízo iminente de Deus. e le s ; m a s , q u a n d o j á e s ta v a p e rto d a c a s a ,
e n v io u o c e n tu riã o u n s a m ig o s a d iz e r-lh e :
Senhor tinha uma variedade de signi­ S en h o r, n ã o te in c o m o d e s; p o rq u e n ã o so u
ficados nos tempos neotestamentários. dig n o d e q u e e n tr e s d e b a ix o d o m e u te lh a d o
Iam desde um título de respeito, equiva­ 7 p o r isso n e m a in d a m e ju lg u e i d ig n o d e i r à
lente ao “senhor” que usamos todos os tu a p re s e n ç a ; d ize, p o ré m , u m a p a la v r a , e
dias, até a tradução de Yahweh, na LXX, s e ja o m e u se rv o c u ra d o . 8 p o is ta m b é m e u
sou h o m e m su je ito à a u to r id a d e , e ten h o
que era o nome sagrado de Deus. Os so ld ad o s à s m in h a s o r d e n s ; e d ig o a e s te :
governantes eram chamados senhores, V ai, e e le v a i; e a o u tro : V em , e e le v e m ; e
bem como as divindades do mundo ori­ ao m e u s e r v o : F a z e is to , e e le o fa z . 9 J e s u s ,
ental. No Oriente, dava-se o título de o u vindo isso , a d m iro u -s e d e le e , v o ltan d o -se
p a r a a m u ltid ã o q u e o s e g u ia , d is s e : E u vos
senhor ao rei ou imperador deificado, e, a firm o q u e n e m m e s m o e m I s r a e l e n c o n tre i
nesse caso, o sentido era religioso. Isto ta m a n h a fé. 10 E , v o lta n d o p a r a c a s a os q u e
produzia graves problemas para os pri­ h a v ia m sid o e n v ia d o s, e n c o n tr a r a m o se rv o
meiros cristãos, para quem somente co m s a ú d e .
podia haver um “ Senhor, Jesus Cristo” Mateus também apresenta a história
(I Cor. 8:6). Esse título assumiu várias da cura do servo do centurião depois do
nuanças de significado, no desenvolvi­ Sermão da Montanha (8:5 e ss.), porém
separada deste pela cura de um leproso. semelhança entre este centurião e o de
Em Lucas, o centurião entra em contato Atos 10. O centurião de Cafamaum pro­
com Jesus apenas através de intermediá­ vavelmente podia também ser descrito
rios, enquanto em Mateus o contato como “ temente a Deus” , um dentre um
entre os dois é direto. grande número de gentios que eram
A cura do escravo do centurião teve atraídos ao judaísmo pelo seu monoteís­
grande significado como justificativa mo e elevados padrões éticos, mas que
para a missão mais ampla aos gentios, ainda não haviam dado os passos neces­
que se desenvolveu logo depois do tér­ sários para se tornarem prosélitos. A
mino do ministério de Jesus. O simbolis­ sua apreciação do judaísmo fora expressa
mo da narrativa, freqüentemente men­ pelo generoso gesto de custear a cons­
cionado, é visível. Jesus cura à distância, trução da sinagoga local.
com uma palavra, da mesma forma que A hesitação do centurião em entrar em
cura também outra gentia, a filha da contato direto com Jesus se originava do
mulher siro-fenícia (Mar. 7:24 e ss.). Isto fato de que ele era gentio. Mas não há
retrata a situação dos gentios na poste­ hesitação nenhuma da parte de Jesus em
rior missão gentílica, que tiveram conta­ dirigir-se a ele (cf. Mat. 8:7). A viagem é
to com Jesus através de sua palavra de interrompida pela segunda delegação,
poder, mas não através de sua presença composta de amigos. Ê visível que o cen­
física. turião tinha duas grandes características:
Um centurião era, tecnicamente, o humildade e fé. Embora a delegação
comandante de uma “centúria” , ou seja, judaica o houvesse descrito como digno,
cem soldados de infantaria de uma legião ele mesmo protesta que não é digno de
romana. O tamanho de sua tropa, no falar com Jesus ou de recebê-lo em sua
entanto, variava de acordo com o tama­ casa. De qualquer forma, ele estava con­
nho da legião. Visto que a Galiléia não vencido de que isto não era necessário.
estava sob o governo direto de Roma, o Jesus não precisava estar presente; ele
centurião era oficial a serviço de Herodes podia curar com a sua palavra. Tal era a
Antipas. Uma das principais funções confiança que ele tinha na autoridade de
das tropas estacionadas em Cafamaum, Jesus sobre os poderes que afligem o
cidade limítrofe, era propiciar apoio homem. E ele sabia o que é autoridade, a
armado aos coletores de impostos, que partir de duas perspectivas. Os seus
cobravam os impostos aduaneiros das superiores precisavam apenas falar, e ele
mercadorias que entravam e saíam da executava as ordens deles. Por outro
região (veja 3:12-14). Embora não seja lado, a sua palavra era suficiente para
declarado que o centurião era gentio, isto assegurar a obediência daqueles que
está implícito em vários pontos da his­ estavam sob seu comando. Da mesma
tória. forma, a simples palavra de ordem de
A gravidade da doença é exposta Jesus seria suficiente para obter a obe­
caracteristicamente, bem como o valor diência dos poderes que lhe estão su­
do enfermo. Estimado podia referir-se ao jeitos.
valor econômico do escravo, mas aqui Esta história é o veículo para apresen­
indubitavelmente esta palavra descreve a tar as palavras de Jesus, no verso 9, que
grande afeição e estima que seu senhor são o seu elemento central e mais impor­
lhe tinha. Julgando-se indigno de apro­ tante. Um gentio pode ter fé — e não
ximar-se de Jesus pessoalmente, o oficial apenas isto: ele pode ter fé como nem
gentio do exército envia um a delegação mesmo em Israel Jesus encontrara. Só
de anciãos judeus. Esse título significa, esse homem havia percebido a verdadeira
provavelmente, apenas que eles eram natureza da autoridade de Jesus. Lucas
cidadãos importantes. Há uma notável termina a história com uma nota carac­
terística a respeito da eficiência do mila­ e escravos não era aceito nos processos^
gre. Ao voltar, os mensageiros encontra­ »judiciais (Sifre Deut. sobre 19:17). Desta
ram o escravo com saúde. forma, uma mulher sem homem para
b. O FUho da Viúva (7:11-17) representá-la, estava particularmente
indefesa. Os Evangelhos testificam que
11 P o u c o d ep o is se g u iu e le v ia g e m p a r a
u m a c id a d e c h a m a d a N a im ; e ia m c o m e le Jesus tinha compaixão de pessoas como
se u s d iscíp u lo s e u m a g ra n d e m u ltid ã o .
12 Q uando ch eg o u p e rto d a p o r ta d a c id a d e , Jesus é chamado de Senhor, título
e is qu e le v a v a m p a r a f o r a u m d efu n to , filho especialmente significativo para oJCristo
ú nico d e s u a m ã e , q u e e r a v iú v a ; e co m e la
ia u m a g ra n d e m u ltid ã o d a c id a d e . 13 L ogo
exaltado na comunidade cristã gentílica.
q u e o S e n h o r a v iu , e n c h eu -se d e c o m p aix ão A jjm g ^ M ti^ M jn fisg l^ d e Jlc ristã era
p o r e la , e d is se -lh e ; N ão c h o re s . 14 E n tã o , “Jesus éIjenhor” Este títulcTerespecial-
ch eg an d o -se, to co u no e sq u ife , e , q u an d o menfe significativo em uma narrativa
p a r a r a m os q u e o le v a v a m , d is s e : M oço, a ti que descreve o poder do Senhor sobre a
te d ig o ; L e v a n ta -te . 15 O q u e e s tiv e r a m o rto
se n to u -se e c o m eç o u a f a la r . E n tã o J e s u s o m orte,oúltim o inimigo.
e n tre g o u à s u a m ã e . 16 O m e d o se a p o d e ro u ^ lefocou no esquife, a despeito do fato
d e to d o s, e g lo rific a v a m a D eu s, d izen d o : de que contato com os mortos era evita-
U m g ra n d e p r o f e ta se le v a n to u e n tr e 'n ó s ; do, porque fazia com que a pessoa se
e : D eu s v isito u o se u povo. 17 E c o rre u a
n o tíc ia d isto p o r to d a a J u d é ia e p o r to d a a
tornasse imunda (Núm. 19:11). A este
re g iã o circ u n v iz in h a . sinal os que carregavam o caixão param,
.e Jesus ordena ao jovem que volte à vida.
Naim, moderna aldeia de Nein, era No contexto levanta-te significa levantar-
próxima de Sunem, onde Eliseu havia res­ se ou voltar dentre os mortos.. A ordem é
suscitado um menino dentre os „mortos. prêfaciada pela expressão direta, auto­
(II Reis 4:21-37). Podia-se chegar ali ritária, A ti te digo (cf. 5:24). Mediante
viajando de Cafarnaum para sudoeste, tão somente a palavra de Jesus, o moço é
cerca de nove horas a pé. Dentre os trazido de vòlta à vida. A maneira como
Evangelhos Sinópticos, só Lucas men­ esse ato poderoso é completo demonstra-
■-* — * .......... - — ■
ciona esta cidade, pois ela pertence ao se pelo fato de que o rapaz começou a
material especial de Lucas. falar. E ele o entregou a sua mãe é
O povo que acompanhou Jesus é divi­ idêntico à frase da Septuaginta em I Reis
dido em dois grupos: os discípulos e a 17:23, evidência da íntima relação com
multidão, distinção característica depois o milagre semelhante, realizado por
dos acontecimentos de 6:12-19. Antes de Elias.
chegar aos portões da cidade de Naim, Esse feito de Jesus fez os circunstantes
eles encontram um enterro a caminho do se lembrarem dos poderosos atos realiza­
cemitério que ficava fora da cidade. dos pelos grandes prõietas Èlias e Eliseu
Acompanhar um féretra a o sepultamento (TReITíT:T7-24;II Reis4:21-37)7Se levan­
era considerado obra meritória entre os tou é o mesmo verbo que Jesus havia usa­
judeus. A sina trágica da mãe desespe: do no vers(PT? e põssivelmente tem o
rada é clara para todos os que têm mesmo significado (cf. 9:19). Talvez eles
conhecimento dos costumes da sociedade pensassem que Deus havia levantado
antiga. Ela é uma viúva que agora per­ Elias, ou Eliseu, dentre os mortos. A
deu o seu filho único. Visto que Jesus se crença de que um grande profeta se havia
dirige ao filho como moço (v. 14), pode­ levantado indica a convicção de que a ei;a.
mos presumir que a mulher fora deixada messiânica estava às portas^ O- verbo
ao abandono em idade relativamente “visitar” é usado para falar àa inter-
jovem. Elã vivera em um mundo dos vençao de Deus na história do seu povo,
/homens, em que a mulher não tinha di­ mediante atos de juízo e salvação. Aqui
reitos legais. O testemunho de mulheres ele é usado, como também no texto grego
de 1:68,78, com referência à inauguração truir a palha inútil (3:17), mas nenhuma
da era messiânica (cf. 19:44). O relato se dessas duas coisas acontecera. Herodes
encerra com uma nota a respeito da dis­ ainda estava governando, ao passo que o
seminação abundante do relato acerca do profeta estava na prisão.
milagre operado por Jesus, preparando o Aquele que havia de vir é tradução de
palco para o episódio seguinte. um particípio: “o vindouro” . Esse era,
2) A Pergunta de João (7:18-23) provavelmente, um título messiânico
(veja 3:16). Ele pode ter afinidades com
18 O ra , os d isc íp u lo s d e J o ã o a n u n c ia ra m - o conceito de um Filho do homem glo­
lh e to d a s e s ta s c o is a s. 19 E J o ã o , c h a m a n d o
a d o is d e le s , enviou-os a o S e n h o r p a r a p e r ­
rioso que devia vir sobre as nuvens (Dan.
g u n ta r-lh e : É s tu a q u e le q u e h a v ia d e v ir, ou 7:13).
h a v e m o s d e e s p e r a r o u tro ? 20 Q u an d o a q u e ­ A resposta de Jesus, à interrogação, é
le s h o m e n s c h e g a r a m ju n to d e le , d is s e ra m : dada na forma de atos que representam o
Jo ã o , o B a tis ta , enviou-nos a p e r g u n ta r - te : cumprimento do seu programa messiâ­
É s tu a q u e le q u e h a v ia d e v ir, ou h a v e m o s de
e s p e r a r o u tro ? 21 N a q u e la m e s m a h o ra , nico. Ele pede aos dois homens simples­
c u ro u a m u ito s d e d o e n ç a s, d e m o lé s tia s e mente para relatarem o que tinham visto,
d e e sp írito s m a lig n o s ; e d e u v is ta a m u ito s do que João podia tirar as suas próprias
ceg o s. 22 E n tã o lh e s re s p o n d e u : Id e , e conclusões. A lista de milagres feitos por
c o n ta i a J o ã o o q u e te n d e s v isto e o u v id o : os
cegos v ê e m , o s co x o s a n d a m , o s lep ro so s
Jesus começa com a outorga de vista aos
sã o p u rific a d o s, e os s u rd o s o u v e m ; os m o r ­ cegos e termina com a pregação do evan­
to s sã o re s s u s c ita d o s , e a o s p o b re s é a n u n ­ gelho aos pobres. Esses dois foram men­
c ia d o o ev a n g e lh o . 23 E b e m -a v e n tu ra d o cionados no programa esboçado em 4:18,
a q u e le q u e n ã o se e s c a n d a liz a r d e m im . 19. Os outros não são mencionados
naquela passagem, mas testificam todos
Todas estas coisas são o rumor que a respeito da chegada da soberania de
circulava acerca das obras poderosas de Deus.
Jesus, incluindo-se a cura do escravo do Escandalizar-se significa tropeçar ou
centurião e a ressurreição do filho da cair sobre algo. Daí se origina o uso,
viúva. Tendo já mencionado que João freqüentemente encontrado em o Novo
estava na prisão, Lucas não repete esse Testamento, de fazer tropeçar moral­
detalhe aqui (cf. Mat. 11:2). De Josefo, mente ou fazer cair em pecado. Os ho­
aprendemos que ele havia sido encar­ mens que eram dominados por noções
cerado por Herodes em Maqueros, forta­ preconcebidas do que o Messias devia
leza que ficava a leste do M ar Morto. fazer achavam ofensivas as palavras e
João envia dois discípulos para trans­ atos de Jesus. Em grande parte, ele foi
mitir a sua pergunta a Jesus, número rejeitado porque era um a surpresa. Ele
mínimo de testemunhas necessárias para não se enquadrava no molde que os
estabelecer um fato em processo judicial. homens haviam preparado para ele, que
Eles deviam levar de volta relatos de fatos incluía em grande parte, os seus desejos
de que fossem testemunhas oculares, em de vingança e glória. Eles queriam um
contraposição às notícias de segunda Messias que destruísse os inimigos deles
mão que João havia recebido. e acabasse com a sua humilhação nacio­
Lucas não dá a entender necessaria­ nal. Eles sustentavam as suas expecta­
mente que a pergunta de João fora moti­ tivas com as Escrituras. Mas até com as
vada por falta de fé. No entanto, o episó­ Escrituras o homem não pode predizer a
dio todo focaliza a tensão entre o que João vontade de Deus; se assim fosse, com a
esperava e o curso atual do ministério de Escritura o homem se tornaria Deus.
Jesus. João havia proclamado que o Mes­ Esta é uma perene idolatria, que con­
sias iniciariá o juízo escatológico. Ele iria tinua a reaparecer em círculos piedosos.
cortar as árvores infrutíferas (3:9) e des­ A pessoa bem-aventurada é a que é sen­
sível ao que Deus está fazendo, e que é que, nos tempos primitivos, eram os
capaz de reagir sem as desvantagens de paços reais. Em contraste, o deserto é o
noções preconcebidas. Desta forma, ambiente característico do profeta, que
Moffatt traduz esta frase: “E bendito é fugia da influência debilitante e ener­
aquele que não é repelido por nada em vante dos círculos de prazer da sociedade
mim” (v. 23). daquela época, e que não estava interes­
3) Avaliação de João Feita por Jesus sado em refeições suntuosas e roupas
(7:24-30) lindíssimas. Ir ao deserto esperando en­
contrar um homem fraco, vacilante, teria
24 E , ten d o -se re tir a d o os m e n s a g e iro s d e
Jo ã o , J e s u s c o m eç o u a d iz e r à s m u ltid õ e s
sido tão insensato quanto ir lá procuran­
a re s p e ito d e J o ã o : Q ue s a ís te s a v e r n o do caniços ou sicofantas da corte. O povo
d e s e rto ? u m c a n iç o a g ita d o p elo v e n to ? 25 havia ido aos domínios de um profeta,
M as q u e s a ís te s a v e r? u m h o m e m tr a ja d o procurando um homem que se enqua­
d e v e s te s lu x u o s a s? E is q u e a q u e le s q u e drasse neles. E essa era a qualidade de
tr a j a m ro u p a s p re c io s a s , e v iv e m e m d e lí­
c ia s , e s tã o nos p a ç o s re a is . 20 M a s q u e homem que havia encontrado.
s a ís te s a v e r? u m p ro fe ta ? S im , v o s digo, e Porém Jesus vai mais além: João era
m u ito m a is do qu e p ro fe ta . 27 E s te é a q u e le mais do que profeta. Ele era o arauto do
d e q u e m e s tá e s c r ito : Messias, o cumprimento de Malaquias
E is a í envio ã n te a tu a fa c e o m e u m e n ­
sa g e iro ,
3:1. João se situa na fronteira entre dois
q ue h á d e p r e p a r a r a d ia n te d e ti o te u períodos e, por conseguinte, desempenha
cam in h o . um papel exclusivo na história da salva­
2% P o is e u vos digo qu e, e n tr e os n a sc id o s d e ção. Jesus afirma que jamais viveu ser
m u lh e r, n ã o h á n e n h u m m a io r do q u e J o ã o ;
m a s a q u e le q u e é o m e n o r n o re in o d e D e u s é
humano maior do que João. E, no en­
m a io r do q u e e le . 29 E to d o o povo q u e o tanto, paradoxalmente, o menor no reino
ouviu, e a té os p u b lic a n o s, re c o n h e c e ra m a de Deus é maior do que ele. A questão
ju s tiç a d e D eu s, re c e b e n d o o b a tis m o de não é, de forma alguma, de valor pessoal
Jo ã o . 30 M a s o s fa r is e u s e os d o u to re s d a le i inerente. Jesus já decidira isso. Pelo con­
r e j e it a r a m o co n selh o d e D eu s q u a n to a si
m e s m o s, n ão se n d o b a tiz a d o s p o r e le . trário, é a da importância relativa das
duas épocas. João pertencia ao período
Qual foi a avaliação que Jesus fez de dos profetas, fase essencial, mas prepa­
João? Essa pergunta é respondida agora. ratória da redenção. Mas ela não deve ser
Acontecimentos recentes podiam ter afe­ comparada com o tempo da salvação,
tado a atitude popular com relação a inaugurado por Jesus, do qual o menor
João. As multidões são notoriamente dos discípulos participa.
inconstantes. Possivelmente, o povo Os versículos 29 e 30 podem ser colo­
havia começado a descartar-se, em suas cados entre parênteses, de forma a indi­
mentes, do homem irremissivelmente car que representam um comentário edi­
confinado na prisão da fortaleza de torial, e não palavras de Jesus. Plummer
Herodes. Afinal de contas, o destino que (p. 205 e ss.) assume o ponto de vista
lhe coubera parecia contradizer a men­ oposto, dizendo que eles fazem parte das
sagem que ele pregara. palavras de Jesus.
Nem caniço nem homens vestidos de Na mensagem de Jesus, Israel se de­
vestes luxuosas seriam encontrados nas frontara com a demanda de arrependi­
regiões semi-áridas do deserto. Os cani­ mento, feita por Deus, à qual tinha
ços eram plantas aquáticas, que serviam havido duas reações contrastantes. Me­
de símbolo de fraqueza (I Reis 14:15; Ez. diante a submissão ao batismo, que era
29:6), como se dá a entender pela expres­ sinal de arrependimento, o povo (cf.
são agitado pelo vento. Os filhos mima­ 3:21) e os publicanos (cf. 3:12) haviam
dos da riqueza devem ser encontrados reconhecido a justiça de Deus. Haviam
nos centros do poder, riqueza e alegria, reconhecido que Deus era justo, em seu
juízo contra os seus pecados, e em suas aproveitam da deixa apresentada pelo
reivindicações sobre as suas vidas. Os cântico fúnebre, e não fazem papel de
líderes religiosos, fariseus e doutores da carpideiras.
lei, haviam-se recusado a arrepender-se. O povo agira da mesma forma arbitrá­
Em sua insistência obstinada, a respeito ria e peremptória em relação a João e
de sua própria justiça, eles haviam-se Jesus. João era um asceta, um homem
recusado a reconhecer as reivindicações estranho, que não comia o que os outros
justas de Deus. O reconhecimento de comiam. Ele havia-se isolado dos centros
pecado é uma confissão da justiça de da sociedade, e havia-se sustentado com
Deus. Por outro lado, a cegueira ao seu uma dieta típica do deserto. Não havia
próprio pecado é rejeição da justiça de alegria ou leveza a respeito daquele pro­
Deus. feta de julgamento. O povo queria que
Desta forma, nos defrontamos com João fosse sociável e prazenteiro, isto é,
uma situação paradoxal: os “experts” que brincasse de “casamento” , mas ele
em religião foram exatamente as pessoas não quis fazer parte de seu brinquedo.
que se colocaram sob o juízo de Deus. Tem demônio é expressão idiomática,
Doutores da lei (nomikoi) é palavra que significava: “é louco” , maneira
usada freqüentemente em Lucas, mas antiga de colocar de lado uma pessoa que
raramente em outras partes do Novo não se ajustasse ao molde comum.
Testamento. É sinônimo de escribas, os Jesus, por outro lado, passava a maior
mestres da lei judaica. parte do seu tempo nas cidades, em
contato com o povo. Era conviva de casa­
4) As Crianças Brincando (7:31-35)
mentos, banquetes e outras atividades
31 A q u e, p o is, c o m p a r a re i os h o m e n s sociais. Esta passagem dá a entender que
d e s ta g e ra ç ã o , e a q u e sã o s e m e lh a n te s ?
32 S ão s e m e lh a n te s a o s m e n in o s q u e , s e n ta ­ ele tinha gosto pela vida, e gostava de
dos n a s p r a ç a s , g r ita m u n s p a r a os o u tr o s : estar em boa companhia. Ora, aqueles
T ocam o -v o s fla u ta , e n ão d a n ç a s te s ; que não haviam ficado satisfeitos com
c a n ta m o s la m e n ta ç õ e s , e n ã o c h o ra s te s. João queriam agora mudar a brincadeira
33 P o rq u a n to v eio J o ã o , o B a tis ta , n ã o co ­
m en d o p ã o n e m b e b en d o v in h o , e d iz e is:
para “funeral” , e ficavam tristes porque
T e m d e m ô n io ; 34 veio o F ilh o d o h o m e m , Jesus não queria cooperar. Proferiam
co m en d o e b e b en d o , e d iz e is: E is a í u m críticas exageradas contra ele; comilão e
co m ilão e b e b e d o r d e v in h o , a m ig o d e publi- bebedor de vinho, e zombavam de sua
can o s e p e c a d o re s . 35 M a s a sa b e d o ria é amizade com nada menos do que uma
ju s tific a d a p o r to d o s os se u s filh o s.
multidão de publicanos e pecadores.
Os homens desta geração eram espe­ O significado do verso 35 é problemáti­
cificamente os que haviam rejeitado João co. Mateus (11:19) grafa “obras” , em vez
e Jesus. São comparados com crianças de filhos. Sabedoria é a sabedoria de
entediadas e caprichosas, que sempre Deus, e é uma perífrase do nome de Deus.
querem resolver o tipo de brincadeira e Tanto João como Jesus haviam sido en­
que ficam muito irritadas se os seus viados por Deus. Será que “filhos” se
companheiros de folguedos não se ali­ referia a eles, ou ao povo que havia
nham com as suas sugestões. Tocamo- reagido favoravelmente ao seu ministé­
vos flauta, na verdade, se refere ao rio? Talvez a segunda hipótese seja a
toque de uma espécie de clarinete usado válida. Só as pessoas que eram receptivas
em casamentos, banquetes e funerais. à atividade reveladora e redentora de
Visto que os meninos são conclamados Deus podiam apreciar a conveniência,
para dançar, o brinquedo devia ser tanto de João quanto de Jesus, aos pro­
“casamento” . Quando a brincadeira pósitos daquele mesmo Deus. O fato de
muda para “funeral” , a reação é a mes­ elas aceitarem a mensagem de Deus,
ma. Os companheiros de lazer não se pregada por esses dois homens, era uma
justificação para a sua ação através Lucas, que fala de duas outras ocasiões
deles. em que Jesus comeu com eles (11:37;
5) A Mulher Penitente (7:36-50) 14:1). Embora ele se identificasse pri­
36 U m dos fa r is e u s convidou-o p a r a co ­ mordialmente com pessoas dos níveis
m e r com e ie : e . enriraiidõ e m c a s a do f a r i ­ mais baixos da sociedade, nenhuma pes­
se u , re c lin o u -se à m e s a . 37 E e is q u e u m a soa ou lar estava fora dos limites para
m u lh e r p e c a d o ra , q u e h a v ia n a c id a d e , ele. Falando que ele reclinou-se á mesa
q u an d o so u b e q u e e le e s ta v a à m e s a , e m
c a s a do fa ris e u , tro u x e u m v a so d e a la b a s ­ deve-se ter em mente que as pessoas
tro co m b á ls a m o ; 38 e , esta n d o p o r d e tr á s , ficavam semideitadas ao redor da mesa,
a o s se u s p é s, ch o ra n d o , c o m eç o u a g re g a r-, sobre almofadas, enquanto comiam.
lhe os p é s co m l ag rim às~ ê os e n x u g a v a c o m . Em tais ocasiões, a hospitalidade do
o s c ã b e lo s d a s u a c a b e ç a ; e b e ija v a -lh e os
p é s e u n g ia-o s c o m o b á ls a m o . 39 M a s, a o
Oriente Médio requeria que ninguém
v e r isso , o f a r is e u q u e o c ó iív id a ra f a la v a fosse barrado à porta. Era comum entra­
consigo, d iz e n d o : Se e s te h o m e m fo sse p ro ­ rem pessoas das ruas, e permanecerem
fe ta , s a b e r ia q u e m e d e q u e q u a lid a d e é e s s a por ali, observando as festividades. A
m u lh e r q u e o to c a , po is é u m a p e c a d o ra . mulher que entrou é chamada de peca­
40 E , re s p o n d e n d o J e s u s , d is s e -lh e : S im ão ,
ten h o u m a c o isa a d iz e r-te . R e sp o n d e u e le : dora, palavra que tem a conotação gené­
D ize-a, M e s tre . 41 C e rto c re d o r tin h a dois rica de impureza ritual (veja 5:30). Não
d e v e d o re s : u m lh e d e v ia q u in h e n to s d e h á-~ obstante, essa mulher de muitos pecados
rio s, e o u tro c in q ü e n ta . 42 N ão te n d o e le s (v. 47) provavelmente era prostituta. O
com q u e p a g a r , p e rd o o u a a m b o s . Q ual
d eles, p ^ o i s ^ ^ a r o a r á - jq a i s j 43 R espondeíT
uso absoluto da expressão “mulher
S im ã o : Suponho q u e é a q u e le a q u e m m a is pecadora” ocorre neste sentido na lite­
p erd o o u . R ep lico u -lh e J e s u s : J u lg a s te b e m . ratura rabínica (Strack-Billerbeck, II,
44_ E ,~ v o ltan d o -se p a r a a m u lh e r, d isse a 162).
S im ã o : V ês tu _ este m u lh e r ? E n tr e i e m tu a A cena que se segue é das mais pun­
c a s a , e n a o m e d e s te á g u a p a r a os p é s ; m a s
e s ta corrTsíias lá g r im a s os re g o u e c o m se u s gentes e belas do Novo Testamento. Cada
c ab elo s os enxugou. 45 N ão m e d e ste ó sc u lo ; gesto dessa mulher, indica grande humil­
e la , p o ré m , d esd e qu e e n tre i, n ã o te m c e s ­ dade e senso de indignidade na presença
sad o d e b e ija r-m e os p é s. 46 N ão m e u n g iste de uma Pessoa que é genuinamente boa.
a c a b e ç a com ó le o ; m a s e s ta co m b á lsã m o
ungiu-m e os p é s. 47 P o r isso te d ig o : P e r ­
No entanto, percebemos também que
doados lh e s são os p e c a d o s, q u e sã o m u ito s ; tinha ela inteira confiança em que essa
p o rq u e e la m u ito a m o u ; m a s a q u e le a q u em pessoa boa não tivesse a atitude que
pouco se p e rd o a , pouco a m a . 48 E d isse a tinha o fariseu. Pelo fato de seus pés se
e la : P e rd o a d o s sã o os te u s p e c a d o s. 49 M as terem estendido, enquanto ele se recli­
os q u e e s ta v a m c o m e le à m e s a c o m e ç a ra m
a d iz e r e n tr e s i : Q uem é e s te q u e a té p e rd o a nava à mesa, a mulher pôde se aproxi­
p ec a d o s? 50 J e s u s , p o ré m , d is se à m u lh e r: mar de Jesus discretamente, para ungir
A tu a fé te s a lv o u ; v a i-te e m p a z . os seus pés com o bálsamo que trouxera
Jesus é apresentado no tipo de situação para esse fim. Antes de poder se desin-
que servia como base para as críticas cumbir de sua missão, todavia, ela fica
discorridas, mencionadas no episódio tão emocionada que chora sobre os pés
precedente (v. 34). As narrativas do de Jesus, e, não tendo outro recurso,
Evangelho deixam a impressão de que ele enxuga-os com os seus cabelos. 18 Beijar
era um conviva procurado e bem-vindo em 18 Esta história tem afinidades com duas outras, nos
em ocasiões festivas. Ele também não era Evangelhos (Mar. 14:3 e ss.; João 12:1 e ss.)- A omissão
excluído das casas dos fariseus, o que de Lucas a respeito da história que Marcos conta, em
sua narrativa da paixão, deve ser devida à sua seme­
indica que, pelo menos durante uma lhança à narrativa feita aqui. Creed acha que o notável
parte do seu ministério, a hostilidade paralelo entre Jòão 12:3 e Lucas 7:38 é explicado por
farisaica contra ele não era total. Para estar João dependendo de Lucas (p. 110). Não obstan­
te, toda a questão do relacionamento literário entre
este vislumbre da relação de Jesus com João e Lucas é enigmática, e para ela nenhuma solu­
alguns dos fariseus, somos devedores a ção satisfatória foi dada até agora.
os pés de uma pessoa era sinal de pro­ 10 e ss.; 21:1 e ss.). A atitude de Simão
fundo respeito. E, indubitavelmente, de para com Jesus é verificada quando ele
humildade da parte de quem beijava. deixa de lhe oferecer as comodidades
O fariseu se apressa a tirar certas sociais aceitas na época: água para lavar
conclusões que traem as suas pressupo­ a poeira dos seus pés, o beijo de sauda­
sições. Visto que um homem bom como ção, e o óleo para ungir a cabeça, como
Jesus certamente não iria permitir que gesto de honra.
uma mulher daquele tipo o tocasse, ele Jesus se volta para a mulher, trazendo-
não devia estar sabendo que espécie de a, com este gesto, para o círculo. Vês tu
pessoa era ela. Conseqüentemente, e le \ rata mulher? Não! Simão não a tinha
não podia ser um profeta, pois um ho­ Visto! Ele a havia classificado e despre­
mem com os dons de um profeta discer­ zado, como alguém que estivesse em
nindo caráter dela. posição muito baixa para ser notada. Ele
Jesus demonstrou que possuía dons a havia despersonalizado, pensando nela
proféticos, discernindo os próprios pen­ como sendo apenas igual a todas as
samentos indignos do fariseu. Agora outras mulheres de sua laia. Mas em
ficamos sabendo que o nome do hospe­ todos os aspectos demonstra-se que essa
deiro era Simão (cf. Mar. 14:3). A Pará­ mulher é superior a Simão. Ela tem uma
bola do Credor Incompassivo serve para capacidade muito maior de amor e gra­
ilustrar, simultaneamente, a relação do tidão, baseados, como Jesus ensina, na
homem para com Deus e para com ou­ sua capacidade para receber.
tros homens (cf. Mat. 18:23 e ss.). Dian­ Desde que entrei dá a entender que a
te de Deus, ele é um devedor desespe­ mulher havia seguido Jesus quando en­
rado. Que diferença faz se a dívida é de trara na casa. Ã luz do diálogo seguinte,
quinhentos denários ou cinqüenta, se a é provável que o fato de ela ter sido
pessoa não pode pagar? Com relação aos perdoada por Jesus precedesse a cena
outros, o homem é um co-devedor, cujas descrita aqui. O seu ato, assim, fora uma
pretensões de superioridade moral e re­ expressão de gratidão pela aceitação e
ligiosa são completamente irrelevantes. amor que ela já havia encontrado.
Quinhentos denários representam os Os versículos 47 e 48 parecem estar em
pecados da mulher; cinqüenta, os peca­ pendência com a parábola dos versículos
dos de Simão. Mas este é o quadro visto 41 e 42. Na parábola, amor é a reação ao
do lado do homem, e não de Deus. Todos perdão, enquanto a interpretação natu­
estão desesperadamente endividados, ral dos versículos 47 e 48 é de que o
mas alguns se enganam, tentando crer perdão é uma reação ao amor. A dificul­
que o seu pecado não é tão grande, em dade é removida se traduzirmos: “O
comparação com o dos outros. Essa grande amor que ela demonstrou prova
parábola também ensina que Deus não é que os seus muitos pecados foram per­
como os homens, exigindo asperamente o doados” (v. 47a, The English Version).
contrapeso de cada um em relação aos Esta tradução coloca a primeira parte do
pecados cometidos. Ele perdoa livre­ versículo em harmonia com o versículo
mente os pecados dos homens. 47b (omitida por D) e a narrativa prece­
Esta parábola é a base para uma com­ dente. A declaração pública de Jesus, de
paração humilhante entre o homem justo que perdoados são os pecados dessa
e a prostituta. Em Lucas, as pessoas que mulher, provoca uma reação hostil (veja
se orgulham de sua piedade e que não 5:20 e ss.).
têm senso das suas necessidades pessoais A fé da mulher era a sua crença de que
são colocadas frente a frente com as a palavra de perdão pronunciada por
pessoas que desprezam, a fim de drama­ Jesus era nada menos do que a palavra de
tizar o perigo do orgulho moral (cf. 18: Deus. Na verdade, a fé não salva uma
pessoa, pois o homem é salvo apenas pela acompanhavam Jesus, inclusive Maria
graça de Deus. Mas a fé é a receptivi­ Madalena. As mesmas mulheres, duas
dade essencial para a atividade redentora das quais são mencionadas no paralelo
de Deus. A mulher é declarada como de Lucas (24:10), são testemunhas da
possuidora da paz messiânica, uma ressurreição (Mar. 16:1). A nota em
palavra que é praticamente equivalente Lucas 8:2 estabelece o fato de que as
à salvação. Agora não existe tensão entre mulheres que foram as primeiras teste­
ela, a pecadora, e Deus. Por que ela sabe munhas da ressurreição também haviam
que é aceita e perdoada por Deus, pode estado com Jesus durante o seu minis­
perdoar a si mesma e levantar a cabeça tério na Galiléia. Isto pode ser de valor
diante dos outros. O milagre de Jesus em qualquer polêmica antignóstica, visto
tê-la aceito é claramente visto. Sob a que as testemunhas são capazes de iden­
influência dessa aceitação divina, as tificar o crucificado e ressuscitado como
prostitutas descobrem o seu valor pes­ o Jesus de Nazaré (veja adiante sobre
soal, como filhas do Deus vivo. 23:49,55:24:10).
6. Missão Itinerante (8:1-56) Na vida das três mulheres, as boas-
novas do reino haviam-se tornado reali­
1) Os Companheiros de Jesus (8:1-3) dade. O poder do governo de Deus ope­
rando através de Jesus, as havia libertado
1 Logo dep o is d isso , a n d a v a J e s u s d e c i­
d a d e e m c id a d e , e de a ld e ia e m a ld e ia , da escravidão dos espíritos malignos e
p re g a n d o e a n u n c ia n d o o ev a n g e lh o do re in o enfermidades. Maria Madalena é iden­
de D e u s ; e ia m co m e le os doze, 2 b e m com o tificada pela tradição como a pecadora
a lg u m a s m u lh e re s que h a v ia m sido c u ra d a s apresentada na casa de Simão (Luc.
de e sp írito s m a lig n o s e d e e n fe rm id a d e s :
M a ria , c h a m a d a M a d a le n a , d a q u a l tin h a m
7:36 e ss.). Essa conjectura é mera supo­
saíd o s e te d em ô n io s, 3 J o a n a , m u lh e r d e sição, não tendo apoio no texto. Sete
C uza, p ro c u ra d o r d e H e ro d e s, S u sa n a , e demônios não se refere a imoralidade
m u ita s o u tr a s q u e os s e r v ia m co m os se u s grosseira, como prostituição, mas ao
b en s.
estado mental e emocional desintegrado
Logo depois marca a transição para do qual Jesus havia libertado Maria.
outra fase das atividades de Jesus, para Cuza, como procurador de Herodes,
as quais o evangelista agora providencia ocupava uma posição de confiança e res­
uma introdução. Jesus está agora em ponsabilidade na administração de
constante movimento, dedicando-se a Herodes Antipas.
um ministério itinerante de pregação, Marcos diz que as mulheres “minis­
que exige rápidas visitas a inúmeras travam” a Jesus (15:41). Lucas acres­
cidades e aldeias. Ele passa por esses centa com os seus bens. Elas cuidavam
centros populacionais, parando apenas o das modestas necessidades financeiras de
suficiente para proclamar a sua mensa­ Jesus, durante o seu ministério itine­
gem. O conteúdo da pregação é o evan­ rante.
gelho do reino de Deus (veja 4:43). Depois desta introdução, Lucas volta à
Lucas enfatiza o significado de reino fonte de Marcos, para obter o material
como sendo de boas-novas para o povo encontrado em 8:4-9:50. Algumas pas­
que está vivendo entre a época de Jesus e sagens dessa fonte são omitidas, de ma­
a Parousia, ainda sujeito às pressões neira especial a chamada “grande omis­
hostis das potestades desta era. são” (Mar. 6:45-8:26), depois de 9:17
Jesus é acompanhado por dois grupos (acerca do que, veja a Introdução).
de testemunhas, os doze e algumas mu­
lheres. O nome de três das mulheres é 2) A Parábola do Semeador (8:4-8)
mencionado. Em Marcos também encon­ 4 O ra , a ju n ta n d o -se u m a g ra n d e m u lti­
tramos o nome de três mulheres que d ão , e v in d o t e r co m e le g e n te d e to d a s a s
c id a d e s, d isse J e s u s p o r p a rá b o la : 5 S aiu o migos especiais do lavrador à época da
se m e a d o r a s e m e a r a s u a se m e n te . E q u a n ­ semeadura.
do s e m e a v a , u m a p a r te d a se m e n te c a iu à O “solo pedregoso” de Marcos (4:5)
b e ir a do c a m in h o ; e foi p is a d a , e a s a v e s do é preferível à pedra. Em alguns lugares,
céu a c o m e ra m . 6 E o u tr a c a iu so b re p e d ra ;
e, n a s c id a , seco u -se p o rq u e n ã o h a v ia u m i­ o solo pouco espesso cobre uma camada
d a d e . 7 E o u tr a c a iu no m eio d o s e s p in h o s ; e subjacente de pedras, que de vez em
c re s c e n d o com e la os esp in h o s, su fo c a ra m - quando afloram à superfície. A falta de
n a. 8 M a s o u tr a c a iu e m b o á t e r r a ; e, n a s ­ profundidade, para o desenvolvimento
c id a , p ro d u ziu fru to , c e m p o r u m . D izendo
e le e s ta s co isa s, c la m a v a : Q u em te m o u v i­
de um sistema adequado de raízes, faz
dos p a r a ou v ir, o u ça. com que as plantas tenras se tornem
indefesas contra o sol escorchante.
Marcos coloca esta parábola em uma O lavrador palestino tinha que lutar
sessão de ensinamentos realizada à m ar­ contra grande variedade de ervas dani­
gem do lago (4:1). Tendo já apresentado nhas, algumas das quais davam espinhos
um palco semelhante para a atividade ou cardos. Qs espinhos, crescendo mais
didática de Jesus que precedera a voca­ depressa do que as plantinhas, roubam-
ção de Simão Pedro (5:1-3), Lucas não o lhes o espaço e os nutrientes necessários
usa aqui. Pelo contrário, liga a parábola ao seucrescimento.
à missão itinerante de pregação realizada Parte da semente caiu em boa terra. É
por Jesus em cidades e aldeias (v. 1-3 aí que os esforços do lavrador têm suces­
acima). Agora, gente de todas as partes so. Quando semeia, ele sabe que parte de
se reúne, para ouvi-lo, em uma locali­ sua semente será perdida, sendo comida
dade não especificada. Jesus fala, à mul­ pelas aves, e parte nunca chegará a fru­
tidão reunida, por parábola (“parábo­ tificar, devido à natureza do solo ou ao
las” em Mar. 4:2; Mat. 13:3). Ele se crescimento de ervas perniciosas. Mas ele
dirige ao problema surgido com as dife­ semeia, na confiança de que a boa terra
rentes reações do povo à sua proclama­ recompensará os seus esforços.
ção do evangelho do reino. Da mesma forma acontece com a pro­
Tem havido quatro espécies de rea­ clamação do reino de Deus. Há boa
ções que correspondem aos tipos de solo terra; a semente semeada nela chegará a
com que o fazendeiro palestino precisava frutificar, produzindo cem por um.
haver-se em sua luta para obter uma Lucas não repete os “trinta por um ” e
colheita. Desta forma, o nome “parábola “sessenta por um” de Marcos, talvez,
do semeador” não é tão apropriado como como sugere Leaney (p. 151), para evitar
“parábola dos solos” . o ensinamento gnóstico de que havia
A experiência do semeador era lugar- gradações de conhecimento a ser atin­
comum na vida quotidiana da Palestina. gido pelos iniciados, depois do batismo.
Na época do plantio, o lavrador espa­ Esta parábola expressa a confiança de
lhava a semente amplamente em seu Jesus no reino de Deus. Eleestá certo de
campo, e, subseqüentemente, a enter­ que “Deus deu o início, trazendo com ele
rava, com o seu arado primitivo. Em uma colheita ou recompensa além de
conseqüência, a semente caía indiscri­ tudo o que se pode pedir ou conceber”
minadamente tanto em solo bom quanto (J. Jeremias, p. 92).
em mau. Esta j é no poder soberano de Deus é a
O caminho é a trilha batida, endure­ base da alegria de Jesus em meio às
cida pelos pés de pessoas e animais que frustrações do seu ministério. A incrível
haviam passado pelo campo do lavrador cegueira do povo, inclusive a dureza dos
desde a última colheita. A semente que discípulos, não é o fator que determina
caísse nele era particularmente vulne­ o futuro. A despeito de começos que
rável às aves de rapina, que são os ini­ nada prometem, Deus garante que a
colheita excederá todas as expectativas falta de entendimento é devida ao fato de
humanas. a verdade ser deliberadamente tomada
Para Jesus, a colheita é a jubilosa inacessível aos ouvintes? Ou, pelo con­
celebração da ceifa dos frutos produzidos trário, não é que a cegueira espiritual das
pela sua semeadura. O elemento de juízo pessoas que rejeitam a mensagem de
não falta, porém, pois ele termina com Jesus impedem-nas de ver o que está bem
um solene chamado ao arrependimento. diante dos seus olhos? Na verdade, Deus
Os que têm ouvidos para ouvir, isto é, podia ter preferido revelar-se de manei­
que possuem a capacidade para perceber ras mais aceitáveis para o preconceito e
que a pregação de Jesus os fez defronta­ arrogância dos seres humanos.
rem-se com os requisitos de um Deus Mas, pelo contrário, ele preferiu apre­
soberano a respeito de suas vidas, preci­ sentar umaíVelada revelação de sua ma­
sam corresponder sem delongas. jestade e poder, na pessoa de um galileu,
cuja vida e obras eram uma ofensa para
3) Explicação da Parábola (8:9-15)
os orgulhosos e um tropeço para os que
9 P e rg u n ta ra m -lh e e n tã o se u s d iscíp u lo s
o q ue sig n ific a v a e s s a p a rá b o la . 10 R e sp o n ­
tinham justiça própria (cf. I Cor. 1:
d e u e l e : A vós é d a d o c o n h e c e r o s m is té rio s 18-25).
do rein o de D e u s; m a s a o s o u tro s s e f a la p o r Marcos chama, o que está velado, de
p a rá b o la s ; p a r a q u e v en d o , n ã o v e ja m , e “mistério do reino de Deus” (4:11). O
ouvindo, n ão e n te n d a m . 11 É , p o is, e s ta a mistério é a manifestação do reino de
p a rá b o la : A se m e n te é a p a la v r a d e D eu s.
12 Os q ue e stã o à b e ir a do c a m in h o sã o os Deus aos homens, na pessoa de Jesus
que o u v e m ; m a s logo v e m o D iab o e tira - (Bornkamm, TDNT, IV, 817 e ss.). Isto
lh es do c o ra ç ã o a p a la v r a , p a r a q u e n ão é o que o povo não conseguia compreen­
su c e d a q u e, c re n d o , s e ja m sa lv o s. 13 Os der. O plural mistérios corresponde à
que e s tã o so b re a p e d r a sã o os q u e , o u ­
vindo a p a la v r a , a re c e b e m c o m a le g r ia ;
ênfase dada por Lucas à natureza do
m a s e s te s n ão tê m ra iz , a p e n a s c rê e m reino. Estes mistérios incluem a relação
p o r a lg u m te m p o , m a s n a h o r a d a p ro ­ de Jesus para com o reino, a natureza
v a ç ã o se d e sv ia m . 14 A p a r te q u e c a iu do seu programa, as exigências que o
e n tre os esp in h o s sã o os q u e o u v ira m e, indo reino faz aos homens, a sua relação com
seu ca m in h o , sã o su fo cad o s p elo s cu id ad o s,
riq u e z a s e d e le ite s d e s ta v id a e n ã o d ão fru to o momento presente e a forma como ele
co m p e rfe iç ã o . 15 M as a q u e c a iu e m b o a virá.
t e r r a sã o os q u e, ouvindo a p a la v r a com A palavra de Deus é o poder eficiente e
c o ra ç ã o re to e b o m , a re tê m , e d ã o fru to criativo de Deus que pode arraigar-se na
com p e rs e v e ra n ç a .
vida da pessoa receptiva, e produzir os
O intérprete das palavras de Jesus frutos do reino. O primeiro grupo de
defronta-se com duas perguntas básicas. pessoas são os que rejeitam a palavra
Primeira: O que significavam elas no abertamente. Os seguidores de Jesus não
contexto da vida e dos ensinos de Jesus? devem, por causa disto, ficar desani­
Segunda: O que significavam elas na mados, pois isso não significa que a
vida e testemunho da igreja primitiva, palavra seja ineficaz. Pelo contrário, o
que as usou e preservou? A esta segunda Diabo, adversário de Deus, tirou-lhes
interrogação é que se dirige a interpre­ do coração a palavra, de forma que ela
tação da “parábola dos solos” ou do não pode cumprir a sua obra eficiente.
Semeador. Um segundo grupo de pessoas que cria
Por que o povo não entendia e nem problemas na comunidade cristã é o das
reagia aos ensinos de Jesus, contidos em que alegremente começam a palmilhar o
suas parábolas? A resposta é que elas são caminho, e depois, na hora da provação,
veículos de revelação para os que têm se desviam. Aqui a provação tem o signi­
percepção — os discípulos — mas a sua ficado de testes e tentação, o principal
verdade está oculta para os outros. A sua dos quais era sofrimento ou perseguição.
A causa do fracasso é descrita como pode pensar que o discípulo esconda a
superficialidade de dedicação, caracte­ luz do evangelho que recebeu. Ele deve
rística que é freqüentemente revelada permitir que a luz brilhe, para que os
somente quando o tempo de provações a outros (os gentios?) a possam ver para
traz à superfície. entrarem no reino. Lucas tem em mente
Um terceiro grupo é o dos que se uma casa segundo o estilo romano, em
envolvem com o mundo e suas atrações, que a candeia era colocada no vestíbulo,
pessoas que não deixam tudo para seguir para propiciar luz aos que entram. O
a Jesus. Lucas usa o verbo incomum não quadro de Mateus 5:15 é o de uma casa
dão fruto (no original, “não amadure­ palestina, de um cômodo, que é ilumi­
cem”), em vez de “fica infrutífera” , nada pela candeia.
como diz Marcos (4:19). O fruto aparece, Deus não tem em mente que o seu
mas não permanece até a maturidade. reino seja propriedade privada de um
O último grupo é composto dos que grupo esotérico (v. 17). A coisa secreta do
manifestam uma dedicação vitalícia ao reino está à disposição de todos que a
evangelho. Ouvem e se apegam a ele. quiserem receber. Ela será tornada pú­
Conseqüentemente, em suas vidas, a blica da maneira mais ampla possível.
palavra é capaz de chegar a frutificar. O terceiro e último aforismo apresenta
Perseverança, p alav ra tipicam ente uma advertência ulterior a respeito da
paulina, é a qualidade de firmeza e leal­ responsabilidade de ouvir. Os que corres­
dade em tempos de crise, especialmente pondem à proclamação das boas-novas
de perseguição. terão contínuas e cada vez maiores opor­
4) Segredo a Ser Revelado (8:16-18) tunidades. Por outro lado, os que as
rejeitam descobrirão que as suas oportu­
16 N in g u ém , p o is, a c e n d e u m a c a n d e ia e nidades originais se escaparam de suas
a c o b re co m a lg u m v a so , o u a p õ e d e b a ix o
d a c a m a ; m a s p õ e-n a n o v e la d o r, p a r a que mãos, como é ilustrado nos versículos
os q u e e n tr a m v e ja m a lu z. 17 P o rq u e n ão h á 19-21 (veja adiante).
c o isa e n c o b e rta q u e n ã o h a ja d e m a n ife s ­
ta r-se , n e m c o isa s e c r e ta q u e n ã o h a ja de 5) A Verdadeira Família de Jesus (8:
sa b e r-se e v ir à luz. 18 V ede, p o is, com o 19-21)
o u v is; p o rq u e a q u a lq u e r q u e tiv e r lh e s e r á
d ad o, e a q u a lq u e r q u e n ã o tiv e r, a té o que 19 V ie ra m , e n tã o , t e r c o m e le s u a m ã e e
p a re c e t e r lh e s e r á tira d o . se u s ir m ã o s , e n ã o p o d ia m a p ro x im a r-s e
d e le p o r c a u s a d a m u ltid ã o . 20 F o i-lh e d ito :
O significado destes três aforismas é T u a m ã e e te u s ir m ã o s e s tã o lá fo ra , e
q u e re m v e r-te . 21 E le , p o ré m , lh e s re s p o n ­
obscuro. Podemos apenas imaginar o d e u : M in h a m ã e e m e u s ir m ã o s sã o e ste s
sentido em que Jesus os pronunciou (veja q u e o u v e m a p a la v r a d e D e u s e a o b se rv a m .
J. Jeremias, p. 96 e s., nota de rodapé.
34). Cada um deles tem duplicata em Este episódio foi tirado do seu contexto
outro contexto em Lucas, bem como em Marcos (3:31-35) e inserido, por
paralelos em outros Evangelhos Sinóp­ Lucas, neste ponto. Por que ele o tirou da
ticos (8:16-11:33; 8:17-12:2; 8:18-19:26). ordem em que estava? Conzelmann
Aqui eles precisam ser entendidos em (p. 48 e ss.; veja também a p. 34 e s.)
conexão com a Parábola do Semeador. sugere que ele é colocado aqui como ilus­
Tendo recebido a revelação dos mistérios tração do verso 18. Jesus aparecera em
do reino de Deus, os discípulos precisam Nazaré e fora rejeitado pelo seu próprio
enfrentar as responsabilidades que lhes povo. Como resultado disso, Cafarnaum
são inerentes. O símile da lâmpada ou havia-se tomado o centro de suas ativi­
candeia ensina que eles têm uma missão dades. Agora, de acordo com Conzel­
a cumprir. A revelação é freqüentemente mann, os parentes de Jesus tinham vindo
mencionada como iluminação. Nem se para levá-lo de volta a Nazaré. Ver-te é
interpretado como significando que eles que decidiu atravessar para o outro lado
queriam vê-lo realizar milagres ali (veja (Mar. 4:1,35). Lucas, consentaneamente
sobre 23:8). Mas o resultado da sua e corretamente, chama o Mar da Galiléia
rejeição é que os parentes e conterrâneos de lago, ou seja, uma quantidade de
de Jesus haviam perdido a oportunidade água cercada de terra. Somos informa­
que fora deles. Por outro lado, os que dos, em Marcos, que a travessia teve
têm atendido a Jesus têm oportunidades lugar ao entardecer (4:35), o que explica
adicionais, que a sua presença contínua por que Jesus pegou no sono.
propicia. A travessia do lago é atrapalhada pelo
A situação da mãe e irmãos é pintada fato de ter-se abatido sobre eles uma
em cores vivas. A multidão se coloca perigosa tormenta do tipo que pode
entre eles e Jesus. Eles precisam ficar lá ocorrer tão repentinamente na Galiléia.
fora, visto que não fazem parte do círculo A implícita repreensão de Jesus, levada a
íntimo, mais achegado de Jesus. Ele afir­ efeito por seus discípulos, está ausente
ma que qualquer reivindicação que lhe em Lucas (cf. Mar. 4:38), que constan­
for feita, baseada em relacionamentos temente omite essa espécie de material.
familiares, não é válida. Ele se tornou o De maneira semelhante, a dureza da
centro de uma nova comunidade de pergunta de Jesus aos discípulos é atenu­
pessoas, que permanecem juntas debaixo ada no verso 25 (veja Mar. 4:40). Lucas
da soberania de Deus, em um novo rela­ não dá a entender que os discípulos não
cionamento que transcende todas as tinham fé; só diz que eles não estavam
categorias humanas. Os seus verdadeiros recorrendo a ela em momentos de crise.
parentes são os que se dedicam, com Jesus repreendeu o vento, como já
ele, ao cumprimento dos propósitos de havia repreendido demônios e enfermi­
Deus como seu Rei. Eles não apenas dades (veja 4:35,39). No reino dos fenô­
ouvem, mas também observam a vontade menos naturais, as tempestades são equi­
de Deus (como em 6:47). valentes à possessão demoníaca e à do­
ença nos seres humanos. São evidência
6) Tempestade Acalmada (8:22-25)
de que a harmonia original da natureza
22 O ra , a c o n te c e u c e rto d ia q u e e n tro u se rompeu, o que é sinal de desobediên­
n u m b a rc o com se u s d isc íp u lo s, e d isse-
lh e s : P a s s e m o s à o u tr a m a r g e m do la g o . E
cia e rebeldia contra a ordem de Deus no
p a r tir a m . 23 E n q u a n to n a v e g a v a m , ele universo (Sal. 65:7; 46:3; 89:9,10).
a d o rm e c e u ; e d e sc e u u m a te m p e s ta d e d e Fazia parte da esperança do povo
v e n to so b re o la g o ; e o b a rc o s e e n c h ia d e judeu que a desunião do universo seria
á g u a , d e so rte q u e p e rig a v a m . 24 C h e g a n ­ vencida pelo soberano poder de Deus, de
do-se a e le, o d e s p e r ta r a m , dizen d o : M e s tre ,
M e s tre , e s ta m o s p e re c e n d o . E e le , le v a n ­ forma que o fim será equivalente ao
ta n d o -se, re p re e n d e u o v e n to e a f ú r ia d a começo (Is. 11:6-9). Na manifestação do
á g u a ; e c e s s a ra m , e fez-se b o n a n ç a . 25 senhorio de Jesus sobre as forças rebel­
E n tã o lh e s p e rg u n to u : O nde e s tá a v o ss a fé ? des da natureza, encontramos mais um
E le s, a te m o riz a d o s, a d m ira r a m -s e , dizendo
u n s a o s o u tro s : Q uem , p o is, é e s te , q u e a té sinal da chegada do reino de Deus. Ele é
a o s v e n to s e à á g u a m a n d a , e lh e o b e d e c em ? Aquele que acalma “ o ruído dos mares, o
ruído das suas ondas, e o tumulto dos
Com apenas uma frase introdutória, povos” (Sal. 65:7). Este seu ato serve
breve e bem genérica, e sem transição da como base para a certeza de que o reina­
seção anterior, Lucas nos apresenta a do de Deus se estenderá sobre todo o
primeira, de uma série de três obras universo, e trará tudo a uma harmonia
poderosas realizadas por Jesus. Elas são final e duradoura (cf. Rom. 8:19-23).
tiradas de Marcos, onde a transição é Quem, pois, é este? Os discípulos ain­
clara. Jesus havia passado o dia ensinan­ da estão fazendo esta pergunta. Nas suas
do perto do Mar da Galiléia, depois do vidas ainda há tensão entre fé e incre­
dulidade. Esta pergunta aponta para o Jesus desembarcou. Gerasenos é a versão
momento em que o próprio Jesus lhes mais amplamente atestada por Lucas e
fará esta mesma pergunta (9:18 e ss.). Marcos (5:1); gadarenos para Mateus
7) O Endemoninhado Geraseno (8: (8:28). As conjecturas a respeito da loca­
26-39) lização dessa região se centralizam ao
redor de três cidades: Khersa, na mar­
26 A p o rta r a m à t e r r a d o s g e ra s e n o s, q u e
e s tá d e fro n te d a G a lilé ia . 27 L ogo q u e sa lto u
gem leste da Galiléia, Gadara, a doze
e m t e r r a , sa iu -lh e a o e n c o n tro u m h o m e m quilômetros ao sul do lago, e Gerasa, a
d a c id a d e , p o sse sso d e d em ô n io s, q u e h a v ia cerca de sessenta quilômeíros dele. O
m u ito te m p o n ã o v e s tia ro u p a , n e m m o r a v a lugar em que Jesus desembarcou é cha­
e m c a s a , m a s n o s se p u lc ro s. 28 Q uando ele mado terra (distrito) dos gerasenos. Um
viu a J e s u s , g rito u , p ro s tro u -se d ia n te d e le ,
e com g ra n d e voz e x c la m o u : Q ue ten h o e u distrito podia estender-se por alguma
contigo, J e s u s , F ilh o do D e u s A ltíssim o ? distância, a partir da cidade da qual
R ogo-te q ue n ã o m e a to r m e n te s . 29 P o rq u e tivesse o nome. Dos lugares mencionados
J e s u s o r d e n a r a a o e s p írito im u n d o que s a í s ­ acima, Khersa se enquadra melhor e
se do h o m e m . P o is j á h a v ia m u ito te m p o q u e
se a p o d e r a r a d e le ; e g u a rd a v a m -n o p re s o
melhor preenche os requisitos da narra­
co m g rilh õ e s e c a d e i a s ; m a s e le , q u e b ra n d o tiva sinóptica.
a s p risõ e s, e r a im p elid o p elo d em ô n io p a r a Lucas sublinha a natureza excepcional
os d e s e rto s . 30 P e rg u n to u -lh e J e s u s : Q u a l é da excursão de Jesus, com a frase que
o te u n o m e ? R e sp o n d e u e le : L e g iã o ; p o rq u e
tin h a m e n tr a d o n e le m u ito s d em ô n io s. 31 E
está defronte da Galiléia (cf. Mar. 5:1).
ro g a v a m -lh e q u e n ã o os m a n d a s s e p a r a o Ele define claramente essa terra como
a b ism o . 32 O ra , a n d a v a a li p a s ta n d o no estando fora da esfera normal das ativi­
m o n te u m a g ra n d e m a n a d a d e p o rc o s ; r o ­ dades de Jesus. Ao descer do barco, Jesus
g a ra m -lh e , p o is, q u e lh e s p e rm itis s e e n tr a r se encontra imediatamente com um
n e le s ; e lho p e rm itiu . 33 E , te n d o os d e m ô ­
n ios sa íd o do h o m e m , e n tr a r a m n o s p o rc o s ; homem endemoninhado. O plural demô­
e a m a n a d a p re c ip ito u -se p e lo d e s p e n h a ­ nios (cf. Mar. 5:2) indica que a sua
d e iro no lag o , e afo g o u -se. condição é muito séria. Jesus deve ter
34 Q uando os p a s to re s v ir a m o q u e a c o n te ­ desembarcado perto do cemitério da
c e r a , fu g ira m , e fo r a m an u n c iá -lo n a c id a d e cidade, porque esse homem nu se abri­
e nos c a m p o s . 35 S a ír a m , p o is, a v e r o q u e
tin h a aco n te c id o , e fo r a m te r co m J e s u s , a gava nos sepulcros. Os sepultamentos
c u jo s p é s a c h a r a m se n ta d o , v e stid o e e m geralmente eram feitos em cavernas na­
p e rfe ito juízo,' o h o m e m d e q u e m h a v ia m turais, ou cavadas na encosta de uma
saíd o os dem ô n io s; e se a te m o riz a ra m . 36Os colina. Nelas, esse alienado podia encon­
q ue tin h a m v isto aq u ilo c o n ta ra m -lh e s com o
fo ra c u ra d o o en d em o n in h ad o . 37 E n tã o
trar proteção contra as intempéries. O
todo o povo d a re g iã o d o s g e ra s e n o s rogou- seu isolamento da sociedade é explicado
lh e q u e se r e t ir a s s e d e le s ; p o rq u e e s ta v a m no verso 29b. Tão violentos eram os ata­
p o ssu íd o s de g ra n d e m e d o . P e lo q u e e le ques que lhe sobrevinham, que ele não po­
e n tro u no b a rc o , e v o lto u . 38 P e d ia -lh e ,
p o ré m , o h o m e m d e q u e m h a v ia m sa íd o os
dia ser detido, mesmo quando acorrenta­
d em ô n io s qu e o d e ix a s s e e s t a r c o m e le ; m a s do fortemente com grilhões e cadeias e sob
J e s u s o d e sp e d iu , d izen d o : 39 V o lta p a r a tu a guarda. Uma das várias conotações da
c a s a , e c o n ta tu d o q u a n to D e u s te fez. E ele palavra desertos era a sua associação
se re tiro u , p u b lic a n d o p o r to d a a c id a d e tu d o com demônios (cf. Mat. 12:43).
q u a n to J e s u s lh e fiz e ra .
Embora os homens não reconheçam
Pela primeira e única vez, em Lucas, Jesus, os poderes malignos o conhecem.
Jesus viaja além dos limites do território Ele é o Filho do Deus Altíssimo, Aquele
judaico, e coloca os pés em solo pagão. que reina em soberania inigualada, sobre
As redações alternativas, apresentadas todos os poderes do universo, tanto hu­
por diferentes manuscritos, expressam a manos como sobre-humanos. Os demô­
confusão existente na igreja primitiva a nios vêem em Jesus um poder hostil a
respeito da identificação do lugar em que eles, que também lhes é superior. Não
me atormentes é uma súplica para que não conseguiam submeter nem pela força
lhe fosse permitido ficar no homem, em física nem pelas correntes, agora estava
quem havia estabelecido habitação. Este bem capaz de se integrar na sociedade.
aspecto da história ensina que o mal Ele estava sentado tranqüilamente aos
“não pode existir por si só, mas somente pés de Jesus, isto é, como discípulo e
na medida em que possa imiscuir-se no como alguém que reconhecia o seu se­
território do bem” (Richardson, p. 73). nhorio. Uma escravidão involuntária aos
Legião significa que o homem era demônios havia sido substituída por uma
habitado por uma hoste de demônios. jubilosa e alegre submissão a Jesus.
Os exércitos das potestades do mal, tanto A rejeição de Jesus pelos pagãos foi
quanto as milícias de Deus, podem ser devida ao seu temor supersticioso pelo
chamados de legiões (cf. Mat. 26:53). seu poder estranho. Devido ao conceito
Ali, em território gentio, portanto, Jesus que eles tinham dos deuses que agiam
encontrou o maior desafio à sua auto­ um tanto arbitrariamente e algumas
ridade sobre os demônios. Mas a força vêzes vingativamente, eles estavam com
combinada dos maus espíritos que habi­ medo de maiores demonstrações do po­
tavam aquele homem não se equiparava der divino de Jesus. Eles se sentiriam
ao poder de Jesus. muito mais seguros se Jesus ficasse ao
Os demônios rogaram para não serem largo de suas praias.
enviados para o abismo, mundo inferior, O novo discípulo gentio desejou voltar
que é a prisão de Satanás e dos demônios com Jesus para território judeu, mas o
(cf. Apoc. 9:1,2; 17:8; 20:1,3). A referên­ seu lugar era na região onde passara a
cia à manada de porcos nos revela que vida. Era ali que ele podia ser mais
aquela era uma terra de gentios. A des­ eficiente. Seria ele um modelo para a
truição dos porcos tem levado muitas posterior missão gentílica da igreja? Ele
pessoas a achar que esta narrativa não é devia ser testemunha do que Deus fez.
apropriada para o Evangelho. Não se Quando Jesus age, a sua ação é equiva­
enquadra no conceito que elas têm do lente aos atos do próprio Deus. Este é o
caráter de Jesus. Porém devemos nos significado final da encarnação. Na pes­
lembrar de que os porcos eram conside­ soa de Jesus, Deus agiu para libertar,
rados imundos pelos judeus, casa muito curar, perdoar e ganhar o homem. A
mais apropriada para espíritos imundos evidência de que o poder de Jesus era
do que seres humanos (Richardson, maior do que o poder combinado de
p. 73). E, também, a história acaba com todos aqueles demônios, cujo nome era
um ardil um tanto irônico. Os demônios, “Legião” , é simplesmente uma manifes­
que haviam rogado para que não fossem tação do reino de Deus em escala maior.
enviados para o abismo, mas que Jesus Em consonância com a sua tendência de
lhes permitisse entrar nos porcos, não eliminar territórios extritamente gentí­
escaparam ao seu destino. Foram levados licos do seu relato acerca do ministério de
para as profundezas pelos suínos, que Jesus, Lucas nunca menciona Decápolis,
mergulham no lago. No pensamento federação de cidades gregas primaria­
antigo, o mar era associado com o abis­ mente transjordaniana (cf. Mar. 5:20).
mo.
O fato de as notícias espalhadas pelos 8) Milagre Duplo (8:40-56)
amedrontados pastores de porcos terem
atraído uma multidão da cidade e cir­ 40 Q uando J e s u s v o lto u , a m u ltid ã o o
re c e b e u ; p o rq u e to d o s o e s ta v a m e s p e r a n ­
cunvizinhanças, para a cena deste episó­ do. 41 E eis q u e veio u m h o m e m c h a m a d o
dio, significa que a cidade não ficava J a ir o , q u e e r a c h e fe d a sin a g o g a ; e , p r o s ­
longe. Os habitantes ficaram sabendo tra n d o -se a o s p é s d e J e s u s , ro g a v a -lh e q u e
que o seu louco notório e antigo, a quem fo sse a s u a c a s a ; 42 p o rq u e tin h a u m a filh a
ú n ic a , de c e r c a d e doze a n o s, q u e e s ta v a à mente em o Novo Testamento, (At. 18:
m o rte . 8,17), ambos também em escritos, de
E n q u a n to , p o is, e le ia , a p e rta v a m -n o a s
m u ltid õ e s. 43 E c e r t a m u lh e r, q u e tin h a u m a
Lucas. A fala direta de Jairo, citada em
h e m o r ra g ia h a v ia doze a n o s (e g a s t a r a co m Marcos 5:23, se torna discurso indireto
os m é d ic o s to d o s o s s e u s h a v e re s ) e p o r em Lucas (v. 42), que também acrescenta
n in g u é m p u d e ra s e r c u ra d a , 44 c h e g an d o -se que a menina era a sua única filha (cf.
p o r d e tr á s , to co u -lh e a o rla do m a n to , e 7:12; 9:38).
im e d ia ta m e n te ce sso u a s u a h e m o r ra g ia .
45 P e rg u n to u J e s u s : Q u em é q u e m e to co u ? Antes de Jesus chegar à casa de Jairo,
C om o to d o s n e g a s s e m , d isse -lh e P e d ro : outro milagre é realizado. Esta é a única
M e s tre , a s m u ltid õ e s te a p e r ta m e te o p ri­
m e m . 46 M as d is se J e s u s : A lg u ém m e
narrativa, nos Evangelhos, em que o
to c o u ; p o is p e rc e b i q u e d e m im s a iu p o d e r. relato de um milagre é colocado no con­
47 E n tã o , v en d o a m u lh e r q u e n ã o p a s s a r a texto de outro. Na enorme multidão que
d e s p e rc e b id a , a p ro x im o u -s e tre m e n d o e, cercava Jesus, havia uma_mulher que
p ro s tra n d o -se d ia n te d e le , d e c la ro u -lh e sofria de constante perda de sangue.
p e ra n te todo o povo a c a u s a p o r q u e lh e
h a v ia to c a d o , e com o f o r a im e d ia ta m e n te Aqui notamos a omissão da declaração
c u ra d a . 48 D isse-lh e e l e : F ilh a , a tu a fé te aparentemente depreciadora de Marcos,
sa lv o u ; v a i-te e m p az. a respeito do tratamento que ela recebera
49 E n q u a n to a in d a fa la v a , v eio a lg u é m d a dos médicos (cf. Mar. 5:26). Com toda a
c a s a do ch e fe d a s in a g o g a , d iz e n d o : A tu a
filh a j á e s t á m o r ta ; n ã o in c o m o d e s m a is o
honestidade, deve ser dito que essa
M e s tre . 50 J e s u s , p o ré m , ouvindo-o, re s p o n ­ observação não pretendia expressar qual­
d eu -lh e: N ão te m a s ; c rê so m e n te , e s e r á quer opinião desfavorável quanto, à prçt
s a lv a . 51 T end o c h e g a d o a c a s a , a n in g u é m fissão médica, mas, pelo contrário, o ob­
d eix o u e n t r a r c o m e le , se n ã o a P e d ro , J o ã o , jetivo era enfatizara gravidade da condi-
T iag o e o p a i e a m ã e d a m e n in a . 52 E to d o s
c h o ra v a m e p r a n t e a v a m ; e le , p o ré m , d is s e : ção da mulher e a sua incurabilidade.
N ão c h o re is ; e la n ã o e s t á m o r ta , m a s d o r ­ Lucas também enfatiza que ela por nin­
m e . 53 E ria m -s e d e le , s a b e n d o q u e e la guém pudera ser curada. Portanto, aque­
e s ta v a m o r ta . 54 E n tã o e le , to m a n d o -lh e a le caso era tal que para ele não havia
m ã o , e x c la m o u : M e n in a , le v a n ta -te . 55 E o
se u e s p írito vo lto u , e e la se le v a n to u im e ­ remédio humano.
d ia ta m e n te ; e J e s u s m a n d o u q u e lh e d e s ­ Procurando ser tão discreta quanto
s e m d e c o m e r. 56 E s e u s p a is f ic a r a m m a r a ­ possível, a mulher se aproxima^ de Jesus
v ilh a d o s; e e le m a n d o u -lh e s q u e a n in g u é m
c o n ta s s e m o q u e h a v ia su c e d id o . por detrás e apenas toca a orla de sua
roupa. Orla pode ser a barra da capa, ou
Em contraste com a rejeição que Jesus as borlas costuradas nos quatro cantos
sofrera da parte dos gentios do outro lado da roupa, como se prescrevia na Lei
do lago, aqui a multidão, que o esperava, (Deut. 22:12). A roupa exterior era feita
o recebeu quando ele voltou. A referência em forma de quadrado, e dobrada du­
é, provavelmente, à mesma multidão rante a noite como cobertor.
que se havia reunido para ouvi-lo antes A razão para os furtivos movimentos
de sua partida (8:4). Tanto Lucas como da mulher são bem compreensíveis.
Mateus condensam grandemente a nar­ Além do fato de que ela era mulher, a
rativa seguinte, feita por Marcos, per­ hemorragia de que sofria a tornava im-
dendo, desta forma, uma parte de sua pura (Lev. 15:25 e ss.). Três^tipos de Jg -
qualidade dramática, bem como de sua Impureza eram suficientemente sérias
clareza. pára levar à exclusão_d a so c ie d a d e :
O chefe da sinagoga era o seu presi­ lepra, hemorragia corporal e contato.
dente, cuja responsabilidade maior era com os mortos. Essa mulher não tinha o C ^
cuidar do arranjo físico para os cultos de direito de estar onde estava, nem de fa z e r/
adoração. Além de Jairo, mais dois des­ o que fizera. Os Evangelhos relatam que,
ses chefes são mencionados nominal­ em várias ocasiões, Jesus desprezou as
exigências da pureza cerimonial (e.v., sageiro da casa de Jairo, com um recado
_5:13; 7:14). O contato de Jesus com? de que não era mais necessária a pre­
pessoas impuras não o contaminou; pelo ) sença do Mestre, porque a criança havia
^contrário, purificou-as. falecido. Cria-se que o poder de curar era
Amedrontada pelo que fizera, a pobre uma autenticação divina para o minis­
mulher procurou esconder-se por entre a tério de um rabi (cf. João 3:2). O pedido
multidão. Mas foilõrçada a ir à frente. de Jairo precisava estar baseado em nada
para dar um testemunho público do mi- mais do que a crença de que Jesus era um
lagre que acontecera. Por causa da natu­ grande mestre, com poder para curar.
reza da doença, só ela podia verificar o Mas a ressurreição dos mortos era outro
fato do milagre. Os outros podiam ficar assunto, bem diferente. A sua compre­
sabendo dele apenas através do teste­ ensão limitada acerca de quem realmente
munho dela. Por que foi ela obrigada a era Jesus, é demonstrada pelo fato de que
contar a sua história, quando tantas eles estavam convencidos de que ele não
vêzes. no Evangelho, Jesus exigiu segre- podia defrontar-se com a morte. Só os
do? Talvez fosse porque ela não poderia maiores profetas de Israel haviam pos­
receber a completa libertação, que Jesus suído esse poder.
queria dar-lhe, enquanto não ouvisse as Em meio à crise, a reação de Jesus foi
tranqüilizadoras palavras dele (v. 48). de calma confiança. A morte, o último
sta história pode ter sido usada na
f reja primitiva para encorajar os tímidos I
temerosos a dar o seu testemunho pu- i
inimigo, não está isenta do domínio de
Deus, que ele representa. A fé, portanto,
é a chave para se defrontar com uma
} blicamente. — crise como aquela. Crer significa, mais
Alan Richardson (p. 63) nos acautela uma vez, uma confiança pessoal em
com respeito a confundir estes jnilagres Jesus, que inclui a certeza de que ele
com a chamada vcuraj3ela^ fé. Ele diz, obterá vitória sobre a morte.
corretamente, que a fé é usada aqui no A cena de lamentações é típica. Contra
sentido de “um relacionamento salvador, ela se colocam as palavras de Jesus. A
péssõilTde fé em Cristo” . Além do mais, morte não precisa causar tão grande
não há sugestão, nos Evangelhos, “ de consternação; seja qual for o poder que
que j g sus não poderia ter operado um ela tenha, é apenas temporário. Ela...
milagre se a crença cm que uma cura dorme apresenta o ponto de vista cristão
seriã efetuada não se manifestasse” . À fé a respeito da morte, porque indica a
ilümina o significado do milagre, em vez confiança em um despertar. Essa palavra
de sera sua causa efetiva. foi recebida com zombaria: riam-se dele.
As palavras de Jesus à mulher são A narrativa de Marcos é mais clara
idênticas, no grego, às faladas em 7:50. neste ponto. Nela somos informados que
As diferentes traduções em português são Jesus colocou todas as outras pessoas
devidas ao contexto. Mas a validade das para fora, e entrou no quarto acompa­
redações diferentes é questionável. Con- nhado apenas pelo pai e pela mãe da
denada ao ostracismo, em relação, à so­ criança (Mar. 5:40). E, também, Lucas
ciedade. devido às regras de sua religião, omite caracteristicamente a frase em
essa mulher, também considerada peca­ aramaico (Mar. 5:41). A ordem é para
dora, tinha” üm profundo sentimento de levantar-se, isto é, dentre os mortos. A
culpa que toldava o seu relacionamento explicação feita por Lucas a respeito do
comDeus. Mas Jesus então disse a ela a fenômeno é que o seu espírito voltou. O
palavra de salvação e paz. fato da ressurreição deve ser confirmado,
As observações de Jesus à mulher são dando-se à menina algo para comer (cf.
interrompidas pela chegada de um men­ 24:41-43).
7. Revelações aos Doze (9:1-50) levaria em viagem como a que eles iam
empreender (veja 3:11, para duas tú­
1) A Missão dos Doze (9:1-6) nicas).
1 R e u n in d o os doze, d eu -lh e s p o d e r e a u to ­ Para a hospedagem, os discípulos
rid a d e so b re to d o s o s dem ô n io s, e p a r a c u r a ­ deviam depender da hospitalidade das
re m d o e n ç a s ; 2 e enviou-os a p r e g a r o re in o pessoas que recebessem a proclamação
d e D eu s e a fa z e r c u ra s , 3 d izen d o -lh es:
N a d a le v e is p a r a o c a m in h o , n e m b o rd ã o , que iam fazer. Este era o padrão da
n e m a lfo rje , n e m p ã o , n e m d in h e iro ; n e m missão dos primitivos cristãos, em que
te n h a is d u a s tú n ic a s . 4 E m q u a lq u e r c a s a missionários e mestres itinerantes depen­
e m q u e e n tr a r d e s , n e la fic a i, e d a li p a r tir e is . diam da hospitalidade local, para a sua
5 A las, onde q u e r q u e n ã o v o s re c e b e r e m ,
sa in d o d a q u e la c id a d e , s a c u d i o pó dos
subsistência. A brevidade do tempo a ser
vossos p é s, e m te s te m u n h o c o n tra e le s. gasto em cada cidade e a urgência de sua
6 S ain d o , p o is, os d isc íp u lo s p e r c o r r e r a m missão, ah, tornavam necessário que os
a s a ld e ia s , a n u n c ia n d o o e v a n g e lh o e fa- discípulos permanecessem na casa que os
7endo c u r a s p o r to d a p a r te . havia recebido.
Os doze se empenham em uma missão Além disso, nenhum tempo devia ser
que é uma extensão da obra do próprio desperdiçado com pessoas que os rejei­
Jesus. Como vimos na história da pesca tassem e à sua mensagem. A sua procla­
maravilhosa (5:1-11), eles não possuíam mação do reino, em palavras e em obras,
nenhum poder, por herança, para tal demandava um a decisão. A decisão espe­
empreendimento. Conseqüentemente, rada era arrependimento (At. 2:37,38),
Jesus lhes dá poder para curar e autori­ mas, da mesma forma, rejeição também
dade sobre os espíritos malignos. é uma decisão. Tendo dado a uma cidade
Desta forma armados, os discípulos rebelde a sua oportunidade, os discípu­
são enviados. Eles são apóstolos ou los deviam ir avante, sacudindo o pó
“enviados” , cuja função corresponde ao daquele lugar dos seus pés. Era costume
papel do shalicha hebraico. Este era um dos judeus, que eram sensíveis a esses
termo legal, que designava uma pessoa a assuntos, sacudirem o pó contaminador
quem se delegava poderes para realizar de terras pagãs dos seus pés, antes de
uma tarefa específica, e que exercia entrar na Palestina. Um gesto semelhan­
autoridade em nome do que lhe enviara, te, executado pelos discípulos, era equi­
ao desincumbir-se de suas responsabili­ valente a dizer que uma comunidade
dades. Uma fonte rabínica diz: “ O envia­ judaica rebelde era comparável a terri­
do por um homem é como o próprio tório pagão.
homem” (Ber. 5,5). Os doze deviam
2) A Perplexidade de Herodes (9:7-9)
enfrentar o povo com a proclamação do
reino de Deus, confirmado por uma 7 O ra , o t e t r a r c a H e ro d e s so u b e d e tu d o o
que se p a s s a v a , e fico u m u ito p e rp le x o , p o r ­
demonstração do seu poder efetivo, q u e d iz ia m u n s : J o ã o re s s u s c ito u d o s m o r ­
atuante, em milagres de cura e exor­ to s ; 8 o u tro s : E lia s a p a r e c e u ; e o u tro s : U m
cismo. d o s a n tig o s p ro f e ta s se le v a n to u . 9 H e ro d e s,
O tom da narrativa indica que esta é p o ré m , d is s e : A J o ã o e u m a n d e i d e g o la r;
q u e m é , p o is, e s te a re s p e ito d e q u e m ouço
uma missão urgente, a ser realizada com ta is c o is a s ? E p ro c u r a v a vê-lo.
toda a pressa possível. Não se deve fazer
nenhum preparativo para a jornada. O comentário à reação de Herodes
Jesus instrui os seus apóstolos para nada Antipas, às notícias que circulavam a
levar, nem mesmo as coisas essenciais respeito de Jesus, constitui um interlúdio
para a existência (veja Marcos 6:8, onde entre a partida dos doze e a sua volta. A
um bordão é permitido). Bordão, alforje, narrativa de Lucas é adaptação da pas­
pão e dinheiro seriam os equipamentos sagem de Marcos, que é muito mais
básicos que um viajante normalmente longa (Mar. 6:14-29). A lista de diferen-
tes opiniões, que deram motivo à per­ s a r a v a os q u e n e c e s s ita v a m d e c u ra . 12 O ra ,
plexidade de Herodes, prepara a cena q u a n d o o d ia c o m e ç a v a a d e c lin a r, a p ro x i­
m a n d o -se os doze, d is s e ra m -lh e ; D esp e d e a
para o episódio da confissão (veja, adi­ m u ltid ã o , p a r a q u e, in d o à s a ld e ia s e a o s
ante, os v. 18-22). Em geral, essas opi­ sítio s e m re d o r, se h o sp e d e m , e a c h e m o q u e
niões parecem ligar Jesus com a era c o m e r; p o rq u e a q u i e s ta m o s e m lu g a r d e ­
messiânica, mas apenas como seu arauto se rto . 13 M a s e le lh e s d is s e : D ai-lh e s v ó s de
c o m e r. R e s p o n d e ra m e le s : N ão te m o s
ou como sinal do seu início, ao invés de se n ã o cin co p ã e s e d ois p e ix e s ; sa lv o se nós
ser a sua figura central, o Messias. A fo rm o s c o m p r a r c o m id a p a r a to d o e s te
primeira informação dada ao leitor, a povo. 14 P o is e r a m c e r c a d e cin c o m il h o ­
respeito do destino infeliz de João, apa­ m e n s . E n tã o d is se a s e u s d iscíp u lo s. F a z e i-
rece quando ele fica sabendo da conjec­ os re c lin a r -s e e m g ru p o s d e c e r c a d e c in ­
q ü e n ta c a d a u m . 15 A ssim o fiz e ra m , m a n ­
tura popular de que João ressuscitou dos d an d o q u e to d o s se re c lin a s s e m . 16 E , to ­
mortos. O tetrarca não crê nas especula­ m a n d o J e s u s o s cin c o p ã e s e os d ois p e ix e s,
ções a respeito de João (mas veja Mar. e o lh an d o p a r a o c é u , os a b e n ç o o u e p a r tiu , e
6:16). A João eu mandei degolar é um os e n tr e g a v a a o s se u s d isc íp u lo s p a r a os
p o ré m d ia n te d a m u ltid ã o . 17 T odos, p o is,
sumário e substituto para a narrativa c o m e ra m e se f a r t a r a m ; e fo r a m le v a n ta ­
mais minuciosa de Marcos a respeito da dos, do q u e lh e s so b e jo u , doze c e sto s d e
execução de João. p e d a ç o s.
Quem é, pois, este? Aqui está a per­
gunta central com que os Evangelhos Considerando o relato de Mateus, con­
lidam. É um tema unificador, nesta par­ cluiríamos que o fato de Jesus ter-se
te do terceiro Evangelho. Lucas está retirado com os discípulos, da Galiléia,
dizendo, aos seus leitores, quem é Jesus, seria devido à hostilidade de Herodes
sabendo do fato de que a convicção de Antipas (14:13). Lucas dá a entender o
sua própria fé é nada mais do que uma que Marcos declara explicitamente
das alternativas entre as quais os homens (6:31): que Jesus desejava escapar às
podem escolher. O problema de Herodes pressões da multidão, por algum tempo.
era o problema de toda a nação judaica, Em Lucas, a retirada é para Betsaida,
confrontada como estava pelo pertur­ enquanto, em Marcos 6:45, Jesus sai de
bador enigma da pessoa de Jesus. Como Betsaida depois de alimentar a multidão.
se deve interpretar essas notícias de atos As referências geográficas freqüente­
milagrosos? Mas Herodes não se con­ mente revelam mais acerca da perspec­
tenta em ouvir; ele quer ver Jesus, isto é, tiva teológica de Lucas do que a respeito
vê-lo realizar a espécie de milagres acerca da localização dos acontecimentos. Con-
dos quais o povo estava falando. Mais zelmann tem uma interpretação teoló­
tarde, Herodes e Jesus se defrontam face gica radical a respeito das referências
a face, mas o desejo do monarca não é geográficas de Lucas. As suas sugestões,
satisfeito (cf. 23:8). Na verdade, mesmo úteis algumas vezes, vão além dos limites
aqueles que viram Jesus realizar milagres fornecidos pelos dados (p. 18 e ss.). A
não o viram no sentido de perceber quem organização dos Evangelhos é determi­
realmente ele era ou é. Isto é claro diante nada por fatores estranhos à reconsti­
das opiniões que tinham acerca de tuição cronológica e geográfica do curso
Jesus, as quais eram todas errôneas. do ministério de Jesus. Uma caracterís­
3) A Alimentação de Cinco Mil (9:10-17) tica específica de Lucas é a tendência,
verificada aqui, de colocar aconteci­
10 Q uando os a p ó sto lo s v o lta ra m , c o n ta- mentos em cidades ou perto delas.
ra m -lh e tu do o que h a v ia m feito . E e le , le v an - Embora o desejo de Jesus de estar a sós
do-os consigo, re tiro u -s e à p a r t e p a r a u m a
c id a d e c h a m a d a B e ts a id a . 11 M a s a s m u lti­
com os discípulos tenha sido frustrado
d ões, p e rc e b e n d o isto , se g u ira m -n o ; e e le a s pela chegada das multidões, Lucas diz
re c e b e u , e fa la v a -lh e s do re in o d e D e u s, e que ele as recebeu. As atividades de Jesus
durante o dia são descritas à maneira É importante notar-se que não encon­
usual de Lucas. Ele as ensinou a respeito tramos, nesta narrativa, a conclusão
do reino de Deus e curou os enfermos. Os típica. Não há referência à admiração e
comentários dos doze, na conclusão do louvor, como reações a esse ato maravi­
dia, nos informam que eles não estavam lhoso. Da mesma forma, não há nenhu­
na cidade, mas em um lugar deserto. Em ma indicação de que outras pessoas,
Lucas, a necessidade de hospedagem, além dos doze, tivessem conhecimento do
bem como de comida é reconhecida pelos que realmente havia acontecido. A mara­
discípulos (cf. Mar. 6:36). vilha do ato de Jesus é subordinada ao
A alimentação das cinco mil pessoas é o seu significado como veículo da revelação
único milagre encontrado em todos os de-quem ele era.
quatro Evangelhos (Mat. 14:13-21; Mar. 4) A Grande Confissão (9:18-22)
6:32-44; João 6:1-14), o que indica a sua
importância na vida da igreja primitiva. 18 E n q u a n to e le e s ta v a o ra n d o à p a rte
a c h a v a m -s e co m e le so m e n te se u s d is c í­
Pães e peixes são símbolos da Eucaristia, p u lo s; e p e rg u n to u -lh e s; Q u em d ize m a s
encontrados nas paredes das catacumbas m u ltid õ e s q u e e u so u ? 19 R e sp o n d e ra m
cristãs em Roma. O uso desses símbolos e le s : U ns d iz e m : Jo ã o , o B a tis ta ; o u tro s:
mostra que os primitivos cristãos inter­ E lia s ; e a in d a o u tro s, q u e u m dos a n tig o s
p ro fe ta s se le v a n to u . 20 E n tã o lh e s p e rg u n ­
pretavam este milagre como protótipo da to u : M a s v ó s, q u e m d iz e is q u e e u so u ? R e s ­
Ceia do Senhor. A semelhança entre as p o n d en d o P e d ro , d is s e : O C risto de D eus.
ações de Jesus antes da distribuição do 21 J e s u s , p o ré m , a d v e rtin d o -o s, m a n d o u que
pão à multidão e as que praticou duran­ n ã o c o n ta s s e m isso a n in g u é m ; 22 e d isse-
lh e s : É n e c e s s á rio q u e o F ilh o do h o m e m
te a Ültima Ceia (Mar. 14:22; Mat. p a d e ç a m u ita s c o isa s, q u e s e ja re je ita d o
26:26) também tornam clara a íntima pelo s a n c iã o s , p e lo s p rin c ip a is sa c e rd o te s
identificação entre os dois episódios. e e s c r ib a s , q u e s e j a m o rto , e q u e a o te rc e iro
Em Lucas, este milagre parece cons­ d ia re s s u s c ite .
tituir um elo especial entre a interroga­ A omissão de longa seção de Marcos
ção de Herodes e a confissão dos discí­ (6:45-8:26) tem a conseqüência de levar a
pulos. Através da distribuição do pão, confissão dos discípulos a uma íntima
Jesus revela quem ele é, em consonância relação com as notícias a respeito de
com o tema de que se revela aos discí­ Herodes e o milagre da multiplicação.
pulos “no partir do pão” (24:35). Ao Quer fortuitamente quer de propósito, a
alimentar o povo no deserto, Jesus mos­ questão da identidade de Jesus se torna o
tra que ele é o novo Moisés, o Profeta que tema dominante de uma grande parte de
Deus havia prometido suscitar entre o Lucas, que alcança o seu clímax na con­
povo(Deut. 18:15). A abundância da era fissão dos discípulos.
messiânica, prevista pela expectativa Lucas omite a referência a Cesaréia de
popular, se havia tornado realidade. Filipe (Mar. 8:27), possivelmente porque
Todo o povo comeu até ficar satisfeito, a cidade ficava nos domínios de Filipe,
e ainda havia mais. Doze cestos, um para fora do que podia ser propriamente cha­
cada apóstolo, foram cheios, na conclu­ mado de território judaico. Só ele apre­
são da refeição. Embora compartilhas­ senta a cena com a informação de que
sem com a multidão, os doze ainda fica­ Jesus estava orando. Além de enfatizar a
ram com muito mais do que os cinco pães importância do episódio subseqüente,
e dois peixes, com que haviam começa­ isto nos leva a saber que Jesus e os discí­
do. Além do mais, o milagre tem um pulos não estão mais com a multidão.
significado escatológico, pois aponta A confissão é um divisor de águas, no
para o banquete messiânico celestial, que Evangelho de Marcos, uma linha divisó­
Jesus compartilhará com os seus segui­ ria distinta entre duas fases do ministério
dores. de Jesus. Depois da confissão, a narra-
tiva de Marcos passa rápida e direta­ conotações inaceitáveis. Ele é o Messias,
mente à paixão. A diferença, em Lucas, é mas não do tipo que o povo espera, nem
devida, em grande parte, à inserção de mesmo do tipo que os discípulos têm em
um bloco de material diferente (Luc. mente. Assim sendo, a confissão dos
9:51-18:14) no arcabouço de Marcos. discípulos é seguida pela interpretação
Jesus primeiro interroga os discípulos de Jesus do seu próprio destino. Em vez
a respeito das opiniões do povo. Isto não de Messias, ele usa a sua favorita auto-
é uma pergunta simplesmente introdu­ designação de Filho do homem (veja
tória, incidental. A fé não é vivida em um 5:24), que também contém conotações de
vácuo, mas no mundo em que os homens poder e glória, mas com associações
esposam pontos de vista opostos e confli­ apocalípticas, e não nacionalistas. O
tantes. Conseqüentemente, uma fé poder e a glória que pertencem ao Filho
criada em estufa nunca pode ser madura. do homem não devem ser alcançados
A convicção manifesta pelos crentes é através de auto-afirmação. De fato, a
apenas uma das opções que estão abertas verdade é exatamente o contrário; é
para os homens, e eles precisam sempre através da sujeição à humilhação e sofri­
entender isto. A resposta dada pelos mento que a glória deve ser alcançada.
discípulos a esta primeira pergunta cor­ Jesus diz que isso é necessário. O verbo
responde às indagações especulativas de impessoal dei (precisa) significa a neces­
Herodes Antipas (veja v. 9). sidade de propósito e controle divinos. O
Vem a hora, porém, quando a pessoa caminho do sofrimento não é opcional.
precisa parar de falar acerca das opiniões Já foi traçado por Deus. Qualquer outro
dos outros, e deve assumir a responsa­ caminho, por exemplo, o caminho do
bilidade de tomar uma decisão pessoal. movimento messiânico nacionalista, seria
Os discípulos haviam ido além do povo, satânico (veja 4:5-8). A cruz se opõe e
em sua percepção a respeito da identi­ julga a filosofia de poder que o mundo
dade de Jesus. Reconhecem nele a figura advoga. A repreeensão feita por Pedro,
central da era messiânica. Como porta- que ilustra a incapacidade dos discípulos
voz dos doze, a confissão de Pedro ex­ de aceitar a idéia de um Messias sofre­
pressa a convicção do grupo de que Jesus dor, e a áspera resposta de Jesus são
é o Messias de Yahweh, ou o Cristo de omitidas (cf. Mar. 8:32,33).
Deus (veja 2:11,26). Esta é a primeira 5) O Custo do Discipulado (9:23-27)
vez, desde os capítulos introdutórios do
terceiro Evangelho, em que alguém, 23 E m s e g u id a d iz ia a to d o s: Se a lg u é m
q u e r v ir a p ó s m im , n e g u e -se a si m e sm o ,
além dos demônios, reconheceu — pelo to m e c a d a d ia a s u a c ru z , e sig a -m e . 24 P o is
menos declarou — quem é Jesus. q u e m q u is e r s a lv a r a s u a v id a , p e rd ê -la -á ;
A confissão é seguida por uma ordem m a s q u e m p e r d e r a s u a v id a p o r a m o r de
de segredo. No contexto do terceiro m im , e s s e a s a lv a r á . 25 P o is , q u e a p ro v e ita
ao h o m e m g a n h a r o m u n d o in te iro , e p e rd e r-
Evangelho, há pelo menos duas maneiras se , ou p re ju d ic a r -s e a si m e s m o ? 26 P o rq u e ,
de entender essa ordem. Primeiro, Jesus q u e m se e n v e rg o n h a r d e m im e d a s m in h a s
tinha constantemente se recusado a fazer p a la v r a s , d e le se e n v e rg o n h a r á o F ilh o do
qualquer afirmação direta do seu messia­ h o m e m , q u a n d o v ie r n a s u a g ló ria , e n a do
nismo. Os seus atos e palavras conti­ P a i e d o s s a n to s a n jo s . 27 M a s e m v e rd a d e
vos d ig o : A lg u n s h á , d o s q u e e s tã o a q u i, q u e
nham os indícios de sua identidade. É da d e m o d o n e n h u m p ro v a r ã o a m o rte a té q u e
responsabilidade do povo que teStifica v e ja m o re in o d e D eu s.
essas coisas, reagir com base no que vê e
ouve (cf. 7:22,23). Discípulo é a pessoa que segue Jesus.
Segundo, embora Jesus aparentemente A palavra mathéthês (discípulo) significa
aceite a atribuição do título de Messias, aprendiz ou aluno, que é a definição
sabe muito bem que este tem algumas apropriada para o discípulo de um rabi
ou de um filósofo peripatético grego. nou que o homem é mais do que um
Mas ela infelizmente fica aquém da des­ corpo que precisa ser vestido e um estô­
crição de um discípulo de Jesus Cristo. mago que precisa ser satisfeito. Ele se
Visto que Jesus está destinado a sofrer defronta com as possibilidades de um
rejeição e morte, a pessoa que, na ver­ futuro que transcende a vida e a morte.
dade, o segue inevitavelmente partici­ O homem interesseiro, que segue os prin­
pará dessa experiência. Os discípulos de cípios de buscar os seus próprios interes­
Jesus tiveram que defrontar-se, final­ ses, com tanto êxito que ganha o mundo
mente, com um teste simples, absoluto: inteiro, a longo prazo, fez um mau negó­
Você_guer„morrer com Jesus? Eles ha­ cio. Ele pode ganhar o mundo, isto é,
viam sido chamados para dar a vida pela alcançar o máximo possível, em sucesso
fé que a última palavra não seria pro­ material, possuindo toda a riqueza e
nunciada pelo Sinédrio, por Pôncio Pila- poder. Mas não pode salvar a si mesmo
tos, e nem pelos soldados, que, de ma­ do destino final de um ser humano, que é
neira muito casual, estavam atraves­ determinado tão-somente por Deus.
sando as mãos de mais um condenado Envergonhar-se de Jesus significa não
com aqueles cravos. Os discípulos ha­ estar disposto a reconhecê-lo, quando
viam sido chamados para crer, como debaixo de pressões sociais, econômicas
Jesus o fizera, que, além das realidades ou políticas, quando, talvez, até a vida
cruéis e duras, desta era, situava-se a estiver em jogo. Requer-se, do discípulo,
realidade maior e final do reino de Deus. que ele afirme a sua lealdade, mesmo nas
O Novo Testamento nos diz que eles circunstâncias mais adversas. Para ele,
fracassaram no primeiro teste, mas pas­ portanto, o futuro contém ameaça tanto
saram nos subseqüentes. quanto promessa. A glória de que Jesus
Afirmar lealdade a Cristo requer que a fala é a completa revelação do poder
pessoa negue-se a si mesma. O discípulo soberano de Deus na Parousia do Filho
deve desistir de todas as reivindicações à do Homem. Os aryos são os exércitos
sua própria existência, renunciando às celestiais que servem a Deus e fazem a
suas ambições pessoais de proeminência sua vontade.
e poder. Em vez de tentar planejar o seu Noverso 27, Lucas omite “chegado com
próprio futuro, o discípulo é chamado poder” , com que Marcos conclui a pala­
para seguir a Jesus com total abandono, vra profética de Jesus (Mar. 9:1). É claro
crendo que Deus garantirá o seu futuro. que essa declaração foi removida, para
Tomar a sua cruz era o cúmulo da evitar qualquer associação com o fim dos
humilhação, a ignomínia a que se for­ tempos. Vejam o reino “significa que,
çava os criminosos condenados, que embora o reino, na verdade, não possa
eram obrigados a carregar o instrumento ser visto, ele pode ser percebido” (Con-
de sua própria execução. Mas, para o zelmann, p. 105). Isto é verdade, porque
cristão, é uma opção jubilosa e voluntá­ “a vida de Jesus é uma clara manifesta­
ria. Ã frase tome a sua cruz, Lucas ção da salvação no curso da história
acrescenta cada dia (cf. Mar. 8:34). Isto redentora’’ (ibid.).
tira a cruz do passado, e fá-la parte da
existência contemporânea. Ela não é 6) A Transfiguração (9:28-36)
apenas o instrumento sobre o qual Cristo 28 C e rc a d e o ito d ia s d ep o is d e te r p ro fe ­
morreu, mas também um modo de vida rid o e s s a s p a la v r a s , to m o u J e s u s con sig o a
— o oferecimento diário do seu eu à P e d ro , a J o ã o e a T ia g o , e su b iu a o m o n te
p a r a o r a r . 29 E n q u a n to e le o ra v a , m u d o u -se
vontade de Deus. a a p a r ê n c ia do se u ro s to , e a s u a ro u p a t o r ­
Paradoxalmente, o homem que arru­ n ou-se b r a n c a e re s p la n d e c e n te . 30 E e is q u e
ma pretextos e recua, a fim de salvar a e s ta v a m fa la n d o co m e le d ois v a rõ e s , q u e
sua vida, na verdade a perde. Jesus ensi­ e r a m M o isés e E lia s , 31 os q u a is a p a r e c e ­
r a m c o m g ló ria , e f a la v a m d a s u a p a rtid a , bém estava em oração quando ocorreu a
q ue e s ta v a p a r a c u m p rir-s e e m J e r u s a lé m .
transfiguração.
32 O ra, P e d ro e o s q u e e s ta v a m c o m e le se
h a v ia m d e ix a d o v e n c e r p elo so n o ; d e s p e r ­ Mudou-se a aparência do seu rosto é
ta n d o , p o ré m , v ir a m a s u a g ló ria e o s d ois um circunlóquio para a única palavra
v a rõ e s q u e e s ta v a m c o m e le . 33 E , q u a n d o usada por Marcos: “ele foi transfigura­
e s te s se a p a r t a v a m d e le , d is se P e d ro a do (metemorphõthé)” . O helenista Lucas
J e s u s : M e s tre , b o m é e s ta rm o s n ó s a q u i;
fa ç a m o s, p ois, tr ê s c a b a n a s , u m a p a r a ti, devia ser sensível às associações pagãs de
u m a p a r a M o isés, e u m a p a r a E lia s , n ã o uma palavra usada para descrever a
sa b e n d o o q u e d iz ia . 34 E n q u a n to e le a in d a capacidade, dos deuses, de assumir for­
fa la v a , v e lo u m a n u v e m , q u e o s c o b riu ; e se mas diferentes à vontade. Até este ponto,
a te m o r iz a r a m a o e n tr a r e m n a n u v e m . 35 E
d a n u v e m s a iu u m a voz, q u e d iz ia : E s te é o
a verdadeira identidade de Jesus fora ve­
m e u F ilh o , o m e u eleito-; a e le o u vi. 30 Ao lada por uma face galiléia e por roupas
s o a r e s t a voz, J e s u s foi a c h a d o so zin h o ; e galiléias comuns. “Os poderosos deste
e le s c a la ra m - s e , e p o r a q u e le s d ia s n ã o c o n ­ séculò” estavam convencidos de que
t a r a m a n in g u é m n a d a do q u e tin h a m v isto . haviam crucificado um provinciano qual­
quer, e não sabiam que realmente ha­
De acordo com Marcos, a transfigura­ viam matado “ o Senhor da Glória”
ção teve lugar seis dias apôs a confissão (I Cor. 2:8).
(9:2). Lucas faz um cálculo aproximado No momento, contudo, tanto a face
do tempo que se passou: cerca de oito como as roupas tomaram uma aparência
dias. Em ambos os casos, o que se dá a celestial. O semblante foi alterado, mu-
entender é uma semana. A referência dou-se. A sua roupa se tornou fulguran-
cronológica é dada para ligar a decla­ temente branca, como o relâmpago. A
ração a respeito da paixão e a transfi­ linguagem é escatológica. Terminologia
guração. O destino final de Jesus é a semelhante é usada para descrever Deus
exaltação, mas a glória é impossível sem (Dan. 7:9), o Filho do Homem exaltado
sofrimento e morte. (Apoc. 1:13 e ss.), os santos martirizados
Várias características peculiares mar­ (Apoc. 6:11; 7:14), visitantes celestiais
cam a narrativa do terceiro Evangelho, (Luc. 24:4), etc. A verdadeira identidade
isto é, a vigília de Jesus em oração, o sono de Jesus é apresentada visivelmente. Por
dos discípulos, o assunto da conversa um momento os discípulos tiveram um
entre Jesus e os visitantes celestiais e a vislumbre do Senhor exaltado, como ele
omissão do diálogo a respeito de João seria depois da luta que assomaria logo
Batista (cf. Mar. 9:2-13; Mat. 17:1-13). adiante.
Os três escolhidos para subirem a Moisés e Elias aparecem com glória.
montanha com Jesus, Pedro, João e Isto simplesmente significa que eles não
Tiago, são os discípulos também pre­ voltaram à aparência humana, mas são
sentes com ele durante a agonia do Getsê- vistos como seres celestiais, com sem­
mane (Mar. 14:33 — omitido por Lucas). blante resplandecente e roupa alva. Visto
Aparentemente, eles constituíam uma que eles já passaram pelas lutas e sofri­
espécie de círculo interior dentre os doze, mento de uma vida de serviço, para a
que continuaram a exercer liderança na presença de Deus, estão agora na glória.
igreja primitiva (cf. Gál. 2:9). Embora Tanto Moisés como Elias, as duas gran­
algumas pessoas tenham achado que a des figuras da era da Lei e dos Profetas,
transfiguração teve lugar no Monte Her- estavam associados com as expectativas
mom, o monte não significa, necessa­ messiânicas. Ambos também haviam
riamente, uma montanha específica. saído desta vida de maneira incomum. O
É o lugar de oração e revelação. Como assunto de sua conversação é a partida
acontecera por ocasião da descida do ou morte de Jesus, literalmente, o seu
Espírito, após o seu batismo, Jesus tam­ “êxodo” . Isto significa que eles conver­
saram a respeito da morte de Jesus, o e que elas, e não os discípulos, entraram
cumprimento da “ lei de Moisés e dos na nuvem.*
profetas” , como porta necessária para a A afirmação de filiação, pronunciada
entrada na glória (cf. Luc. 24:44-46). no começo do ministério de Jesus, é
A palavra êxodo pode também associar a reafirmada aqui, quando se tornou claro
morte de Jesus com a libertação de Israel que Jesus havia enfrentado e reconhecido
do cativeiro no Egito, sob a direção de a rejeição do seu povo. Ele é rejeitado
Moisés. Este é o novo Êxodo, através do pelos homens, porém não por Deus.
qual o novo Israel é libertado e trazido à Jesus é chamado de seu eleito. A variante
luz. “amado” é uma assimilação da declara­
Os três discípulos se haviam deixado ção feita por ocasião do batismo (3:22).
vencer pelo sono, o que ressalta o detalhe O título “eleito” afirma outra vez que
de que a experiência ocorreu de noite. Jesus é o Messias de Deus. Os seus sofri­
Para os discípulos, essa experiência foi mentos não são evidência de rejeição da
tanto garantia como chamado. A garan­ parte de Deus, mas, pelo contrário, pro­
tia de que o caminho que Jesus trilhava va de sua obediência.a Deus. A ele ouvi
conduzia à glória. O chamado, era para indica o profeta semelhante a Moisés
que eles o seguissem. Assim, um rápido acerca do qual fora dito: “A ele ouvirás”
vislumbre da glória, uma frágil visão de (Deut. 18:15). As palavras de Jesus
noite, é a única prova de que o ato de devem ter precedência sobre todas as
seguir a Jesus, ou seja, renúncia própria outras, inclusive as de Moisés e de Elias.
e morte, leva à participação na glória. Sobretudo os ensinamentos de Jesus a
Isto é o que os discípulos tinham que respeito da natureza do seu messianismo
ponderar, para contrabalançar os “fatos devem ser aceitos em lugar daqueles
sólidos” do “mundo real” . E assim tem ministrados pelos discípulos e seus con­
sido sempre. De um lado, está a fascina­ temporâneos. Lucas diz que os discípulos
ção do que os homens podem contar, não contaram nada a ninguém (cf. Mar.
sentir, possuir agora — uma conta ban­ 9:9). Eles não podiam falar da glória
cária, uma casa luxuosa, aceitação dele, porque não entendiam o relaciona­
social. Do outro, está a visão da noite, a mento dela com os sofrimentos que eram
visão de uma realidade vislumbrada profetizados. Esta compreensão acon­
breve e obscuramente (através de olhos teceria mais tarde (cf. At. 2:33).
sonolentos), que conclama os homens a
7) A Cura de um Epiléptico (9:37-43a)
renunciarem tudo para dedicarem suas
vidas ao serviço de Deus e dos homens. 37 N o d ia se g u in te , q u a n d o d e s c e r a m do
m o n te , v eio-lhe a o e n c o n tro u m a g ra n d e
A sugestão de Pedro, a respeito de m u ltid ã o . 38 E e is q u e u m h o m e m d e n tr e a
construir três cabanas, é uma rejeição do m u ltid ã o c la m o u , d iz e n d o : M e s tre , p eço -te
ensinamento de Jesus a respeito da ne­ q u e o lh es p a r a m e u filh o , p o rq u e é o ú nico
cessidade do seu sofrimento. Ele quer q u e te n h o ; 39 p o is u m e s p írito se a p o d e ra
d ele, fazendo-o g r i t a r s u b ita m e n te , convul-
aproveitar-se do momento de glória, e siona-o a té e s c u m a r e , m e s m o d ep o is d e o
prolongá-lo, eliminando, assim, todas as t e r q u e b ra n ta d o , d ific ilm e n te o la r g a . 40 E
lutas e dúvidas inerentes ao futuro para o ro g u e i a o s te u s d iscíp u lo s q u e o e x p u ls a s ­
qual Jesus os havia chamado. se m , m a s n ã o p u d e ra m . 41 R e sp o n d e u
A nuvem que os cobre é uma expressão J e s u s : Ó g e ra ç ã o in c r é d u la e p e r v e r s a ! a té
q u an d o e s ta r e i co n v o sco e v o s s o fre re i?
da presença de Deus (cf. Êx. 13:20 e s.; T ra z e -m e c á o te u filho. 42 A in d a q u a n d o e le
19:16 e ss.; 33:9 e ss.). Ê esta associação v in h a c h e g a n d o , o d em ô n io o d e rrib o u e o
que produz medo nos discípulos (cf.
especialmente Êx. 19:21 e ss). Embora a (*) Nota do tradutor: Esta é a opinião do comentarista
americano; porém, a tradução da IBB deixa a entender
sintaxe não seja clara, presumimos que a claramente que os discípulos se atemorizaram ao en­
nuvem cobriu as três pessoas glorificadas trar na nuvem.
c o n v u lsio n o u ; m a s J e s u s re p r e e n d e u o o F ilh o d o h o m e m e s t á p a r a s e r e n tre g u e
e sp irito im u n d o , c u ro u o m e n in o e o e n tre g o u n a s m ã o s d o s h o m e n s . 45 E le s , p o ré m , n ã o
a se u p a i. 43 E to d o s s e m a r a v ilh a v a m d a e n te n d ia m e s s a p a la v r a , c u jo se n tid o lh e s
m a je s ta d e d e D eu s. e r a e n c o b e rto , p a r a q u e n ã o o c o m p re e n ­
d e s s e m ; e te m ia m in te rro g á -lo a e ss e r e s ­
A multidão espera ao pé do monte, a p eito .
volta de Jesus. Da mesma forma como
Moisés desceu do Sinai, para encontrar Visto que Lucas não indica que Jesus
um povo sem fé (Êx. 32:15 e ss.), Jesus saiu da Galiléia (veja o itinerário de
também, ao descer, encontra os seus Marcos: 7:24,31; 8:10,22,27), ele omite a
discípulos desacreditados e humilhados. nota a respeito de sua volta (Mar. 9:30).
Esta situação não se verifica tão clara­ A segunda palavra acerca da paixão é
mente aqui como em Marcos 9:14 e ss. colocada juntamente com o milagre ante­
Visto que Jesus estava ausente, um pai rior, em que Jesus mais uma vez mani­
ansioso havia-se voltado para os discí­ festou o seu poder como Messias de
pulos dele. Devido ao fato de terem Deus. Esta dialética entre força e fra­
falhado as tentativas deles para exorcizar queza faz parte integrante do retrato que
o demônio, o homem agora roga a Jesus o Evangelho faz de Jesus. Ele é o forte
que olhe para o seu filho. Este verbo Filho de Deus; ao mesmo tempo, é o
significa ter interesse no sentido de aju­ “desamparado” , que é vítima do poder
dar. Lucas diz que o menino era filh o . do mal, isto é, entregue nas mãos dos
único. A descrição da enfermidade do homens. Esta expressão significa que os
menino indica que ele era sujeito a ata­ homens não tinham poder sobre ele, mas
ques epilépticos. ' que Deus lhes permitira exercê-lo.
O fracasso dos discípulos é considera- Z Ponde vós estas palavras em vossos
do como exemnlo de falta de fé e espírito \ ouvidos é um apelo solene, aos discípu­
rebelde de uma geração toda, que não ) los, para que compreendessem o para­
consegue ^e apropriar das opõFtunidades J doxo do Filho do homem sofredor. A
J apresentadas pela presença de Jesus. A explicação de Lucas, acerca da insensi­
'condenação é expressa em linguagem bilidade dos discípulos, é que o mistério
semelhante a de Deuteronômio 32:5. Ela lhes era encoberto, um a insinuação de
dá ênfase ao fato de que a oportunidade que esse encobrimento fazia parte do
concedida pela sua presença entre os propósito divino. A conjunção para que
homens é limitada no tempo. pode expressar resultado tanto quanto
O menino é curado e entregue a seu propósito. No caso, expressa claramente
pai (cf. 7:15). Esta história é condensa­ propósito. A cegueira deles não era cum­
da, devido à omissão do diálogo entre primento do propósito de Deus, mas,
Jesus e o pai em que aparece claramente a pelo contrário, o resultado do fato de que
fé incomum desse homem (Mar. 9:23, Deus havia decidido agir de maneiras
24), e a conversa entre Jesus e os seus que para eles eram incompreensíveis.
discípulos (Mar. 9:28,29). O poder de' Percebendo que se defrontavam com
Jesus sobre os demônios é uma evidência um mistério, eles temiam interrogá-lo
da majestade de Deus, palavra esta que mais a respeito. Estaria Lucas dando a
não se encontra em nenhuma outra parte entender que a conduta de Jesus era tão
^ dos Evangelhos. — J solene, quando ele falou do futuro, que
eles se sentiram intimidados? De qual­
8) A Segunda Palavra Acerca da Paixão quer forma, essa declaração responde a
(9;43b-45) uma interrogação que deve ter-se levan­
E , a d m ira n d o -s e to d o s d e tu d o o q u e J e s u s tado nos anos posteriores: Por que os
fa z ia , d is se e le a s e u s d is c íp u lo s: 44 P o n d e discípulos não fizeram as perguntas sus­
vós e s ta s p a la v r a s e m v o sso s o u v id o s; p ois citadas pelas revelações de Jesus até que
chegassem a entender o que ele estava nal. Desta perspectiva, ele interpreta
tentando lhes dizer? para eles os requisitos do discipulado.
Não devemos nos surpreender com a Jesus usa um ato de simbolismo profé­
cegueira deles quanto ao verdadeiro sig­ tico para apresentar a lição. Com uma
nificado da vida e dos ensinos de Jesus. pequena variante em relação a Marcos,
Os discípulos de hoje em dia ainda estão, Lucas torna o ato ainda mais significa­
aparentemente, não dispostos a aceitar o tivo. Marcos diz que Jesus colocou a
significado do sofrimento de Jesus para criança “ no meio deles” (9:36), mas em
eles. Conservando a cruz trancada, com Lucas vemos que Jesus a colocou junto de
segurança, no passado remoto, como si.
doutrina, mostramos que não entende­ Agora, a pergunta é: Como o discípulo
mos o que significa segui-lo. Desta for­ deve servir a Jesus? A resposta é: Minis­
ma, podemos ser religiosos e ainda con­ trando à criança que está junto dele. A
tinuar vivendo em esplêndido isolamento criança é o símbolo dos fracos e despro­
das feridas e necessidades do mundo. tegidos membros da família humana.
Não que devamos igualar as pessoas des-
9) Concernente à Grandeza (9:46-48) privilegiadas e indefesas com Deus. Mas
46 E su sc ito u -se e n tr e e le s u m a d isc u ssã o a dedicação a Deus, em seguir a Jesus, é
so b re q u a l d e le s s e r ia o m a io r. 47 M a s expressa primordialmente mediante atos
J e s u s , p e rc e b e n d o o p e n s a m e n to d e se u s
c o ra ç õ e s , to m o u u m a c r ia n ç a , p ô -la ju n to de de misericórdia e amor. Na Bíblia, Deus
si, 48 e d is se -lh e s: Q u a lq u e r q u e re c e b e r está intimamente identificado com as
e s ta c r ia n ç a e m m e u n o m e , a m im m e r e c e ­ vítimas da injustiça e do preconceito.
b e ; e q u a lq u e r q u e m e r e c e b e r a m im , Jesus também se identificou com elas —
re c e b e a q u e le q u e m e e n v io u ; p o is a q u e le
qu e e n tr e v ó s to d o s é o m e n o r, e s s e é g r a n ­
de fato, tão intimamente, que pode dizer
de. que, recebê-las, isto é, dar-lhes proteção
e ajuda, é recebê-lo e é receber Deus.
Visto que Lucas não segue Marcos, em A maneira “religiosa” de evitar o im­
localizar este incidente em Cafarnaum pacto das exigências de Jesus é estabe­
(Mar. 9:33), o efeito resultante é rela­ lecer um “culto a Jesus” . Podemos nos
cioná-lo intimamente com a palavra pre­ reunir em edifícios especiais (que cha­
cedente a respeito da paixão. Desta for­ mamos erradamente de “igreja”), cantar
ma, a estupidez dos discípulos é ilustrada hinos a respeito de Jesus, tornarmo-nos
pela informação de que eles estavam sentimentais a respeito dele, chorar, ao
discutindo por melhores posições, em se falar nele, e depois nos levantarmos
que se empenharam tão depressa depois para andar com os olhos secos e cegos
que Jesus lhes havia falado a respeito de através de um mundo de miséria e ne­
morrer. A base de sua rivalidade era o cessidade, sem nos importarmos com as
seu conceito errado, já anteriormente espécies de pessoas a que ele serviu.
demonstrado, a respeito do reino mes­ Quando agimos assim, a religião se torna
siânico (cf. Mat. 18:1). Porque eles ainda maligna, porque propicia um escape,
achavam que estavam seguindo um líder santificado pelo nome de Jesus, da seve­
que obteria vitória sobre os inimigos de ridade das exigências que ele faz quanto
Israel e estabeleceria um reino glorioso, às nossa vidas (cf. Mat. 25:31 e ss.).
ambicionavam papéis preponderantes na Em segundo lugar, a criança repre­
dinastia davídica, que hipoteticamente se senta o menor do grupo. Condicionada,
restabeleceria. como estava, pelo ambiente de autori­
Se eles tivessem entendido as declara­ dade de que estava cercada, a criança
ções de Jesus a respeito de seu destino, não tinha ilusões quanto ao seu lugar.
teriam percebido que ele se considerava Seria inconcebível que ela discutisse com
servo, em vez de herói messiânico nacio­ os discípulos a respeito de uma posição
de proeminência. A criança era maior do alguns grupos cristãos têm invertido esta
que os discípulos exatamente porque era máxima, para dizer: “Quem não está
isenta de pretensões. Conseqüentemente, seguindo conosco é contra nós.”
o discípulo que desejar ser grande, para­
doxalmente precisa desistir de todas as IV. Da Galiléia a Jerusalém: Par­
ambições de ser grande. te Um (9:51-13:30)
10) Concernente aos Estranhos (9:49,50) Começa agora a grande seção central
(9:51-19:27), que dá, ao Evangelho de
49 D isse-lh e J o ã o : M e s tre , v im o s u m h o ­
m e m q u e e m te u n o m e e x p u ls a v a d e m ô n io s; Lucas, tanto do seu caráter distintivo.
e lho p ro ib im o s, p o rq u e n ão se g u e conosco. A fonte de Marcos é colocada de lado, e
30 R esp o n d eu -lh e J e s u s : N ão lho p ro ib a is ; não será usada outra vez, senão na últi­
p o rq u e q u e m n ã o é c o n tr a v ó s é p o r vós. ma parte da seção (18:15 e ss.).
Lucas apresenta uma pequena, mas A seção central parece representar, em
significativa modificação na narrativa de parte, a solução, apresentada por Lucas,
Marcos, que faz com que o ponto de para o problema do que fazer com a
contenda seja vívido. Os discípulos dizem grande quantidade de material que ele
que o exorcista anônimo não estava se­ havia coletado em relação à vida de
guindo com eles (cf. Mar. 9:38). Isto Jesus. Ele foi capaz de colocar grande
quer dizer que ele estava seguindo Jesus, parte dele na “brecha” propiciada pelo
mas não como parte do grupo deles. relato de Marcos acerca da última via­
Expulsando demônios em nome de Jesus, gem de Jesus a Jerusalém (cf. Mar. 10:1,
ele estava exercendo as prerrogativas do 17,32). As várias referências a uma via­
discipulado sem ter o que eles considera­ gem dão uma espécie de unidade literá­
vam credenciais válidas. ria a esta parte de Lucas (9:51,57; 10:38;
A questão da validade de formas e 13:22,33; 17:11; 18:31; 19:1,11,28). Não
funções tem preocupado a comunidade obstante, o conteúdo dela consiste de
cristã desde os seus primeiros dias. O passagens mais ou menos heterogêneas,
número de membros de um certo grupo é que não iluminam a verdadeira seqüên­
a prova de sua autenticidade? Uma teo­ cia cronológica ou geográfica do ministé­
ria de sucessão apostólica ou alguma rio de Jesus. Em outras palavras, elas
variação dela é fundamento adequado não conseguem se enquadrar em uma
para determinar a validade do ministério verdadeira viagem a Jerusalém.
de um discípulo? Primordialmente, a viagem a Jerusa­
Jesus ensina que a prova da validade lém propicia o tema teológico para a
não é o cumprimento de alguns requisi­ seção central. Coloca, tudo o que ocorre
tos formais estabelecidos pelo grupo. A depois de 9:51, sob a influência da cruz.
realidade do relacionamento da pessoa O fim agora é conhecido. Não nos é
com Jesus é expressa na qualidade de sua permitido esquecer que o destino de
vida e de seus atos, especialmente no Jesus é Jerusalém. Sabemos que Jesus vai
cumprimento do papel de servo. O ho­ se defrontar com Israel, em sua cidade
mem a quem os discípulos haviam re­ capital, com as suas reivindicações mes­
preendido estava ministrando a vidas siânicas “veladas” . Também sabemos
necessitadas, em nome de Jesus. Em um que ele será rejeitado e executado. Em­
versículo, omitido por Lijcas, Marcos bora a jornada não nos ajude a traçar o
sublinha a ênfase de Jesus no papel de itinerário de Jesus a Jerusalém, ela esta­
servo como a característica determinante belece o destino de sua vida. Não impor­
do discípulo (Mar. 9:41). ta onde esteja ele, em dado momento,
O princípio de Jesus está contido nas não importa qual seja o palco original da
palavras quem não é contra vós é por vós perícope isolada que faz parte da seção,
(cf. Fil. 1:15-18). Através dos séculos, tudo leva a um clímax em Jerusalém.
Várias tentativas foram feitas para plexo da morte, ressurreição e assunção.
descobrir um plano subjacente, unifi­ É muito possível que Lucas esteja evo­
cador, nessa seção central. Uma das cando associações com a história apó­
sugestões mais notáveis é a de C. F. crifa da assunção de Moisés e com o
Evans, de que ela tinha o desígnio de ser relato da trasladação de Elias no Velho
um “Deuteronômio” cristão. 19 Prova­ Testam ento.21
velmente, contudo, diante das evidên­ Jesus aceita voluntariamente o impera­
cias, não temos o direito de ir além da tivo divino sob o qual a sua vida havia
declaração sumária de W. G. Kuemmel: sido colocada, quando manifestou o fir­
“Em 9:51—19:27, o Senhor, que vai me propósito de ir a Jerusalém. O para­
sofrer de acordo com a vontade de Deus, doxo da eleição divina e responsabilidade
equipa os seus discípulos para a missão humana em nenhum outro lugar é visto
de pregar depois de sua morte.” 20 mais claramente do que no ensino sobre
1. O Começo da Viagem (9:51-62) a morte de Jesus. Os escritores do Novo
Testamento estavam ansiosos para mos­
1) Rejeitado Pelos Samaritanos (9:51-56) trar que a morte de Jesus não significava,
51 O ra , q u a n d o se c o m p le ta v a m os d ia s para Deus, uma derrota. O homem não
p a r a a s u a a s s u n ç ã o , m a n ife s to u o firm e havia vencido — nem sequer por um
p ro p ó sito de ir a J e r u s a lé m . 52 E n v io u , p o is, momento. Deus estava na direção o tem­
m e n s a g e iro s a d ia n te d e si. In d o e les, e n t r a ­
r a m n u m a a ld e ia d e s a m a r ita n o s , p a r a lh e po todo. Sobretudo, os cristãos primi­
p r e p a r a r e m p o u s a d a . 53 M a s n ã o o r e c e b e ­ tivos estavam convencidos de que Jesus
r a m , p o rq u e v ia ja v a e m d ire ç ã o a J e r u s a ­ não era uma vítima indefesa, involun­
lé m . 54 V endo isto , os d isc íp u lo s T iag o e tária, das circunstâncias. Ele preferiu
J o ã o , d is s e r a m : S en h o r, q u e re s q u e m a n d e ­ trilhar a estrada que escolhera, sabendo
m o s d e s c e r fogo do cé u p a r a os c o n su m ir
(com o E lia s ta m b é m fe z )? 55 E le , p o ré m , muito bem qual era o seu amargo desti­
v o ltan d o -se re p re e n d e u -o s (e d is s e : Vós n ã o no, mas também convencido de que, ao
s a b e is d e q ue e s p írito so is.) 56 (P o is o F ilh o perder a sua vida, ele a ganharia. Não
do h o m e m n ã o v eio p a r a d e s tr u ir a s v id a s obstante, isto não absolve da culpa, de
d os h o m e n s, m a s p a r a s a lv á -la s .) E fo r a m
p a r a o u tr a a ld e ia .
forma alguma, os homens que mataram
Jesus. Deus o “entregou” (At. 2:23);
O versículo 51 se constitui em um Jesus voluntariamente aceitou a morte;
ponto decisivo na apresentação do minis­ mas os homens (e não Deus) o mataram,
tério de Jesus feita por Lucas. Ele intro­ por um ato de ilegalidade (At. 2:23; cf.
duz uma nova seção, que termina com a Stagg, p. 128-135).
sua aproximação de Jerusalém. Esta pas­ Mensageiros são enviados à frente,
sagem contém um número incomum de aparentemente para procurar acomoda­
semitismos (cf. Plummer, p. 262 e s.), ções para passar a noite. A hostilidade
que são obscurecidos na tradução por­ entre judeus e samaritanos era profunda
tuguesa. Quando se completavam os dias e antiga. Os samaritanos faziam questão
expressa a convicção de que tudo o que especial de manifestar má vontade para
acontece está sob controle divino. Assun­ com os peregrinos que tomavam a estra­
ção é tradução de substantivo do texto da direta, através do seu território, para
grego que pode significar “morte” , mas participarem da celebração da Páscoa
Lucas o usa para abranger todo o com­ em Jerusalém (Josefo, Antig., 20,6,1).
Porque Jesus estava a caminho de Jeru­
19 Veja “The Central Section of St. Luke’s Gospel” , em
Studies in the Gospels, ed. D. E. Ninehatn (Oxford: salém, os samaritanos não o receberam.
Basil Blackwell, 1955), p. 37-53. Tiago e João foram chamados de
20 Introduction to the New Testament, Paul Feine e “filhos do trovão” (Mar. 3:17 — omitido
Johannes Behm; reeditado por Werner George Kuem­
mel, tradução de A.J. Mattill, Jr. (New York: Abing­
don Press, 1966), p. 99. 21 Evans, op. cit., p. 50 e ss,
por Lucas). Agora eles justificavam o seu quem ele segue. Agora aprendemos, de
apelido, mediante a sua atitude sangui­ três exemplos concretos, o que Jesus
nária para com os samaritanos. A reda­ requer dos que desejam segui-lo. Os dois
ção opcional colocada entre parêntesis, primeiros têm paralelos em Mateus
em nossa versão, “como Elias também 8:19-22; o terceiro se encontra apenas em
fez” é, provavelmente, uma interpola­ Lucas.
ção, mas a sugestão feita pelos discípulos O primeiro discípulo em perspectiva é
faz lembrar o episódio dê II Reis 1:10. um voluntário, mas que não percebe as
Era apenas em um incidente envolvendo implicações de sua decisão. Talvez ele
estrangeiros que os discípulos queriam tivesse pensado que o caminho pelo qual
tomar medidas tão drásticas. Eles tam­ Jesus viajava levasse ao sucesso e poder.
bém achavam que Deus participava do Mas nós sabemos que é diferente. E
seu desprezo pelos samaritanos, e faria como; Levava para o Getsêmane e o
chover fogo destruidor sobre eles. Eles Gólgota. Jesus não teve uma dedicação
não haviam aprendido que a sua missão superficial. Ele era um evangelista do
não era destruir, mas transformar e reino de Deus; mas, diferentemente de
curar. A sua atitude de desamor foi re­ tantos que disseram estar representando-
preendida por Jesus. o, ele não concordou com métodos evan-
Esta história foi útil na missão aos gelísticos baratos. As palavras de Jesus a
gentios, empreendida mais tarde, pois esse homem seguem-se imediatamente à
testificava contra a hostilidade de um experiência em que negaram hospeda­
ramo da comunidade judaica cristã. gem a Jesus. Mas elas também prevêem
Mostra que Jesus era contra o antigo um momento muito mais trágico, quando
espírito de inimizade entre os dois grupos ele será rejeitado e morto (cf. João
raciais. Embora o texto mais longo, entre 1:10,11). Seguir Jesus significa participar
parêntesis, dos versículos 54-56 deva ser do seu desabrigo no mundo, e, final­
julgado como interpolação, é uma exce­ mente, de sua rejeição e morte.
lente interpretação da atitude de Jesus. O segundo homem estava disposto a
seguir Jesus, mas só depois de se desin-
2) As Severas Exigências de Jesus (9:
cumbir duma obrigação das mais sagra­
57-62)
das. O seu dever mais importante, como
57 Q uan do ia m p elo c a m in h o , d isse-lh e filho, era cuidar de seu pai, em sua
u m h o m e m : S eg u ir-te-ei p a r a o n d e q u e r que
fo re s. 58 R esp o n d eu -lh e J e s u s : As ra p o s a s velhice, e finalmente dar-lhe uma sepul­
té m co v is, e a s a v e s do c éu tê m n in h o ; m a s o tura honrosa. Por ser uma contradição
F ilh o do h o m e m n ão te m o n d e re c lin a r a tão chocante à piedade judaica, a respos­
c a b e ç a . 59 E a o u tro d is s e : S eg u e-m e. Ao ta de Jesus lança em agudo relevo as
que e s te re s p o n d e u : P e rm ite -m e i r p rim e iro
s e p u lta r m e u p a i. 60 R ep lico u -lh e J e s u s :
reivindicações exclusivas do reino de
D eix a os m o rto s s e p u lta r os se u s p ró p rio s Deus. Há pessoas que estão mortas, isto
m o r to s ; tu , p o ré m , v a i e a n u n c ia o re in o de é, espiritualmente mortas, por não terem
D eus. 61 D isse a in d a o u tro : S en h o r, e u te respondido aos apelos de Deus, ao ponto
s e g u ire i; m a s d e ix a -m e p rim e iro d e s p e d ir - de não poderem assumir nem as impor­
m e d o s q u e e s tã o e m m in h a c a s a . 62 J e s u s ,
p o ré m , lh e re s p o n d e u : N in g u é m q u e la n ç a tantes responsabilidades como enterrar o
m ã o do a ra d o e o lh a p a r a t r á s é a p to p a r a o pai, conforme aquele homem. A urgên­
re in o d e D eus. cia da hora e a tarefa a realizar-se exigem
que os poucos que se submeteram ao
A chamada para o discipulado é uma domínio de Deus se dediquem à procla­
chamada para participar da dedicação e mação do reino. Este encargo não pode
entrega de Jesus, e dos sofrimentos nelas estar em segundo lugar, em relação a
inerentes. O destino do discípulo pode nenhuma outra lealdade ou responsa­
não ser diferente do destino da pessoa a bilidade.
0 terceiro homem achava difícil cortar TDNT, II, 30). O número setenta (seten­
os laços que o amarravam ao seu passado ta e dois?) provavelmente tem significado
e à sua cultura. Faltava-lhe a decisão e simbólico. Uma associação possível com
dedicação com que precisava enfrentar o o Velho Testamento é com o número de
futuro para que Deus o chamou. A fim anciãos (setenta) indicados por Moisés,
de arar um sulco reto, o fazendeiro pre­ para ajudá-lo na administração (Núm.
cisa escolher um ponto de referência e 11:16,24). O espírito desceu em dois
mover-se em direção a ele. Ele precisa outros, elevando o total para setenta e
conservar os olhos fixos no alvo. Da dois (Núm. 11:26). Mais provavelmente,
mesma forma, o reino de Deus tudo no entanto, o número simboliza as na­
absorve, tudo exige, requerendo que as ções gentílicas de Gênesis 10. No texto
pessoas que se dedicam a ele o façam sem Massorético o número é setenta, enquan­
qualificações, reservas ou pesar. to na LXX é setenta e dois. Isto explica a
2. A Missão dos Setenta (10:1-24) vacilação das autoridades entre setenta
e setenta e dois, no texto de Lucas 10:1.
1) Instruções aos Setenta (10:1-12) No pensamento de Lucas e seus leitores,
1 D epois d isso d e sig n o u o S e n h o r o u tro s a missão dos setenta provavelmente
s e te n ta , e o s e n v io u a d ia n te de si, d e d o is e m representava a missão cristã aos gentios.*
d ois, a to d a s a s c id a d e s e lu g a r e s a o n d e e le O verbo enviou indica que esses são os
h a v ia d e ir . 2 E d iz ia -lh e s: N a v e rd a d e , a
s e a r a é g ra n d e , m a s os tr a b a lh a d o r e s sã o
representantes de Jesus com autoridade,
p o u co s; ro g a i, p o is, a o S e n h o r d a s e a r a que ou shaliahs (cf. 9:1). Como testemunhas
m a n d e tr a b a lh a d o r e s p a r a a s u a s e a r a . 3 do reino de Deus, eles são enviados de
Id e ; e is q u e vos en v io com o c o rd e iro s ao dois em dois, segundo o padrão de Deu-
m eio d e lobos. 4 N ão le v e is b o ls a , n e m a lf o r­ teronômio 19:15. O testemunho de dois
je , n e m a lp a r c a s ; e a n in g u é m s a u d e is p elo
c a m in h o . 5 E m q u a lq u e r c a s a e m q u e e n ­ homens é digno de confiança. A sua
tr a r d e s , d izei p r im e ir o : P a z s e j a co m e s t a tarefa é descrita como de preparação
c a s a . 6 E se a li h o u v e r u m filh o d a p a z , para uma missão subseqüente, a ser rea­
r e p o u s a rá so b re e le a v o ss a p a z ; e se n ão , lizada por Jesus pessoalmente.
v o lta rá p a r a vós. 7 F ic a i n e s s a c a s a , c o m e n ­
do e beb en d o do q u e e le s ti v e r e m ; p o is d ig n o
Em Mateus, o comentário acerca dos
é o tr a b a lh a d o r do se u s a lá rio . N ão a n d e is trabalhadores e da seara é feito em rela­
de c a s a e m c a s a . 8 T a m b é m , e m q u a lq u e r ção ao ministério itinerante do próprio
c id ad e e m q ue e n tr a r d e s , e vos re c e b e re m , Jesus (9:37,38). A seara é uma figura do
c o m ei do q u e p u s e r e m d ia n te d e v ó s. 9 C u ra i reino de Deus, que está por vir, em
os e n fe rm o s q u e n e la h o u v e r, e d izei-lh es:
É ch e g a d o a v ó s o re in o d e D e u s. 10 M a s e m ambos os seus aspectos: de salvação e de
q u a lq u e r c id a d e e m qu e e n tr a r d e s , e vos n ã o julgamento (3:17). O fato e a extensão da
re c e b e re m , sain d o p e la s ru a s , d iz e i: 11 A té seara nunca são postos em dúvida, por­
o pó d a v o ss a c id a d e , q u e se n o s p e g o u a o s que são determinados pela soberania de
p é s, sa c u d im o s c o n tra vós. C ontudo, s a b e i
is to : q u e o re in o d e D eu s é c h e g a d o . 12 Digo-
Deus, e não condicionados por fatores
vos q u e n a q u e le d ia h a v e r á m e n o s rig o r estranhos a essa soberania. Porém
p a r a S o d o m a, do q u e p a r a a q u e la c id a d e . isso não remove a necessidade de tra­
balhadores. Eles são os arautos do
O título de Senhor que Lucas dá a reino, homens que o anunciam e concla­
Jesus, constantemente, sublinha o papel mam os outros a uma decisão. Porém,
de autoridade de Jesus em relação aos mesmo esses são fornecidos pelo Senhor
discípulos que ele envia. Designou é da colheita. Portanto, em sentido ne­
freqüentemente usado no sentido de no­ nhum a colheita depende de esforços
meação para cargo público. Ele vem para puramente humanos. As pessoas que se
Lucas “ da esfera política, e a instituição
dos setenta tem um caráter de ação (*) Nota do Tradutor: Na Bíblia na Linguagem de Hoje,
pública e oficial” (Heinrich Schlier, da SBB, o número apresentado é setenta e dois.
preocupam com a natureza crítica dos Deus, segundo se pensa, volta para
tempos têm um recurso: podem rogar a aqueles de quem saiu.
Deus que mande arautos adicionais. Os setenta não devem preocupar-se
Os mensageiros são enviados como com a qualidade de sua hospitalidade. A
cordeiros ao meio de lobos. Da mesma sua preocupação deve ser com a sua
forma como Jesus estava no mundo, missão. Também não devem ter um
assim também os seus discípulos devem senso de culpa pelo fato de viverem da
estar — desarmados e expostos à rejeição generosidade dos outros. Aqueles que
e violência, que são as características do levam a mensagem do reino de Deus são
mundo. dignos de serem sustentados pelos que a
Os setenta viajarão completamente recebem (cf. I Cor. 9:4 e ss.; Gál. 6:6).
desprovidos de provisões. Não devem Sobretudo, eles estão livres dos fardos e
levar bolsa (de dinheiro), nem alforje restrições impostas pelas leis alimentícias
para provisões, possivelmente do tipo dos judeus. Eles devem comer o que for
usado pelos mendigos, e nem mesmo posto à sua frente. Um dos maiores pro­
alparcas para os pés. Não terão a segu­ blemas, enfrentados pelos evangelistas
rança de possuir o suficiente nem mesmo judeus, na missão gentílica, relacionava-
para uma futura refeição. A urgência de se com a comunhão à mesa. Paulo, apa­
sua missão é enfatizada pela ordem: rentemente, resolveu-o, na forma indica­
a ninguém saudeis pelo caminho. As da pelo texto (I Cor. 10:27), mas outros
saudações orientais eram tão cerimonio­ acharam difícil comer comida gentílica
sas e demoradas que os mensageiros não com os gentios (cf. Gál. 2:11 e ss.).
podiam condescender em gastar o tempo Nos versículos 9 e 11, encontramos a
requerido nelas. declaração incomum em Lucas: É chega­
do a vós o reino de Deus. Isto não significa
A saudação que devia ser usada pelos que o dia final da salvação e juízo esteja
discípulos era a antiga palavra semita próximo. Para Lucas, o reino de Deus
shalom ou paz, que era basicamente uma estava presente no mundo, na pessoa de
expressão do desejo pelo bem-estar de Jesus. Visto que os setenta eram os seus
outrem. Mas essa saudação assume novo representantes autorizados, o fato de eles
significado. Está se referindo à paz da curarem os enfermos e proclamarem o
era messiânica, que pode ser possuída reino traziam-no para perto dos habi­
agora pelas pessoas que desejam parti­ tantes das cidades que eles visitavam.
cipar dela. Em contraste com o uso rabí- O povo podia apropriar-se dos seus
nico, é uma questão pessoal e individual, benefícios, e juntar-se aos que esperavam
baseada no relacionamento da pessoa confiantemente a manifestação final do
com Deus. Portanto, é sinônimo de sal­ reino.
vação (cf. 7:50). Os missionários saem com a palavra de
Um filho da paz é uma pessoa que salvação, mas o resultado de sua missão
esteja esperando a “consolação de Israel” pode ser o juízo. Eles devem sacudir o
(2:25), que se espera que receba os arau­ pó, de uma cidade hostil, contra os seus
tos do reino. Possivelmente, a hostilidade habitantes rebeldes, dramatizando o fato
de um indivíduo para com os pregadores de que estão sob o juízo de Deus (veja
será a evidência de que não é filho da 9:5).
paz. Nesse caso, a paz deles voltará Naquele dia (v. 12) é o dia do juízo.
para eles. Da mesma forma como o Sodoma era o exemplo de iniqüidade em
pronunciamento da salvação messiânica, o Velho Testamento. Mas a cidade mais
a paz é considerada como algo mais ou ímpia da antiguidade se sairia muito
menos objetivo. A salvação messiânica melhor no juízo do que a cidade que
pode ser rejeitada, caso em que o dom de rejeitasse os enviados de Jesus.
2) Conseqüências da Rejeição (10:13-16) dizem a futura humilhação do orgulhoso
13 Ai d e ti, C o razim ! a i d e ti, B e tsa id a ! rei da Babilônia. Hades é o lugar dos
P o rq u e , se e m T iro e e m S idom se tiv e sse m mortos, ou a própria morte, e é sempre
o p e ra d o os m ila g r e s q u e e m v ó s se o p e r a ­ usado desta forma no Novo Testamento,
ra m , h á m u ito , s e n ta d a s e m cilício e cin z a , com uma exceção (Luc. 16:23). Em vez
e la s se te r ia m a rre p e n d id o . 14 C ontudo,
p a r a T iro e S idom h a v e r á m e n o s rig o r no
da vida, Cafarnaum escolhera o caminho
ju ízo do q ue p a r a v ós. 15 E tu , C a fa m a u m , da morte.
p o rv e n tu ra s e r á s e le v a d a a té o c éu ? a té o O versículo 16 segue o v. 12 mais logi­
h a d e s d e s c e rá s . camente do que o v. 15, visto que ele
16 Q u em v o s o u v e, a m im m e o u v e ; e continua o pensamento dos versículos
q u e m v o s re je ita , a m im m e r e j e it a ; e q u e m
a m im m e r e je ita , r e j e it a a q u e le q u e m e 10-12, onde o tema é a rejeição do minis­
enviou. tério dos discípulos. Como delegados
pessoais de Jesus, os setenta representam
Corazim, mencionada outra vez, em o a própria pessoa que os enviou, em pes­
Novo Testamento, apenas no paralelo soa, palavras e atos. Ouvi-los é ouvir
apresentado por Mateus (11:21), ficava, Jesus. A pessoa que ouve a palavra de
aproximadamente, a três quilômetros ao Deus, neste sentido, apropria-se dela.
norte de Cafarnaum. Betsaida, à curta Freqüentemente, nas Escrituras, ouvir é
distância a leste, ficava localizada na praticamente sinônimo de fé (Gerhard
margem norte do lordão, na Galiléia. Os Kittel, TDNT, I, 216e ss.).
milagres eram a cura dos enfermos, puri­ A rejeição dos missionários é corres­
ficação de leprosos, exorcismo de demô­ pondente à rejeição de Jesus, que os
nios e ressurreição de mortos, mencio­ enviou. É também uma rejeição de Deus,
nados no relato do ministério da Galiléia. porque Deus enviou Jesus como seu
Esses milagres não haviam feito com que Shaliah, para falar e agir em nome dele.
o povo renunciasse à sua rebeldia e se 3) A Volta dos Setenta (10:17-20)
submetesse ao domínio de Deus. 17 V o lta ra m d ep o is os s e te n ta co m a le ­
Tiro e Sidom eram cidades gentias, g ria , d iz e n d o : S en h o r, e m te u n o m e , a té os
portos fenícios, considerados como cen­ d em ô n io s se n o s s u b m e te m . 18 R espondeu-
tros de idolatria e perversão. .Jezabel, lh e s e l e : E u v ia S a ta n á s , com o ra io , c a ir do
filha do rei dos sidônios, era a fenícia céu . 19 E is q u e v o s d e i a u to r id a d e p a r a p is a r
s e rp e n te s e e sc o rp iõ e s, e so b re todo o p o d e r
responsável por grande parte da idolatria do in im ig o ; e n a d a vos f a r á d a n o a lg u m .
do Reino do Norte, durante o ministério 20 C ontudo, n ã o vos a le g r e is p o rq u e se vos
de Elias. Mas essas cidades idólatras su b m e te m os e s p írito s ; a le g ra i-v o s a n te s
teriam sido muito mais responsivas à p o r e s ta r e m os v o sso s n o m e s e s c rito s nos
presença de Jesus do que os centros céu s.
galileus do seu trabalho haviam sido. Quando os setenta voltaram, estavam
Cilício, material grosseiro, feito de ca­ cheios de alegria, como homens livres.
belo de cabras ou camelos, era vestido Eles não precisavam mais viver no cons­
como símbolo de grande lamentação a tante temor do poder maligno dos demô­
respeito dos pecados. Sentar-se em nios. Os demônios se submetem a eles,
cinzas tinha o mesmo significado. que são representantes do Libertador
Cafarnaum havia sido a sede do minis­ messiânico. As vitórias dos discípulos,
tério de Jesus na Galiléia. Mas a arro­ porém, não eram triunfos pessoais, con­
gante cidads, ostentando justiça própria, seguidos pelo esforço próprio, pelos
havia rejeitado a mensagem de Jesus e quais eles podiam jactar-se, como crédito
havia-se recusado a se humilhar, em próprio, pois haviam sido realizados em
arrependimento. As palavras com que nome de Jesus. Visto que o nome está no
Jesus profetiza a queda da cidade são lugar da pessoa, os demônios haviam-se
tiradas de Isaías 14:13,15, onde elas pre­ submetido à autoridade de Jesus. Con­
seqüentemente, os discípulos não são mento (Fil. 4:3; Heb. 12:23; Apoc. 3:5).
independentes do seu Senhor, como dá a Ter o nome escrito nos céus é ter a
entender o uso que se faz desse título. certeza de vida eterna na presença de
Em Jó, Satanás é retratado como Deus. Não são as vitórias dos discípulos,
estando no céu como acusador do ho­ mas a soberania final e decisiva de Deus
mem (1:6; 2:1). No Apocalipse, ele é o sobre o mal que é a base para a sua
poder maligno espiritual que desafia a esperança e o alicerce do seu regozijo.
autoridade de Deus no céu, que é a 4) O Regozyo de Jesus (10:21-24)
própria sede dessa autoridade (12:7 e
21 N a q u e la m e s m a h o r a e x u lto u J e s u s no
ss.). O inevitável fracasso de Satanás é E s p irito S a n to , e d is s e : G ra ç a s te d o u , ó P a i,
prefigurado na vitória dos delegados en­ S e n h o r do c é u e d a t e r r a , p o rq u e o c u lta ste
viados por Jesus sobre os demônios, que e s ta s c o is a s a o s sá b io s e e n te n d id o s, e a s
representam o poder de Satanás no re v e la s te a o s p e q u e n in o s ; sim , ó P a i, p o r­
q u e a s s im foi d o te u a g ra d o . 22 T o d a s a s
mundo. A sua queda será como um raio, c o isa s m e fo r a m e n tr e g u e s p o r m e u P a i ; e
o que quer dizer, a sua derrota será re­ n in g u é m c o n h e ce q u e m é o F ilh o se n ã o o
pentina e completamente decisiva. P a i; n e m q u e m é o P a i s e n ã e o F ilh o , e
Serpentes e escorpiões significam for­ a q u e le a q u e m o F ilh o o q u is e r re v e la r.
ças sinistras e malignas. Aqui eles são 23 E , v o ltan d o -se p a r a os d isc íp u lo s, d is ­
se-lh es e m p a r t ic u l a r : B e m -a v e n tu ra d o s os
sinônimos da inimizade e do poder ma­ olhos q u e v ê e m o q u e v ó s v e d e s. 24 P o is vos
ligno de Satanás. Jesus declara que os digo q u e m u ito s p ro f e ta s e r e is d e s e ja r a m
discípulos estão livres do mal que Sata­ v e r o q u e vó s v e d e s , e n ã o o v ir a m ; e o u v ir o
nás poderia fazer contra eles (baseado q u e ou v is, e n ã o o o u v ira m .
em Sal. 91:13). Ao expulsar os demônios, Exultou Jesus no Espírito Santo é uma
estavam eles pisando serpentes e escor­ frase característica de Lucas (cf. 2:27),
piões, por meio da autoridade que Jesus que normalmente indicaria que uma
lhes havia dado. Significa isto que o pessoa está em um estado de êxtase
tempo do ministério de Jesus, o tempo da profético. No padrão de aceitação e re­
salvação, é um período em que os dis­ jeição com que o seu trabalho era rece­
cípulos estão livres dos ataques furiosos bido, Jesus vê evidências da elaboração
de Satanás (Conzelmann, p. 28, 80 e ss., dos propósitos de Deus. Ele expressa gra­
etc.)? Se assim é, o tempo de Jesus é tidão a Deus porque a sua obra de reden­
como a nova era que será introduzida ção continua por linhas tão paradoxais.
pela Parousia (cf. Apoc. 21:3,4). O tem­ Pai é a afirmação, de Jesus, de sua cons­
po quando Jesus estava na terra se torna ciência de que como Filho ele mantém
a base da confiança e esperança para a um relacionamento único com Deus.
Igreja, sitiada e perseguida, enquanto Mas aquele que é Pai também é Criador
espera a consumação da história. Final­ e Rei, Senhor do céu e da terra.
mente, nada poderá fazer dano algum Os sábios e entendidos são os escribas,
aos seguidores de Jesus. os homens que são eruditos nas tradições
Jesus acautela os setenta para não de sua religião. Os pequeninos são o povo
exagerarem a importância dos atos que simples, sem arrogância e pretensões.
haviam realizado. Os exorcismos haviam As pessoas que estão procurando se tor­
sido “ um sinal da salvação que se apro­ nar mestras do conhecimento de Deus
ximava, mas eram, necessariamente, são cegas para com o que Deus está
de menor importância do que o fato de fazendo entre elas. Por outro lado, as
que os discípulos haviam sido eleitos pessoas que são religiosamente iletradas,
como participantes da própria salvação” são receptivas à obra de Deus. Como
(Barrett, p. 64). O símbolo de um livro pessoa, Deus se faz conhecido através
celestial é comum na literatura do judaís­ da revelação. Ele só pode se revelar às
mo, e aparece também no Novo Testa­ pessoas que, humildemente cônscias de
sua necessidade, se voltam para ele, 3. Ensinos Acerca de Relacionamentos
abertas para o seu juízo e sua graça. Para (10:25-42)
todos os outros ele permanece desconhe­
cido. 1) A Pergunta do Doutor da Lei (10:
Do teu agrado é tradução da mesma 25-28)
palavra encontrada em um caso diferen­ 25 E e is q u e se le v a n to u c e rto d o u to r d a
lei e, p a r a o e x p e rim e n ta r, d is s e : M e s tre ,
te, em 2:14, onde ela é traduzida errada­ q u e f a r e i p a r a h e r d a r a v id a e te r n a ? 26
mente “de boa vontade” (deveria ser: de P e rg u n to u -lh e J e s u s : Q ue e s t á e s c rito n a
quem ele se agrada). Significa o prazer lei? C om o lê s tu ? 27 R esp o n d e u -lh e e le :
de Deus e refere-se especificamente à von­ A m a rá s a o S e n h o r te u D e u s d e to d o o te u
c o ra ç ã o , d e to d a a tu a a lm a , d e to d a s a s tu a s
tade de Deus, verificada na escolha da­ fo rç a s e d e to d o o te u e n te n d im e n to , e ao
queles que ele chamou para si. Foi do seu te u p ró x im o com o a ti m e sm o . 28 T o rnou-lhe
agrado escolher os que não são sofisti­ J e s u s : R e sp o n d e ste b e m ; fa z e isso , e v iv e ­
cados, em vez dos sábios, isto é, daqueles rá s.
que se consideram sábios.
Todas as coisas é indefinido como O doutor da lei, sinônimo apresentado
estas coisas. Inclui tudo o que Deus deu por Lucas para escriba, assume o papel
ao Filho, tanto no reino da sabedoria de quem deseja aprender, e coloca Jesus
como no do poder. O conhecimento no papel de rabi, chamando-o de Mestre.
significa, primordialmente, o entendi­ Somos levados a perceber que ele tem
mento que se origina de um relaciona­ segundas intenções. Ele deseja experi­
mento pessoal, mais do que o domínio de mentar Jesus, para mostrar que ele é
dogmas teológicos ou palavras eruditas a inepto e ingênuo em discussão teológica.
respeito dos atributos de Deus. Só uma Em Marcos 12:29-31, é Jesus quem
pessoa se situa na espécie de relaciona­ combina a exigência de amor a Deus
mento com Deus que lhe dá a possibi­ (Deut. 6:4,5) com os requisitos de amor
lidade de conhecê-lo: esta é o Filho. Da ao próximo (Lev. 19:18). Aqui ele res­
mesma forma, só o Pai realmente co­ ponde à interrogação do doutor da lei
nhece quem é o Filho. A consciência de com um a pergunta, que era um método
Jesus, acerca de sua identidade como rabínico comum para ensinar. Nenhuma
Filho e Servo Sofredor-Messias, se ori­ versão de Deuteronômio 6:5 apresenta o
ginara da revelação de Deus a ele, e não predicado quádruplo encontrado no ver­
dependia das opiniões populares a res­ so 27a. No pensamento hebreu, coração e
peito dele. mente são sinônimos. As duas palavras
A função especial do Filho é ser o reve­ gregas provavelmente representam tra­
lador do Pai (João 14:9). Jesus está no duções independentes da palavra he­
mundo como ser humano, aceitando as braica que significa coração, que foram
conseqüências desse fato, que incluem juntadas para formar o texto que está por
falta de entendimento e percepção de detrás das citações do Novo Testamento
quem ele é, a fim de que ele possa revelar (Leaney, p. 182). O significado é que o
o Pai aos homens de quem Deus se homem deve amar a Deus com a totali­
agrada. dade do seu ser.
Os profetas e reis de Israel pertenciam O amor pelo próximo é apresentado
ao tempo da preparação. Os profetas como dependente da atitude da pessoa
haviam acendido a candeia da esperança para com o seu próprio eu. Sem um
messiânica. Os reis haviam esperado a conceito apropriado do valor próprio,
vinda do Messias, descendente do grande como ser humano, é impossível ter a
rei Davi. Os discípulos têm o privilégio atitude correta para com o próximo.
de ver em Jesus o cumprimento desses Arrogância, desprezo pelos outros e
anseios e dessa fé. preconceito são, basicamente, expressões
de pouca auto-estima e de insegurança Para um judeu, o próximo era outro
interior. judeu, ou um prosélito completo. Os
Faze isto, requereu Jesus. Desta for­ fariseus limitavam ainda mais essa
ma, a capacidade de dar a resposta cor­ acepção, excluindo pessoas como publi-
reta às perguntas teológicas não garante canos e pecadores. Jesus respondeu à
que a pessoa vivera. Uma fraqueza da pergunta com uma parábola, que devas­
ortodoxia, quer judaica quer cristã, é a tou esses padrões de pensamento reco­
crença errada de que a pessoa pode nhecidos como válidos.
satisfazer a Deus dando as respostas O primeiro personagem desse drama é
aceitáveis a questões que são elaboradas um homem. Não sabemos se ele era
pelo próprio erudito. O teste decisivo é se branco ou preto, judeu ou gentio, reli­
as nossas vidas são governadas pelo amor gioso ou não-religioso. Ele era um ser
a Deus e ao nosso próximo. humano que, como tantos outros, tor­
nara-se a vítima indefesa do mal.
2) O Bom Samaritano (10:29-37)
A primeira pessoa a descer pela estra­
29 E le , p o ré m , q u e re n d o ju s tific a r-s e , da, depois que ocorrera a tragédia, é um
p e rg u n to u a J e s u s : E q u e m é o m e u p ró x i­
m o? 30 J e s u s , p ro sse g u in d o , d is s e : U m h o ­ sacerdote. Porque os sacerdotes passa­
m e m d e s c ia d e J e r u s a lé m a J e r ic ó , e c a iu vam por aquele caminho todas as sema­
n a s m ã o s de s a lte a d o r e s , os q u a is o d e sp o ­ nas, depois do seu serviço no Templo
j a r a m e , esp an can d o -o , se r e t ir a r a m , dei- (veja 1:23), isto não era incomum. De­
xando-o m eio m o rto . 31 C a s u a lm e n te , d e s c ia
p elo m e s m o c a m in h o c e rto s a c e r d o te ; e,
pois de servir a Deus durante uma sema­
vendo-o, p a ss o u d e la r g o . 32 D e ig u a l m o d o , na, ele se defrontava com uma oportu­
ta m b é m urn le v ita c h eg o u à q u e le lu g a r, nidade de servir ao homem. Mas a situa­
viu-o, e p a sso u d e la rg o . 33 M a s u m s a m a ­ ção era complicada para ele, porque era
rita n o , q u e ia d e v ia g e m , c h eg o u p e rto d e le , um religioso. Ao que ele saiba, o homem
e, vendo-o, e n c h eu -se d e c o m p a ix ã o ; 34 e,
a p ro x im a n d o -se , a to u -lh e a s fe rid a s , d e i­ inconsciente podia estar morto. Se to­
tan d o n e la s a z e ite e v in h o ; e, pondo-o so b re casse o corpo, para saber se estava vivo,
a s u a c a v a lg a d u ra , levou-o p a r a u m a e s t a ­ podia contaminar-se (Lev. 21:1). E,
la g e m , e cuidou d e le . 35 No d ia se g u in te , também, não havia forma de se deter­
tiro u d o is d e n á rio s , deu-os a o h o sp e d e iro e
d isse -lh e : C u id a d e le ; e tu d o o q u e g a s ta r e s
minar quem era esse homem. Um ho­
a m a is , e u to p a g a r e i q u a n d o v o lta r. 36 Q u al, mem nu, espancado, sangrando, não tem
pois, d e s te s t r ê s te p a r e c e te r sid o o p ró x im o rótulos de posição social ou afiliação
d a q u e le q u e c a iu n a s m ã o s d o s s a lte a d o re s ? religiosa. Ele podia ser um publicano —
37 R e sp o n d eu o d o u to r d a le i: A quele q u e ou até um samaritano! Nesse caso, ele
usou d e m is e ric ó rd ia p a r a co m e le . D isse-
lh e, p o is, J e s u s : V ai, e faz e tu o m e sm o . não seria um próximo, a quem o sacer­
dote estivesse obrigado a ajudar, segundo
O doutor da lei se encontrava em uma a sua interpretação da Lei. A melhor
situação um tanto embaraçosa. Por que coisa a fazer, nessa situação duvidosa,
fizera ele uma pergunta para a qual sabia portanto, era passar tão longe dele quan­
a resposta? Ele achava necessário justi­ to possível. Um levita, um dos ajudantes
ficar-se, levando o assunto mais adiante. do Templo, segue o exemplo do sacer­
O amor a Deus claramente não tem dote, sem dúvida, devido às mesmas
limites, porém o amor ao próximo pode razões.
ser limitado pela definição de próximo. O que Jesus fez foi apresentar uma
Quem é o meu próximo? foi uma inter­ situação concreta, em que as pessoas
rogação legítima, conforme às discussões agem, baseadas na sua compreensão dos
teológicas contemporâneas. dois mandamentos recitados pelo doutor
A definição de próximo freqüente­ da lei. Os conflitos entre as regras reli­
mente depende de quem a faz. O seu giosas e fossem quais fossem os instintos
próximo pode ser o inimigo de outrem. humanitários que eles tivessem eram
resolvidos em favor das primeiras. Essas T in h a e s ta u m a ir m ã , c h a m a d a M a ria , a
duas pessoas agem como o próprio dou­ q u a l, se n ta n d o -se a o s p é s do S en h o r, o u v ia a
s u a p a la v r a . 40 M a r ta , p o ré m , a n d a v a p r e o ­
tor da lei certamente teria agido. c u p a d a co m m u ito se rv iç o ; e, a p ro x im an d o -
O terceiro homem a passar por ali foi se , d is s e : S en h o r, n ã o se te d á q u e m in h a
um samaritano. Que choque e ira o ir m ã m e te n h a d e ix a d o a s e r v ir sozin h a?
exemplo de Jesus deve ter suscitado entre D ize-lhe, p o is, q u e m e a ju d e . 41 R esp o n d eu -
os seus ouvintes! Podemos entender lh e o S e n h o r: M a r ta , M a r ta , e s tá s a n s io s a e
p e r tu r b a d a co m m u ita s c o is a s ; 42 e n tr e ­
como eles se sentiram tão-somente se ta n to , p o u c a s sã o n e c e s s á ria s , ou m e s m o
tivermos o mesmo tipo de preconceito, u m a só ; e M a r ia e sco lh e u a b o a p a r te , a
em relação a pessoas de outra raça, como q u a l n ã o lh e s e r á ti r a d a .
os judeus e samaritanos tinham uns pelos
outros. Só nesta história se faz referência a
O samaritano “ amou” a vítima inde­ M arta e Maria, nos Evangelhos Sinóp­
fesa. Nessa história, verificamos que o ticos. O quarto Evangelho dá um papel
amor não é um sentimento fraco. Tam ­ importante a Maria, M arta e seu irmão
bém aprendemos como é que se ama Lázaro(11:1 e ss.; 12:1 e ss.). Lucas diz
“verdadeiramente” (veja o v. 28). O que M arta tinha um a casa em uma
samaritano fez as coisas práticas, de bom aldeia. João identifica o lugar em que
senso, requeridas pelas condições da- eles viviam como Betânia, pequena vila
. quele infeliz. Derramou óleo e vinho cerca de dois quilômetros a leste de Jeru­
misturados, remédio comum nos tempos salém. O fato de Jesus estar em Betânia,
antigos, nas chagas do homem, atou-as, nesta conjuntura, porém, não se enqua­
colocou o homem inconsciente sobre o dra no padrão requerido por uma via­
seu próprio animal, e levou-o para uma gem a Jerusalém, pois Jesus nem entra na
estalagem. Ali ele fez todos os prepara­ Judéia antes de 18:35 e ss. (Veja comen­
tivos necessários para suprir as suas ne­ tário a Lucas 9:51 e ss.).
cessidades imediatas e futuras. A cena é visualizada facilmente. Jesus
A fim de amar o seu próximo, a pessoa é o rabi cercado pelos seus discípulos.
precisa sentir-se próxima, sensível à res­ Maria também estava ali, sentada aos
ponsabilidade que lhe é conferida pela pés do Senhor. Sentar-se aos pés de uma
necessidade de qualquer outro ser huma­ pessoa era a expressão idiomática equi­
no. Quem era o próximo? O doutor da lei valente a “estudar sob a direção de al­
é forçado a responder à pergunta. Ele guém” (cf. At. 22:3). Desta forma, Ma­
não consegue proferir a odiada palavra ria é retratada como aluna, por si mesmo
“samaritano” , e, por isso, usa um cir­ uma inovação revolucionária, pois os
cunlóquio. Mas não pode evadir-se da rabis não ensinavam mulheres.
moral da história. Não pode haver con­ O senso de responsabilidade de Marta,
flito entre o amor a Deus e o amor a como hospedeira, não permitiu que ela
outro ser humano. E, então, Jesus acres­ seguisse o exemplo de Maria. E, sobre­
centa a repreensão, que coroa o diálogo. tudo, ela ficou irada porque achava que
O exemplo dado a esse arrogante inte­ sua irmã estava se aproveitando dela.
lectual não foi o sacerdote piedoso e orto­ Apelou para Jesus, hóspede, cujas neces­
doxo, ou o levita, mas o odiado samari­ sidades precisavam ser satisfeitas e cuja
tano. A tradução em português apre­ palavra seria reconhecida como ordem,
senta o pronome pessoal enfático do pela sua irmã.
grego: Tu, faze da mesma forma. A interpretação da resposta de Jesus, à
queixa de Marta, é complicada por um
3) Marta e Maria (10:38-42) problema textual muito difícil. Há cinco
38 O ra , q u a n d o ia m d e c a m in h o , e n tro u
J e s u s n u m a a ld e ia ; e c e r ta m u lh e r, p o r variações, cada uma das quais tem forte
n o m e M a r ta , o re c e b e u e m s u a c a s a . 39 apoio nas autoridades: (1) poucas (coi-
sas) são necessárias, ou mesmo uma só Há, nas autoridades, muitas variantes
(IBB); (2) poucas coisas são necessárias; do texto de Lucas, geralmente adotado
(3) poucas coisas são necessárias, ou para esta oração, mas a maior parte
apenas uma (4) D omite 42a; (5) outras delas foi produzida pela tendência de
testemunhas textuais ocidentais omitem assimilar a versão mais longa, a de Ma­
tudo, menos “Marta, M arta” e “M aria” teus. Uma variante importante e interes­
(41b e 42a). Do ponto de vista da evi­ sante é encontrada em algumas autori­
dência textual, geralmente se dá mais dades, que substitui a segunda petição
peso a (3), porque ela tem o apoio dos por: “ Que o teu Espírito Santo venha
grandes Unciais H e B. Se este é o sobre nós e nos purifique.” Em bases
original, a resposta de Jesus seria enten­ intrínsecas, isto é, o interesse de Lucas
dida desta forma: “poucas coisas são pelo Espírito Santo, uma boa discussão
necessárias — na verdade, apenas um a.” pode ser entabulada quanto à originali­
Isto quer dizer que, basicamente, apenas dade dessa versão. No entanto, o texto da
a parte espiritual escolhida por Maria é oração que a versão da IBB sublinha tem
essencial. Se a redação é (2), entende­ o apoio dos melhores manuscritos, e é
remos que a observação se refere a pra­ aceito pela maioria dos eruditos como o
tos. M arta não precisa se ocupar com a original.
preparação de tantos pratos. Se (1) é o A prática de oração particular por
original, a única coisa se refere à escolha Jesus fornece a ocasião para o pedido dos
feita por Maria. Desta forma, este inci­ discípulos. Esse pedido é explicado pela
dente seria ilustração do princípio: “ O frase como também João ensinou aos
homem não vive só de pão, mas de tudo o seus discípulos. Não era incomum um
que sai da boca do Senhor” (Deut. 8:3; discípulo pedir instruções do seu rabi
cf. Luc. 4:4). M arta estava preocupada quanto à oração. Esse discípulo anônimo
com pão para o estômago; Maria estava sabia as orações públicas, que ele e seus
mais interessada em ouvir a palavra de companheiros de adoração recitavam
Deus. Visto que Maria fez a escolha cor­ como parte do culto na sinagoga. Mas
reta, não será privada dela. essas orações não eram adequadas para a
nova vida em que Jesus havia introduzido
4. Ensinos Acerca da Oração (11:1-13) os seus discípulos.
Jesus levou os seus discípulos a se diri­
1) A Oração Modelo (11:1-4) girem a Deus como Pai. Esta, pelo menos
1 E s ta v a J e s u s e m c e rto lu g a r o ra n d o e, em parte, é a revelação que Jesus, o Filho
q u an d o a c a b o u , d isse-lh e u m d o s se u s d is c í­ de Deus, apresenta a respeito de Deus.
p ulos : S en h o r, e n sin a-n o s a o r a r , com o t a m ­ Ele o conhece como Pai, e leva outros a
b é m J o ã o en sin o u a o s se u s d iscíp u lo s. 2 Ao
que ele lh e s d is s e : Q uando o ra r d e s , d izei: um relacionamento filial com ele. A idéia
P a i, sa n tific a d o s e ja o te u n o m e ; v e n h a o da paternidade de Deus é também en­
te u re in o ; 3 d á-n o s c a d a d ia o n o sso p ã o contrada no Velho Testamento (cf. v. g.
co tid ian o ; 4 e p e rd o a -n o s os n o sso s p e c a d o s, Deut. 32:6; Sal. 89:25 e ss.; Is. 1:2;
p ois ta m b é m n ó s p e rd o a m o s a to d o a q u e le
que nos d e v e ; e n ã o n o s d e ix e s e n tr a r e m
63:16; Mal. 3:17). Mas era um prisma de
te n ta ç ã o , (m a s liv ra -n o s do m a l). menor importância, no ensino judaico a
respeito de Deus. E, da mesma forma,
Duas das sete petições inscritas por Deus não era mencionado como Pai da
Mateus, a terceira e a última, estão maneira pessoal, íntima, que Jesus usou.
faltando na versão de Lucas, da oração Um judeu podia usar o termo litúrgico
modelo (cf. Mat. 6:9-13). E também as Abbi (“ meu Pai”) ou podia colocá-lo em
contidas em Lucas mostram algumas paralelo com um título como Rei, como
pequenas variações dos paralelos em na sexta das “dezoito bênçãos” . Ou
Mateus. podia dirigir-se a Deus como “Pai celes­
tial” , usando uma frase qualificadora, Estas duas petições são rogativas
para enfatizar a distância entre o homem escatológicas pela consumação da
e Deus. (A frase de Mateus 6:8 é uma história. Mas elas também são intensa­
expansão litúrgica equivalente ao uso mente pessoais e contemporâneas. A
judaico.) natureza fragmentada do universo não é
O uso que Jesus fez de Abba (Pai) deve nada mais do que um retrato do estado
ter parecido chocantemente íntimo para fragmentado de nossas vidas interiores,
os seus contemporâneos, porque era a em que há muita coisa que não está
palavra que as crianças usavam, ao diri­ debaixo do domínio de Deus. Ninguém
girem-se aos seus pais. O mais próximo pode orar fervorosamente para Deus ser
equivalente é o termo “papai” , em língua reconhecido, em toda parte, como santo
portuguesa. Toda a dependência, confi­ Soberano, se não anelar que Deus tenha
ança e amor que as crianças sentem por domínio completo sobre a sua própria
seu pai é expresso neste termo. E ele vida.
também expressa toda a ternura, amor e Está incluída, nesta oração, uma prece
cuidado com que Deus se relaciona com pelas necessidades físicas da vida. A
os seus filhos. Jesus revelou que Deus palavra traduzida como cada dia é uma
não era, antes de tudo, um majestoso das mais enigmáticas do Novo Testa­
Criador ou augusto Soberano, e que ele mento. É encontrada apenas no frag­
não era, de forma alguma, um tirano mento de um papiro, fora dos comen­
vingativo, diante de quem os seus filhos tários dos escritores cristãos a esse texto.
precisavam tremer de medo. Acima de “Para amanhã” é um significado prová­
tudo, ele é Pai. vel, mas alguns intérpretes o rejeitam,
porque acham que os ensinos de Jesus
As primeiras duas petições são para­ excluem a ansiedade a respeito do pão
lelas, e se projetam para o fim do século, para amanhã, isto é, as necessidades do
que trará a solução final dos problemas futuro. Outra possibilidade é “necessá­
do pecado e da rebelião. Ambas são rio” (Werner Foerster, TDNT, II, 590 e
construídas na voz passiva, um estrata­ ss.). Neste caso, o discípulo é ensinado a
gema gramatical, usado para evitar o uso depender de Deus como Israel o fez no
do nome divino. Em cada caso, todavia, deserto, para o sustento essencial de cada
é Deus que deve ser o sujeito da ação. Ele dia. Lucas usa o imperativo dá-nos, no
santificará o seu nome; ele fará com que presente, e a frase cada dia. Mateus
o seu reino venha. coloca “dar” no tempo aoristo, e usa “de
Nome está no lugar da pessoa, neste cada dia” (6:11). Podemos interpretar o
caso, a pessoa de Deus. Deus já é santo, e pedido de Lucas da seguinte maneira:
não pode ser feito mais santo ainda. Não “Dá-nos dia a dia o pão que é necessário
obstante, os homens não reverenciam e para esse dia.” Em contraste, a maioria
adoram a ele tanto quanto deviam. de nós deseja pão armazenado para os
Pecam contra ele, e, ao fazê-lo, profa­ próximos dez ou vinte anos.
nam o seu nome. Esta petição, por con­ Embora a redação seja ligeiramente
seguinte, clama a Deus para que ele faça diferente, tanto Lucas como Mateus
vir o dia quando será reconhecido, em mostram que o fato de Deus nos perdoar
todas as partes, como santo. Deus já é está relacionado inseparavelmente com o
Rei, mas não é reconhecido, em todas as fato de perdoarmos o nosso próximo.
partes, como Senhor soberano. A oração Jesus nunca permite que escapemos de
para que o seu reino venha é uma oração nosso próximo, em nossa comunhão com
pelo começo da era futura, quando não Deus. Pelo contrário, ele ensina que os
haverá mais incoerência e rebelião no que se aproximam de Deus são, ao mes­
universo. mo tempo, confrontados pelos seus ir­
mãos. Jesus nos desafia a basearmos as oração. A sua estrutura indica que esta
nossas reivindicações ao perdão de Deus aplicação é, provavelmente, secundária
em nossa disposição de perdoar os (cf. J. Jeremias, p. 118). O problema não
outros, um desafio que poucos de nós é que o homem precisa vencer a relutân­
estamos dispostos a aceitar. cia de Deus em ouvir e responder às suas
Tentação é o teste que pode levar uma orações. Pelo contrário, ele localiza-se na
pessoa a cair em pecado. Essa petição pessoa que ora. Se Deus não responde
não é uma acusação indireta de Deus, imediatamente e nos seus termos, o indi­
pois ele não quer que o homem peque. víduo pode ser que perca a fé na existên­
Pelo contrário, ela deve ser o padrão para cia de Deus ou no seu caráter de Pai
as humildes orações de um discípulo amoroso. A persistência na oração é um
que reconhece a sua fraqueza. A pessoa ato de fé, um testemunho da nossa
que ora: “Não me deixes entrar em ten­ crença em um Deus amoroso, pessoal.
tação” , na verdade, está dizendo: “Sou Durante certos tempos do ano, o in­
fraco, e há muitas situações com que não tenso calor do Oriente Médio faz com
consigo medir-me.” O significado da que a pessoa viaje bem de manhã, ou
oração é ilustrado no Getsêmane. Jesus bem tarde. Não era incomum uma pes­
recomendou os seus discípulos, despre­ soa viajar a pé e chegar ao seu destino
parados, sem compreensão, a orarem, tarde da noite. Visto que o pão era
para que não fossem lançados em uma amassado diariamente, conforme à
situação de prova para a qual não esti­ necessidade diária prevista, as famílias
vessem preparados (Mar. 14:38). Se eles geralmente não deixavam sobrar ne­
tivessem ouvido esse conselho, os seus nhum pão depois da última refeição.
atos, nas horas seguintes, poderiam ter Mas era considerado um a desgraça não
sido muito mais nobres e mais corajosos. receber, um viajante cansado e faminto,
com uma boa refeição. Por esta razão, o
2) O Amigo Importuno (11:5-13)
homem que recebe um hóspede inespe­
5 D isse-lh es ta m b é m : Se u m d e v ó s tiv e r rado à meia-noite chega ao ponto de
u m a m ig o , e se fo r p ro c u rá -lo à m e ia -n o ite e
lh e d is s e r : A m ig o , e m p r e s ta -m e tr ê s p ã e s , incomodar o vizinho para conseguir pão.
6 pois q u e u m a m ig o m e u , e s ta n d o e m v ia ­ O humor da cena é ineludível. Todos
g e m , ch eg o u à m in h a c a s a , e n ã o te n h o o q u e os filhos já foram dormir. A porta já foi
lh e o f e r e c e r; 7 e se e le , d e d e n tro , re s p o n ­ trancada, e o dono da casa, cansado, já
d e r : N ã o m e in c o m o d e s; j á e s t á a p o r ta
fe c h a d a , e os m e u s filh o s e s tã o co m ig o n a
se deitara também, finalmente, quando
c a m a ; n ã o p o sso le v a n t a r -m e p a r a te a te n ­ se ouve bater à porta. Os meus filhos estão
d e r ; 8 digo-vos q u e , a in d a q u e n ã o se le v a n te comigo na cama não significa que estão
p a r a lh o s d a r p o r s e r se u a m ig o , to d a v ia , todos dormindo na mesma cama. O sen­
p o r c a u s a d a s u a im p o rtu n a ç ã o , se le v a n ­
t a r á e d a r á q u a n to s p ã e s e le p r e c is a r . 9 P e lo
tido é: “ Os meus filhos, bem como eu,
q u e e u v o s d ig o : P e d i, e d a r-se -v o s-á ; b u s ­ estão na cama.” Todos estão dormindo
c a i, e a c h a r e is ; b a te i, e a b rir-s e -v o s-á ; no único quarto da cabana de um pobre.
10 po is todo o q u e p e d e , re c e b e ; e q u e m A crise provocada pela chegada ines­
b u s c a , a c h a ; e a o q u e b a te , a b rir-s e -lh e -á . perada do hóspede é tão grande, contu­
11G q u a l é o p a i d e n tr e v ó s q u e , se o filho lh e do, que o seu vizinho não aceita recusa.
p e d ir p ã o , lhe d a r á u m a p e d ra ? O u, se lh e
p e d ir p e ix e , lh e d a r á p o r p e ix e u m a s e r ­ Por causa da sua importunação é tradu­
p e n te ? 12 O u, se p e d ir u m ovo, lh e d a r á u m zido pitorescamente por Leaney como
e sc o rp iã o ? 13 Se v ós, p o is, sen d o m a u s , s a ­ “devido à sua descarada persistência”
b e is d a r b o a s d á d iv a s a o s v o sso s filh o s, (p. 187).
q u a n to m a is d a r á o P a i c e le s tia l o E s p írito
S anto à q u e le s q u e lho p e d ire m ? Indubitavelmente, por fim o pobre
homem tem que se levantar, destrancar a
A Parábola do Amigo Importuno en­ porta, despertando todos os filhos no
sina a necessidade da persistência na processo, e dar, ao seu amigo, quantos
pães eles precisar, e não apenas o que a d m ir a r a m . 15 M a s a lg u n s d e le s d is s e ra m :
havia pedido, necessariamente. É p o r B elzeb u , o p rin c íp e dos d em ô n io s, que
ele e x p u ls a os dem ô n io s. 16 E o u tro s, e x p e ­
Os três imperativos: pedi, buscai, rim e n ta n d o -o , lh e p e d ia m u m s in a l do céu.
batei, estão no tempo presente, que re­ 17 E le , p o ré m , eonhecendo-lhes os p e n s a ­
vela a necessidade de persistência — m e n to s, d isse -lh e s: Todo re in o d iv id id o c o n ­
continue pedindo, continue buscando, t r a si m e s m o s e r á a sso la d o , e c a s a so b re
c a s a c a ir á . 18 O ra , pois, se S a ta n á s e s tá
continue batendo. O crente nunca deve div id id o c o n tra si m e s m o , com o s u b s is tirá
vacilar em sua certeza de que Deus res­ o seu re in o ? P o is d izeis q u e eu ex p u lso os
ponderá à busca de seus filhos. d em ô n io s p o r B elzeb u . 19 E , se eu exp u lso os
Isto não significa absolutamente que a d em ô n io s p o r B e lzeb u , p o r q u e m os e x p u l­
oração é um exercício de mágica, pelo s a m os v o sso s filh o s? P o r isso e le s m e sm o s
s e rã o os v osso s ju iz e s. 20 M as, se é pelo dedo
qual controlamos Deus. Todos os pedi­ de D e u s q u e e u ex p u lso os d e m ô n io s, logo é
dos subseqüentes são governados pelas c h e g ad o a v ó s o re in o d e D e u s. 21 Q u ando o
primeiras petições da oração modelo. De v a le n te g u a rd a , a r m a d o , a s u a c a s a , e m
nossa parte, buscamos a Deus e àqueles s e g u r a n ç a e s tã o os se u s b e n s ; 22 m a s , so ­
b re v in d o o u tro , m a is v a le n te do q u e e le , e
graciosos dons que nos ajudarão a ser vencendo-o, tira -lh e to d a a a r m a d u r a , e m
melhores filhos. Da parte de Deus, a q u e c o n fia v a , e r e p a r te os s e u s d esp o jo s.
resposta às nossas orações deve estar em 23 Q uem n ã o é co m ig o , é c o n tr a m im ; e
consonância com a sua sabedoria e amor q u e m co m ig o n ã o a ju n ta , e sp a lh a .
paternais.
A seção acerca da oração se encerra A cura do mudo é uma proclamação
com um argumento que vai do menor da presença e das demandas do reino de
para o maior, do pai humano para o Pai Deus. A apresentação das exigências de
divino. Se um filho pede o que é nutri­ Deus, reivindicando o domínio sobre o
tivo e bom, um peixe ou um ovo, o pai seu universo, sempre força as pessoas a
humano não vai lhe dar o que é venenoso que elas são apresentadas, a necessidade
e perigoso, uma serpente ou um escor­ de fazer alguma espécie de decisão. Não
pião (cf. Mat. 7:9,10). pode haver neutralidade. Quando o
Portanto, se os homens, embora sendo mudo fala, evidências iniludíveis de que
maus, procuram o melhor para os seus ele foi liberto de sua doença, as teste­
filhos, muito mais Deus, o único que munhas visuais imediatamente se divi­
pode ser chamado de bom (18:19), dará o dem em três grupos. As multidões se
que é necessário aos seus filhos. Mateus admiraram, indicação de que reconhe­
cita “boas dádivas” (7:11) onde Lucas ceram que Deus havia realizado um
menciona Espírito Santo. Dentre todas milagre diante delas. Esta reação, con­
as boas dádivas que Deus pode dar aos tudo, ainda está aquém do que é adequa­
seus filhos, o Espírito Santo é considera­ do, que é submissão ao domínio de Deus,
do, em Lucas, como a melhor de todas. tão poderosamente demonstrado.
Através do Espírito, o homem é capaz de Incapazes de negar que uma exibição
viver em comunhão com Deus e de espe­ sobrenatural de poder havia acontecido,
rar alegremente a plena consumação de algumas pessoas acusaram Jesus de estar
sua salvação (cf. Ef. 1:13,14). aliado a Belzebu, o príncipe dos demô­
nios. De acordo com elas, ele exercera
5. Reações Desfavoráveis a Jesus (11:
alguma espécie de magia negra. Se
14-54)
homens hostis, malignos, não podem
1) A Controvérsia Acerca de Belzebu negar os atos de um homem bom, eles
(11:14-23) podem destruir a sua influência, atri-
14 E s ta v a J e s u s ex p u lsa n d o u m dem ônio, buindo-a a motivos sinistros.
que e r a m u d o ; e a c o n te c e u q u e, sain d o o Outras pessoas, ainda, não acham
d em ônio, o m u d o fa lo u ; e a s m u ltid õ e s se suficientemente convincente o domínio
de Jesus sobre os demônios. Antes que estavam rejeitando os sinais do seu
eles creiam que ele é o Messias, ele governo.
precisa fazer um sinal que preencha as O valente é Satanás. Mas outro, mais
especificações deles. Um sinal do céu valente do que ele, ou seja, Jesus, ata­
indica que eles desejavam algum fenô­ cou-o e ganhou uma vitória diante dos
meno astral (Strack-Billerbeck, I, 727 olhos do povo. A posse da arm adura do
ss.). inimigo derrotado era evidência do tri­
Jesus discerne os pensamentos dos seus unfo do vencedor. Por costume, os bens
críticos, isto é, do segundo grupo, e de­ do derrotado eram confiscados pelo vi­
monstra a fraqueza de sua acusação. torioso, que dividia parte deles com as
Primeiro, ele indica que ela é ilógica. Se suas tropas. Jesus, vencedor de Satanás ,
de Belzebu ele recebe poder para expul­ divide, entre os crentes, os frutos de sua
sar outro espírito maligno, isto significa vitória — libertação do poder de Satanás
que as forças de Satanás estão empenha­ e libertação do medo.
das em uma guerra civil autodestrutiva. Finalmente, Jesus afirma que em rela­
Casa sobre casa cairá indica a destruição ção ao Reino de Deus não pode haver
ocasionada por conflito civil, que divide “terra de ninguém” (v. 23). Neutrali­
uma cidade ou nação. Esta espécie de dade é tanto uma expressão de incredu­
raciocínio é absurda em face do exposto. lidade como de hostilidade aberta.
Segundo, Jesus mostra que o julga­
mento deles é arbitrário. Somente ba­ 2) O Espírito Imundo (11:24-26)
seados em preconceitos podem eles julgar 24 O ra , h a v e n d o o e s p írito im u n d o saído
os atos de Jesus como demoníacos, en­ do h o m e m , a n d a p o r lu g a r e s á rid o s , b u s ­
quanto, ao mesmo tempo, atribuem ao can d o re p o u s o ; e , n ã o o e n c o n tra n d o , diz:
V o lta re i p a r a m in h a c a s a , d o n d e s a í. 25 E ,
poder de Deus os atos semelhantes, rea­ ch e g a n d o , a c h a -a v a r r id a e a d o rn a d a .
lizados por pessoas do seu próprio grupo. 26 E n tã o v a i, e le v a c o n sig o o u tro s se te
Vossos filhos são os membros dos cír­ e sp írito s, p io re s do q u e e le , e , e n tra n d o ,
culos rabínicos. Eles mesmos serão os h a b ita m a li; e o ú ltim o e s ta d o d e s s e h o m e m
v e m a s e r p io r do q u e o p rim e iro .
vossos juizes significa que os atos deles
fornecerão evidências que provarão como Embora o exorcismo seja um dos sinais
os inimigos de Jesus eram contraditórios mais importantes do triunfo messiânico
e desonestos. sobre os poderes do mal, Jesus ensina
A terceira hipóteset sugerida pelo que a mera expulsão de demônios não é
Senhor, é a correta. A expressão o dedo suficiente. Depois de sair de sua vítima,
de Deus refere-se a um ato direto de o espírito imundo, ou demônio, anda por
Deus (Êx. 8:19;31:18; Deut. 9:10; Sal. lugares áridos, outro exemplo da associa­
8:3). O paralelo mais próximo, encon­ ção de espíritos maus com o deserto (veja
trado no Velho Testamento, é o uso que 8:29). Contudo, ele não fica satisfeito
se faz dela em Êxodo 8:19, onde se sem ter uma vítima. Precisa de um
mostra que os atos de Deus estão além da corpo, através do qual possa expressar a
capacidade de os magos egípcios os sua natureza demoníaca (veja 8:32). A
efetuarem também. Aqui também os sua casa era o corpo do homem anterior­
servos de Satanás, os demônios, haviam mente possuído, que está agora limpo,
sido derrotados por um poder supçrior, a mas vazio. Talvez a razão para trazer
saber, o poder de Deus. A autoridade de consigo sete espíritos é o objetivo de
Deus, exercida sobre os demônios, de­ assumir completo controle desse homem
monstrara que o seu reino (governo) (cf. 8:2), cujo último estado é agora
havia chegado sobre as pessoas que ha­ muito pior do que o primeiro.
viam testificado o que Jesus fizera. Ao No exorcismo de demônios, o indiví­
invés de reconhecer Deus como rei, eles duo possesso foi um recipiente passivo
dos benefícios do reino de Deus. Mas haviam colocado sob o domínio de Deus
também era necessário que ele, bem (6:20 e ss.). O próprio Lucas mostra que
como os que testemunharam o milagre de Maria se tornara participante da comu­
Deus, reagissem positivamente à procla­ nidade dos que criam, depois do que ela
mação do reino. Pela fé, eles podiam ser não é mais mencionada (At. 1:14).
cheios com o poder de Deus, que os 4) O Sinal do Filho do Homem (11:
armaria contra qualquer assalto futuro,
29-32)
levado a efeito pelos demônios.
29 G om o a flu ís s e m a s m u ltid õ e s, co m eç o u
3) Resposta ao Louvor de uma Mulher e le a d iz e r : G e ra ç ã o p e r v e r s a é e s t a ; e la
(11:27,28) p e d e u m s i n a l; e n e n h u m s in a l se lh e d a r á ,
se n ã o o d e J o n a s ; 30 p o rq u a n to , a s s im com o
27 O ra , e n q u a n to e le d iz ia e s ta s c o isa s, J o n a s foi s in a l p a r a o s n in iv ita s, ta m b é m
c e r ta m u lh e r, d e n tr e a m u ltid ã o , le v a n to u a o F ilh o d o h o m e m o s e r á p a r a e s t a g e ra ç ã o .
voz e lh e d is s e : B e m -a v e n tu ra d o o v e n tre 31 A r a in h a d o su l se le v a n ta r á , n o ju ízo ,
q u e t e tro u x e e o s p e ito s e m q u e te a m a ­ c o n tra os h o m e n s d e s ta g e ra ç ã o , e os c o n d e ­
m e n ta s te . 28 M a s e le re s p o n d e u : A n tes b em - n a r á ; p o rq u e v eio d o s co n fin s d a t e r r a p a r a
a v e n tu ra d o s o s q u e o u v e m a p a la v r a d e o u v ir a s a b e d o ria d e S a lo m ã o ; e e is a q u i
D eu s, e a o b s e rv a m . q u e m é m a io r do q u e S alo m ão . 32 O s h o m en s
d e N ín ive se le v a n ta rã o , no ju ízo , co m e s ta
Jesus é interrompido por uma mulher, g e ra ç ã o , e a c o n d e n a rã o ; p o rq u e se a r r e ­
p e n d e ra m c o m a p re g a ç ã o d e J o n a s ; e e is
que pronuncia uma bênção sobre a sua a q u i q u e m é m a io r do q u e Jo n a s .
mãe. Embora Maria figure mais proemi­
nentemente em Lucas do que em qual­ O tema desta passagem é propiciado
quer outro Evangelho, também se faz um pelo pedido feito por algumas pessoas
esforço para impedir a distorção do lugar que haviam presenciado a cura do mu­
dela na história da salvação. No mundo do de um sinal “ do céu” (v. 16, acima).
antigo, o objetivo principal de uma mu­ O pedido de um sinal é constantemente
lher era ter filhos, especialmente do sexo recusado por Jesus. Esse pedido é carac­
masculino. Visto que o cumprimento de terizado como mau, expressão da perver­
sua vida estava nos seus filhos, a mãe de sidade e rebelião daquele povo perverso.
um filho famoso era considerada espe­ É uma rejeição do que Deus já havia feito
cialmente bem-aventurada. entre eles, bem como uma tentativa para
Talvez a conexão com as passagens fazer com que Deus provasse o que era,
anteriores deva ser encontrada no fato de nos termos deles.
que M aria, da mesma forma como o Em Mateus, o sinal de Jonas é o
homem libertado do demônio, havia sido paralelo entre a experiência de Jonas no
um instrumento para a revelação do ventre do peixe e a morte de Jesus (12:
poder de Deus no mundo. Mas não é 40). Em Lucas, o sinal é a conclamação
suficiente ser receptáculo das misericór­ de Jonas ao arrependimento, sem o su­
dias de Deus. A pessoa precisa também porte de milagres, ao qual o povo de
agir em reação à revelação da presença Nínive correspondera. Jesus é, para a sua
dele. A natureza essencial da reação do geração, o que Jonas fora para os nini­
homem é ouvir a palavra de Deus, e a vitas. Em pessoa, é ele o sinal que Deus
observar, o que constitui em paralelo lhes havia dado. Em seus atos e palavras,
para a demanda expressa em 8:19-21. a conclamação para o arrependimento
A essa altura, M aria ainda não entra havia sido apresentada.
na categoria dos que estavam ordenando A idéia de que os gentios iriam testi­
as suas vidas de acordo com a palavra de ficar contra os israelitas, no juízo, en­
Deus. Por esta razão, não é apropriado trava em choque violento contra as idéias
chamá-la de bem-aventurada. Jesus re­ contemporâneas. Jesus previa o julga­
serva esse termo para aqueles que se mento como tempo de vindicação para os
justos, entre quem os líderes religiosos de para os israelitas que rejeitam as rei­
sua época se classificavam. Eles também vindicações de Deus, representadas por
criam que o juízo iria ocasionar a des­ Jesus.
truição dos ímpios, que incluía a maior 5) Receptividade à Luz (11:33-36)
parte dos gentios.
A rainha do Sul é a rainha de Sabá, 33 N in g u ém , d e p o is d e a c e n d e r u m a c a n ­
d e ia , a p õ e e m lu g a r o cu lto , n e m d e b a ix o do
citada em I Reis 10:1-10. Josefo a identi­ a lq u e ire , m a s no v e la d o r, p a r a q u e os que
fica como a rainha do Egito e da Etiópia e n tr a m v e ja m a luz. 34 A c a n d e ia do co rp o
(Antig. 2,10,2; 8,6,5,6). De acordo com são os olhos. Q u an d o , p o is, os te u s olhos
uma tradição nacional, a linhagem real fo re m b o n s, to d o o te u c o rp o s e r á lu m in o so ;
da Abissínia descendia da união de Salo­ m a s , q u a n d o fo re m m a u s , o te u co rp o s e r á
te n e b ro so . 35 V ê, e n tã o , q u e a lu z q u e h á e m
mão com a Rainha de Sabá. Essas tradi­ ti n ã o s e ja m tr e v a s . 36 Se, p o is, todo o te u
ções carecem de fundamentos históricos co rp o e s tiv e r ilu m in a d o , s e m t e r p a r te a l ­
adequados. Mais provavelmente, ela era g u m a e m tr e v a s , s e r á in te ir a m e n te lu m i­
de uma tribo do noroeste da Arábia. noso, co m o q u a n d o a c a n d e ia te ilu m in a com
o se u re s p le n d o r.
Os confins da terra denotam os limites
do mundo conhecido. Indo tão longe, Três aforismos disparatados e aparen­
para verificar pessoalmente os rumores temente sem conexão são ligados pela
que ela ouvira a respeito da grandeza de palavra-chave candeia. O resultado é
Salomão, a rainha havia demonstrado uma passagem que apresenta grande
que era honesta. Em contraste, os con­ dificuldade para o intérprete. O primeiro
temporâneos de Jesus traíam a sua deso­ aforismo (v. 33) já foi usado por Lucas
nestidade inerente, ao se demonstrarem em outra conexão (8:16; cf. Mar. 4:21).
indispostos a agir baseados nas evidên­ Ê também usado por Mateus, em con­
cias que possuíam. A sua culpa era ainda texto diferente (5:15).
maior, porque quem é maior do que Aqui a candeia é o chamado de Deus
Salomão estava no meio deles. No origi­ ao arrependimento, isto é, o ministério
nal, esta cláusula é neutra: algo maior, e de Jesus. Lucas tem mencionado conti­
é difícil dizer o que envolve. Talvez seja nuamente as multidões que têm estado
uma referência ao acontecimento total da presentes para ver e ouvir os atos e
presença de Jesus no mundo. Eles esta­ palavras de Jesus. A sua atividade não
vam cegos para uma glória e uma gran­ fora privada ou esotérica. Ele não se
deza que excede em muito as maravilhas entranhara no deserto com um pugilo de
do reinado de Salomão. eleitos e nem se isolara do povo. Da
Da mesma forma, os homens de Nínive mesma forma como uma pessoa que
servirão de testemunhas no juízo para acende uma candeia pretende que ela
provar a cegueira do povo que rejeita a seja vista, assim também Deus pretende
Jesus. Os assírios, cuja capital era Ní­ que o povo receba a revelação dada em
nive, estavam entre os povos mais rudes e Jesus.
bárbaros da antiguidade. O próprio fato No segundo aforismo, a candeia são os
de que eles reagiram favoravelmente à olhos, membro através do qual a luz
pregação de Jonas confirma a culpa dos entra para iluminar o corpo. Sem dúvi­
que rejeitaram Jesus. Por outro lado, há da, o corpo depende de olhos bons para
o contraste entre Jonas como pregador da receber a luz. Um olho doente ou cego
parte de Deus, aos ninivitas, e o chama­ impede a luz de entrar. (Veja Mateus
do muito mais decisivo e exigente ao ar­ 6:22 e s., para um uso diferente da
rependimento apresentado por Jesus — expressão idiomática olhos bons, genuí­
que é maior do que Jonas. Se os ímpios nos.) A analogia, neste caso, é com a
ninivitas se haviam arrependido com a faculdade de percepção espiritual. O
pregação de Jonas, não há esperança problema com os contemporâneos de
Jesus foi que eles eram espiritualmente impuro. Mediante a sua muda reprova­
cegos, e, portanto, incapazes de receber ção da negligência cerimonial de Jesus,
a luz. o fariseu se coloca na categoria das pes­
A luz que há em ti é, provavelmente, soas para quem a religião é conformi­
entendido melhor como o órgão da per­ dade legalista e exterior a certos requi­
cepção espiritual, ou seja, o coração sitos tradicionais. Em contraposição a
(Creed, p. 164). A responsabilidade pela isso, coloca-se a posição representada
sensibilidade à luz é colocada no indi­ por Jesus, de que a genuína religião é
víduo, a quem se recomenda que véja interior e espiritual, tendo a ver prima­
(vê), ou seja, tome cuidado para conser­ riamente com a espécie de ser humano
var a sua candeia em ordem. que o homem é, e como ele se relaciona
Como está, o verso 36 é confuso e im­ com Deus e as pessoas do mundo.
possível de interpretar, devido, quem sa­ As mesmas críticas dos religiosos
be, a uma “corrupção bem antiga” (Cre­ judaicos aparecem também em Mateus
ed). C. C. Torrey 22 sugere que a declara­ 23. Mais material é encontrado na passa­
ção de Jesus, no aramaico original, devia gem mais longa de Mateus, que também
ter sido traduzida assim: “Se, todavia, é organizada de maneira bem diferente
todo o seu corpo é iluminado (aceso), sem desta. Em Mateus, o alvo das denúncias
nenhuma parte escura, então tudo ao seu de Jesus, os escribas e fariseus, são agru­
redor será luz, da mesma forma como a pados em conjunto. Lucas divide os seus
candeia ilumina você com o seu fulgor.” seis ais em dois grupos de três: o primeiro
Isto significa que o cristão, iluminado é dirigido aos fariseus, e o segundo gru­
por Cristo, deve ser uma luz, brilhando po, dirigido aos doutores da lei ou es­
em um mundo tenebroso. cribas.
Os fariseus são caracterizados como
6) Controvérsia Acerca de Abluções Ce­ homens que se preocupam com a justiça
rimoniais (11:37-41)
exterior, mas negligenciam uma defron-
37 A cab an d o J e s u s d e f a la r , u m fa r is e u o tação com a sua depravação interior. Tal
convidou p a r a a lm o ç a r co m e l e ; e, h av e n d o
J e s u s e n tr a d o , re c lin o u -se à m e s a . 38 O f a r i­ conceito superficial de retidão é baseado
seu a d m iro u -s e , v en d o q u e e le n ã o se la v a r a em um conceito superficial de pecado.
a n te s d e a lm o ç a r. 39 Ao q u e o S en h o r lh e Quando o pecado é visto como algo “lá
d is se : O ra , v ó s, o s fa r is e u s , lim p a is o e x te ­ longe” , exterior à pessoa, o problema se
rio r do copo e do p r a t o : m a s o v o sso in te rio r
e s tá ch eio d e r a p in a e m a ld a d e . 40 L oucos!
torna como evitar a contaminação. Isto é
q u em fez o e x te r io r , n ã o fez ta m b é m o in te ­ alcançado omitindo-se certos costumes,
rio r? 41 D ai, p o ré m , d e e s m o la o q u e e s tá mediante o isolamento de certos tipos de
d e n tro do copo e do p ra to , e e is q u e to d a s a s pessoas, e pela cuidadosa observância de
co isas vos s e r ã o lim p a s . deveres religiosos prescritos. Mas Jesus
A cena de um almoço, pela qual Lucas ensinou que o pecado tem suas raízes na
tinha predileção, propicia o palco para a natureza interior de cada homem, e exige
denúncia que Jesus faz dos líderes reli­ que cada pessoa admita o fato de que é
giosos judaicos. A surpresa do fariseu se pecadora. A pessoa revestida de justiça
origina da pressuposição de que Jesus vai própria se engana a si mesma. A sua
realizar as tradicionais abluções, antes religião é uma forma de escapar do seu
de comer. O objetivo de se lavar as mãos verdadeiro eu.
era remover qualquer contaminação que O significado do verso 40 não é claro.
a pessoa poderia ter sofrido ao entrar em Quem pode referir-se a Deus, que criou o
contato com algo ou alguém que fosse homem todo, tanto o seu interior como o
seu exterior. Conseqüentemente, ele não
| 22 The Four Gospels: A New Translation (London: Hod-
pode satisfazer-se com uma religião que
j der a n d Stoughton, 1933), p . 309 e s. esteja interessada apenas no exterior do
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corpo, descuidando a natureza interior, destino e pelo direito do oprimido. Para
que é muito mais importante. O versículo algumas pessoas, justiça denota quase
41 é muito difícil. Tomado como está, ele exclusivamente a prisão e punição dos
pode ser entendido como uma injunção elementos criminosos. Mas não existe
para se oferecer o próprio eu como oferta sociedade justa que não coloque em posi­
a Deus, ou seja, o que a pessoa é interior­ ção de relevo a proteção e vindicação dos
mente. 23 Isto contrasta com a piedade seus elementos mais fracos, como as mi­
legalista dos fariseus, da qual a doação norias raciais, as pessoas que tenham
de esmolas era parte importante. Well- problemas físicos ou limitações culturais
hausen conjecturou que dakki (purifica­ e as crianças. O amor de Deus é o amor a
ção), no original aramaico, foi confun­ Deus, mas já vimos que este não pode ser
dida com zakki (dar esmolas). Uma isolado do amor ao homem.
“conjetura brilhante” , de acordo com Ao invés de amar a Deus, os fariseus
Matthew B lack.24 Esta sugestão é forta­ são acusados de amar honra e reconhe­
lecida pela fato de que ela propicia, à cimento. Um defeito básico da religião
injunção, um alinhamento com o seu legalista é que ela contribui para o orgu­
paralelo (Mat. 23:26). Assim, entende­ lho humano. A justiça é interpretada de
ríamos a declaração desta forma: se o tal forma que se torna atingível por esfor­
interior está purificado, não há necessi­ ços humanos. Aqueles que fazem os es­
dade de se preocupar com o exterior. forços são aptos para fazê-lo porque este
7) Ais Sobre os Fariseus (11:42-44) é um meio de se conseguir proeminência
e respeito social. Os primeiros assentos
42 M as a i d e v ó s, fa ris e u s ! p o rq u e d a is o nas sinagogas eram reservados para as
d ízi/tío d a h o rte lã , e d a a r r u d a , e d e to d a
h o rta liç a , e d e s p re z a is a ju s tiç a e o a m o r de
pessoas mais importantes da assembléia.
D eus. O ra , e s ta s c o is a s im p o r ta v a fa z e r , Outro sinal de prestígio eram as sauda­
se m d e ix a r a q u e la s . 43 Ai d e vós, fa ris e u s ! ções nas praças, os rapapés do público
p o rq u e g o sta is do s p rim e iro s a s s e n to s n a s respeitoso, cujos padrões religiosos e
sin a g o g a s, e d a s s a u d a ç õ e s n a s p r a ç a s . sociais lhes eram impostos pelas pessoas
44 Ai d e vós! p o rq u e sois c o m o a s se p u l­
tu r a s , q u e n ão a p a re c e m , so b re a s q u a is que mais lucravam com isso.
a n d a m os h o m e n s s e m o s a b e r e m . Visto que tocar os mortos era ato
especialmente contaminador, tomava-se
Os fariseus eram extremamente escru­ também muito cuidado para evitar qual­
pulosos em observar os requisitos da lei quer contato com sepulturas. Uma pes­
relativos a assuntos secundários. Eles soa podia tornar-se impura por causa de
davam o dízimo até das ervas usadas contato com uma sepultura não identi­
para tempero. Um texto (P 45 ) cita "en­ ficada, e não ter conhecimento de sua
dro” , em vez de arruda, como também o contaminação. A atenção dos fariseus
faz Mateus 23:23. Sem dúvida, endro é para o ritual exterior mascarava a sua
original, porque a arruda não era sujeita corrupção interior. Eles eram fontes de
ao dízimo. Mas Jesus acusa os fariseus de contaminação, que contagiavam um
serem deficientes nas chamadas “coisas público que não suspeitava disso. Desta
mais importantes da lei” , no paralelo de forma vívida, Jesus demonstra o fracasso
Mateus (cf. Miq. 6:8). Justiça significa, dos lideres religiosos em alcançar o seu
primordialmente, uma preo.cupação pelo alvo principal, ou seja, a pureza reli­
giosa.
23 Karl Heinrich Rengstorf, Das Evangelium nach Lukas 8) Ais Sobre os Doutores da Lei (11:45-
In das Neue Testament Deutsch, ed. Gerhard Friedrich
(Goettingen: Vandenhoeck and Ruprecht, 1967), 54)
p - 154.
24 An Aramaic Approach to the Gospels and Acts 45 D isse-lh e, e n tã o , u m d o s d o u to re s d a
(Oxford, Clarendon, 1954), p. 2. le i: M e s tre , q u a n d o d iz e s is to , ta m b é m nos
a fr o n ta s a n ó s. 46 E le , p o ré m , re s p o n d e u : O segundo ai pronunciado sobre os
Ai d e v ó s ta m b é m , d o u to re s d a lei! p o rq u e
c a r r e g a is os h o m e n s c o m fa rd o s d ifíc e is d e
doutores da lei não é claro. Como o fato
s u p o r ta r, e vós m e s m o s n e m a in d a c o m u m de eles edificarem os túmulos dos profe­
dos v o sso s d ed o s to c a is n e s s e s fa rd o s. 47 Ai tas os envolvia na culpa dos seus pais?
d e vós! p o rq u e e d ific a is os tú m u lo s dos p r o ­ No paralelo de Mateus (23:29 e ss.), se
fe ta s , e v o sso s p a is os m a t a r a m . 48 A ssim diz que eles testificavam contra si mes­
sois te s te m u n h a s e a p ro v a is a s o b ra s de
vossos p a is ; p o rq u a n to e le s os m a t a r a m , e
mos, reconhecendo a relação que tinham
v ó s lh e s e d ific a is o s tú m u lo s . 49 P o r isso diz com os assassinos dos profetas. Talvez o
ta m b é m a s a b e d o r ia d e D e u s: P ro f e ta s e significado do todo seja que eles honra­
a p ó sto lo s lh e s m a n d a r e i; e e le s m a ta r ã o vam os profetas mortos, mas reagiam da
u n s, e p e rs e g u irã o o u tro s ; 50 p a r a q u e a e s ta mesma forma que seus pais para com os
g e ra ç ã o se p e ç a m c o n ta s do sa n g u e d e to d o s
os p ro f e ta s q u e, d e sd e a fu n d a ç ã o do m u n d o , profetas vivos. Os profetas mortos não
foi d e r r a m a d o ; 51 d e sd e o sa n g u e d e A bel, perturbam nem ameaçam; os vivos, sim.
a té o s a n g u e d e Z a c a ria s , q u e foi m o rto Da mesma forma, nós louvamos Jesus e
e n tr e o a l t a r e o s a n tu á r io ; s im , e u vos digo, os apóstolos, enquanto não reconhece­
a e s ta g e ra ç ã o se p e d irã o c o n ta s . 52 Ai de
vós, d o u to re s d a l e i ! p o rq u e t i r a s t e s a c h a v e
mos os mensageiros que vêm em nome
d a c iê n c ia ; vós m e s m o s n ã o e n tr a s te s , e dele para nos desafiar a uma nova dedi­
im p e d is te s a o s q u e e n tr a v a m . 53 Ao s a i r ele cação à justiça e abertura a toda a huma­
d ali, c o m e ç a ra m os e s c r ib a s e os fa r is e u s a nidade.
a p e rtá -lo fo rte m e n te , e a in te rro g á -lo a c e r ­ Diz também a sabedoria de Deus cor­
c a d e m u ita s c o is a s, 54 a rm a n d o -lh e c ila d a s ,
a fim d e o a p a n h a r e m e m a lg u m a c o isa q u e responde a frases rabínicas como “ diz o
d is se ss e . Espírito Santo” e “ a justiça divina diz”
(Strack-Billerbeck, II, p. 189). É equiva­
Doutores da lei é o sinônimo que Lucas lente a “ diz Deus” . Profetas e apóstolos
apresenta para escribas, os peritos na provavelmente também inclui as teste­
interpretação da Torah. Eles geralmente munhas perseguidas da igreja primitiva,
são agrupados com os fariseus como por exemplo, Estêvão, cujo discurso
“escribas e fariseus” ou “escribas dos declarou que o assassinato de Jesus esta­
fariseus” . Por causa da natureza do caso, va de acordo com o tratamento dispensa­
os escribas estavam associados aos fari­ do aos profetas pelas gerações anterio­
seus e eram sustentados pelo partido res (At. 7:52). Zacarias fora o filho de
deles, ao qual a maioria deles aparente­ Joiada, o sumo sacerdote, cujo assassina­
mente pertencia. Esses “doutores da lei” to é contado em II Crônicas 24:17-22
desenvolveram as tradições pelas quais os (mas veja Mat. 23:35). Visto que Crôni­
fariseus tentavam viver. cas é o último livro das Escrituras He­
Os fardos colocados sobre o povo eram braicas, no Texto Massorético, todos os
as interpretações casuísticas, que defi­ mártires do Velho Testamento estão
niam o que era legítimo e o que não era, e incluídos no período compreendido entre
assim complicavam a vida diária do Abel e Zacarias. A perversidade e rebel­
povo, que procurava viver através delas. dia verificadas na história judaica é con­
Além do mais, Jesus acusou os “erudi­ siderada em seu clímax, quando se veri­
tos” de não fazerem o menor esforço, isto fica o tratamento dispensado a Jesus e às
é, de não tocarem nem ainda com um primeiras testemunhas cristãs. Os cris­
dos... dedos, o fardo das observâncias tãos primitivos entendiam que esta era a
legais — que se multiplicavam constante­ razão para a devastadora derrota dos
mente — para ajudar o povo. Mas eles judeus e a destruição de Jerusalém, na
eram muito peritos em inventar evasivas, guerra judaico-romana de 66-70 d.C.
pelas quais eles mesmos podiam escapar Da mesma forma como os “puros”
aos requerimentos de sua tradição, quan­ fariseus são denunciados pela sua impu­
do o interesse próprio assim o exigia. reza, os “sábios” eruditos são denuncia-
dos por sua ignorância. As Escrituras são Por causa da forma pela qual ele per­
a chave da ciência (genitivo objetivo), meia uma fornada de massa, o fermento
quando corretamente interpretadas (cf. é geralmente símbolo da influência cor­
24:45 e ss.). Ou seja, elas apontam para ruptora do mal. Ele é identificado, aqui,
o que Deus está fazendo em Jesus. Mas, como a hipocrisia dos fariseus (mas veja
em vez de compreender as Escrituras, os Mat. 16:6 e Mar. 8:15). A sua condição
mestres as haviam distorcido. Por suas corrupta intrínseca é mascarada pela sua
interpretações errôneas, eles fecharam religiosidade exterior. Talvez Jesus esteja
para fora do reino de Deus tanto a si advertindo os discípulos para não serem
mesmos quanto o povo que eles influen­ iludidos pela aparência exterior de reti­
ciavam (cf. Mat. 23:13). dão dos fariseus. Mais provavelmente,
Na declaração final, Lucas substitui ele os está acautelando para que eles não
doutores da lei pelo sinônimo escribas. caiam na espécie de legalismo represen­
Como resultado da denúncia deles, feita tado pelos líderes religiosos judaicos.
por Jesus, a hostilidade dos escribas e Deve haver coerência entre o íntimo dos
fariseus para com ele se tom a mais discípulos e os seus atos exteriores. A
intensa. Eles agora começam a pressio- advertência de Jesus é particularmente
ná-lo, para que ele faça alguma forma de oportuna agora, devido ao fato de que as
declaração comprometedora, que possa instituições formadas pelo povo, que diz
ser usada para destruir a influência dele. o estar seguindo, terem a tendência de
6. Admoestações Quanto às Persegui­ assumir a natureza daqueles a quem ele
ções (12:1-12) desafiou. Desta forma, o “bom” cristão é
definido, assim como o fariseu, como a
1) Advertência Contra a Hipocrisia (12: pessoa que é fiel na execução dos seus
1-3) atos religiosos, tais como ir à igreja, dar a
1 A ju n tan d o -se e n tr e ta n to m u ito s m ilh a ­ ela sustento financeiro e se refrear de
r e s d e p e ss o a s, d e s o rte q u e se a tr o p e la v a m uma mancheia de atos contaminadores.
u n s a o s o u tro s, c o m eç o u J e s u s a d iz e r p r i ­ Jesus assegura, aos seus discípulos,
m e iro a o s se u s d is c íp u lo s : A c a u te lai-v o s do que a máscara será rasgada e que pes­
fe rm e n to d o s f a r is e u s , q u e é a h ip o c risia . 2
M as n a d a h á e n c o b e rto , q u e n ã o h a ja d e s e r soas, tanto quanto coisas, serão revela­
d e sc o b e rto ; n e m o cu lto , q u e n ã o h a ja d e s e r das na forma como na verdade são. Deus
co n h ecid o . 3 P o rq u a n to tu d o o q u e e m tr e v a s não julga o homem pela sua aparência
d is se ste s, à luz s e r á o u v id o ; e o q u e fa la s te s exterior, mas pelo que ele de fato é. Da
a o ouvido no g a b in e te , dos e ir a d o s s e r á
a p re g o a d o .
mesma forma como a realidade interna
do fariseu virá à luz, a mensagem dos
Uma série de ensinos aos discípulos, discípulos também se tornará objeto da
ligados bem frouxamente, começa com maior e mais ampla proclamação. Em
12:1 e vai até 13:9. Lucas nos faz voltar, Mateus (10:27) é a palavra falada por
das conspirações dos fariseus para as Jesus, aos seus discípulos, que será pro­
atividades de Jesus, com a frase entre­ clamada publicamente. A variação aqui
tanto. O palco dos ensinos de Jesus é apresentada (v. 3) é uma transição carac­
característico, como também a distinção terística da época de Jesus para a geração
entre a multidão e os discípulos. Embora seguinte.
seja possível considerar o termo primeiro A fé dos discípulos, em seus grupos
como a palavra inicial da fala de Jesus pequenos, limitados, aparentemente in­
aos seus discípulos, ele mais provavel­ significantes, será o objeto da proclama­
mente pertence à frase introdutória. ção missionária. O mesmo poder sobe­
Jesus primeiramente ensina os discí­ rano, que garante que a iniqüidade
pulos, e depois se dirige à multidão (co­ oculta será trazida à luz, também garan­
meçando em 11:54). te que a verdade do evangelho será pro-
clamada, a despeito das probabilidades Se alguém deve ser temido, por causa
serem contra ela. Ã época em que Lucas de poder, claramente Deus deve ter pre­
foi escrito, o evangelho já havia sido pre­ cedência sobre os juizes humanos. No
gado nas praças principais das grandes entanto, os discípulos não devem ser
cidades, de Jerusalém a Roma. constrangidos a serem fiéis por temerem
2) O Cuidado de Deus no Perigo (12:4-7) a Deus. Pelo contrário, o poder de Deus é
o fundamento da confiança deles, porque
4 D igo-vos, a m ig o s m e u s : N ã o te m a is os é usado em favor deles. O ensinamento
q ue m a t a m o co rp o , e d ep o is d isso n a d a
m a is p o d e m fa z e r . 5 M a s e u v o s m o s tr a r e i a
central de Jesus é que o grande e sobera­
q u e m é q u e d e v e is te m e r ; te m e i a q u e le q u e , no Deus é um Pai amoroso, que cuida dos
d ep o is d e m a t a r , te m p o d e r p a r a la n ç a r no seus filhos. Os passarinhos são tão ba­
in f e rn o ; sim , v o s d ig o , a e s s e te m e i. 6 N ão se ratos que os homens os consideram prati­
v e n d e m cin co p a s s a rin h o s p o r d o is a s s e s ? camente sem valor. Não obstante, Deus
E n e n h u m d e le s e s t á esq u e c id o d ia n te d e
D eu s. 7 M a s a té os c a b e lo s d a v o s s a c a b e ç a se preocupa com eles. Os discípulos
e s tã o to d o s c o n ta d o s . N ão te m a is , p o is m a is podem ficar certos de que um Deus que
v a le is vó s do q u e m u ito s p a s s a rin h o s . se interessa pela menor das suas cria­
turas não se esquecerá daqueles que são
Devido à sua parte na publicação do seus filhos. Deus tomará providências
evangelho, as testemunhas cristãs pro­ para que nenhum dos cabelos de suas
vocarão a hostilidade das autoridades, cabeças seja perdido. Esta é outra ma­
que têm o poder para decretar-lhes a neira de se dizer que eles estão perfeita­
morte. Mas Jesus lhes indica Aquele cuja mente seguros, aos cuidados de Deus
jurisdição transcende os limites geográ­ (cf. Rom. 8:38).
ficos e temporais das cortes do mundo.
3) Confissão de Cristo Diante dos Ho­
Esta é a única vez, no registro sinóp­
mens (12:8-12)
tico, em que Jesus chama os discípulos de
amigos (cf. João 15:14). É o relaciona­ 8 E digo-vos q u e to d o a q u e le q u e m e c o n ­
mento deles com Jesus que os coloca em fe s s a r d ia n te d o s h o m e n s , ta m b é m o F ilh o
do h o m e m o c o n fe s s a rá d ia n te d o s a n jo s de
condições precárias diante do mundo. D e u s; 9 m a s q u e m m e n e g a r d ia n te dos
Mas esse é também o fundamento da sua h o m e n s , s e r á n e g a d o d ia n te d o s a n jo s de
segurança para o futuro. D eu s. 10 E a todo a q u e le q u e p ro f e rir u m a
Jesus explica que a coisa pior que os p a la v r a c o n tr a o F ilh o do h o m e m , isso lhe
s e r á p e rd o a d o ; m a s a o q u e b la s f e m a r co n ­
discípulos têm a temer dos outros ho­ t r a o E s p ír ito S a n to , n ã o lh e s e r á p e rd o ad o .
mens é a perda da vida. Mas Deus tem 11 Q uan d o , p o is, v o s le v a r e m à s sin a g o g a s,
uma autoridade que se estende além da a o s m a g is tra d o s e à s a u to r id a d e s , n ão e s te ­
morte. O julgamento dele, portanto, ja is so líc ito s d e co m o ou do q u e h a v e is d e
pode ser muito mais sério, pois ele tem o re s p o n d e r, n e m do q u e h a v e is d e d iz e r.
12 P o r q u e o E s p ír ito S a n to v o s e n s in a r á n a
poder para lançar no inferno. Geena m e s m a h o ra o q u e d e v e is d ize r.
(inferno) aparece pela primeira vez na
literatura apocalíptica judaica do segun­ As pressões da perseguição sujeitarão
do século a.C., como lugar de castigo os seguidores de Jesus à mais difícil
para os judeus apóstatas. Ao tempo de forma de testes. Os discípulos devem
Jesus, ele é considerado, geralmente, estar cônscios das conseqüências da afir­
como lugar de castigo para os ímpios. mação, ou negação, do seu relaciona­
Esse nome se origina do vale de Hinom. mento com Jesus. Se, em uma hora de
Nesse vale, situado a sudoeste de Jerusa­ crise, eles afirmarem a sua lealdade a ele,
lém, era queimado o lixo da cidade, pois podem ficar certos de que ele será o
esse local havia sido poluído pela adora­ advogado deles na hora da crise escatoló-
ção do fogo e sacrifícios humanos duran­ gica que está alem desta era. Lucas está
te o reinado de Acaz (II Reis 16:3). pensando, aqui, no juízo, a grande e
final audiência diante das hostes dos ligna, não terão outro acesso a Deus
céus reunidas. Embora seja verdade (Grundmann,P-255)T
que a linguagem usada não requeira a Os discípulos não precisam se preo­
identificação de Jesus com o Filho do cupar com a maneira como responderão
homem, esta foi, sem dúvida, a identi­ às acusações que porventura forem feitas
ficação feita pela igreja primitiva e por contra eles. Sinagogas... magistrados...
Lucas. (Mateus 10:32 apresenta “eu” , autoridades pressupõem audiências
que, como diz Creed (p. 171 e s.), pode diante dg cortes ejuízes judeus e pagãos.
ser original.) Os seguidores de Jesus podem enfrentar
Aqueles que cedem às pressões e ne- as ameaças do futuro, porque terão o
gain*à JesÜFnSo°podem esperar ter um ministério do Espírito Santo na hora cTã"
agvogaSono dia doiuízo. Èm seusensi- necessidade. Ele lhes ensinara“ cõmó
namentos, Jesus constantemente bate na elevem responder quando se defrontarem
tecla da severidade dos requisitos do com a hostilidade e o poderio do mundo.
evangelho. No entanto, pelas suas ações,
7. Ensinos Acerca da Riqueza (12:13-34)
ele demonstra que o amor de Deus não é
negado ao fraco e covarde.. A igreja pri­ 1) O Fazendeiro Rico (12:13-21)
mitiva se lembrava bem que as pessoas 13 D isse-lh e a lg u é m d e n tr e a m u ltid ã o :
que haviam negado Jesus, na hora mais M e s tre , d ize a m e u ir m ã o q u e r e p g r ta c o m i­
negrsr^fãffp efg S aE as e* restauradas a go a h e r a n ç a . 14 M a s e le lh e re s p o n d e u :
lugares de confiança. H o m e m , q u e m m e c o n stitu iu a m im ju iz ou
O evangelho é sempre graça, tanto r e p a r tid o r e n tr e v ó s? 15 E d is se a o p o v o :
7
,„
1 ■ -V -------- -x ' i i nn _
A cau te lai-v o s e g u a rd a i-v o s d e to d a e sp é c ie
quanto exigência. Sem exigências, a d e c o b iç a ; p o rq u e a v id a do h o m e m n ã o
r" §KpfIe°tõnmT>arata; sem graça, as exi- c o n siste n a a b u n d â n c ia d a s c o isa s q u e p o s ­
j^ J gências levam ao dèsespero. Assim“ su i. 16 P ro p ô s -lh e s e n tã o u m a p a rá b o la ,
*—aqueles, dentre nós, que o negaram devi­ d izen d o : O c a m p o d e u m h o m e m ric o p r o ­
d u z ira co m a b u n d â n c ia ; 17 e e le a rr a z o a v a
do a pressões sociais e financeiras, ou por consigo, d ize n d o : Q ue fa r e i? P o is n ã o te n h o
outras razoes, precisam ouvir a palavra onde re c o lh e r os m e u s fru to s. 18 D isse e n ­
da graça, que nos leva mais uma vez à tã o : F a r e i is to : D e r r ib a r e i os m e u s c e le iro s
exigencia de sermos fiéis, seja qual for o . e e d ific a re i o u tro s m a io re s , e a li re c o lh e re i
custo. todos o s m e u s c e re a is e os m e u s b e n s ; 19 e
d ire i à m in h a a lm a : A lm a , te n s e m d ep ó sito
O ensino acerca de blasfêmia contra o m u ito s b e n s p a r a m u ito s a n o s ; d e s c a n s a ,
Espírito Santo é algo mais fácil de enten- co m e , b e b e , re g a la -te . 20 M a s D e u s lhe
HeFlíõ^ontexto de Mateus (veja Mat. d is s e : In s e n s a to , e s ta n o ite te p e d irã o a tu a
12:31,32). Uma palavra contra o Filho a lm a ; e o q u e te n s p re p a r a d o , p a r a q u e m
s e r á ? 21 A ssim é a q u e le q u e p a r a si a ju n ta
do homem é uma palavra contra Jesus. te s o u ro s, e n ã o é ric o p a r a co m D e u s.
presente no mundo como homem, e não
como ã figura apocalíptica do fim dos O pedido de um homem da multi­
tempos. A hostilidade contra ele não dão propicia a ocasião para os ensinos de
exclui a pessoa da possibilidade de per­ Jesus a respeito da atitude apropriada em
dão. De fato, algumas, das pessoas que relação às possessões materiais. O irmão
110 momento o rejeitam, inclusive da sua mais velho presumivelmente assumira a
propria família, passarão a fazer parte posse de todos os bens de seu pai, por
g T c ^ u n l S a d e delcã n te sr^ Mesmo de- ocasião da morte deste, e não havia dado
poís^cTterem condenado injustamente, ao seu irmão mais novo a parte que lhe
e o terem crucificado, outra oportuni­ cabia por lei. Esperava-se que um mestre
dade será dada à nação judaica, na mis­ ou rabi interpretasse como as provisões
são cristã. Depois do ministério terreno da lei se aplicariam àquele caso especí­
de lesus», contudo, aqueles que rejeita­ fico (cf. Núm. 27:8 e ss.; Deut. 21:17).
rem a obra do Espírito Santo, como ma­ As diferenças entre assuntos religiosos e
civis não existiam em Israel, pois tudo da be-se que havia muitas coisas que o ho­
vida estava sob a hegemonia da lei de mem rico podia fazer com o dinheiro
Deus. Como judeu, podia-se esperar que excedente. Mas a solução que ele achou
o irmão mais velho seguisse a determi­ foi a do egoísta empedernido. Ele en­
nação de uma pessoa cuja autoridade cheria novos celeiros, em vez de estôma­
como mestre ele reconhecia. No entanto, gos famintos.
Jesus rejeitou o ofício que aquele homem Ele fala de meus frutos... meus celei­
procurou lançar sobre ele. ros... meus cereais... meus bens. Mas
Jesus não pode entrar num litígio agora vai um passo além, quando fala
quanto à acumulação de riquezas, visto minha alma. Alma não é espírito encar­
que ele considera a busca de bens ma­ nado. Significa vida, e descreve o ho­
teriais como um a prostituição dos talen­ mem como um ser animado. Em termos
tos e energias do homem. Cobiça prova­ bíblicos, é criação e dádiva de Deus
velmente ficaria melhor se traduzida (Gên. 2:7). A vida pertence a Deus e está
“ambição” . Esta história ilustra como o sob a sua administração. O homem é, na
homem pode dar demasiado valor às pos­ terra, como um mordomo, responsável
sessões materiais, e não o pecado de diante de Deus pela vida que ele lhe deu.
desejar o que pertence a outrem. O con­ O homem da parábola chega ao ponto
ceito de Jesus é a antítese do secularismo. em que fica satisfeito porque as suas
As coisas que possui não se igualam à possessões serão suficientes para os anos
vida de uma pessoa. Dizemos que sabe­ futuros. Ele chegou ao alvo para o qual
mos isto, mas traímos os nossos valores estivera trabalhando. Assim, decide apo­
seculares mediante expressões como: sentar-se um dia — e está morto no dia
“Aquele homem vale um milhão.” seguinte. Os muitos anos foram exata­
A história é chamada de parábola. Ela mente o que ele não pôde propiciar.
é realmente uma história ilustrativa, Muitos bens não garantem muitos anos;
compreendida na categoria bem genérica da mesma forma como menos bens não
das mashal hebraicas, geralmente tra­ teriam significado menos anos.
duzidas como parábolas. Basicamente Os seus vizinhos, sem dúvida, o cha­
mashal denota uma comparação. No uso maram de inteligente; Deus o chamou de
popular, ela chegou a designar uma am­ insensato. O insensato é um homem cu­
pla variedade de formas literárias, como jas decisões a respeito do presente não
enigma, provérbio, oráculo, alegoria, levam em consideração as possibilidades
cântico sarcástico, etc. Esta aplicação do futuro. Que vida pobre, fútil, mes­
geral do sinônimo hebraico influenciou quinha, ele havia vivido! Havia gasto
o uso da palavra grega, traduzida como todos os seus anos amealhando bens;
“parábola” em o Novo Testamento. agora, outra pessoa, quiçá tão insensata
O personagem principal da história quanto ele, ficará como herdeiro deles.
já é rico. Conseqüentemente, a colheita Ele tivera a responsabilidade temporária
abundante apenas aumentou a sua ri­ de casas e terras, e deixara de portar-se à
queza e o fez defrontar-se com um di­ altura da situação, como ser humano.
lema. Mas ele não consulta nem Deus O homem rico insensato pertence a uma
nem o homem. A solução é procurada em grande tribo. Os seus componentes an­
uma conversa consigo mesmo, que faz dam pela face da terra, falando arro­
ressaltar o seu grande isolamento do gantemente a respeito de “minha casa,
mundo e suas necessidades. minhas terras” . Em mais alguns anos,
Que farei? Esta é a pergunta a que outra pessoa também estará falando de
cada ser humano tem que responder, “minha casa, minhas terras” . A ironia
quando possui mais do que necessita, da situação é que eles estarão falando da
para sustentar a sua própria vida. Conce­ mesma propriedade.
A aplicação (v. 21) não se encontra em tamos fisicamente e os luxos de que não
D e outros manuscritos conexos. Pode ser necessitamos, em um futuro que somos
uma adição posterior a Lucas. Rico para incapazes de garantir. Isto não significa
com Deus é antítese do ajuntamento de que a pessoa não deve ser um ser humano
tesouros para si mesmo. Como é que se responsável, usando as suas energias de
faz para ser rico para com Deus? To­ maneira sábia e planejada, para prover
mando a direção oposta à do homem rico às necessidades físicas de outras pessoas
— sendo sensível às necessidades da hu­ que dependem dele. O esforço construti­
manidade e ministrando a elas, em nome vo para prover às necessidades da vida
de Deus. para hoje é legítimo (veja 11:3); porém a
2) O Pecado da Ansiedade (12:22-31) preocupação a respeito do que comere­
mos e vestiremos no ano que vem não ê.
22 £ d isse a o s se u s d is c íp u lo s: F o r isso
vos d ig o : N ão e s te ja is a n sio so s q u a n to à Essa ansiedade revela um ponto de
v o ssa v id a , pelo q u e h a v e is de c o m e r, n e m vista muito baixo a respeito da vida, e
q u a n to a o co rp o , p elo q u e h a v e is d e v e s tir. não um ponto de vista elevado. Quando
23 P o is a v id a é m a is do que o a lim e n to , e o uma pessoa entende quem é, não vai
corpo m a is do q u e o v e s tu á rio . 24 C o n sid e ra i dedicar os seus melhores pensamentos
os co rv o s, q ue n ão s e m e ia m n e m c e ifa m ;
n ão tê m d e s p e n s a n e m c e le iro ; co n tu d o , e talentos aos aspectos puramente físicos
D eus os a lim e n ta . Q u an to m a is n ã o v a ie is da vida. A base do ensinamento de Jesus
vós do que a s a v e s! 25 O ra, q u a l d e vós, é o seu conceito a respeito da natureza do
p o r m a is a n sio so qu e e s te ja , p o d e a c r e s ­ homem como (1) criado à imagem de
c e n ta r u m cô v ad o à s u a e s ta tu r a ? 26 P o r ­
ta n to , se n ão p o d eis fa z e r n e m a s c o isas
Deus e (2) tendo um futuro que se es­
m ín im a s , p o r q u e e s ta is a n sio so s p e la s tende além das preocupações estreitas e
o u tra s ? 27 C o n sid e ra i os lírio s, com o c r e s ­ provincianas da existência física. Vida
c e m ; n ã o tr a b a lh a m , n e m fia m ; contu d o , (literalmente, alma) e corpo existirão, em
vos digo que n e m m e s m o S a lo m ão , e m to d a um estado ressurrecto, além da morte.
a su a g ló ria , se v e s tiu com o u m d e le s. 28 Se,
pois, D eu s a s s im v e s te a e r v a q u e h o je e s tá Visto que este fato é mais importante do
no c a m p o e a m a n h ã é la n ç a d a no forno, que a estreita existência entre o nasci­
q u a n to m a is a vós, h o m e n s d e p o u c a fé? mento e a morte, o homem deve dirigir
29 N ão p ro c u re is , pois, o q u e h a v e is d e c o ­ os seus pensamentos para as suas neces­
m e r, ou o q u e h a v e is d e b e b e r, e n ã o a n d e is
p re o c u p a d o s. 30 P o rq u e a to d a s e s ta s c o isas
sidades e responsabilidades mais eleva­
os povos do m u n d o p ro c u r a m ; m a s vosso das.
P a i s a b e q ue p re c is a is d e la s . 31 B u sc a i Deus cuida das necessidades físicas
a n te s o se u re in o , e e s ta s c o is a s vos se rã o de suas criaturas. Um exemplo são os
a c r e s c e n ta d a s . corvos (Sal. 147:9), para quem Deus fez
provisões. A existência física deles de­
A parábola do fazendeiro rico, da fon­ pende da provisão diária de Deus, por­
te especial de Lucas, é seguida por ensi­ que eles não têm as acomodações que os
namentos relacionados, tirados de Q, homens têm, onde armazenar alimento
que têm paralelo em Mateus 6:25-33, parà consumação futura. Visto que as
como parte do Sermão da Montanha. pessoas valem mais do que os pássaros,
A frase introdutória afirma que estas são elas também podem ter confiança no cui­
instruções dadas aos discípulos. dado diário de Deus em seu favor.
Jesus continua a ensinar, que a vida é A futilidade da ansiedade é vista no
preciosa demais para que o homem gaste fato de ela não fazer nenhuma contri­
as suas energias com ansiedade infrutí­ buição para aquilo que é a fonte de
fera, a respeito de meras necessidades preocupação, isto é, a preservação e ex­
físicas. Ansiedade é a preocupação corro­ tensão da vida. Um côvado é a distância
siva, fútil, autoderrotista, a respeito de se da ponta do dedo médio até o cotovelo:
teremos ou não as coisas de que necessi­ cerca de dezoito polegadas. A palavra
traduzida como estatura poderia ser ver­ queles de um nível meramente animal.
tida mais corretamente como “duração Esse alvo é descrito por Jesus como o
da vida” . De qualquer forma, não seria reino. O interesse do homem que ge­
coisa mínima (v. 26) acrescentar qua­ nuinamente crê em Deus deve ser colocar
renta e quatro centímetros à altura de a sua vida sob o domínio de Deus. Uma
uma pessoa. A ansiedade não pode es­ vez que ele se relacionou adequadamente
tender a vida nem por um momento. com Deus, todas as outras coisas tam ­
Pelo contrário, e ironicamente, ela en­ bém terão uma relação adequada para a
curta a vida dos que condescendem nela. sua vida. Aqui vemos o verdadeiro pro­
As pessoas que mais se preocupam com o blema do nosso mundo. As pessoas estão
fato se terão ou não daqui a dez anos, o morrendo de fome, embora o conheci­
suficiente para comer e vestir, realmente mento técnico e os recursos materiais
são as que mais provavelmente não pre­ estejam aí, à disposição, para resolver
cisarão dessas coisas. esses problemas das necessidades físicas
Os lírios fornecem outro exemplo do do homem. Mas a ambição e egoísmo
cuidado de Deus para com as coisas su­ dele, que expressa rebeldia contra o go­
jeitas à sua vontade. Com toda a sua verno de Deus, são os elementos que
riqueza, Salomão não podia comprar um impedem a sua vontade de operar neste
guarda-roupas que competisse com a gló­ mundo.
ria das flores de Deus. Mais uma vez o 3) O Tesouro Celestial (12:32-34)
argumento é do menor para o maior. Os
homens, que são considerados muito 32 N ão te m a s , ó p e q u e n o re b a n h o ! p o rq u e
mais do que os lírios, na criação de Deus, a v o sso P a i a g ra d o u d a r-v o s o re in o . 33
V endei o q u e p o ssu ís, e d a i e sm o la s. F a z e i,
devem ser capazes de confiar naquele p a r a v ó s, b o ls a s q u e n ã o e n v e lh e ç a m ; te ­
que cuida prodigamente das flores, que so u ro nos c é u s q u e ja m a is a c a b e , a o n d e n ão
não têm futuro além do momento pre­ c h e g a la d r ã o e a tr a ç a n ã o ró i. 34 P o rq u e ,
sente. onde e s tiv e r o v o sso te s o u ro , a í e s t a r á t a m ­
b é m o v o sso c o ra ç ã o .
Além disso, a ansiedade é pagã. Os
povos do mundo são as nações pagãs, As pessoas que buscam o reino, e não
não judaicas. No pensamento cristão, as coisas materiais, recebem a certeza de
esta expressão descreve o povo que não que não precisam temer desapontamen­
conhece a Deus como Jesus o revelou. tos. Jesus é o pastor que guia o seu
Não que os pagãos fossem ateus. Eles pequeno rebanho na direção certa. Os
criam nos poderes divinos. Mas os deuses seus seguidores podem ter confiança no
deles agiam arbitrariamente e eram que ele lhes diz a respeito de seu Pai.
egoístas, não motivados pelo amor. O Sobretudo, foi do agrado de Deus dar-
Deus que Jesus revelara aos seus discí­ lhes o reino. Eles são os que Deus, em
pulos era o Pai deles. A insegurança da seu beneplácito, escolheu para si (veja
parte dos discípulos era de fato um repú­ 2:14 e 10:21). A possibilidade de eles
dio da crença em um Pai amoroso, que se terem escolhido Deus como seu rei está
preocupava pessoalmente com cada um baseada no fato de que ele os escolheu
de seus filhos. para seus súditos. Eles podem esperar
Quando uma pessoa realmente crê, confiantemente receber as bênçãos do
não apenas com o alto da cabeça, mas do governo de Deus, especialmente as ale­
âmago do seu ser, nesse Deus, ela é grias que virão na consumação futura do
liberta da ansiedade a respeito do futuro. século.
O seu futuro está seguro nas melhores Os discípulos podem dispensar as ri­
mãos que existem. Ela é liberta para quezas terrenas, que são tanto desneces­
dirigir as suas energias em direção a sárias como perigosas, porque eles pos­
alvos dignos dos homens, ao invés da­ suem as riquezas celestiais. Até as bol­
<er.
sas em que os homens colocam o seu esse respeito. Os discípulos não devem se
dinheiro se deterioram. Mas os discípu­ tornar üidiferen t ^ l ^ W ègmçosos, nem
los podem adquirir bolsas que não enve­ devem, pela demora da vin3a” (iê seu
lheçam. Esta expressão enfatiza a se­ Senhor, cair no sono. Eles devem estar
gurança dos investimentos celestiais que preparadSscTquadquer hora, para a sua
uma pessoa faz quando vive com Deus e vinda. Os lombos devem estar cingidos,
para ele. O tesouro terreno é transitório, o que significa que a vestimenta oriental
sujeito às devastações do tempo, dos ele­ longa, que podia impedir movimentos rá­
mentos e da cobiça humana (cf. Mat. pidos, devia ser ajuntada e presa ao
6:19,20). A vida que é eterna deve ser redor da cintura. As candeias devem
investida nos valores que sejam também conservar-se acesas continuamente, de
eternos. forma a fornecer luz para a entrada do
No pensamento bíblico, coração de­ senhor. Desta forma, quando ele bater,
nota primariamente a mente, o propó­ os servos estarão preparados para abrir
sito, a vontade. Jesus está falando do que logo. Eles não marcam a hora para a volta
chamamos de “mola propulsora” da vida de seu senhor. Isto não é atribuição
de uma pessoa. A direção da vida, os deles. Significa que cada momento está
seus propósitos, ideais e dedicações se­ prenhe de possibilidades de que ele volte.
rão determinados pelo seu padrão de Portanto, os servos precisam estar igual­
valores. A vida pode ser vivida em dire­ mente alertas em cada momento.
ção a Deus e aquilo que é permanente, O senhor está saindo de umas bodas,
ou em direção às coisas materiais, que figura da alegre comunhão celestial. Por
têm valor limitado e duvidoso. õcãSmõ"3ê sua chegada, haverá uma
festa, figura da renovada comunhão en­
8. Atitudes Apropriadas em Relação ao tre Jesus e seus discípulos. Surpreenden­
Futuro (12:35-13:9) temente, Jesus diz que o Senhor servirá
1) A Volta Inesperada (12:35-40) os servos. Como ele era durante o seu
ministério terreno, assim ele será quando
35 E s te ja m cin g id o s o s v o sso s lo m b o s e voltar. Ele é o Senhor, cujãgrãrn3ezaTe~
a c e s a s a s v o ss a s c a n d e ia s ; 36 e se d e s e m e ­
lh a n te s a h o m e n s q u e e s p e r a m o s e u se n h o r, demonstrada pelas qualidades dos seus
q u an d o h o u v e r d e v o lta r d a s b o d a s, p a r a servos. Desta forma, no reino do futuro,
q ue, q u a n d o v ie r e b a te r , logo p o s s a m a b rir- os mesmos valores ainda terão valor.
lh e. 37 B e m -a v e n tu ra d o s a q u e le s se rv o s, a o s O maior será servo de todos (Mat. 23:11).
q u a is o se n h o r, q u a n d o v ie r, a c h a r v ig ia n ­
do! E m v e rd a d e vo s d ig o q u e se c in g irá , e os
Este pensamento subverte todas as ex­
f a r á re c lin a r -s e à m e s a e, ch e g a n d o -se , os pectativas puramente materialistas e
s e r v ir á . 38 Q u er v e n h a n a s e g u n d a v ig ília, egoísticas para o futuro, e corre em dire­
q u e r n a te r c e ir a , b e m -a v e n tu ra d o s s e rã o ção contrária aos conceitos populares
e les, se a s s im os a c h a r . 39 S a b e i, p o ré m , rasteiros a respeito de recompensa ce­
is to : se o dono d a c a s a so u b e sse a q u e h o ra
h a v ia de v ir o la d r ã o , v ig ia ria e n ã o d e ix a r ia lestial. Uma cabana temporária aqui, em
m in a r a s u a c a s a . 40 E s ta i v ó s ta m b é m troca de uma mansão eterna, é um bom
a p e rc e b id o s ; p o rq u e , n u m a h o ra e m q u e negócio, em qualquer língua. Mas por
n ão p e n se is, v ir á o F ilh o do h o m e m . que devemos pensar que um a pessoa que
sente alegria em servir agora será privada
Qual deve ser a atitude dos homens dessa alegria no futuro?
cujos corações estão fixados no reino, Os judeus dividiam a noite em três
no período imediatamente anterior à vigílias. Os servos que estão prontos para
hora em que ele se manifestará em ple­ 'ãcffégaBa do seu Senhor, embora ele não
nitude? Estas passagens a respeito do chegue antes que a noite esteja quase
futuro respondem a algumas das interro­ terminada, são chamados bem-aventu­
gações e problemas que se levantam a rados. A demora de sua volta não deve
servir de desculpa para dormir ou aban­ Os versículos 42-46 têm paralelo em
donar a esperança. Mateus 24:45-51. A pergunta de Pedro
A TegundaT parabo 1a ilustra a mesma (v. 41), bem como a aplicação da pará­
advertência. O Filho do Homem deve vir bola (v. 47 e 48) se encontram apenas em
como um “ladrão de noite” (I Tess. 5:2; Lucas, e determinam o colorido dessa
II Ped. 3:10; Apoc. 3:3). O ladrão não passagem, que é característica de Lu­
adverte antecipadamente o dono da casa cas.
a respeito da hora em que cavará através Pedro fala em lugar dos doze. Pergun­
das espessas paredes de tijolos ou adobes ta se os ensinos precedentes, contendo
secos ao sol. Só permanecendo acordado promessas de bênção, tanto quanto ad­
através dá noite, o dono da casa poderá vertências contra a lassidão, se aplicam
ter a certeza de não ser pego de surpresa. apenas aos doze ou também a outros
Os seguidores de Jesus devem permane­ seguidores. Nesta pergunta e nos ensinos
cer alerta durante a noite da ausência que a respondem, podemos discernir a
dele, esperando a sua volta. De outra preocupação de Lucas com um problema
forma, não estarão preparados quando permanente do movimento cristão. O
ele vier. poder tem a tendência de corromper, e
~~~ Jesus ejisina que o futuro pertence a especialmente em círculos religiosos,
Deus. Ê esta fé que determina a atitude onde o seu uso pode ser santificado em
do crenie p a ra com o presente. O fim nome de Deus. O problema do mau uso
pode vir a qualquer momento,"‘ocasio­ da liderança deve ter-se levantado bem
nado pela morte ou pelo fim do século. cedo, na comunidade cristã. A interroga­
Cada momento é o último, por assim di- ção de Pedro propicia a oportunidade
zer. Deste ponlcTcle vista, o momento para Jesus fazer advertências contra o
presente precisa ser levado a sério e abuso de liderança. No primeiro plano,
vivido respÕnlavelmente, diante de Deus elas são dirigidas aos doze, mas além
de quem ele vem como uma dádiva. deles, a outros que ocupem lugares de
responsabilidade. De acordo com J. Je­
2) O Servo Infiel (12:41-48) remias (p. 124), as palavras de Jesus
foram originalmente dirigidas aos líderes
41 E n tã o P e d ro p e rg u n to u : S en h o r, d izes judeus, especialmente os escribas.
e s s a p a r á b o la a n ó s, ou ta m b é m a to d o s? O que o Senhor espera do seu mordo­
42 R esp o n d e u o S e n h o r: Q u al é, p o is, o m o r ­ mo é descrito em duas palavras: que ele
d om o fie l e p ru d e n te , q u e o S en h o r p o rá
so b re os se u s se rv o s, p a r a lh e s d a r a te m p o
seja fiel e prudente. O insensato é o
a r a ç ã o ? 43 B e m -a v e n tu ra d o a q u e le se rv o a homem que age como se não fosse mor­
q u e m o se u se n h o r, q u a n d o v ie r, a c h a r f a ­ domo (12:20). Ele usa os bens de seu
z endo a s s im . 44 E m v e rd a d e v o s digo q u e senhor como se fossem seus. O mordomo
o p o rá so b re to d o s os s e u s b e n s. 4S M a s, se fiel e prudente usa, os bens que lhe foram
a q u e le se rv o d is s e r e m s e u c o r a ç ã o : O m e u
se n h o r ta r d a e m v i r ; e c o m e ç a r a e s p a n c a r confiados, de acordo com os desejos de
os c ria d o s e a s c r ia d a s , e a c o m e r, a b e b e r seu senhor, isto é, para cuidar e sustentar
e a e m b r ia g a r -s e , 46 v ir á o se n h o r d e sse aqueles por quem ele é responsável. E
se rv o n u m d ia e m qu e n ã o o e s p e r a , e n u m a qual será a sua recompensa? Mais res­
h o ra d e q u e n ã o sa b e , e c o rtá -lo -á pelo m eio , ponsabilidade!
e lhe d a r á a s u a p a r t e c o m os in fié is. 47 O
se rv o q u e so u b e a v o n ta d e d o s e u se n h o r, e O mordomo pode ter outra reação.
n ão se ap ro n to u , n e m fez c o n fo rm e a su a Enganado pela falsa segurança, propi­
v o n ta d e , s e r á c a s tig a d o c o m m u ito s a ç o i­ ciada pela demora de seu senhor em
te s ; 48 m a s o q u e n ã o a so u b e , e fez c o isa s voltar, ele pode abusar da sua posição.
que m e r e c ia m c a stig o , c o m p o u co s a ç o ite s
s e r á c a s tig a d o . D a q u e le a q u e m m u ito é
Isto é feito, maltratando os que foram
d ad o , m u ito se lh e r e q u e r e r á : e a q u e m entregues aos seus cuidados, e apro-
m u ito é co n fiad o , m a is a in d a se lh e p e d ir á . priando-se dos bens de seu senhor, para
satisfazer aos seus próprios objetivos julgamento, mas este, provavelmente,
egoístas. Naquela época, o servo podia não é o significado aqui. Ele pode re­
esperar a pior espécie de castigos, pelos ferir-se ao processo purificador, refina-
seus atos indignos. Isto é bem exempli­ dor, através do qual os seus seguidores
ficado pela expressão cortá-lo-á pelo devem passar. Ou, pode referir-se às
meio, forma terrível de execução, na anti­ divisões que são precipitadas pela obra
guidade. Infiel se coloca em contraste de Jesus. No contexto de Lucas-Atos,
com fiel, no verso 42. O servo que explora outra possibilidade é o envio do Espírito
a sua posição não participa nem do ca­ Santo aos discípulos no dia de Pentecos­
ráter nem do destino do mordomo res­ tes (Grundmann, p. 270). Esta última
ponsável. Com os infiéis é “com os hi­ significação parece ser indicada pelo ver­
pócritas” , em Mateus 24:51, o que é so 50. No momento, o fogo não pode ser
provavelmente original. Isto faz com que lançado na terra. Jesus é impedido de
a parábola seja peculiarmente aplicável fazê-lo antes do seu batismo, que é a sua
aos líderes judaicos, que haviam abusado morte fM ar. 10:38). Depois de sua mor­
de sua responsabilidade. te, virá o fogo.
O pensamento é levado um pouco mais Jesus não veio para instituir o estado
adiante, para indicar como é sério o de paz, que os homens esperam em co­
cargo de líder religioso. Conhecimento nexão com o reino messiânico (cf. Is.
maior implica em maior responsabilida­ 11:6-9; Miq. 4:3,4). Ele veio para con­
de. A pessoa que conhece, mas não cum­ clamar os homens a uma decisão. Ine­
pre a vontade do seu senhor, é mais rente a essa missão está a possibilidade
culpada do que a pessoa cujos erros se de divisões e antagonismos. A espada da
originam na ignorância. Em outras pala­ proclamação de Jesus (cf. Mat. 10:34)
vras, o líder cristão que guia o povo na corta por entre as mais íntimas relações
direção errada é culpado de uma falta humanas. Este quadro das conseqüên­
muito mais séria do que a do povo en­ cias de sua-missão é pintado em termos
ganado que o segue. Ser mordomo sobre encontrados em Miquéias 7:6, que des­
a casa de Deus não é honra que se deva creve a angústia apocalíptica que pre­
buscar, mas uma tremenda responsabi­ cederá o fim. Em Miquéias (e também
lidade da qual se deve desincumbir “com em Mateus 10:35), os jovens se rebelam
temor e tremor” . Muito foi dado aos contra os seus pais. Em Lucas, o anta­
líderes; muito se lhes será requerido de gonismo tem as duas direções.
volta.
4) Cegueira Quanto aos Tempos
3) A Crise Provocada por Jesus
(12:54-56)
(12:49-53)
54 D izia ta m b é m à s m u ltid õ e s : Q uando
49 V im la n ç a r fogo à t e r r a ; e q u e m a is
v e d e s s u b ir u m a n u v e m do o c id e n te , logo
q u e ro , se j á e s t á a c e so ? 50 H á u m b a tis m o
d iz e is : L á v e m c h u v a : e a s s im s u c e d e ; 55 e
e m q u e h e i de s e r b a tiz a d o ; e co m o m e
a n g u stio a té q u e v e n h a a c u m p rir-s e ! SI q u an d o v e d e s s o p r a r o v e n to su l, d iz e is:
C u id ais vó s qu e v im tr a z e r p a z à t e r r a ? N ão, H a v e rá c a lo r ; e a s s im su c e d e . 56 H ip ó c ri­
e u vos digo, m a s a n te s d is s e n s ã o ; 52 p ois ta s , s a b e is d is c e rn ir a fa c e d a t e r r a e do
c é u ; co m o n ã o s a b e is e n tã o d is c e rn ir e ste
d a q u i e m d ia n te e s ta r ã o cin c o p e s s o a s n u m a
c a s a d iv id id a s , t r ê s c o n tr a d u a s , e d u a s te m p o ?
c o n tra t r ê s ; 53 e s ta r ã o d iv id id o s: p a ic o n t r a
filho, e filho c o n tr a p a i ; m ã e c o n tr a filh a , e A presença de Jesus é o sinal dos
filh a c o n tr a m ã e ; s o g r a c o n tr a n o ra , e n o ra tempos, a conclamação urgente de Deus
c o n tr a s o g ra . a uma decisão. Alguns poucos respon­
As opiniões eruditas estão divididas a deram, mas a maior parte do povo ainda
respeito do significado simbólico de fogo. não percebeu o significado de sua pre­
Nos ensinos de João Batista, ele significa sença entre eles.
Uma nuvem do ocidente, da direção com o tipo mais severo de punições. Um
do Mar Mediterrâneo, vem carregada de devedor inteligente devia fazer toda sorte
umidade, e traz chuva. Um vento sul de esforços para resolver o seu problema,
provém do seco deserto do Neguev, e traz com o homem a quem devia, antes que o
calor escaldante. (Veja também Mateus caso fosse levado à corte. Possivelmente,
16:2,3, onde a idéia é a mesma, porém o ele acertaria as contas entrando em al­
conteúdo e o contexto são diferentes.) gum acordo quanto à forma de paga­
Jesus censura as multidões porque elas mento. Uma vez anunciado diante do
percebem os sinais que denotam mudan­ juiz, podia ser tarde demais para pro­
ças no tempo, mas são insensíveis aos curar soluções. Se o juiz o achasse cul­
sinais que lhes falam das mudanças que pado de dívida, ele seria entregue ao
Deus operou nas épocas. Uma nova épo­ meirinho, que era responsável pelo re­
ca da história da salvação começou, e cebimento da dívida. O devedor era ge­
elas nem perceberam. Este tempo, ou ralmente colocado na prisão, enquanto a
melhor, o tempo presente, é um novo e sua família fazia os arranjos necessários
decisivo período no tratamento de Deus para pagar o que elè devia. Em tal si­
para com o homem. Tempo (kairos) é tuação, ele não seria libertado enquanto
uma palavra que tem importantes cono­ o último centavo não fosse pago.
tações religiosas. Significa, basicamen­ Os homens, que estão em vias de
te, o importante momento decisivo, como enfrentarem o juízo de Deus, serão sá­
é determinado por Deus. Ê um auspicio­ bios se fizerem a coisa aconselhável: pa­
so momento de oportunidade, porque gar a dívida que têm para com ele. Entre
Deus chama o povo a arrepender-se. Mas os judeus, o pecado freqüentemente era
é também um momento carregado de ncionado como divida (como em Ma- .
possibilidades de perigo e tragédia. O kai­ s 6:12). ÍT
ros é também um momento passageiro. r li- r/ - - i — n 5f r z &
Hoje Deus se comunica com eles na 6) A Necessidade de Arrependimento; Teivn
pessoa de Jesus; amanhã ele já se terá (i3: i-5) •
ido, e o kairos terá passado. 1 O ra , n a q u e le m e s m o te m p o e s ta v a m *
p re s e n te s a lg u n s q u e lh e fa la v a m dos g a li-
5) Preparação Para o Juízo (12:57-59) le u s c u jo s a n g u e P ila to s m i s t u r a r a co m os
S7 E p o r q ue n ã o ju lg a is ta m b é m p o r vós sa c rifíc io s d e le s . 2 R esp o n d e u -lh e s J e s u s :
m e s m o s o q u e é ju s to ? 58 Q u an d o , p o is, v a is P e n s a is vós q u e e s s e s fo r a m m a io re s p e c a- f i j «
co m o te u a d v e r s á r io a o m a g is tra d o , p r o ­ d o re s do q u e to d o s os g a lile u s, p o r te r e m
c u r a fa z e r a s p a z e s c o m e le n o c a m in h o ; p a d e c id o ta is c o is a s? 3 N ão , e u vos d ig o ;
p a r a q u e n ã o s u c e d a q u e e le te a r r a s te ao a n te s , se n ã o v o s a r r e p e n d e r d e s , to d o s de
ju iz, e o ju iz te e n tr e g u e a o m e irin h o , e o ig u a l m o d o p e re c e r e is . 4 Ou p e n s a is que
m e irin h o te la n c e n a p ris ã o . 59 D igo-te q u e a q u e le s dezoito, so b re os q u a is c a iu a to r re
n ão s a i r á s d a li e n q u a n to n ã o p a g a r e s o d e r ­ d e Siloe é os m à to u , fo r a m m a is c u lp a d o s do
r a d e iro lep to . q u e to d o s os o u tro s h a b ita n te s d e J e r u s a ­
lé m ? 5 N ão , e u v o s d ig o ; a n te s , s è T ía õ v o s
O significado da ilustração de Jesus é a r r e p e n d e rd e s , to d o s d e ig u a l m o d o p e r e ­
mais claro aqui do que no contexto de c e re is.
Mateus (5:25,26). É uma injunção para Agora Lucas passa a apropriar-se de
que os homens acertem as contas com sua fonte especial, da qual são tirados os
Deus enquanto há tempo. O que é justo versículos 1-17. Mas a necessidade, ur-
será explicado em 13:5. A única maneira gente de arrependimento, tema já apre-
pela qual os homens podem acertar as sêntado em 12:54-59, contínua a ser en­
contas com Deus é através do arrependi­ fatizada até o verso 9.
mento. Estavam presentes é, talvez, melhor
Nos tempos antigos, dívida era consi­ traduzido como “chegaram” . Eles che­
derada uma felonia que era castigada garam naquele mesmo tempo, ou seja, ao
Jesus exortar o povo a acertar as contas Os dezoito eram, provavelmente, operá­
com Deus enquanto tinha oportunidade. rios empenhados na construção da torre
A trágica história, contada por eles, pro­ de Siloé, que podia ser um posto de
picia a oportunidade para Jesus corrigir defesa, com o objetivo de guardar o
conceitos populares errados a respeito suprimento de água de Jerusalém, no
das relações entre o sofrimento e pecado, caso de cerco. Através de Josefo, fica-~|
e reiterar o seu urgente apelo para que Çrnos sabendo como os planos de Pilatos
IsraeLse^arrependa. I de usar o dinheiro do Templo,para cons-
Ç Josefo jq u e apresenta narrativas deta- ( truir um aqueduto em Jerusalém haviam
lnãclãs da relação de fPilatos) com os ! desencadeado um protesto popular. Este"
t f judeus, não fala do morticínio dos gali- ‘“foi acalmãSoTlpor tropas, que usaram
leus. Não obstante, o incidente é inteira­ cacetes contra a população hostil, com
mente coerente com o caráter de Pilatos. quem se misturaram, vestidos de roupas
Ele finalmente foi removido do seu car­ civis (Antig., 18,3,2; Guerras, 2,9,4).
go, por causa do ataque, empreendido Se esses dezoito homens haviam sido
em 35 d.C., contra alguns incautos ado­ empregados nesse projeto, a morte deles,
radores samaritanos no monte Gercsim e provavelmente, fora considerada, pelõs
a subseqüente execução de líderes^sama- outros judeus, como um ato de retribui­
ritanos. OF ialíleus fófám mortos. pro­ ção divina pela sua irreverência.
vavelmente, no Templo, enquanto esta­ " Mas Jesus repudia a inferência de que
vam sacrificando animais, que preten­ esses dezoito eram piores pecadores do
diam oferecer a Deus (Strack-Billerbeck, que os outros habitantes de Jerusalém.
II, 192 e s.). Visto que a Galiléia era uma ?Da mesma forma como a torre havia
região propícia para os revolucionários caído sobre esses homens, os destroços de
judeus, é natural supor-se que os infeli; uma cidade destruída cairiam sobre a ?
zes homens pertenciam a alguma espécie cabeça dos seus habitantes, se eles per- £
de bando rebelde. -sistissem em sua rebelião contra Deus.
A pergunta de Jesus (v. 2) dá a en­ ‘Jesus ensina que as tragédias da vida não ^
tender que os pressupostos teológicos a deviam ser usadas para alimentar a sen- m
priori de seus ouvintes os levara a chegar sação de justiça própria das pessoas que
apressadamente à conclusão de que o h ã^ ãnTgscãpã5õ~a elas. Pelo coTítrário,
destino dos galileus era resultado dos elas deviam falar a todos nós acerca de
pêcadosjncomuns que haviam cometido. n o s g a J É w ^
MasfJesus) assevera que todos os israe­ Essas tragédias nos dizem que somos
litas são igualmente pecadoresTíodós es­ criaturas, e não deuses, e que precisamos
tão no mesmo nível diaiTte dé Deus. Is­ nos voltar para o Deus, que chama por / '
rael, como nação, deve se arrepender, ou_ nós até na tragédia.
perecer. Se o povo continuar na mesma
7) O Perigo da Esterilidade (13:6-9)
direção, um desastre semelhante ao dos
galileus será o destino de toda a nação. 6 E p a ss o u a n a r r a r e s t a p a r á b o la : C erto
h o m e m tin h a u m a fig u e ira p la n ta d a n a s u a
Se os galileus eram revolucionários^ esta v in h a ; e , in d o p r o c u r a r fru to n e la , n ã o o
pode ser uma advertência contra a atitu- a c h o u . 7 D isse e n tã o a o v itic u lto r: E is que
de crescentemente militante, revolucio­ h á t r ê s a n o s v e n h o p r o c u r a r fru to n e s ta
nária, para com òs romanos, que, em fig u e ira , e n ã o o a c h o ; c o rta -a ; p a r a q u e
essência, é uma rejeição da conclaínação o c u p a e la a in d a a t e r r a in u tilm e n te ? 8 R e s ­
p o n d eu -lh e e le : S en h o r, d e ix a -a e s te a n o
de Jesus para que Israel se identifique’ a in d a , a té q u e e u c a v e e m d e rr e d o r, e lh e
com ele como o Servo Sõfredor. d eite, e s t r u m e ; 9 e, se n o fu tu ro d e r fru to ,
O próprio Jesus cita outra tragédia, b e m ; m a s , se n ã o , c o rtá -la -á s.
talvez recente, em que alguns homens A vinha é uma antiga figura usada
haviam perdido a vida acidentalmente. para representar Israel (Is. 5:1-7). O sim-
bolismo da.figueira é incerto; mas, pro­ g o n h a d o s; e todo o p o v o se a le g r a v a p o r
vavelmente, também representa Israel, to d a s a s c o is a s g lo rio sa s q u e e r a m fe ita s p o r
ele.
como em Marcos 11:12 e ss. Era costume
os palestinos plantarem árvores frutíferas A notícia de que Jesus estava ensinan­
em suas vinhas. do em uma das sinagogas assinala uma
A parábola sugere interpretação ale- modificação na direção da narrativa. Só
górica. Q dono da vinha é o Deus de aqui nós o vemos em uma sinagoga, na
Israel. Por três anos, um período de última parte do seu ministério. A expres­
tempo indefinido, mas limitado, ele tem são no sábado prepara-nos para a cena
sido paciente com a árvore que não pro­ de conflito que se segue.
duziu o fruto esperado. O viticultor que Espírito de enfermidade dá a entender
pede mais tempo para a árvore pode ser que a enfermidade estava relacionada
considerado como representando Jesus. com o poder de demônios. Jesus toma a
cuja intercessão ganhou outra oportuni­ iniciativa de curar a mulher, que esti­
dade para Israel. Cavando ao redor da vera horrivelmente aleijada durante de­
árvore, para cortar a grama e as ervas zoito anos. Depois de proclamar a li­
daninhas, e adubando-a. são removidas^ bertação dela (em consonância com 4:
todàs as razões para esterilidade, estra- j 18), Jesus impôs-lhe as mãos, ao que ela
nhas à própria árvore. J se endireitou.
~ Todavia, a história é uma parábola, e A ira do chefe da sinagoga (veja 8:41)
não uma alegoria. Como parábola, ela foi causada porque Jesus violara as tra­
tem uma moral principal: está sendo dições do sábado. Um ato como esse
dada uma umrna opijffarildâde a Israel. ameaçava a estabilidade da estrutura re­
Se^erà naõ^der fruto, será cortada. O ligiosa de que ele fazia parte. O chefe
fruto que Deus espera são os atos que assume o papel de doutor da Lei. A sua
expressam uma resposta genuína ao seu interpretação é um exemplo do uso er­
clamor ao arrependimento (3:8). rado que se fazia da liderança religiosa,
que Jesus já havia condenado (11:42
e ss.).
9. A Cura de uma Mulher Encurvada Jesus se dirige ao chefe, mas inclui
(13:10-17) também todos os que aceitavam a inter­
pretação dele. Hipócritas descreve as
10 J e s u s e s ta v a e n sin a n d o n u m a d a s s in a ­ pessoas que dão atenção à observância de
g o g as no s á b a d o . 11 E e s ta v a a li u m a m u ­ regras religiosas, mas não se dedicam à
lh e r q u e tin h a u m e s p írito d e e n fe rm id a d e
h a v ia j á dezoito a n o s ; e a n d a v a e n c u rv a d a , “justiça e o amor de Deus” (11:42). Eles
e n ão p o d ia d e m o d o a lg u m e n d ire ita r-s e . desamarravam os animais no sábado,
12 V endo-a J e s u s , c h a m o u -a , e d isse -lh e : por causa da preocupação com o bem-
M u lh er, e s tá s liv re d a tu a e n f e r m id a d e ; 13 e estar deles mesmos; Jesus havia acabado
im p ô s-lh e a s m ã o s e im e d ia ta m e n te e la se
e n d ire ito u , e g lo rific a v a a D e u s. 14 E n tã o o
de soltar uma mulher. Uma interpre­
ch efe d a sin a g o g a , in d ig n a d o p o rq u e J e s u s tação da religião que considere os ani­
c u r a r a no s á b a d o , to m a n d o a p a la v r a , d isse mais mais importantes do que as pes­
à m u ltid ã o : Seis d ia s h á e m q u e se d ev e soas é simplesmente errada, do ponto de
t r a b a lh a r ; v in d e, pois, n e le s p a r a s e rd e s
vista de Jesus.
c u ra d o s , e n ã o no d ia de sá b a d o . 15 R e sp o n ­
d eu -lh es, p o ré m , o S e n h o r: H ip ó c rita s, no Satanás havia amarrado a mulher;
sá b a d o n ão d e sp re n d e d a m a n je d o u ra c a d a Deus a havia libertado. Portanto, as en­
u m d e vós o se u boi, ou ju m e n to , p a r a o fermidades não são da vontade de Deus.
le v a r a b e b e r? 16 E n ã o d e v ia s e r s o lta d e s ta Pelo contrário, o aleijão dessa mulher era
p ris ã o , n o d ia d e sá b a d o , e s ta q u e é filh a de
A b ra ã o , a q u a l h á dezoito a n o s S a ta n á s t i ­ uma frustração dos propósitos de Deus
n h a p r e s a ? 17 E , dizendo e le e s s a s c o isa s, na criação. Jesus aceitava o fato de que o
to d o s os se u s a d v e r s á r io s fic a v a m e n v e r ­ sofrimento era um ingrediente necessá­
rio para a sua própria dedicação à von­ É desnecessário ficar demasiadamente
tade de Deus. Mas era um sofrimento preocupado com a exatidão científica
que resultava de um processo escolhido minuciosa de uma ilustração. Além dis­
voluntariamente, o que é muito diferente so, a referência às aves é, provavelmente,
do sofrimento, de vítimas indefesas, da uma reminiscência de Daniel 4:20,21.
dor e da doença. Ali, o reino de Nabucodonozor é com­
No comentário editorial, a assembléia parado a uma gigantesca árvore, “em
se mostra caracteristicamente dividida cujos ramos habitavam as aves do céu” .
em adversários e povo. A lógica do argu­ Há tanto semelhança quanto contraste,
mento apresentado por Jesus faz emude­ pois o reino de Deus tem uma grandeza e
cer os críticos. As coisas gloriosas que perpetuidade que não são características
fazem com que o povo se regozije in­ do reinado babilónico.
cluem os milagres e as palavras maravi­ Esta parábola expressa a confiança de
lhosas. Jesus no triunfo do governo de Deus.
10. A Natureza do Reino (13:18-30) Esta confiança não se baseava em esta­
tísticas numéricas. Aqueles que haviam
1) O Grão de Mostarda e o Fermento correspondido genuinamente à sua pre­
(13:18-21) gação, eram numericamente poucos; os
18 E le , p ois, d iz ia : A q u e é s e m e lh a n te o seus oponentes eram numerosos e po­
re in o d e D eu s, e a q u e o c o m p a r a re i? 19 É derosos. Mas Jesus cria que Deus era Rei
s e m e lh a n te a u m g rã o de m o s ta r d a q u e u m e que a sua soberania não estava sendo
h o m em to m o u e la n ç o u n a s u a h o r ta ; c r e s ­ ameaçada pela hostilidade combinada
ceu, e fez-se á rv o r e , e e m s e u s ra m o s se
a n in h a r a m a s a v e s d o c é u . das forças malignas de todo o universo.
20 E d is se o u tr a v e z : A q u e c o m p a r a re i o Fermento era um pedaço de massa fer­
re in o d e D e u s? 21 É s e m e lh a n te a o fe rm e n to mentada, guardada de uma mistura an­
q u e u m a m u lh e r to m o u e m is tu ro u co m tr ê s terior. Três medidas de farinha era uma
m e d id a s d e fa r in h a , a té f ic a r to d a e la le v e ­
dada.
quantidade extraordinariamente grande:
“trinta e seis quilos de farinha” (The
Cultivada, a planta da mostarda, que é English Bible). Quando assada, essa
selvagem e anual, cresce até um a altura massa produziria pão para alimentar 162
de dois metros e meio a três metros. pessoas (J. Jeremias, p. 90, nota-de-roda-
A diferença entre a pequenez da semen­ pé 4). Em outras partes das Escrituras, o
te e o possível tamanho da planta que ela fermento é símbolo do mal. Mas, devido
produz é proverbial. Se considerados li­ ao fato de que uma pequena quantidade
teralmente, os dados da parábola não dele permeia irresistivelmente uma tão
condizem exatamente com os dados cien­ grande quantidade de massa, ele tam ­
tíficos. O grão de mostarda denotado bém é uma boa figura para o reino de
pela palavra grega não é a “menor das Deus.
sementes” (Mat. 13:32; Mar. 4:31). Este O fermento faz a sua obra silentemen-
detalhe é omitido por Lucas, para quem te, misteriosamente. Isto pode ser consi­
o tamanho da planta, e não a pequenez derado como adequada ilustração da ma­
da semente, é o ponto principal. Além do neira pela qual o reinado de Deus opera
mais, parece duvidoso que os pássaros na sociedade humana. Os primeiros cris­
pudessem fazer os seus ninhos em seus tãos, incluindo-se Lucas, também pode­
ramos, visto que a planta só alcançava a riam ver, na parábola, uma promessa
maturidade depois que a época de pos­ cumprida no crescimento miraculoso da
tura das aves já tinha passado. Alguns Igreja no mundo. Para Jesus, todavia, o
intérpretes removem esta dificuldade, tema principal era, provavelmente, a ir­
entendendo se aninharam como “pou­ resistibilidade e a vitória final do reino de
saram” ou “se abrigaram” . Deus, que nenhuma força podia impedir.
2) Surpresas do Reino (13:22-30) para a outra. Mas a porta é estreita, ^
22 A ssim p e r c o r r ia J e s u s a s c id a d e s e a s e por ela não se entra fácil ou frivola­
a ld e ia s , e n sin a n d o , e c a m in h a n d o p a r a mente. Ã salvação, à qual ela acena,, é
J e r u s a lé m . 23 E a lg u é m lh e p e rg u n to u : cara. Nmguém que faça apenas um gesto 1
S en h o r, sã o p o u co s os q u e se s a lv a m ? Ao com o coração 1dividido em direção do \
q ue ele lh e s r e s p o n d e u : 24 P o rf ia i por e n tr a r ' i* ' 1 i * j i ij

p e la p o r ta e s t r e i t a ; p o rq u e e u v o s digo q u e
reino entrará nele. Porfiai é uma palavra
m u ito s p ro c u r a rã o e n tr a r , e n ã o p o d e rã o . paulina (v. g.: agonizo: I Cor. 9:25; Col.
25 Q uando o dono d a c a s a se tiv e r le v a n ta d o 1:29) que descreve os esforços estrénuos
e c e rr a d o a p o r ta , e vós c o m e ç a rd e s , de exigidos de um atleta, em uma compe­
fo ra , a b a te r à p o rta , d iz e n d o : S en h o r, tição. Ê um presente do imperativo:
a b re -n o s ; e ele vos re s p o n d e r: N ão se i d o n ­
d e vós so is; 26 e n tã o c o m e ç a re is a d iz e r: “continuai porfiando” . A porta é estreita
C om em os e b e b e m o s n a tu a p re s e n ç a e tu no sentido de que por ela se entra tão-
e n s in a s te n a s n o s s a s r u a s ; 21 e e le v o s r e s ­ somente com a exclusão, de todos os
p o n d e rá : N ão se i d onde so is; a p a rta i-v o s de outros interesses. É a g o r t a ^ ^ r e g ^ i ^ i ;
m im , vós to d o s os q u e p r a tic a is a in iq ü id a ­ mento, que vocaciona o homem a renun-
d e. 28 Ali h a v e r á ch o ro e r a n g e r de d e n te s
q u an d o v ird e s A b ra ã o , Is a q u e , J a c ó e todos d a r toda a sua arrogância e obstinação.
os p ro f e ta s no re in o de D e u s, e v ó s la n ç a d o s Aqueles que não dão tudo agora, para
fo ra . 29 M uitos v ir ã o do o rie n te e do o c id e n ­ enírar pela porta estreita, procurarão
te , do n o rte e do su l, e re c lin a r-s e -ã o à m e s a entrar por ela, isto é, depois que o tempo
no re in o d e D eu s. 30 P o is h á ú ltim o s que
se rã o p rim e iro s , e p rim e iro s q u e s e r ã o Ba oportunidade passou (Plummer. p.
ú ltim o s. 346). Se é difícil entrar quando está"! ^
aberta, é impossível entrar por ela quan-J
Em uma nota editorial, somos lembra­ do estiver fechada. O homem que deixou ■>.•^
dos de que Jesus está caminhando para a oportunidade passar não poderá forçar ■¥—
Jerusalém. Talvez a interrogação, feita a porta fechada a se abrir.
por alguém, tenha sido motivada pela Aquele que abre a porta também a
previsão de que o reino messiânico seria fecha, ou cerra. Então, aqueles que a
inaugurado por ocasião da chegada de haviam desprezado começarão a bater
Jesus ã Jerusalém. O número de pessoas nela. Embora outrora eles tivessem ^es-
13a serem incluídas no reino era um as- carnecido de Jesus como filho de um car-
sünto de aceso debate nos círculos reli­ pinteiro de aldeia, então eles o chamarão
giosos judaicos. Seriam salvos todos os de Senhor. Qnde uma vez eles o haviam
judeus, ou apenas uns poucos, como 3esprezado, eles estarão procurando di:
djziam certas seitas, quando a crise che­ zer que têm algum relacionamento com
gasse? Este exercício de futilidade é a iíP ele. Eles o conheciam e haviam ouvido os
3a praticado por certas pessoas que estão seus ensinamentos. Mas as suas declara­
ansiosas para estabelecer os limites exa­ ções superficiais não valerão de nada. A
tos que excluem os perdidos do grupo mera exposição dos ensinamentos de Je-
seleto dos justos. Indubitavelmente, as sus não é suficiente. Agora, aqueles que
"pessoas que se empenham nesse debate o haviam rejeitado, por causa de suas
fútil estão sempre convencidamente se­ credenciais que não eram adequadas,
guras de que elas fazem parte dos que descobrem que a situação se inverteu.
1 estão do lado de dentro. A resposta de Visto que eles haviam feito pouco caso d a l
I Jesus leva o ouvinte a parar para pensar, oferta de Deus, através de Jesus, para \ é f
^ e destrói toda a sua falsa segurança. Este fazer deles filhos de Deus, o seu passado
| é levado a se classificar juntamente com não os recomenda para as glórias do iu -J
I os que estão do lado de fora, e que devem turo de Deus. A ironia é que, as pessoas
| estar interessados em entrar no reino. que passaram tanto tempo traçando as
Deus abre a porta entre as duas eras. suas árvores genealógicas, que eles acha-
Pe^sua^graça^ é possível passar de uma vam que taziam deles membros da raga
escolhida, não terão a linhagem correta. lé m , J e r u s a lé m , q u e m a t a s os p ro fe ta s , e
Aqueles que deixaram de ser praticantes a p e d re ja s os q u e a ti sã o e n v ia d o s ! Q u a n ta s
T —*■'*•-— ---------- Jr—-— ■ ------------------- ------ .............................___________ _____
v e zes q u is e u a ju n t a r os te u s filh o s, co m o a
da palavra que Jesus havia ensinado nas g a lin h a a ju n ta a su a n in h a d a d e b a ix o d a s
fsuas ruas serão chamados de os que pra­ a s a s , e n ã o o q u is e s te ! 35 E is a í, a b a n d o n a d a
ticais a iniqüidade. vos é a v o ss a c a s a . E e u v o s dig o q u e n ã o
O povo que se orgulha tanto de ser m e v e re is a té q u e v e n h a o te m p o e m q u e
descendente de Abraão será excluído dos d ig a is : B en d ito a q u e le q u e v e m e m n o m e do
S en h o r.
seus pais, porque o povo de Deus não é
jscolhido devido à raça. Os profetas, Naquela mesma hora liga esta passa­
a quem seus pais haviam perseguido e gem à precedente. Não sabemos qual era
cujos ensinamentos eles rejeitavam, ao a relação entre os fariseus e Herodes.
rejeitar Jesus, estarão lá. Mas ogdpe^de Quer estivessem eles sendo amáveis para
será que o corpo de Israel com Jpsus quer fossem instrumentos vo­
sera composto dg gentios de nações des- luntários de um governante astuto, não
prezadas e h u m ild e s T ^ ^ ^ V ra jn s w d b o podemos saber. Evidentemente, o es­
ãèntes expressará o desespero e a tnsteza. tratagema de Herodes era fazer Jesus sair
.1 - | ------- ...................... .1- 1 ....... .............

dos que ficarão do lado de fora, olhando do seu reino sem suscitar a ira do povo.
de longe. A sua fmstraçjão^será comple­ Algumas das mesmas razões que o ha­
tada pelo fato de que eles, da mesma viam levado a eliminar João podiam tam ­
forma como o desconhecido inquiridor bém estar fazendo com que ele temesse a
do verso 23, estavam tão certos de esta­ Jesus, que também se tornara figura
rem entre os eleTFõsT popular.
Jesus enfatiza repetidamente que, na Jesus se recusa a ser influenciado pela
era vindoura, Deus m udará os valores e ameaça. Raposa pode simbolizar astú­
categorias desta era. Os justos são os cia. Mais provavelmente, de acordo com
pecadoresj, os^ eca^ ores^ p to^ ju si^ rOs o seu uso mais freqüentemente atestado,
J^íliuSòssãÕ orT nclSdós; e os Incluídos ela descreve Herodes como pessoa in­
[ são os excluídos. É sempre verdade que significante, inferior (Strack-Billerbeck,
‘os publicanos e as meretrizes entram no II, p. 200 e ss.). Embora o exato signi­
Ir e S o d e D e u s 57 antes dos “religiosos” ficado da resposta de Jesus esteja bastan­
(Mat. 21:31), não por causa do pecado te obscuro, a idéia principal é que o seu
deles, mas porque reconhecem que são futuro estava traçado, e que Herodes era
i pecadores. No evangelho de Jesus, o pe- impotente para fazer parar o curso pré-
>cador é alcançado pela palavra da graça; j ordenado por Deus para o seu ministério.
; aquele que se alicerça na justiça própria, Ele completaria o que viera fazer. Pri­
[ pela palavra de julgamento. meiro, havia o tempo da proclamação,
caracterizado pelos milagres de sobera­
V. Da Galiléla a Jerusalém: Parte nia messiânica. Depois viria a consuma­
Dois (13:31-19:27) ção, quando Jesus seria consumado. Isto
se refere aos eventos apoteóticos que te­
1. O Destino de Jesus e de Jerusalém riam lugar em Jerusalém. Uma das for­
(13:31-35) mas de resolver a falta de clareza do texto
31 N a q u e la m e s m a h o r a c h e g a r a m a l ­ é entender hoje e amanhã como dia a dia,
g u n s fa r is e u s , q u e lh e d is s e r a m : S ai, e e o terceiro dia, como um dia subseqüen­
r e tir a - te d a q u i, p o rq u e H e ro d e s q u e r^ m ata r-
te . 32 R esp o n d eu -lh es J e s u s : Id e e d izei a
te a este período. Black traduz assim o
e s s a r a p o s a : E is q u e vou e x p u ls a n d o d e ­ verso 32: “Eis que eu expulso demônios e
m ôn ios e fazen d o c u ra , h o je e a m a n h ã , e no faço curas dia a dia, mas um dia, em
te r c e ir o d ia s e r e i c o n su m a d o . 33 Im p o rta , breve, serei aperfeiçoado.” 25
co ntudo, c a m in h a r h o je , a m a n h ã , e no d ia
se g u in te ; p o rq u e n ã o c o n v é m q u e m o r r a
u m p ro f e ta f o r a de J e r u s a lé m , 34 J e r u s a ­ 25 Ibid., p. 152.
A decisão de Jesus de ir a Jerusalém tou : É líc ito c u r a r no s á b a d o , ou n ã o ? 4 E le s,
é, portanto, não devida à pressão exer­ p o ré m , fic a r a m c a la d o s. E J e s u s p eg a n d o
no h o m e m , o c u ro u , e o d e sp e d iu . S E n tã o
cida por Antipas, mas à sua dedicação ao lh e s p e rg u n to u : Q u al d e v ó s, se lh e c a ir n u m
seu próprio destino. Morrer em alguma poço u m filho, ou u m b o i, n ã o o t i r a r á logo,
obscura aldeia da Galiléia ou da Peréia m e s m o e m d ia d e s á b a d o ? 6 A isto n a d a
seria relativamente sem significado. A p u d e ra m re s p o n d e r.
morte de um profeta em Jerusalém é um No judaísmo, a observância do sábado
julgamento de toda a nação. Ali está o era colorida negativamente pela absten­
centro de sua adoração, o Templo. Ali se ção de atividades classificadas como tra­
assenta o seu mais augusto e competente balho pela tradição oral. Mas positiva­
concílio, o Sinédrio. mente era um dia de celebração. Fazer
O lamento sobre Jerusalém, provavel­ festa era uma forma apropriada para os
mente, deve ser entendido como a pala­ israelitas expressarem a sua alegria por
vra de Deus pronunciada à moda dos serem objetos especiais da graça de
profetas (como em Os. 11:1 e ss., por Deus, pelo fato de estarem incluídos na
exemplo). Deus tentara conduzir Jerusa­ comunidade do pacto (Jubileus 2:31; 50:
lém para debaixo do seu cuidado sobe­ 9 e s.). A refeição do sábado, preparada
rano e amoroso, através da palavra dos na sexta-feira, era freqüentemente com­
profetas. Considerando-se esta apóstrofe partilhada por hóspedes especialmente
como lamento pessoal de Jesus sobre convidados. Portanto, os costumes da
Jerusalém, vários problemas de interpre­ época forneceram o pano de fundo para a
tação se levantam. Quantas vezes (v. 34) refeição na casa desse fariseu, que se
pressupõe atividades em Jerusalém, para realizou possivelmente depois da reunião
as quais Lucas não dá suporte. A cita­ na sinagoga.
ção final também apresentaria dificulda­ O hospedeiro era um chefe, homem de
des, visto que ela pode referir-se apenas a influência, que pertencia à seita dos fa­
uma vinda em juízo, e não à entrada em riseus. Talvez os seus convivas fossem
Jerusalém (19:38). membros, com ele, de uma sociedade
Em vez de receber os profetas, Jeru­ especial de fariseus. A refeição determi­
salém os havia matado e apedrejado. As na o esboço dos acontecimentos seguin­
conseqüências desse padrão de rejeição, tes. Antes que ela comece, um homem é
que alcançará o seu clímax na rejeição de curado. Enquanto os hóspedes se recli­
Jesus, são o fato de Deus se afastar de nam à mesa, ou logo depois, Jesus dirige
entre o povo. A casa é o Templo, sím­ repreensões aos hóspedes e ao hospedei­
bolo da presença de Deus. Mas ele será ro, cada um por sua vez. A própria par­
abandonado. A atividade redentora ces­ ticipação na refeição fornece a atmosfera
sará, e o juízo virá. Aquele que vem é, para a parábola final.
provavelmente, um título para o Messias O homem doente não era um dos con­
(veja 3:16). Mas a sua vinda a Jerusalém vidados. Ele, possivelmente, era uma das
não significa a sua libertação, e, sim, a pessoas curiosas que haviam entrado da
sua destruição. rua, para observar as festividades. Nes­
2. Ensinamentos Durante uma Refeição sas ocasiões, a porta da casa ficava aber­
(14:1-24) ta para o público. Hidrópico é alguém
que tem excesso de fluídos no corpo.
1) O Hidrópico (14:1-6) A hidropsia pode ser causada por desor­
1 T en d o J e s u s e n tr a d o , n u m sá b a d o , e m dens nos rins ou no coração, ou alguma
c a s a d e u m d o s c h e fe s dos fa r is e u s p a r a outra disfunção orgânica. Baseando-se
c o m e r p ã o , e le s o e s ta v a m o b se rv a n d o .
2 A ch av a-se a li d ia n te d e le c e rto h o m e m h i­ em uma teologia de “ causa e efeito” , ela
d ró p ico . 3 E J e s u s , to m a n d o a p a la v r a , fa lo u era atribuída a alguma imoralidade se­
a o s d o u to re s d a le i e a o s fa r is e u s , e p e rg u n ­ xual (Strack-Billerbeck, II, p. 203).
Os convivas o estavam observando, interessado nas pessoas. As duas abor­
para ver se Jesus iria desrespeitar as suas dagens invariavelmente se chocam, pois
tradições, curando aquele homem no sá­ o “status quo” é sempre relativamente
bado. Ã pergunta acerca da legalidade injusto e descaridoso.
de curar no sábado, a resposta foi o
2) Instruções aos Convivas (14:7-11)
silêncio. Do seu ponto de vista, os fari­ 7 Ao n o ta r c o m o os c o n v id a d o s e sc o lh ia m
seus não podiam dar resposta inequívo­ os p rim e iro s lu g a r e s , p ro p ô s-lh e s e s ta p a r á ­
ca. Algumas vezes era lícito curar; mas a b o la : 8 Q uan d o p o r a lg u é m fo re s co n v id ad o
vida da pessoa curada precisava estar à s b o d a s, n ã o te re c lin e s n o p rim e iro lu g a r ;
correndo perigo. Geralmente, não era n ã o a c o n te ç a q u e e s te ja c o n v id ad o o u tro
m a is d ig n o do q u e tu ; 9 e, vin d o o q u e te
considerado lícito realizar atos como co nvidou a ti e a e le , te d ig a : D á o lu g a r a
esse. Quanto a esse assunto, Jesus discor­ e s te ; e e n tã o , c o m v e rg o n h a , te n h a s de
dava dos seus contemporâneos. A lei do to m a r o ú ltim o lu g a r . 10 M as, q u a n d o fo re s
amor era o mandamento mais ponderá­ co nvidado, v ai e re c lin a -te no ú ltim o lu g a r,
p a r a q u e , q u a n d o v ie r o q u e te co n v id o u , te
vel, e tinha precedência sobre todos os d ig a ; A m igo, so b e m a is p a r a c im a . E n tã o
outros. Fazer o bem a outro ser humano te r á s h o n ra d ia n te d e to d o s os q u e e s tiv e re m
era sempre correto. Em consonância com co n tig o à m e s a . 11 P o rq u e to d o o q u e a si
este princípio, ele curou o homem anô­ m e s m o se e x a lt a r s e r á h u m ilh a d o ; e a q u e le
nimo, que saiu da casa. Este é um dos q u e a si m e s m o se h u m ilh a r s e r á e x a lta d o .
cinco atos desse tipo realizados no sá­ À primeira vista, as instruções dadas
bado por Jesus e relatados por Lucas. por Jesus não são nada mais do que
A cura é saudada com silenciosa con­ regras de etiqueta, e assim têm sido
denação. Diante disso, Jesus continua interpretadas. Mas, como Lucas diz, as
falando. A lei permitia que um animal palavras de Jesus são um a parábola. Isto
fosse resgatado de um poço no dia de nos coloca de prontidão para o fato de
sábado (aplicação de Deut. 22:4). O tex­ que essa cena se desenrola em dois ní­
to do verso 5 apresenta problemas de crí­ veis diferentes. Uma refeição é também
tica. A variante “filho”, em lugar de uma figura da festa escatológica no reino
jumento, é bem atestada e, com base em messiânico (cf. Is. 25:6).
bons princípios críticos, provavelmente é Jesus nota que, entre essas pessoas re­
a mais antiga. Matthew Black 26 crê que ligiosas, há uma luta pelos primeiros lu­
a palavra aramaica genérica que significa gares, os mais próximos do hospedeiro.
“animal de carga” foi entendida errada­ Este é um exemplo de como a religião
mente como a palavra semelhante que deles falhava, no campo das relações hu­
significa filho. Seja qual for a explicação manas, exatamente onde devia ser mais
para o texto grego, Jesus, tendo Deute- eficiente.
ronômio 22:4 em mente, deve ter-se refe­ Em bodas, o exemplo escolhido por
rido a animais. Todo o desafio ao sistema Jesus, o protocolo social requeria que os
contemporâneo é baseado no dever im­ hóspedes se sentassem de acordo com a
plícito, que é obviamente maior para ordem de sua importância (Plummer, p.
com um homem que se encontra em cir­ 357). O tipo de manobras para obter
cunstâncias adversas. boas posições, que Jesus havia observa­
Não sendo capazes de refutar o argu­ do, podia levar a embaraço em público,
mento de Jesus, os hóspedes o sau,daram em ocasião tão formal como essa. Mas
com silêncio. Em nenhum momento há aquilo de que Jesus está realmente falan­
louvor a Deus. Em nenhum momento há do é da ordem de Deus para as coisas.
alegria por uma vida recuperada. Os O egoísmo e o desrespeito pelos outros
líderes religiosos estavam interessados desqualificam um homem para uma po­
em manter o “ status quo” . Jesus estava sição de honra no banquete celestial.
26 Ibid., p. 126. Esta é simplesmente outra maneira de
dizer que os julgamentos de Deus são um Jesus recomenda que aquele homem
golpe mortal para a arrogância do ho­ quebre o seu círculo social, e convide
mem. hóspedes de quem não pode esperar re­
Por outro lado, a atitude de humilda­ ceber benefício nenhum (cf. 6:32-36). As
de é uma marca de grandeza. O homem palavras de Jesus causaram um impacto
que nâo procura ser preferido sobre os muito maior, nas sensibilidades sociais,
outros é aquele a quem Deus honra. Ele do que provavelmente imaginamos. Os
será colocado perto da cabeceira da mesa defeitos físicos tinham implicações reli­
no banquete messiânico. giosas. Os aleijados, os mancos e os cegos
Isto não significa que a humildade seja eram excluídos da participação plena da
uma atitude fraca, autodepreciadora. O comunidade religiosa. Classificados en­
homem humilde sabe que é filho de tre os pecadores, eles não podiam manter
Deus, cujo valor é estabelecido em ter­ contato íntimo com os justos, que goza­
mos deste relacionamento. E, porque vam de posições privilegiadas, em suas
está seguro, ele está livre da necessidade comunidades. Jesus recomenda, ao seu
de se empenhar na luta insana pelos hospedeiro, que convide, para as suas
pequenos rótulos de reconhecimento ou­ atividades sociais mais íntimas, as pró­
torgados pela sociedade humana. E, prias pessoas que o seu grupo teria ex­
também, ele não se empenha em ativi­ cluído completamente.
dades que o exaltem às expensas do seu Se Jesus estivesse falando a nós, usaria
irmão. outras categorias. Mas podemos estar
A aplicação é apresentada no verso 11. certos de que ele nos recomendaria igual­
A voz passiva evita o uso do nome divi­ mente que abríssemos as nossas casas e
no. Deus humilha e exalta; mas ele hu­ atividades sociais para as próprias pes­
milha o orgulhoso e exalta o humilde. soas contra quem temos os mais profun­
A maneira como nos relacionamos com o dos preconceitos e excluiríamos da ma­
nosso próximo é determinante de nossa neira mais natural.
posição diante de Deus. Os que agem da maneira que Jesus
3) Instruções ao Hospedeiro (14:12-14) aconselha podem esperar ser retribuídos,
pois Deus os recompensará. A primeira
12 D isse ta m b é m a o q u e o h a v ia c o n v i­
d a d o : Q uando d e r e s u m ja n t a r , ou u m a c e ia , vista, estes conceitos parecem ameaçar a
n ão co n v id es te u s a m ig o s, n e m te u s irm ã o s , pureza da ética cristã. Mas o seu paga­
n e m te u s p a r e n te s , n e m o s v izin h o s ric o s, mento é que eles serão objetos do amor
p a r a q u e n ã o s u c e d a q ue ta m b é m e le s te de Deus, que também se estende a pes­
to rn e m a c o n v id a r, e te s e ja isso re trib u íd o . soas que não podem retribuir os seus
13 M a s, q u a n d o d e r e s u m b a n q u e te , co n v id a
os p o b re s , os a le ija d o s , os m a n c o s e os favores. Elas não serão excluídas da festa
c e g o s; 14 e s e r á s b e m -a v e n tu ra d o ; p o rq u e de Deus.
e le s n ã o tê m co m q ue te re t r ib u i r ; p o is r e t r i ­ Em alguns círculos teológicos judai­
buído te s e r á n a r e s s u r r e iç ã o d o s ju s to s. cos, havia uma crença de que a ressur­
O hospedeiro é tão egocêntrico como reição seria limitada aos justos. Contudo,
os seus hóspedes. As suas relações sociais seria um erro atribuir tal crença a Jesus,
são baseadas no princípio de reciproci­ Lucas, ou às comunidades cristãs suas
dade. Uma vista d’olhos pela mesa era contemporâneas, baseando-nos nesta
suficiente para mostrar que ele havia frase (veja, v.g., At. 24:15). Jesus afirma
preparado a sua lista de convidados com que amor altruísta e boa vontade trans­
um olho em possíveis benefícios pessoais cendem a morte e têm significado eterno.
futuros. Jesus critica a estrutura egocên­ 4) O Grande Banquete ()14:15-24)
trica da sociedade, da qual o círculo 15 Ao o u v ir isso u m d o s que e s ta v a m com
fechado ao redor da mesa era um micro­ ele à m e s a , d is se -lh e : B e m -a v e n tu ra d o
cosmo. a q u e le q u e c o m e r p ã o no re in o d e D eu s.
16 J e s u s , p o ré m , lh e d is s e : C erto h o m e m mento com terras, animais e família ti­
d a v a u m a g ra n d e c e ia , e co n v id o u a m u ito s. veram prioridade sobre o convite do seu
17 E à h o r a d a c e ia m a n d o u o se u se rv o d iz e r
a o s c o n v id a d o s: V inde, p o rq u e tu d o j á e s tá
hospedeiro. Dessa forma, é esse envolvi­
p re p a ra d o . 18 M a s todos à u m a c o m e ç a ra m mento nos negócios deste século que faz
a e s c u s a r - s e . D isse-lh e o p rim e iro : C o m p rei com que os homens tomem as decisões
u m c a m p o , e p re c iso i r v ê -lo ; ro g o -te q u e m e erradas quando o convite de Deus é feito.
d ê s p o r e sc u s a d o . 19 O u tro d is s e : C o m p rei Agora toma-se claro que os que ha~
cinco ju n t a s d e b o is, e vou e x p e rim e n tá -lo s ;
rogo-te q u e m e d ê s p o r e sc u s a d o . 20 A in d a viam recebido o primeiro convite foram
o u tro d is s e : C a sei-m e, e, p o rta n to , n ã o os líderes religiosos" especificamente ÕT
posso ir . 21 V oltou o se rv o e c o n to u tu d o isto íaríseus7 qÚe se orgulhavam de ocupar o
a seu se n h o r. E n tã o o dono d a c a s a , in d ig n a ­ primeiro degrau da escada do judaísmo,
do, d is se a se u s e r v o : S ai d e p re s s a p a r a a s
ru a s e b eco s d a c id a d e e tr a z e a q u i os p o ­
quanto a categorias religiosas. A história
b re s , os a le ija d o s , os ceg o s e os coxos. r~ãk a entender que bem poucos partici-
22 D ep o is d isse o s e rv o : S en h o r, feito e s tá I pantes da elite religiosa se tomaram se-,
com o o rd e n a s te , e a in d a h á lu g a r . 23 R e s ­ V guidores de Jesus. O convite então é feito
p o n d eu o S en h o r a o s e r v o : S ai p e lo s c a m i­ ao povo que está nas fraldas sociais e
n h o s e v a ia d o s , e o b rig a-o s a e n tr a r , p a r a
q ue a m in h a c a s a se e n c h a . 24 P o is eu vos religiosas de Israel (veja, acima, o v. 13).
digo q u e n e n h u m d a q u e le s h o m e n s q u e Os que não pòclem participar plenamen­
fo ra m co n v id ad o s p r o v a r á a m in h a c e ia . te da adoração em Israel são os que se
apresentarão à mesa, no lugar daqueles
Comer pão no reino de Deus significa que arrogantemente rejeitaram o convite
estar entre as pessoas que participam das de Deus.
alegrias do reino messiânico. A piedosa. Todos os lugares ainda não foram
Observação foi feita por um homem que
■i . Mi. ■■ ■ I. ^ _ — M■ i ■ A—
ocupados por aqueles que respondem ao
estava, certamente, convencido de que convite. Ainda há lugar: Com este “post
estava entre os retos qüeTerão incluídos. scriptum” , a história se move além de
A sua certeza nâogàrãrifída foi desafiada. Israel, ao cõíw 5r FlttÍ5saD~aõs~g^5ps
pelãrpãfâbõla com que íesus respondeu. como participante do divmo propósito.
Para um a história semelhante, veja M a­ O sigm ficaH õsem elhante à idéia ela­
teus 22:1-10. As diferenças são tão gràn7 borada por Paulo em Romanos 11:11 e
des, contudo, que esta parábola deve ter ss. A-jejeição da parte de Israeljsignjfiça
vindo da fonte especial de Lucas. salvação para^õT^éntí^TOsTaminhos e
Os costumes sociais são espelhados os vaiados são as estrãdas que saem da
nesta história. Em primeiro lugar, os cidade, onde viajores de diversas origens
convivas foram convidados para um ban­ podem ser encontrados. Mas não são tra ­
quete. Subseqüentemente, os que ha­ çados limitesV Dêssá’ variegada coleção,
viam aceitado o convite íoram avisados sairão hóspedes para encher os lugares
que o banquete estava pronto. A pará­ vagos.
bola segue o esboço da história da sa l-. O verbo obriga-os não justifica nenhu-
vação como ela é apresentada em Lucas- ma tentativa de coerção jpara fo rç a ra s,
Àtos. Os mnItos~êm Israel háviam re­ pessoas, quer por força política quer por
cebido um convite para oTSãnquete mes­ estratagemas psicológicos, a entrar no
siânico, através dos mensageiros de reino de Deus. O convite finalmente che­
Deus, os profetas. Mas quando foi feito o ga a pessoas para quem é uma ocorrência
anúncio de que a hora da festa cHegara, surpreendente eine|perada7ÕserTOpre-
os que haviam sido convidados agiram de cisãToníar as devidas providências para
maneira extremamente insultante. Eles fazer com que essas pessoas tenham, na
todos igualmente começaram a apresen­ verdade, a certeza de que forãmcõnvida-
tar desculpas. Três exemplos representa- das, vèncérig5^ufM~feTútancia natural
tivos das desculpas são citados. Envolvi­ para atendèr a convite tão inesperado.
Eu, no verso 24. é Jesus. Ele fala dire­ j outros relacionamentos, interesses e am-
tamente aos convivas ao redor da mesa. [bições no altar de sua dedicação. J
Receber um convite não garante partici­ Em M ateus, as exigências de Jesus são
pação no seu banquete. Este foi o presT- expressas~em termos um tanto mais sua:
süpõstò, sem garantias, do homem que ves. Ali encontramos a expressão “amar
fizera aquela observação piedosa (v. 15). mais” , em vez da deÇLucas*^não aborre-
A reação adequada precisa ser exercida cer”(odiar), e também “não é digno.de.
no momento certo e decisivo ."Tesus rei - mim” , em vez da muito mais forte ex­
vindica o banquete messiânico, ao cha­ pressão de ÍLucaf^) não pode ser meu
má-lo de minha ceia. Os israelitas quel discípulo (cf. Mat. 10:37,38). As rela­
pião atenderem ao convite que ele está ções familiares podem competir com as
I fazendo não serão incluídos. - —■* reivindicações do reino em vários respei­
tos. Õs mais íntimos membros da famí­
3. Os Termos do Discipulado (14:25-35)
lia podem ser hostis à dedicação de uma
25 O ra , ia m com e le g ra n d e s m u ltid õ e s; pessoa aõHiscipulado. Ou a família joode.
e , v o ltan d o -se, d is se -lh e s: 26 Se a lg u é m v ie r fazer requisitos que entrem em conflito
a m im , e n ã o a b o r r e c e r a p a i e m ã e , a
m u lh e r e filhos, a ir m ã o s e ir m ã s , e a in d a com as responsabilidades do reino. Em
ta m b é m à p r ó p r ia v id a , n ã o p o d e s e r m e u qualquer caso de lealdades em competi­
d iscíp u lo . 27 Q u em n ã o le v a a s u a c ru z e n ã o ção, o problema só pode ser resolvido de
m e se g u e , n ão p ode s e r m e u d iscíp u lo . uma forma. Òjdiscípulo é, além do mais,
28 P o is q u a l de v ó s, q u e re n d o e d if ic a r u m a
to r re , n ã o se s e n ta p rim e iro a c a lc u la r a s
cRãTmãdo a odiar também à própria vida.-)
d e s p e s a s , p a r a v e r se te m co m q u e a a c a ­ HEle precisa estar disposto a afirmar os/
b a r ? 29 P a r a n ã o a c o n te c e r q u e , d ep o is de I interesses do reino, e não as suas pró-|
h a v e r p o sto os a lic e rc e s , e n ã o a poden d o prias ambições, ao ponto de estar pronto i
a c a b a r , todos os q u e a v ir e m c o m e c e m a a morrer, se as circunstâncias assim o \
z o m b a r d e le , 30 d iz e n d o : E s te h o m e m co ­
m e ç o u a e d if ic a r e n ã o p ô d e a c a b a r . 31 Ou {exigirem.
q u a l é o r e i q u e , in d o e n t r a r e m g u e r r a Sob o domínio, romano, os iudeus ha­
c o n tr a o u tro re i, n ã o se s e n ta p rim e iro a viam aprên d iH õ ^ q u es^u Iícav ã levar a
c o n s u lta r se co m de z m il pode s a i r a o e n c o n ­ sua cruz e morrer nela; por isso, a figura
tro do q u e v e m c o n tr a e le c o m v in te m il?
32 No c a s o c o n trá rio , e n q u a n to o o u tro a in d a
usada por Jesus não era estranha aos seus
e s tá lo n g e, m a n d a e m b a ix a d o re s , e p e d e ouvintes. A cruz a ser carregada pelo
con d içõ es d e p a z . 33 A ssim , p o is, todo a q u e le cristão, no entanto, só pode ser entendi­
d e n tre v ó s q u e n ã o re n u n c ia a tu d o q u a n to da em relação à experiência de Jesus.
p o ssu i, n ã o p ode s e r m e u d iscíp u lo . 34 B o m é Segui-|g, acarreta entrega, sem vacila-
o s a l; m a s se o s a l se to r n a r in síp id o , co m
ções, à vontade de Deus, para a sua vida,
Í
q ue se h á d e r e s ta u r a r - lh e o sa b o r? 35 N ão
p r e s ta n e m p a r a t e r r a , n e m p a r a a d u b o ;
la n ç a m -n o fo ra . Q uem te m o u v id o s p a r a
o u v ir, o u ç a .
mesmo em face das maiores ameaças e
perigos. Levar a cruz é aceitar plenamen-T
pte as conseqüencias do discipulado — a
A atenção agora se desvia dos fari­ vergonha, a solidão e a hostilidade que os
seus, a elite religiosa aue não atenderá homens expressam, contra uma vida que
aos convites de Deus, e focaliza-se nas seja canal da verdàde, da justiça e doJ
multidões. (Tj3Õvo.que acompanha Jesus amor de Deus. Portanto, um discípu­
tem uma idéia decididamente errônea a l o não é a pessoa que decora, gran-
respeito do seu destino. Eles não tem des quantidades de tradições religio­
nem a mais leve suspeita de que algo tão sas, de forma que possa dar as respostas
medonho e terrível como uma cruz esteja ortodoxas a perguntas teológicas. Ele é a
nofim da trilha pela qual Jesus jomãdeia pessoa que segue Jesus, participando ale- *
Assim, os termos"do seu convite devem gremente do seu sofrimento redentor.
ser esclarecidos. Os que o aceitam pre­ Não desejando fazer discípulos em ba­
cisam estar dispostos a oferecer todos os ses erradas, Jesus enfatizou as possibili-
dades inerentes à..decisão de segui-lo. toma imprestável — como o sal que se
Admitimos que nã< T hal^antiade que a tomou insípido. Sem dúvida, o sal puro f ii ■ ----- niiwi
pessoa que considera realisticamente o nunca pode perder o seu sabor; cloreto
custo do discipulado perseverara até o de sódio é sempre cloreto de sódio. Mas o
fim. No entanto, ela estará preparada sal tirado do M ar Morto era adulterado,
para as crises, e mais provave"lmente~as misturado com gesso e outras substân­
vencerá. As decisões motivadas apenas cias. Esse sal impuro estava sujeito à
pelas emoções^Têm o condãõ de se eva­ perda do seu sabor salgado. Enquanto
porarem quando sujeitas aos severos tes­ era salgado, era bom para os objetivos
tes da realidade quotidiana. com o qué o povo o usava, como condi­
' As pessoas não tentam — ou pelo”! mento e preservador. Mas, quando per­
menos não devem tentar — empreendi- j dia as suas características de sal, não
mwitMarrisca^gs sem fazer um a estima- prestava para nada, nem mesmo para fer­
'tiva realista do que lhes será exigido p a ra j tilizar. Não podia nem ser aplicado dire­
levar o projeto até o fim. Jesus ilustra este tamente na terra, nem depositado tem­
princípio com dois exemplos. O (prim ei^ porariamente no monte de esterco (veja
é a respeito de um homem que planeja também Mat. 5:13 e Mar. 9:50). A única
edificar uma torre, talvez do tipo que as coisa que se podia fazer com o sal im­
pessoas construíam em seus vinhedos. prestável era lançá-lo fora.
Ele primeiramente se senta, para cal­
4. A Alegria de Deus com a Recupe­
cular as despesas. Ele dedica tempo pen­
ração do Perdido (15:1-32)
sando no que gastará. Se não o fizer,
_pode ser que não passe dos alicerces. 1) A Atitude dos Líderes (15:1,2)
O rei que enfrenta a possibilidade de 1 O ra, c h e g a v a m -se a e le to d o s os publi-
guerra mede as suas forças em compara­ c an o s e p e c a d o re s , p a r a o o u v ir. 2 E os
ção com o desafio que precisa enfrentar. fa ris e u s e os e s c r ib a s m u r m u r a v a m , d iz e n ­

Í
A moral dessas estórias é a abordagem,""j d o : E s te re c e b e p e c a d o re s , e co m e com
com bom senso, na avaliação dos recur -J e les.
sos disponíveis. Se, em face das proba­ A inclusão das pessoas rejeitadas de
bilidades desfavoráveis, ele chega à con­ Israel no reino de Deus é tom ada con-
clusão de que as suas tropas não conse­ cretamente visível quando Jesus as recebe
guirão fazer frente ao inimigo, o rei pede na comunhão à mesa. O fato de ele
condições de paz, ou “se submete” aceitar essas pessoas não significa menos
(Creed, p. 195). Naturalmente, esta figu­ do que a extensão até eles da graça
ra não pode ser forçada, porque Jesus perdoadora de Deus. O fato de elas
não aconselha os seus seguidores a se comerem com ele é a nova comunhão
renderem. Mas ele adverte o povo contra estabelecida entre elas sob o reinado de
o ato de segui-lo sem estar cônscio das Deus. Na sua associação com o povo que
conseqüencias e sem disposição^ para estava além das fronteiras da respeita­
aceitâ-lasT bilidade, Jesus estava insultando todas as
~ ^ u ^ T o preco^do discipulado? Nada convenções. Ele estava ameaçando os
menos do que a renúnoadeTucIoT Lucas piedosos de tal forma, porque ele, que
dá especrârenfí^seTTtgraca dispendiosa’’ indubitavelmente, não era um pecador e
de Jesus, talvez conuT r e fle x o lS e u m que devia associar-se com pessoas
tempo quando os cristãos estavam fican­ “boas” , simplesmente ignorava as fron­
do medrosos e outros fossem covardes, teiras estabelecidas pelas convenções re­
trazendo descrédito para Jesus e a Igreja. ligiosas e sociais.
Quando, por qualquer razão, o dis­ A alegre comunhão entre Jesus e os
cípulo deixa de manifestar as caracterís- publicanos e pecadores suscitou o desa­
ticas do verdadeiro discipulado, ele se grado e a indignação dos fariseus e es-
cribas. A justificativa deles para esta ati­ lha. Ele a lança sobre os ombros, a fim
tude era de que Jesus estava se conta­ de apressar a volta para casa, levando-a.
minando com a amizade com os trans­ Chegando ali, ele chama os seus conhe­
gressores da Lei. cidos para participarem de sua alegria.
As três parábolas que se seguem falam A pressuposição destas parábolas é que
a respeito da atitude expressa pelos lí­ a aceitação da comunhão com Jesus, pelo
deres religiosos. Os versículos 1 e 2 de­ pecador, é o arrependimento, e que a
vem ser considerados como introdução a aceitação do pecador, por Jesus, é o
cada parábola, especialmente a última, perdão. A vida de Jesus é a busca de
em que os dois filhos representam dois Deus pela sua ovelha perdida. Quando
grupos; os justos e os pecadores. uma delas é achada, há regozijo no céu,
A parábola da dracma perdida e do que é uma circunlocução do nome de
filho perdido se encontram apenas em Deus.
Lucas. Mateus tem a parábola da ovelha Os que se opunham a Jesus se rego­
perdida (Mat. 18:12-14). Ali, contudo, zijavam com a recuperação de um animal
ela é dirigida aos discípulos, e ensina perdido, mas ficavam cheios de cons­
uma lição diferente: a responsabilidade ternação quando se desejava recuperar
deles para com os “pequeninos” , isto é, um homem. Eles se demonstravam duros
os membros mais fracos e mais humil­ e ressentidos a respeito daquilo que torna
des da comunidade. A parábola de Lucas Deus alegre! Jesus dá um duro golpe em
vem do seu material especial, provavel­ seu orgulho. Eles estavam convencidos
mente formando um par com a parábola de que eram mais importantes aos olhos
da dracma perdida, antes de Lucas a de Deus do que aqueles desprezados
usar. publicanos e pecadores. Mas Jesus decla­
ra que a recuperação de uma dessas pes­
2) A Ovelha Perdida (15:3-7) soas perdidas propicia mais alegria a
3 E n tã o e le lh e s p ro p ô s e s t a p a rá b o la : Deus do que noventa e nove pessoas
i Q ual d e v ó s é o h o m e m q u e , p o ssu in d o c e m
o v e lh a s, e p e rd e n d o u m a d e la s , n ã o d e ix a a s
como eles. Será justos uma expressão irô­
n o v e n ta e n ove no d e s e rto , e n ã o v a i a p ó s a nica, significando realmente aqueles que
p e rd id a a té q u e a e n c o n tre ? 5 E , a c h a n d o -a , a si mesmos se chamam de justos? Ê
põ em -n a so b re os o m b ro s, cheio de jú b ilo ; mais apropriado para designar pessoas
6 e ch e g a n d o a c a s a , re ú n e os a m ig o s e que viviam mediante os padrões da pie­
v izinhos e lh e s d iz : A le g ra i-v o s com igo,
p o rq u e a c h e i a m in h a o v e lh a q u e se h a v ia dade ortodoxa judia do que para desig­
p e rd id o . 7 D igo-vos q u e a s s im h a v e r á m a is nar os que são retos diante de Deus.
a le g r ia no c é u p o r u m p e c a d o r q u e se a r r e ­ Jesus não tinha críticas para os elevados
p e n d e, do q ue p o r n o v e n ta e n o v e ju s to s q u e padrões que governavam a moralidade
n ã o n e c e s s ita m d e a rr e p e n d im e n to .
pessoal dos fariseus. E também não fe­
Qualquer pessoa que tenha perdido chava os olhos para o mal que existia nas
alguma coisa que lhe seja preciosa faz outras pessoas. Ele não tinha “predileção
um esforço para recuperá-la. O fato de pela imoralidade” . 27
que ainda tem noventa e nove ovelhas O problema dos fariseus não era a sua
não compensa o sentido de perda e de imoralidade, mas a sua atitude para com
preocupação por parte do proprietário, os seus semelhantes. Da mesma forma
quando ele descobre que um a está fal­ como muitas pessoas boas e religiosas,
tando. Até que limites vai ele para re­ eles eram duros, julgadores e não per-
cuperar a ovelha perdida? Jesus diz que doadores. O desprezo que demonstravam
ele não pára de procurar até que a encon­ por pessoas que não satisfaziam os pa-
tre. Todos podem sentir o súbito alívio
27 Cf. Guenther Bornkamm, Jesus of Nazareth, trad. de
e a alegria que substituem a preocupa­ Irene e Fraser McLuskey e James M. Robinson para o
ção quando por fim ele encontra a ove­ inglês (New York: Harper, 1960). p. 79.
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drões que estabeleciam era uma faceta gria, como não deve ser maior a exul-
importante da sua falta de humildade tação de Deus a respeito do grande grupo
diante de Deus. Eles deixavam de re­ que entrou na comunhão da qual Jesus é
conhecer que também necessitavam da o centro! Esta parábola, na verdade, é
graça. E, não sendo receptores da graça, um convite, um convite para que os crí­
eles não tinham graça para dar. ticos líderes religiosos compartilhem de
Portanto, não é o pecado do pecador uma celebração jubilosa, celestial! Em
que causa regozijo, mas o seu arrependi­ outras palavras, é um convite para que
mento. Não é a justiça do fariseu que o eles também se arrependam.
exclui da grata comunhão do reino, mas
4) O Filho Pródigo (15:11-32)
a sua atitude para com os outros homens.
a. O Pai do Pródigo (15:11-24)
3) A Dracma Perdida (15.8-10)
11 D isse -lh e s m a is : C e rto h o m e m tin h a
8 Ou q u a l é a m u lh e r q u e , te n d o d ez d r a c ­ dois filh o s. 12 O m a is m o ço d e le s d isse ao j
m a s e p e rd e n d o u m a d r a c m a , n ã o a c e n d e a p a i: P a i, d á -m e a p a r te dos b e n s q u e m e
c a n d e ia , e n ã o v a r r e a c a s a , b u sc a n d o com to c a . R e p a rtiu -lh e s , p o is, o s s e u s h a v e re s . w
d ilig ê n c ia a té e n c o n trá -la ? 9 E , a c h a n d o -a , 13 P o u c o s d ia s d e p o is, o filho m a is m oço,
re ú n e a s a m ig a s e v iz in h a s, d izen d o : A le­ a ju n ta n d o tu d o , p a r tiu p a r a u m p a ís d is ­
g ra i-v o s com igo, p o rq u e a c h e i a d r a c m a q u e ta n te , e a li d e sp e rd iç o u o s se u s tie n s, v iv e n ­
eu h a v ia p e rd id o . 10 A ssim digo-vos, h á do d is s o lu ta m e n te . 14 E , h a v e n d o e le d is s i­
a le g r ia n a p re s e n ç a dos a n jo s d e D eu s p o r p a d o tu d o , h o u v e n a q u e la t e r r a u m a g ra n d e
u m só p e c a d o r q u e se a rr e p e n d e . fo m e, e co m eç o u a p a s s a r n e c e ss id a d e s.
Uma dracma valia apenas cerca de 13 E n tã o foi e n c o sta r-se a u m dos c id a d ã o s
d a q u e le p a ís , o q u a l o m a n d o u p a r a os se u s
cinqüenta cruzeiros (valor aproximado c a m p o s a a p a s c e n ta r p o rc o s. 16 E d e s e ja v a
em 1982). Algumas pessoas dificilmente e n c h e r o e stô m a g o c o m a s a lf a r r o b a s q u e
sentiriam falta de uma moeda dessas, e os p o rc o s c o m ia m ; e n in g u é m lh e d a v a
gastariam pouco tempo procurando-a, se n a d a . 17 C ain d o , p o ré m , e m si, d is s e : Q u a n ­
to s e m p re g a d o s d e m e u p a i tê m a b u n d â n c ia
a perdessem. Porém duas coisas preci­ d e p ã o , e eu a q u i p e re ç o d e fo m e ! 18 L e v a n ­
sam ser entendidas, a fim de apreciar­ ta r-m e -e i, ir e i te r co m m e u p a i e d ir-lh e-ei:
mos a angústia dessa mulher. Dez drac­ P a i, p e q u e i c o n tr a o c é u e d ia n te d e ti;
mas era tudo o que tinha — toda a sua 19 j á n ã o sou d ig n o d e s e r c h a m a d o te u filh o ;
riqueza. Além disso, embora uma drac­ tr a ta - m e com o u m d o s te u s e m p re g a d o s.
20 L e v a n to u -se , p o is, e foi p a r a s e u p a i.
ma não valesse muito, segundo os pa­ E s ta n d o e le a in d a lo n g e, se u p a i o v iu ,
drões modernos, ela era o salário de um en ch e u -se d e c o m p a ix ã o e , c o rre n d o , lan -
trabalhador durante todo um dia de ár­ çou-se-Ihe a o p esc o ço e o b eijo u . 21 D isse-lh e
duo labor. o filh o : P a i, p e q u e i c o n tr a o c é u e d ia n te
d é ti ; j á n ã o so u d ig n o d e s e r c h a m a d o te u
A persistência da mulher é enfatizada. filho. 22 M a s o p a i d is se a o s s e u s se rv o s :
Visto que a sua pequena cabana era mal T ra z e i d e p re s s a a m e lh o r ro u p a , e v e sti-lh a ;
iluminada mesmo durante o dia, foi ne­ e p o n d e-lh e u m a n e l n o d e d o e a lp a r c a s nos
cessário acender a candeia, a fim de p é s ; 23 tr a z e i ta m b é m o b e z e rro c e v a d o e
achar a moeda. Varrendo o chão de terra m a ta i-o ; c o m a n o s e reg o z ije m o -n o s, 2 i
p o rq u e e s te m e u filh o e s ta v a m o rto , e r e v i­
batida, ela eventualmente a traria à luz. v e u ; tin h a -se p erdido» e foi a c h a d o . E c o m e ­
Outras pessoas foram chamadas para ç a r a m a re g o z ija r-s e .
participarem de sua alegria. Elas sabiam
o que é ser pobre — o quaifto dói perder A terceira parábola desta série repre­
uma preciosa dracma — e que sentimen­ senta, ainda mais vividamente do que as
to de alívio e alegria se tem ao achá-la de duas anteriores, as dinâmicas de uma
novo. situação da qual todas as três falam.
Aquele que se alegra diante das hos­ O problema todo é de relacionamentos
tes celestiais é o próprio Deus. Se a re­ — o relacionamento de um pai para com
cuperação de um pecador produz ale- dois filhos, dos filhos para com o pai,
e dos filhos um para com o outro. Os dois gentílico. O pecado desse filho não foi ter
filhos representam “o pecador e o fari­ pedido a sua parte da propriedade. Foi,
seu” , nenhum dos quais é repudiado por isto sim, que ele se excluiu do amor do
um Deus cujo amor de pai é suficiente­ seu pai, e negou-lhe os seus direitos
mente amplo para incluir ambos e que é legítimos (Ef. 6:1). Ao fazê-lo, ele tam­
expressado por um interesse incessante bém negou a sua própria condição de
e atencioso para com os dois. A história filho. Esta era a condição dos pecadores,
mostra que o amor do homem é estreito, que Jesus havia chamado ao arrependi­
míope, contingente, egoísta. Por outro mento. Eles se haviam esquecido de
lado, o amor de Deus é ilimitado, pro­ quem eram. Esta é um a condição de que
fundo, reconciliador, sem reservas. Cada todos os homens participam, os que, em
iim deles, tanto o fariseu como o peca­ sua paixão pelos prazeres exóticos de
dor, pecou contra esse amor à sua pró­ algum país distante ou em sua vontade
pria maneira. própria obstinada, tomam o controle de
Os dois filhos são decisivamente di­ suas vidas em suas próprias mãos.
ferentes; mas eles têm uma coisa em Visto que ele não tinha mais acesso à
comum, que deve transcender todas as riqueza de seu pai, o jovem estava li­
tendências divisórias. Eles têm o mesmo mitado ao que possuía em mãos. Essa
pai. Um dos filhos, o mais novo, é típico quantia foi rapidamente esbanjada. Alie­
do adolescente rebelde, levado pelo dese­ nado de seu pai, e visitado pelas con­
jo de escapar às contingências familiares, seqüências de suas próprias opções, o
a fim de ser “ homem” . Precisamos re­ filho mais novo descobriu que era vítima
conhecer que a história flui em dois ní­ de sua obstinação e que se enganara a si
veis. Embora um jovem deva estabelecer mesmo. Saíra de casa pensando que iria
a sua própria identidade e independên­ descobrir o significado e a plenitude da
cia, como adulto amadurecido e respon­ vida na companhia alegre de novos ami­
sável, nenhuma pessoa jamais se torna gos. Pelo contrário, ele agora se encon­
tão amadurecida que possa declarar a trava necessitado e abandonado. Ele dei­
sua independência de Deus. xara em casa a única pessoa que real­
O costume da época era que a proprie­ mente o amava.
dade fosse dividida entre os filhos depois Os problemas financeiros pessoais do
da morte do pai, de acordo com o seu pródigo são complicados pelas condições
testamento. A propriedade, porém, po­ econômicas da região em que se encon­
dia ser passada para o nome dos filhos, trava assolada pela fome justamente
como presente, durante a vida do pai. quando ele acabava de gastar tudo o que
Depois, mais tarde, eles não poderiam tinha. O seu destino alcançou maré tão
reclamar mais nada das possessões da baixa que ele, um judeu, foi forçado a
família. Geralmente, os lucros ou pro­ aceitar o tipo mais repugnante de empre­
ventos da propriedade adquirida desta go. A atitude dos judeus para com os
forma começavam a ir para as mãos do porcos era governada pela lei que diz:
beneficiário só depois da morte do pai. “Da sua carne não comereis, nem toca­
Todavia, nesse caso, o filho adquire o reis nos seus cadáveres; esses vos serão
direito de trocar a sua propriedade ime­ imundos” (Lev. 11:8). A sua fome era tão
diatamente por valores negociáveis. grande que ele estava pronto a comer as
A ordem para honrar os pais era en­ vagens da alfarrobeira, que era comida
tendida concretamente como responsabi­ apenas pelos muito pobres, ou usadas
lidade de cuidar deles na velhice. Mas para alimentar animais domésticos.
esse rapaz cortou as relações com a seu Agora se levanta uma diferença decisi­
pai, e viajou para um país distante, isto va entre esta parábola e as duas pre­
é, para fora da Palestina, para um país cedentes, que falavam a respeito da per­
da e recuperação de coisas e animais. perança e temor. Cada dia traz uma nova
O foco não está mais apenas na busca e esperança da volta do filho; cada mo­
na preocupação da pessoa que havia per­ mento está cheio do medo terrível de que
dido algo. Visto que aquilo que se perdeu o filho possa destruir-se no país distante.
é uma pessoa, ela não pode ser encontra­ O rapaz nem precisou completar a jor­
da enquanto não desejar ser encontrada. nada até o lar. De longe o pai o viu.
Era necessário que o filho caísse em si — Os vizinhos devem ter visto os farrapos, a
emergisse do mundo irreal de sonho e sujeira, os pés descalços. Eles o teriam
ilusão, para o qual ele havia fugido, a fim classificado como apenas outro bêbado,
de se ver e à sua situação sob a verda­ ou vagabundo, ou “ hippie” , ou seja de
deira luz. Agora ele compreendeu do que que categoria for. Uma tendência huma­
havia desistido quando com efeito havia na comum é deixar de ver as pessoas
renunciado à sua filiação. Até as pes­ como pessoas. Mas o pai viu que era o
soas que trabalhavam em troca de salário seu filho!
na casa de seu pai tinham mais do que o O pai não faz ao seu filho um a re­
suficiente para comer. Ele também per­ cepção relutante, rancorosa, reservada.
cebeu como fora ímpio o orgulho e quão Exatamente o oposto! Ele correu para
egoísta a motivação que o haviam le­ abraçar e beijar o seu filho. Este começa
vado a dar as costas ao seu pai. o seu pequeno discurso decorado, mas o
pai o interrompe. Não está interessado
Assim, ele toma a decisão de voltar. em discursos. Da mesma forma, nem
Ele ainda usa o título pai, embora re­ orgulho ferido nem recriminações ressen­
conheça que perdera todo o direito de ser
tidas fazem parte da história. Aqui temos
considerado filho. Ele retornará e con­
um vislumbre do que significa, para
fessará o seu pecado. Contra o céu signi­
Deus, perdoar uma pessoa. Deus pede
fica contra Deus. Um pecado contra o apenas uma oportunidade para esbanjar
pai era também um pecado contra Deus, o seu amor para com os seus filhos
pois um dos mandamentos mais sérios transviados. Tudo o que eles têm a fazer
recomendava honrar os pais. Tendo per­ é começar a jornada de volta ao Pai, para
dido todos os direitos, ele voltaria a seu receber o seu perdão incomensurável e
pai simplesmente como um homem fa­ sem reservas. Os farrapos devem ser joga­
minto, pedindo trabalho. Ele preferia
dos fora. Um vestido limpo, novo — o me­
viver na casa de seu pai como empre­ lhor — deve ser dado para o filho vestir.
gado a viver em qualquer outra parte Ele é recebido como o pai receberia um
com recursos próprios. Assim, levanta-se honrado hóspede que chegasse cansado e
e começa a difícil jornada de volta ao lar. empoeirado depois de uma longa viagem.
O arrependimento é uma mudança de Um anel, símbolo da filiação, deve ser
direção exatamente assim. É uma mu­ colocado em seu dedo. Ele chega descal­
dança de direção deixando a obstinação e
ço como um escravo, mas essa situação
o comodismo; é voltar-se para Deus em
deve ser mudada. Alparcas são pedidas
alegre submissão ao seu domínio de
para os seus pés. O bezerro que está
amor.
sendo cevado, engordado, reservado para
A espécie de recepção que um filho uma ocasião que demande uma festa,
pródigo pode esperar, ao yoltar, sempre agora precisa ser morto. Uma alegre
depende da espécie de pai que ele tem. celebração deve terminar aquele dia ale­
O pai da história simplesmente está es­ gre e memorável. Mediante tudo isto,
perando que o filho volte. Ele espera concluímos que a filiação não se baseia
naquela agonja peculiar, conhecida ape­ [no valor do pródigo, mas no amor do pai^
nas pelos pais que amam os seus filhos Aqueles que se ressentiam da recepção
perdidos. É um a agonia formada de es­ que Jesus dispensava a publicanos e pe­
cadores sabiam muita coisa a respeito da Um cabrito tem muito menos valor do
depravação humana, mas nada conhe­ que um bezerro, mas o pai nunca nem
ciam do amor divino. mesmo lhe dera um desses animais de
Morto é paralelo de perdido; e reviveu menor valor para uma festa. Este teu Fi­
de foi achado. Alguém muito amado lho tem um tom ressentido, depreciativo.
levantou-se do túmulo, ressuscitou den­ Por assim dizer, o filho mais velho culpa
tre os mortos. Algo infinitamente pre­ o pai por ter um filho daqueles, e ao mes­
cioso foi achado. É um dia de celebração, mo tempo nega se relacionar com o seu
e não de cara comprida. irmão.
b. O Irmão Mais Velho (15:25-32) O pai demonstra que a própria fide­
lidade do filho mais velho havia excluído
25 O ra , o se u filho m a is v elh o e s ta v a no a necessidade de tal celebração. Nunca
c a m p o ; e q u a n d o v o lta v a , a o a p ro x im a r-s e
d a c a s a , ouviu a m ú s ic a e a s d a n ç a s ; 26 e,
tendo sido perdido, o pai não podia se
c h a m a n d o u m do s se rv o s, p e rg u n to u -lh e que alegrar por tê-lo encontrado. Além disso,
e r a aq u ilo . 27 R esp o n d eu -lh e e s te : C hegou a relação entre pai e filho não havia
te u i r m ã o ; e te u p a i m a to u o b e z e rro c e v a ­ mudado nem um pouco com a chegada
do, p o rq u e o re c e b e u sã o e sa lv o . 28 M a s e le do irmão mais novo. Ele ainda continua­
se in d ig n o u e n ã o q u e ria e n tr a r . S aiu e n tã o o
p ai e in s ta v a co m e le . 29 E le , p o ré m , r e s ­ ria a receber tudo o que lhe estava sendo
p o ndeu a o p a i: E is q u e h á ta n to s a n o s te dado como filho mais velho e herdeiro.
sirv o , e n u n c a tr a n s g r e d i u m m a n d a m e n to Da mesma forma como o pai exultava
te u ; co n tu d o , n u n c a m e d e ste u m c a b rito com o fato de ter encontrado o filho
p a r a e u m e re g o z ija r c o m os m e u s a m ig o s ;
30 vindo, p o ré m , e s te te u filho, q u e d e s p e r ­
perdido, o filho mais velho devia se rego­
diçou os te u s b e n s co m a s m e r e tr iz e s , m a ­ zijar por ter encontrado o irmão, perdi­
ta s te -lh e o b e z e rro c ev ad o . 31 R ep lico u -lh e o do. O pai não permitirá que ele negue a
o p a i : F ilh o , tu s e m p re e s tá s co m ig o , e tudo sua relação fraternal. Ninguém verda­
o qu e é m e u é t e u ; 32 e r a ju s to , p o ré m , re g o ­ deiramente pode dizer “Pai” se não esti­
z ijarm o -n o s e a le g ra rm o -n o s, p o rq u e e ste
te u irm ã o e s ta v a m o rto , e r e v iv e u ; tin h a -se ver disposto a dizer “irmão” .
p erd id o , e foi a c h a d o . A história termina com o convite para
ele juntar-se à alegria da festa. Não so­
O que estivera fazendo o irmão mais mos informados de que o irmão mais
velho durante a ausência do pródigo? velho aceitou. Talvez ele tenha continua­
Como é revelado, ele estivera vivendo do do lado de fora da casa, carrancudo e
segundo as regras: cumprindo os seus ressentido por causa da felicidade que
deveres, conscientemente, sem alegria. havia dentro. Deus não rejeita nenhum
Tipicamente ele estava no campo quando dos dois tipos de filhos — nem o pecador
o seu irmão voltou. Ao descobrir o moti­ por causa de sua indocilidade, nem o
vo da alegria, ele se recusa a entrar. fariseu por causa de sua justiça própria.
O pai, que havia corrido para se en­ Há um lugar para ambos à mesa do
contrar com o filho mais novo, agora sai banquete — se houver arrependimento.
para conduzir o filho mais velho à razão. Esta parábola é um convite para os
Mas a inveja faz com que este seja irre­ freqüentadores de igreja críticos, cheios
dutível. Sirvo é literalmente “ tenho sido de justiça própria, para que se livrem do
teu escravo” . E também, ele não fora seu ressentimento e se juntem, com Je­
transgressor dos desejos de seu pai, nun­ sus, em uma festa alegre com os pródigos
ca tendo desobedecido os mandamentos que voltaram para o Pai. O isolamento
dele. Isto apresenta um retrato típico de deles, à parte do grupo, e o seu res­
piedade legalista. sentimento por causa dos relacionamen­
Parece-lhe que a devassidão de seu tos de Jesus com essa gente têm impli­
irmão tivera recompensa, enquanto a sua cações que vão além do momento pre­
própria fidelidade não era apreciada. sente. Ao se excluírem dos seus irmãos
pródigos, eles estão também negando a maritano. Pelo contrário, é um a parábo­
sua relação com o seu Pai — que é Deus. la, no seu sentido mais estrito. Há uma
lição que pode ser aprendida até com um
5. Mais Ensinos Acerca da Riqueza velhaco como este. Portanto, a nossa ta­
(16:1-31) refa é descobrir o ponto específico que
1) O Mordomo Infiel (16:1-9) Jesus queria que essa história incomum
expressasse. J. Jeremias (p. 127) sub­
1 D izia J e s u s ta m b é m a o s se u s d is c í­
p u lo s: H a v ia c e rto h o m e m ric o , q u e tin h a entende que essa história não fora produ­
u m m o rd o m o ; e e ste foi a c u s a d o p e ra n te ele to da imaginação criativa de Jesus, mas
de e s t a r d issip a n d o os se u s b e n s. 2 ChamoU- uma ocorrência verídica, conhecida do
o, e n tã o , e lhe d is s e : Que é isso q ue ouço povo a quem ele estava falando. Se este é
d izer de ti? P r e s ta c o n ta s d a tu a m o rd o m ia ;
po rq u e j á n ão pnrics m ais sor m m m ordom o.
o caso, Jesus simplesmente escolheu um
3 D isse, p ois, o m o rd o m o co n sig o : Que hei assunto corrente de conversação e usou-o
de fa z e r, j á q ue o m e u se n h o r m e ti r a a para ensinar uma lição importante.
m o rd o m ia ? P a r a c a v a r , n ã o te n h o fo r ç a s ; O mordomo ou administrador de uma
de m e n d ig a r, te n h o v e rg o n h a . 4 A g o ra se i o casa era geralmente um escravo capaz e
que vou fa z e r, p a r a q u e , q u a n d o fo r d e s a ­
p o ssad o d a m o rd o m ia , m e re c e b a m e m s u a s de confiança. Neste caso, o mordomo ou
c a s a s . 5 E c h a m a n d o a si c a d a u m dos “gerente de negócios” é um homem livre.
d e v e d o re s do se u se n h o r, p e rg u n to u ao p r i ­ Ele tinha responsabilidades excepcional­
m e iro : Q u an to d e v e s a o m e u se n h o r? 6 R e s ­ mente grandes, que se estendiam à ge­
p o ndeu e le : C em c a d o s d e a z e ite . D isse-lh e
e n tã o : T o m a a tu a c o n ta , se n ta -te d e p re s s a
rência dos negócios do seu patrão. Por­
e e s c re v e c in q ü e n ta . 7 P e rg u n to u d ep o is a que ele estava encarregado de proprie­
o u tro : E tu , q u a n to d e v e s? R e sp o n d e u e le : dade que não lhe pertencia, a situação do
C em co ro s de trig o . E d is s e -lh e : T o m a a tu a mordomo era paralela a de qualquer
c o n ta e e s c re v e o ite n ta . 8 E louvou a q u e le pessoa que tenha possessões materiais.
se n h o r a o in ju sto m o rd o m o p o r h a v e r p r o ­
cedido com s a g a c id a d e ; p o rq u e os filhos Seja o que for que possuamos, isso nos
d e ste m u n d o sã o m a is s a g a z e s p a r a co m a foi confiado por Deus, que criou essas
su a g e ra ç ã o do q u e os filho s d a lu z. 9 E u vos coisas, e a quem precisamos dar contas
digo a in d a : G ra n je a i a m ig o s p o r m eio d a s pelo seu uso.
riq u e z a s d a in ju s tiç a ; p a r a q u e, q u an d o Visto que não havia algo semelhante
e s ta s vos f a lta r e m , vo s re c e b a m e le s nos
ta b e rn á c u lo s e te rn o s. a uma auditoria anual de livros, naquela
época, o conhecimento da má adminis­
Jesus agora volta-se para os discípulos, tração geralmente chegava ao proprietá­
mas os fariseus, para quem as parábo­ rio na forma de acusações de desonesti­
las do capítulo 15 haviam sido dirigidas, dade feitas por terceiros. Parece que não
ainda estão em foco, servindo como real­ havia dúvidas quanto à culpa desse ho­
ce para alguns dos ensinamentos do capí­ mem. O proprietário a considera prova­
tulo 16. O tema unificador deste capí­ da. e as ações subseqüentes do mordomo
tulo é a atitude correta para com a rique­ são as de um homem sem defesa diante
za e o seu uso acertado. das acusações. Presta contas é , provavel­
O principal personagem da parábola mente. uma ordem para que ele prestasse
do mordomo infiel é uma pessoa de cará­ contas dos registros dos negócios e tran­
ter repulsivo, completamente desprovida sações feitas, como prelúdio do término
de escrúpulos morais e inteiramente de­ do seu trabalho.
votada ao seu próprio bem-estar. Conse­ Defrontando-se com as perspectivas
qüentemente, não devemos pensar que negras de desemprego, o administrador
Jesus o está considerando como pessoa incompetente prevê uma verdadeira cri­
que deva ser admirada e imitada, como se, em futuro imediato. Ele não tinha
no caso de uma história que serve de condições para trabalhar, e vergonha de
exemplo, como a parábola do bom sa- mendigar. Se ele não pudesse tomar al-
gumas providências que prometessem tória como ela está, a despeito das dificul­
certa medida de segurança financeira, dades. O proprietário pode ser aquele
ele morreria de fome. Estando a se esgo­ tipo de pessoa astuta que aprecia tanto
tar o tempo que lhe restava, ele decide um bom estratagema, mesmo como
aproveitar-se dos poderes que ainda exer­ aquele inventado pelo seu mordomo, em­
cia, para executar atos que colocassem os bora seja às suas custas.
devedores de seu patrão de forma que Pelo uso do adjetivo iiyusto (desones­
eles lhe ficassem devendo favores. De­ to), Jesus indica a sua desaprovação ge­
pois, na hora que precisasse, ele poderia nérica dos baixos padrões pelos quais
recorrer a eles. Pode ser que os deve­ esse homem agira. O comentário feito em
dores fossem meeiros ou colonos, cujo 8 b contém a lição da parábola, a única
débito era a parte do produto da terra coisa que pode ser aprendida de uma
que eles deviam ao proprietário. Mais pessoa que em outros respeitos é comple­
provavelmente, eles eram mercadores tamente repreensível. Ã luz dos seus va­
que haviam recebido mercadoria dele, lores, necessidades e possibilidades, ele
quanto às quais ainda não haviam acer­ agiu com sagacidade. O homem sagaz é
tado as contas. aquele cujas ações hoje são baseadas nas
Os débitos eram grandes. Uma me­ possibilidades do futuro. Naturalmente,
dida de azeite perfazia cerca de quarenta o conceito que esse homem fazia do
litros. O débito do primeiro homem foi futuro era muito limitado. Ele era um
reduzido, dessa forma, de, aproximada­ filho deste mundo, que agia mediante os
mente, dois mil litros. Um coro de trigo conceitos distorcidos e superficiais desta
media cerca de oitenta litros, o que sig­ era. Mas ele previu o futuro, tomando as
nifica que a dívida do segundo homem medidas que podia para se preparar para
foi reduzida de cerca de quatrocentos a crise inevitável que se delineava em seu
litros (ou quilogramos). futuro.
Na maneira com está, o verso 8 é es­
tranho. A observação de que o senhor Os filhos da luz pertencem à nova era
louvou o mordomo parece estranha, pelo da redenção e governo de Deus. No seu
menos em vista do fato de que ele acaba­ futuro há um período de crise quando,
ra de ser ludibriado em considerável so­ como mordomos, lhes será requerido que
ma pelo trapaceiro. A segunda parte prestem contas de sua mordomia. Jesus
(8b) precisa ser entendida como o co­ os conclama a agirem tão sagazmente à
mentário de Jesus a respeito da única luz deste conhecimento, como agiu o
característica notável desse indivíduo. mordomo desonesto, dentro de sua limi­
Esta conclusão está baseada, contudo, tada compreensão do futuro.
no sentido, e não na construção da sen­ Riquezas da iinjustiça são as possessões
tença. Pelo contrário, a conjunção “por­ materiais. Em si mesma a riqueza é amo­
que nos prepara para ficarmos sabendo a ral, capaz de ser usada para grande bem
razão para a surpreendente recomenda­ ou grande mal. Devido ao desejo de
ção do mordomo desonesto, feita pelo obter grandes lucros, um proprietário
seu ex-patrão. pode forçar um inquilino a criar os seus
Devido a essas dificuldades, alguns filhos em um ambiente de cortiço, que os
intérpretes tomam senhor como referên­ marca para o resto da vida. Outro ho­
cia a Jesus. Mas a súbita mudança para a mem pode investir o seu dinheiro em
primeira pessoa, no verso 9, é argumento escolas, que ajudem a libertar as mesmas
contra esta interpretação. Tem sido con­ crianças da ignorância. No entanto, o
jecturado que o verso 9 é uma interpola­ dinheiro é mais freqüentemente usado de
ção. o que resolveria o problema. Não maneira egoística; e é por isso que ele
obstante, parece melhor considerar a his­ tem um estigma tão mau.
De acordo com a sua decisão de seguir sa ser fiel no uso dos bens que lhe foram
a Jesus, o discípulo deve usar o seu di­ confiados, de acordo com a vontade de
nheiro para ajudar as pessoas que o seu Deus, que é o proprietário deles.
Senhor veio libertar. O uso do nosso Nos versículos 10-13, há um jogo de
dinheiro deve ser condicionado pelo fato imagens entre a riqueza mundana e o te­
de que sabemos que ele é limitado e souro celestial. O pouco consiste nos
temporário, em sua utilidade. O exem­ bens materiais pelos quais a pessoa é
plo do fazendeiro rico (12:16 e ss.) mos­ responsável, no uso dos quais ela precisa
tra exatamente quando estas vos falta­ provar que lhe pode ser confiado muito,
rem: é quando um homem morre. Usan­ isto é, as riquezas eternas, que Deus vai
do o dinheiro para fazer amigos, damos a lhe dar. As riquezas iiyustas são as ri­
ele um significado perene, pois ele é ives- quezas falsas e ilusórias do mundo, em
tido em relacionamentos que transcen­ contraste com as verdadeiras, que Deus
dem a morte. Portanto, verificamos que dá, aos servos fiéis, após esta vida. Pen­
“o dinheiro pode servir para unir as sa-se, desta forma, na existência terrena
pessoas, embora normalmente ele as di­ de um indivíduo como o campo de provas
vida” . 28 Eles provavelmente é um cir­ em que o seu caráter é revelado. Um teste
cunlóquio para o nome de Deus (Strack- básico é a sua atitude em relação às
Billerbeck, II, p. 221). Deus, que tem possessões materiais.
interesse especial pelos pobres, recebe o Mais do que isto: as coisas do mundo
seu mordomo fiel, que tem sido um canal são mencionadas como alheias. Um ho­
do amor divino para os pobres, nos ta­ mem pode ter uma responsabilidade tem­
bernáculos eternos. porária, transitória, por uma fração mais
2) O Correto Uso da Riqueza (16:10-13) ou menos pequena do mundo de Deus.
Mas Deus não deu o mundo ao homem
10 Q u em é fie l no p o uco , ta m b é m é fiel no para que seja sua possessão privada. Ele
m u ito ; q u e m é in ju sto no p o u co , ta m b é m é
in ju sto no m u ito . 11 Se, p o is, n a s riq u e z a s retém a propriedade dela. Aquilo que
in ju s ta s n ã o fo s te s fié is, q u e m v o s c o n fia rá Deus dá ao homem depois da morte,
a s v e rd a d e ira s ? 12 £ se no a lh e io n ã o fo ste s contudo, realmente lhe pertence, visto
fiéis, q u e m v o s d a r á o q u e é v o sso ? 13 N e ­ que não haverá limitações temporais
n h u m se rv o p o d e s e r v ir a d o is se n h o re s ;
p o rq u e ou h á de o d ia r a u m e a m a r a o o u tro ,
quanto ao seu uso.
ou h á d e d e d ic a r-se a u m e d e s p r e z a r o O conceito de uma pessoa a respeito
o u tro . N ão p o d eis s e r v ir a D eu s e à s riq u e ­ dos valores da vida é determinado pelo
zas. senhor a quem ela serve. O verbo tradu­
Entre as duas parábolas com que se zido como servir (v. 13) é literalmente
inicia e termina o capítulo 16, há uma “ser.escravo” . O princípio é de que ne­
coleção de adágios de Jesus, reunidos sob nhum homem pode ser escravizado por
o tema do uso da riqueza (v. 10-18). dois senhores simultaneamente, ou seja,
Devido à circulação originalmente em ele não pode prestar a sua lealdade final
forma isolada, a conexão entre esses adá­ a duas pessoas ao mesmo tempo. O ho­
gios é difícil de se perceber. Especial­ mem não tem o privilégio de decidir se
mente, isto é verdade em relação aos vai ser servo (palavra de Lucas; cf. Mat.
versículos 16-18, onde não se pode ter 6:24). Inerente ao fato de ele ser cria­
certeza nenhuma quanto ao exato signifi­ tura, está o de que ele não é dono
cado dos mesmos, no contexto de Lucas. completo de sua própria vida. Ele é livre
Antes de tudo, o caráter do mordomo apenas para decidir que o senhor recebe­
de Deus é agudamente diferenciado do rá a sua lealdade.
homem da parábola anterior. Ele preci­ A vida pode dirigir-se em uma de duas
direções, mas não em ambas. Encontra­
28 Stagg, Studies in Luke’s Gospel, p. 10S. mos os nossos valores e alvos dentro dos
limites estreitos do nascimento e da mor­ tão-somente fossem virtuosas e trabalha­
te, e nas coisas que são susceptíveis à doras. Os fariseus zombavam da conexão
visão, gosto e toque. Por outro lado, que Jesus traçara entre o uso da riqueza e
podemos dedicar-nos a alvos que trans­ o serviço de Deus.
cendem as exigências do corpo e do ego. Uma forma pela qual os ricos podem
Se fizermos das coisas materiais o nosso mostrar que são piedosos, isto é, se ju s­
deus, gastaremos a vida e as energias tificarem a si mesmos diante dos ho­
adquirindo, guardando e usando egoisti- mens, é mediante a realização de atos
camente essas coisas. Mas, se fizermos religiosos prescritos. Em Mateus 6:1 e
do Criador de todas as coisas o nosso ss., Jesus ataca a ostentação da justiça
Deus, seremos libertados, para devotar- expressa em atos piedosos, como esmo­
nos a valores mais elevados e mais signi­ las, oração e jejum. Mas Deus conhece
ficativos. os vossos corações, ou a motivação para
3) Comentários a Alguns Fariseus as coisas que o povo faz. Os atos pie­
dosos são despidos do seu significado por
(16:14-18)
causa da motivação errada. Quando uma
14 O s fa r is e u s , q u e e r a m g a n a n c io so s, pessoa age de maneira religiosa, como
o u v ia m to d a s e s s a s c o is a s e z o m b a v a m
d ele. 15 E e le lh e s d is s e : V ós so is o s q u e vos indo à igreja ou dando dinheiro, para
ju s tific a is a vós m e s m o s d ia n te d o s h o m en s, provar aos homens que é justa, escolheu
m a s D eu s c o n h ece os v o sso s c o ra ç õ e s ; p o r­ um caminho que leva à derrota própria.
que o q u e e n tr e os h o m e n s é e le v a d o , p e r a n ­ Os homens podem exaltá-la, mas, atra­
te D eu s é a b o m in a ç ã o . vés do mesmo padrão, ela estará descen­
16 A le i e o s p ro fe ta s v ig o r a r a m a té J o ã o ;
d esd e e n tã o é a n u n c ia d o o e v a n g e lh o do do na escala de valores de Deus.
re in o d e D eu s, e tod o h o m e m fo r c e ja p o r Guardar a Lei era o alvo máximo do
e n tr a r n e le . 17 É , p o ré m , m a is fá c il p a s s a r o farisaísmo. Mas este não é mais um alvo
c éu e a te r r a do q u e c a ir u m til d a lei. válido, hoje em dia. A Lei e os Profetas
18 T odo a q u e le q u e re p u d ia s u a m u lh e r e
c a s a c o m o u tr a , c o m e te a d u lté rio ; e q u e m
consistiam em uma fase da história da
c a s a c o m a q u e foi r e p u d ia d a p elo m a rid o , redenção, que terminou com João, últi­
ta m b é m co m e te a d u lté rio . mo profeta daquela e r a .29
Agora, contudo, outro período havia
Saem os discípulos; entram os fari­ começado — a época do cumprimento,
seus. Através desta seção, tanto os fari­ para a qual apontavam a Lei e os Profe­
seus como os discípulos estão presentes. tas. Agora, o evangelho... é anunciado;
Em 17:1 o ensino de Jesus será mais uma a porta do reino está aberta; exige-se
vez dirigido aos discípulos. uma decisão.
Embora o serviço de Deus e o amor ao Todo homem forceja por entrar é uma
dinheiro sejam mutuamente exclusivos, das frases mais difíceis do Novo Testa­
isto não é, necessariamente, verdade mento. O verbo traduzido como forceja
quanto à religião e amor ao dinheiro. por entrar, na voz média, geralmente
Aqueles que interpretam a religião de significa “forçar, oprimir, constranger” .
maneira legalista e individualista fre­ No sentido passivo, significa “ser força­
qüentemente não vêem nenhuma contra­ do” , etc. Black 30 crê que a alocução ara-
dição entre ela e a acumulação de rique­ maica original, proferida por Jesus, era
zas. Muitos membros de igreja, como os “Todo homem o oprime” , isto é, o reino.
fariseus, atribuem o seu sucesso ao seu
caráter justo, que fez com que Deus os
29 Lucas 16:16 é um dos versículos-chave, em que Conzel-
favorecesse de maneira especial. Eles, mann (p. 16 e s.; cf. p. 20 e ss.) baseia o seu modo de
muitas vezes, guardam rancor contra os entender o ponto de vista de Lucas, acerca da história
pobres, convencidos de que as pessoas da redenção esboçada em seu livro.
desprivilegiadas não teriam problemas se 30 op. c it.,p . 84.
Este verbo, provavelmente, retêm um No seu contexto em Lucas, esta passa­
sentido semelhante a este em Mateus gem deve significar que os ensinamentos
5:18, mas a estrutura da frase e o seu de Jesus superam as idéias farisaicas a
contexto são diferentes em Lucas. Aqui, respeito da justiça e da riqueza, basea­
provavelmente, deve-se-lhe dar este sen­ das em sua interpretação da Lei. O mo­
tido: “Todo homem está assediando-o mento presente está sob a égide do reino
ansiosamente.” Todo homem é conside­ de Deus. Os tesouros celestiais precisam
rado como hipérbole, referindo-se ao ser o alvo da vida.
povo, que responde à proclamação do
4) O Rico e Lázaro (16:19-31)
evangelho. Esta interpretação se encaixa
bem na ênfase missionária e universalis- 19 O ra , h a v ia u m h o m e m ric o q u e se v e s ­
ti a d e p ú r p u r a e d e lin h o fin íssim o , e todos
ta de Lucas (Gottlob Schrenk, TDNT, os d ia s se r e g a la v a e sp le n d id a m e n te . 20 Ao
I, p. 609 e ss.). seu p o rtã o f o r a d e ita d o u m m e n d ig o , c h a ­
A declaração do verso 17 concorda com m a d o L á z a ro , to d o c o b e rto d e ú lc e r a s ; 21 o
o dogma judaico de que a Torah é eter­ q u a l d e s e ja v a a lim e n ta r-s e co m a s m ig a ­
na. Mas a passagem mostra que o pro­ lh a s q u e c a ía m d a m e s a d o r i c o ; e o s p ró ­
p rio s c ã e s v in h a m la m b e r-lh e a s ú lc e rá s .
pósito da Lei é interpretado em um sen­ 22 V eio a m o r r e r o m e n d ig o , e foi lev a d o
tido completamente diferente. A Lei não p elo s a n jo s p a r a o se io d e A b ra ã o ; m o r re u
é considerada a revelação final, última, ta m b é m o ric o , e foi s e p u lta d o . 23 N o h a d e s,
de Deus. Não é questão de a Lei se tom ar e rg u e u o s o lhos, e s ta n d o e m to rm e n to s , e
v iu a o lo n g e a A braà o, e a L á z a ro n o se u
nula, mas do cumprimento do seu propó­ seio . 24 E , c la m a n d o , d is s e : P a i A b ra ã o ,
sito. A função da Lei é levar e apontar te m m is e ric ó rd ia d e m im , e e n v ia -m e L á z a ­
para a pregação do evangelho. Til é um ro , p a r a q u e m o lh e n a á g u a a p o n ta do d edo
ornamento florístico, adicionado a uma e m e re f re s q u e a lín g u a , p o rq u e e sto u a t o r ­
letra (Strack-Billerbeck, I, p. 249). m e n ta d o n e s ta c h a m a . 25 D isse , p o ré m ,
A b ra ã o : F ilh o , le m b ra - te de q u e e m tu a
Cita-se um exemplo que mostra como v id a re c e b e s te os te u s b e n s, e L á z a ro de
a época da pregação do evangelho avança ig u a l m o d o os m a l e s ; a g o r a , p o ré m , e le a q u i
além da época da Lei. De acordo com a é c o n so lad o , e tu a to r m e n ta d o . 26 E , a lé m
Lei, um homem podia divorciar-se de sua d isso , e n tr e n ó s e v ó s e s t á p o sto u m g ra n d e
a b is m o , d e s o r te q u e o s q u e q u is e s s e m p a s ­
esposa — “por qualquer motivo” , na s a r d a q u i p a r a v ó s n ã o p o d e ria m , n e m o s de
opinião de alguns rabis (Deut. 24:1-4). l á p a s s a r p a r a n ó s. 27 D isse e le e n tã o : R ogo-
Mas a época do reino deverá ser como a te , p o is, ó p a i, q u e o m a n d e s à c a s a d e m e u
época do princípio. E no princípio Deus p a i, 28 p o rq u e te n h o cin c o ir m ã o s ; p a r a que
havia criado homem e mulher, e esta­ lh e s d ê te s te m u n h o ; a fim d e q u e n ã o v e ­
n h a m e le s ta m b é m p a r a e s te lu g a r d e to r ­
belecera uma unidade entre eles, que só m e n to . 29 D isse-lh e A b ra ã o : T ê m M o isés e
seria quebrada com a morte (cf. Mar. os p r o f e ta s ; o u ç a m -n o s. 30 R e sp o n d e u e le :
10:2-12; também Mat. 5:31,32; 19:7-10). N ão! p a i A b ra ã o ; m a s , se a lg u é m d e n tr e os
Jesus insiste que as exigências radicais do m o rto s fo r te r co m e le s, h ã o d e se a rr e p e n ­
d e r . 31 A b ra ã o , p o ré m , lh e d is s e : Se n ã o
reino de Deus vão além das da Lei. Mas o u v e m a M o isés e a o s p ro f e ta s , ta m p o u c o
estaremos usando erradamente o seu en­ a c r e d ita r ã o , a in d a q u e r e s s u s c ite a lg u é m
sinamento a respeito do ideal para o d e n tr e o s m o rto s .
casamento, se ele se tornar o ponto de
partida para o estabelecimento de uma Esta parábola é coerente com os temas
nova casuística legalista, a ser usada já apresentados em Lucas, e também os
como base para se distinguir entre pes­ ilustra. Lembramo-nos, especialmente,
soas “boas” e “más” . Esta armadilha das bem-aventuranças pronunciadas so­
sutil do legalismo, que faz com que o bre os pobres, e dos ais sobre os ricos, nc
cristianismo seja a própria espécie de ins­ grande sermão (6:20 e ss.). Historietas
tituição que Jesus atacou, precisa ser evi­ acerca de temas similares a este — o
tada. destino do pobre justo e do rico injusto —
eram comuns, tanto no Egito como na der que ele fora repelido, podemos supor
Palestina. Uma dessas deve ter fornecido que se conservava vivo comendo pão re­
o esboço para esta parábola de Jesus. jeitado. Tão indefeso e fraco estava o
Essa história tem dois gumes. Ela não pobre mendigo, que não podia afugentar
indica apenas como Deus inverte as cate­ os cães que vagueavam pelas ruas da
gorias e valores da sociedade humana; cidade e agravavam as suas feridas, lam­
também ensina que um sinal, mesmo tão bendo-as.
sensacional como um a ressurreição, não O pobre morreu — para surpresa de
servirá para convencer os incrédulos. ninguém. De fato, era de se admirar que
Com grande economia de palavas, Je­ tivesse vivido tanto tempo. Uma idéia
sus pinta um quadro vivo de dois homens corrente, entre os judeus, era que aiyos
que representam os extremos da socieda­ levavam os mortos para o seu destino
de humana. Um deles é rico. Ele se veste eterno. Abraão é o primeiro participante
excepcionalmente bem; suas refeições da festa messiânica, mencionada em 13:
são banquetes diários. Púrpura era a fa­ 28. A expressão no seu seio significa que
zenda caríssima com que se faziam as o lugar do mendigo era bem ao lado do
vestimentas exteriores vestidas pela rea­ pai de todo o Israel, em seu peito, no
leza. Essa palavra originalmente desig­ lugar de honra.
nava o corante caríssimo que era usado Mas o rico não havia seguido o prin­
na manufatura da fazenda. A roupa in­ cípio estabelecido por Jesus (12:33). Ago­
terior do rico era feita de linho custoso, ra começamos a ver as conseqüências.
cuja produção se tom ara uma fina arte Morreu também o rico. Aí está o choque.
no Egito. Não nos parece correto que o rico e
O rico é anônimo, bem como todos os poderoso sucumba às mesmas doenças
outros personagens das parábolas de Je­ que ferem o pobre. Mas a morte é a
sus. A única exceção a essa regra é este grande zombadora das nossas pretensões
pobre mendigo. Em nossa época, sem e arrogância, das nossas insignificantes
dúvida, ficaríamos sabendo o nome do divisões sociais, baseadas em. raça e ri­
rico, pois os pobres é que são membros queza. Por fim vemos que todos, igual­
anônimos da sociedade humana. O nome mente, somos feitos da mesma substân­
Lázaro significa “Deus ajuda” , o que, cia frágil. O rico teve um enterro decen­
provavelmente, é significativo. Lázaro é te e honroso, o toque final apropriado
uma dessas pessoas que, em seu deses­ para um homem “abençoado” tão sin­
pero, se voltam para Deus, em quem gularmente. Do nascimento até a morte,
fazem descansar todas as suas esperan­ a história é a mesma. Nenhuma expres­
ças, e assim aceitam sem queixas todas são do juízo de Deus em infortúnio ou
as desigualdades da vida. Visto que ele fracasso terreno é mencionada na histó­
fora deitado ao portão, presumimos que ria.
era aleijado ou prejudicado por sua doen­ Hades é usado aqui, apenas em o Novo
ça. Um sintoma de sua enfermidade era Testamento, como sinônimo de Geena
um corpo coberto de úlceras, condição (cf. 12:5). Ê geralmente o equivalente ao
não incomum a pessoas que subsistem hebraico Sheol, lugar dos mortos. Agora
com dieta extremamente deficiente e vi­ a situação se inverte. Lázaro estivera do
vem em condições insalubres. lado de fora, olhando de modo como­
O pão servia de guardanapo naqueles vente, enquanto o rico se banqueteava.
dias. Depois de usado, era lançado para É a vez do rico estar do lado de fora,
debaixo da mesa. Lázaro se colocara na agora, olhando.
entrada do palácio do rico, a fim de con­ O rico também era descendente de
seguir algum desse pão. Visto que a Abraão, relação que é reivindicada pelo
linguagem da parábola nâo dá a enten­ rico e reconhecida por Abraão. Mas a
raça não é fator decisivo para se deter­ Abraão afirma que as pessoas que são
minar o relacionamento de um homem surdas para Moisés e os profetas dificil­
com Deus. Agora chegamos à verdadeira mente serão convencidas, mesmo por
razão para a surpreendente inversão de uma ressurreição. O problema não é que
situações dos dois homens na eternidade. lhes faltem evidências; eles simplesmente
O rico recebera em vida os seus bens. ignoram as evidências que têm. Talvez
Ele não tinha por que se queixar. Tendo esta seja uma explicação por que o Se­
feito das roupas boas e da boa comida o nhor ressurrecto aparece apenas a cren­
seu alvo, ele gozara de ambos em medida tes. É só para eles que a sua ressurrei­
abundante. A sua vida fora um círculo ção tem significado, pois a genuína con­
fechado, em que havia dinheiro, comida, versão não é um produto do sensaciona-
roupas, diversão, etc. Mas ele deixara lismo.
Deus de lado. Não que fosse necessaria­
6. O Caráter do Discípulo (17:1-10)
mente irreligioso. Ele simplesmente se
havia apropriado do que pertencia a 1) Responsabilidade Para com os Outros
Deus, e permitira que uma das criaturas (17:1-4)
de Deus morresse na miséria à sua porta. 1 D isse J e s u s a s e u s d is c íp u lo s : É im p o s­
Todas as suas orações, jejuns, esmolas e sív e l q u e n ã o v e n h a m tro p e ç o s, m a s a i d a ­
sacrifícios no Templo não podiam mudar q u e le p o r q u e m v ie re m ! 2 M e lh o r lh e fo ra
o fato de que ele era um ateu pratican­ q u e se lh e p e n d u ra s s e a o p e sc o ço u m a p e d r a
d e m o in h o e fo sse la n ç a d o a o m a r , do que
te. Por outro lado, Lázaro havia espera­ fa z e r tr o p e ç a r u m d e s te s p e q u e n in o s. 3 T e n ­
do ajuda de Deus, e também tivera suces­ d e c u id a d o d e v ó s m e s m o s ; se te u irm ã o
so, pois recebera o que mais queria. p e c a r, re p re e n d e -o ; e, se e le se a rr e p e n d e r,
Um grande abismo faz com que seja p erd o a-lh e . 4 M esm o se p e c a r c o n tra ti se te
impossível que Lázaro chegue até onde v e zes n o d ia , e s e te v e z e s v ie r t e r contigo,
d iz e n d o : A rre p e n d o -m e ; tu lh e p e rd o a r á s .
está o rico. Perguntamos: Quem cavou o
abismo? A resposta é clara: o rico. É o Somos alertados pelo comentário in­
abismo que o havia separado, em sua trodutório de que os ensinamentos que se
abundância, de Lázaro, em sua miséria. seguem foram ministrados aos discípu­
A única coisa que ele não havia consi­ los. Neste parágrafo, Jesus fala a respeito
derado era que Deus estava do mesmo do problema de relacionamentos dentro
lado do abismo que Lázaro. Ao fechar da comunidade constituída pelos seus se­
Lázaro do lado de fora de sua casa, ele guidores.
fizera o mesmo com Deus. Tropeços é tradução de uma palavra
Agora ele pensa em seus irmãos. Se grega: skandala, que originalmente sig­
Lázaro não podia atravessar o abismo que nificava a isca colocada em uma ar­
havia entre eles, talvez ele pudesse rea­ madilha. Em o Novo Testamento, o seu
parecer em vida, para lhes dar testemu­ significado mais comum é o engodo que
nho, pois eles tinham o mesmo padrão de leva uma pessoa a cair no pecado. A pa­
valores pelos quais ele havia vivido. lavra dura, o ato impensado, a observa­
Abraão replica que Moisés e os profetas ção frívola, — estas facetas injuriosas das
falariam aos seus irmãos, se eles se dig­ relações humanas são inevitáveis. Mas
nassem a ouvi-los. Moisés era sinônimo, isso não diminui a seriedade do ato, nem
naquela época, do Pentateuco ou Torah. a responsabilidade do ofensor.
O rico também possuíra essas Escrituras, Teria sido melhor que a pessoa que é
mas se queixa de que elas são insuficien­ culpada de ações que ferem a outrem
tes. A única coisa que impediria os seus tivesse morrido. A pedra de moinho é
irmãos de terem o mesmo destino que ele aquela para a qual a força motora era
seria um espetáculo grande, sobrenatural fornecida por uma mula ou um burro.
— a ressurreição dos mortos. Mas A pessoa, a cujo pescoço essa pedra fosse
atada, mergulharia rapidamente no fun­ riedade. O perdão precisa ser dado à
do do mar. Pequeninos provavelmente medida que for pedido.
não se refere especificamente a crian­
2) A Necessidade de Fé (17:5,6)
ças, embora elas possam ser incluídas.
Os pequeninos são membros menos im­ 5 D is s e ra m e n tã o os ap ó sto lo s a o S e n h o r:
portantes, da comunidade, que são mais A u m en ta -n o s a fé , 6 R e sp o n d e u o S e n h o r: Se
tiv é s s e is fé co m o u m g rã o de m o s ta rd a ,
vulneráveis aos atos dos líderes. No texto d iríe is a e s ta a m o r e ir a : D e s a rra ig a -te , e
grego, um é colocado em posição enfá­ p la n ta -te no m a r ; e e la v o s o b e d e c e ria .
tica. É coisa terrível ofender, mesmo que
seja uma dessas pessoas que podem ser Os discípulos pedem fé, dizendo, “Dá-
consideradas insignificantes pelos pa­ nos fé” , ou uma fé maior, como no texto.
drões sociais comuns. A divisão em ver­ O grego permite ambas essas traduções.
sículos não é bom; o versículo 3 é a Talvez o pedido feito pelos apóstolos
conclusão da advertência dos versículos 1 deva ser entendido como uma reação aos
e 2. ensinamentos que requerem tanto, que
eles haviam acabado de ouvir. O relacio-
O discípulo é responsável por comu­ nar-se com os outros, nos termos esta-
nhão em quaisquer condições, responsá­ belecidos por Jesus está além da capaci-
vel para que os seus atos não a afetem, e dade humana. Um simples homem pre-
responsável quando outra pessoa a amea­ cisa de fé para se elevar acima dos pa­
ça, òfendendo-o. Não nos é permitido drões costumeiros de relações humanas. J
recuarmos para detrás de muros, para A resposta de Jesus mostra que não é ^
alimentar as feridas feitas pelos outros. questão de peauena fé ou grande fé. O
O ensino de Jesus não nos permite dizer: problema é se uma jpessoa tem . alguma
“Ele é a parte culpada; portanto, é ele
fé. O grão de m ostarda é proverbialmen­
que deve vir a m im .” Jesus diz que te pequeno. Conseqüentemente, a_me-'
devemos repreender os nossos irmãos nor quantidade de fé é suficiente para
ofensores. Isto não significa que devemos capacitar a pessoa que a tem a realizar
atacá-los com acusações arrogantes e exi­ ......... ... ....... ' ■---- ■II II ~— ------ ~ ----------- -

feitos extraordinários. Mateus cita as


gências de que eles nos peçam perdão.
mesmas palavras em dois contextos dife­
Pelo contrário, devemos procurar o ir­ rentes (17:20; 21:21; cf. também Mar.
mão, expor-lhe o problema, com toda a 11:23). No primeiro Evangelho, a figura
sua seriedade, e expressar o desejo de é o transporte de um monte, e m í o o
restabelecer a comunhão. Se a atitude desarraigamento de uma árvore. Mas a
dele for correta, ele tomará a decisão diferença das figuras usadas não é im­
apropriada sem coação. Este ensinamen­ portante,' visto que qualquer uma delas é
to pressupõe um desejo de comunhão completamente incrível.
também da parte dele. Note-se que a fé é demonstrada pelo
Quantas vezes deve a pessoa perdoar? poder da palavra que indica que se crê.
Sete vezes no dia, o que significa que não
há limites para perdoar (cf. Mat. 18:21, Deus..é demonstrado. Isto concorda com
22). Nunca chega a hora de o seguidor de a ênfase dada,"pe]os sinópticos, ao poder
Jesus dizer: “Agora não dá mais; não vou da palavra de Jesus, e, além disso, é
perdoar mais.” A atitude para com o ilustrado por declarações feitas por Pau­
irmão deve ser sempre de perdão, que lo (Rom. 15:18,19; I Cor. 2:4; 4:20).
procura apenas uma oportunidade para Esta declaração não deve ser diluída,
se expressar. Além disso, o perdão não pelo fato de a espiritualizarmos. Ela sig­
julga. Leva a pessoa a aceitar o seme­ nifica simplesmente que a pessoa que
lhante como é, sem procurar ver, em seus tiver a menor quantidade_de.fé.possiyel se..^
atos, qualquer hipocrisia ou falta de se­ toma instrumento do ilimitado poder de
Deus. Por outro lado, precisamos reco­ poder comer e descansar. Mesmo depois
nhecer que a fé não é uma mágica, pela de tantas horas de trabalho árduo, ele
qual controlamos Deus. Da mesma for- ainda não devia esperar nenhuma gra­
ma, não é sinônimo de presunção. Não tidão. Por quê? Porque fez apenas o que
podemos usá-la para colocar Deus contra se esperava que ele, sendo escravo, fizes­
a parede, e forçá-lo a produzir um se. O senhor ordena; o escravo obedece.
“show” sensacional, que nos permita ela­ Esta é a forma como as coisas são.
borar as manchetes. A aplicação desta história encontra-se
3) Serviço Incondicional (17:7-10) no versículo 10. Quando Deus ordena, o
7 Q u al d e v ó s, te n d o u m s e rv o a l a v r a r ou
homem, como servo, como escravo, deve
a a p a s c e n ta r g a d o , lh e d ir á , a o v o lta r e le do obedecer. Se ele fizer tudo o que lhe for
c a m p o : C h eg a-te j á , e re c lin a -te à m e s a ? 8 ordenado, não deve esperar que isso lhe
N ão lh e d ir á a n te s : P r e p a r a - m e a c e ia , e propicie qualquer distinção especial. Ser­
c in g e-te, e s e rv e -m e , a té q u e e u te n h a c o m i­ vos inúteis não indica uma depreciação
do e b eb id o , e d e p o is c o m e r á s tu e b e b e rá s ?
P o r v e n tu r a a g r a d e c e r á a o s e rv o , p o rq u e do ego ou do valor do trabalho feito. Esta
e s te fez o q u e lh e foi m a n d a d o ? 10 A ssim expressão simplesmente significa que o
ta m b é m v ó s, q u an d o fiz e rd e s tu d o o q u e vos servo fiel de Deus não pode jactar-se de
fo r m a n d a d o , d iz e i: S om os s e rv o s in ú te is ; suas realizações, mas deve lembrar-se
fizem o s so m e n te o q u e d e v ía m o s fa z e r.
que não fez nada mais do que o seu dever
Visto que a posse de escravos era co­ isto é, o que devia fazer.
mum, nos tempos antigos, esta é outra Precisamos lembrar que Jesus pensava
das ilustrações que se aproveita da ex­ a respeito de si mesmo como servo. Como
periência humana. Esta história não servo ele viveu e morreu, não pedindo
pode ser usada para justificar a escravi­ nada mais do que fazer a vontade de
dão, da mesma forma como a Parábola Deus. Paulo também referiu-se a si mes­
do Mordomo Infiel não pode ser usada mo como escravo de Deus (por exemplo,
para justificar a trapaça. Não há nenhu­ Rom. 1:1). O que está em jogo aqui não é
ma indicação de que algum dos discípu­ a atitude de Deus para conosco e nosso
los fosse proprietário de terras ou senhor trabalho nem a nossa atitude para com
de escravos. Portanto, Jesus estava sim­ os outros e seu trabalho. É a nossa
plesmente dizendo: “Dadas estas cir­ atitude para com o que fazemos, no ser­
cunstâncias, esta é a forma pela qual o viço de Deus.
povo normalmente age.” Obviamente, Por um lado, o evangelho se refere à
nenhum homem pode fazer comércio de bondade e ao amor de Deus, derramados
outros seres humanos, se levar a sério a sobre os seus filhos. Por outro lado, ele
ordem para amar o próximo como a si inclui a nossa reação de obediência amo­
mesmo. rosa, como servos de Deus. Mas deve-se
A pessoa focalizada neste exemplo tem tomar cuidado para enfatizar que a bon­
apenas um escravo, que é a correta tra­ dade de Deus deve sempre ser recebida
dução da palavra grega doulos (servo). como graça (favor imerecido), e não
Devido a isso, o coitado deve fazer tra­ como pagamento por serviços feitos.
balho duplo, como trabalhador rural e Deus nunca fica devendo ao homem.
serviçal caseiro. Só a pessoa que teve a E, também, nenhum homem, baseando-
experiência de arar o dia inteiro pode se em estatísticas de horas trabalhadas
imaginar como esse escravo devia estar ou serviços prestados, pode esperar ser
cansado, quando finalmente chegou o tratado como filho favorito de Deus.
fim do dia. Mas os seus deveres de
escravo não haviam terminado. Ele ainda 7. A Cura de Dez Leprosos (17:11-19)
devia preparar a refeição vespertina e 11 E a c o n te c e u qu e , in d o e le a J e r u s a lé m ,
servir o seu senhor à mesa, antes de p a s s a v a p e la d iv is a e n tr e a S a m á r ia e a
G a lilé ia . 12 Ao e n t r a r e m c e r t a a ld e ia , caminho de Jerusalém, o que é primor­
saíram -ltae a o e n c o n tro d e z le p ro so s, os
q u a is p a r a r a m d e lo n g e, 13 e le v a n ta r a m a
dialmente um tema teológico, em Lucas
voz, d iz en d o : J e s u s , M e s tre , te m c o m p a ix ã o (veja sobre 9:51). Segundo, a narrativa
d e n ó s! 14 E le , logo q u e o s v iu , d isse -lh e s: inserida aqui exige um a localização con­
Id e , e m o s tra i-v o s a o s s a c e r d o te s . E a c o n ­ sentânea. Podia-se esperar que na região
te c e u q u e , e n q u a n to ia m , f i c a r a m lim p o s.
15 U m d e le s , v en d o q u e f o r a c u ra d o , v o lto u ,
fronteiriça se encontrasse um bando mis­
g lo rific a n d o a D e u s e m a l t a v o z ; 18 e p ro s- to de leprosos samaritanos e judeus,
tro u -se c o m o ro s to e m t e r r a , a o s p é s de cujas diferenças raciais fossem ultrapas­
J e s u s , d an d o -lh e g r a ç a s ; e e s te e r a s a m a - sadas pelos laços da miséria comum.
rita n o . 17 P e rg u n to u , p o is, J e s u s : N ão De acordo com Levítico 13:46, o lepro­
fo r a m lim p o s os d ez? E o s n o v e , o n d e e s tã o ?
18 N ão se a c h o u q u e m v o lta s s e p a r a d a r so devia ser isolado das relações sociais
g ló ria a D e u s, s e n ã o e s te e s tra n g e iro ? 19 E com todas as pessoas, menos as atacadas
d is se -lh e : L e v a n ta -te , e v a i; a tu a fé te do mesmo mal. Visto que o bando de
salv o u . dez leprosos mantivera alguma distância
de Jesus e dos que o acompanhavam,
No esboço, feito por Plummer (p. 402), tiveram que levantar a sua voz, a fim de
a respeito de Lucas, a terceira e última fazer ouvir os seus rogos. Mestre é tra­
parte da seção da “viagem” começa aqui. dução de uma palavra característica de
Entre a Samária e a Galiléia, isto é, na Lucas, e que, em outras ocasiões, só se
fronteira entre as duas regiões, é, prova­ encontra provinda dos lábios dos discí­
velmente, a interpretação correta da ex­ pulos. Esta, juntamente com mestre, ser­
pressão preposicional. Ê possível verter via de sinônimo da palavra semita
essa expressão como “pelo meio de Sa­ “Rabi” .
mária e Galiléia” . Não obstante, não há Jesus responde, aos dolorosos rogos
jeito de fazer esta nota se encaixar em um daqueles homens doentes, condenados
esquema de progresso ordenado, na via­ ao ostracismo, com uma ordem, e não
gem da Galiléia para Jerusalém, come­ com um ato de cura: Ide, e mostrai-vos
çando com 9:51 e terminando com 19:40. aos sacerdotes. Depois que fosse curado,
Depois que Jesus fora rejeitado por uma requeria-se que o leproso se submetesse,
aldeia samaritana (9:52 e s.), podemos conforme a Lei, a um exame, feito por
presumir que ele então tomou a rota cir­ sacerdote, que determinaria oficialmente
cular através da Peréia. Em Lucas se diz, se o homem estava curado, para poder
de fato, que ele entrou na Judéia, vindo ser reintegrado na sociedade (veja Lev.
dessa direção, através da cidade frontei­ 13 e 14). Portanto, a ordem de Jesus foi
riça de Jericó. Porém, mesmo quando a uma exigência de fé. Esses doentes de­
narrativa acerca da viagem chega ao seu viam dirigir-se aos sacerdotes, confiando
fim, Jesus é colocado aqui de novo, na que antes de chegar lá estariam curados.
fronteira entre Galiléia e Samária. Todos eles obedeceram à ordem de Je­
Conzelmann (p. 68 e ss.) cita este fato sus, e todos eles foram curados.
como evidência da noção errônea de Lu­ Naqueles dias de limitados recursos
cas a respeito da geografia da Palestina. médicos e pequeno conhecimento, um le­
Mas há lugares, em Lucas e Atos, espe­ proso podia esperar apenas um milagre
cialmente no último, em que se pode de Deus. A sua cura era considerada
perceber uma genuína familiaridade como um sinal da misericórdia de Deus.
com a geografia dessa região. Talvez as in­ Ao descobrir que estava curado, um dos
congruências do verso 11 sejam melhor dez voltou a Jesus, glorificando a Deus
explicadas pelo fato de outras considera­ em alta voz. Ele não apenas louvou a
ções terem superado as estritamente geo­ Deus, mas também caiu aos pés de Jesus,
gráficas. Primeiro, os leitores são lem­ em reverência a ele por ter sido o ins­
brados, mais um a vez, que Jesus está a trumento de sua cura. Só então ficamos
sabendo qual era a identidade racial do a p a r ê n c ia e x te r io r ; 21 n e m d ir ã o : E i-lo
leproso curado. O pronome pessoal este aq u i! o u : E i-lo a li! p o is o re in o d e D eu s e s tá
d e n tro de vós.
(v. 16b) é enfático, o que sublinha o fato
de que, dos dez, apenas aquele que vol­ Embora encontremos material apoca­
tara não era judeu: era estrangeiro, ou líptico, em Mateus e Marcos, concentra­
seja, samaritano. As perguntas que Jesus do em um só capítulo (Mat. 24; Mar.
faz (v. 17 e 18) são retóricas, levantadas 13), Lucas tem duas passagens dessas, a
para fazer contrastar a ação desse sama­ primeira das quais começa aqui. Esta é a
ritano agradecido com a dos judeus, que primeira de quatro passagens em que a
aceitaram a cura como se ela lhes fosse questão do tempo da Parousia é tratada
devida. Ele é descrito como estrangeiro, especificamente em Lucas-Atos (também
representando, neste Evangelho, todos os 19:11; 21:7; At. 1:6).
povos não-judeus. Os samaritanos figu­ A relação entre Jesus e os fariseus é
ram mais proeminentemente em Lucas descortinada apenas em Lucas. Discus­
do que em qualquer outro dos Evange­ sões a respeito de sinais que podiam
lhos, porque, para ele, prefiguram a mis­ identificar ou apontar para o início do
são aos gentios. Este incidente é um sinal reino messiânico evidentemente agita­
da rejeição do evangelho pelos judeus, e a vam consideravelmente os círculos fari­
sua entusiástica recepção pelos outros saicos. 31 A pergunta feita pelos fariseus
povos, tendências que se tomaram fatos era, para eles, portanto, importante.jjíão
estabelecidos por volta de 85 d.C. há sugestão de que ela tenha sido feita
Todos os leprosos criam em Deus, ou com outro intento que não a séria espe­
seja, na possibilidade de cura miraculo­ rança de que Jesus, como mestre, fosse
sa, pois, do contrário, não teriam aten­ capaz de lançar alguma luz na discus-
dido às instruções de Jesus. Como é, são. Mas ele simplesmente nega a vali-
então, que só ao samaritano foram diri­ dade da pergunta, porque a resposta não
gidas as palavras: A tua fé te salvou? è acessível a seres humanos. Jesus ensi-
A fé precisa constar de algo mais do que nou que o futuro pertence a Deus., e que
crença no poder de Deus, para operar devemos confiar que ele o conduzirá cor­
milagres. Ela também inclui o reconhe­ retamente. Com aparência exterior é tra­
cimento de que as suas misericórdias não dução de uma expressão preposicional,
são merecidas, o que significa que a gra­ encontrada apenas aqui. Não há possi­
tidão é um corolário essencial da fé. Nove bilidade de sermos dogmáticos a respeito
dos leprosos haviam sido curados em do seu significado em grego, nem a res­
vão, pelo fato de que os seus espíritos peito de qualquer expressão aramaica
egoístas não haviam sido transformados. antecedente. No entanto, o sentido geral
Só um havia reagido espontaneamente à é claro. Não há base para os homens
bondade de Deus, e reconhecera a rela­ poderem predizer a data do início da
ção entre Jesus e os atos poderosos de consumação futura. Os ensinos de Jesus,
Deus. Portanto, na verdade, só um tinha a respeito do futuro, conclamam os ho-
fé.
31 Strack-Billerbeck, IV, Zweiter Teil, p. 977 e ss. Uma
8. O Reino de Deus e o Filho do Homem extensa digressão, sobre “ sinais e cálculos preliminares
acerca dos dias do Messias” , dá exemplos do Talmude.
(17:20-18:14) Embora essa obra seja posterior ao ministério de Jesus,
podemos concluir que cálculos semelhantes, com o fim
1) O Reino Está Dentro de Vós de determinar o começo do reino, também foram fei­
(17:20,21) tos pelos círculos fariseus contemporâneos a Jesus.
G. R. Beasley-Murray, em Jesus and the Future
(p. 173 e ss.), indica que, à guisa de contraste, não há
20 S endo J e s u s in te rro g a d o p e lo s fa ris e u s “sinal de cálculos matemáticos” em Marcos 13. O
so b re q u a n d o v ir ia o re in o d e D e u s, re s p o n ­ mesmo pode ser dito de outras passagens semelhantes
d e u -lh e s: O re in o d e D e u s n ã o v e m co m dos Evangelhos.
mens, das loucas especulações a respeito /termos da reação interior às exigências/
de tempos e estações, para uma per­ [do reino, aqui e agora.
cepção da seriedade do momento presen­ Ao mesmo tempo, o Filhojlo homem
te. Cada momento é carregado com tanto estava “entre” o povo"judeu, ao tempo
potencial quanto qualquer outro momen­ enf que eles o estavam procurando ‘!lá
to. Nenhum momento, no futuro, pode fora” . Ele era a realidade decisiva com
ser mais crítico do que este em que esta­ que eles tinham que se haver. Em vez de
mos vivendo, pois qualquer coisa que fôpecijJacõesim jJ^ a respeito do tempo
aconteça no futuro pode acontecer agora eTfo m g a racrreino futuro, eles- precisa­
mesmo. vam corresponder a esta mari3estãçaõ“do
Todas as interrogações a respeito da governo de Deus, arrependendo-se, isto
época da revelação do reino de Deus são e, voltando-se para Deus e fazendo dele o
fúteis; da mesma forma, também as es­ seu rei.
peculações a respeito de lugar. As pes­
2) Os Dias do Filho do Homem
soas estavam perguntando com opoâlarç (17:22-37)
reconhecer a vinda do reino, quando j a,
22 E n tã o d is se a o s d is c íp u lo s : D ia s v irã o
verdade, estavam cegas para á presença e m q u e d e s e ja r e is v e r u m dos d ia s do F ilh o
dcTrèino no meicTdelas. Jesus chama os do h o m e m , e n ã o o v e re is . 23 D ir-v o s-ão :
séüsinterrogadores de volta das espe­ E i-lo a li! o u : E i-lo a q u i! n ã o v a d e s , n e m os
culações infrutíferas, acerca do futuro, s ig a is; 24 p o is, a s s im com o o re lâ m p a g o , fu ­
zilando e m u m a e x tre m id a d e do céu , ilu m in a
para uma confrontação com o reino no a té a o u tr a e x tr e m id a d e , a s s im s e r á t a m ­
presente. b é m o F ilh o do h o m e m n o se u d ia . 25 M as
O significado da preposição entos p rim e iro é n e c e s s á rio q u e e le p a d e ç a m u ita s
(dentro de) é ainda muito debatido. As c o isa s, e q u e s e ja r e je ita d o p o r e s ta g e r a ­
duas possibilidades são “no meio de” ou ção . 26 C om o a c o n te c e u n o s d ia s d e N oé,
a s s im ta m b é m s e r á n o s d ia s d o F ilh o do
“dentro” . Podemos nos descartar da idéia h o m e m . 27 C o m ia m , b e b ia m , c a s a v a m e
de que Jesus pensa no reino como uma d a v a m -se e m c a s a m e n to , a té o d ia e m q u e
realidade espiritual, imanente, com pos­ Noé e n tro u n a a r c a , e v eio o d ilú v io e os
sibilidades evolucionistas ilimitadas. Esta d e s tru iu a to d o s. 28 C om o ta m b é m d a m e s ­
m a fo r m a a c o n te c e u n o s d ia s d e L ó ; c o ­
idéia está em oposição direta ao seu m ia m , b e b ia m , c o m p r a v a m , v e n d ia m ,
significado primordial, no pensamento p la n ta v a m e e d if ic a v a m ; 29 m a s n o d ia e m
ju d aico e em o Novo Testamento. O reino q u e L ó s a iu d e S o d o m a c h o v e u d o c é u fogo e
é o governo transcendental de Deus, que e n x o fre , e os d e s tru iu a to d o s ; 30 a s s im s e r á
garante o estabelecimento de uma nova no d ia e m q u e o F ilh o d o h o m e m se h á de
m a n ife s ta r. 31 N a q u e le d ia , q u e m e s tiv e r no
ordem no universo, que significa des­ e ira d o , te n d o os s e u s b e n s e m c a s a , n ã o
truição para a época atual, de trevas e d e s ç a p a r a tirá -lo s ; e , d a m e s m a s o r te , o
rebelião. Em Lucas, o reino de Deus está, q u e e s tiv e r no c a m p o , n ã o v o lte p a r a tr á s .
presente na vida e"ensíno de°Jesus, cufas 32 L e m b ra i-v o s d a m u lh e r d e L ó . 33 Q u a l­
q u e r q u e p r o c u r a r p r e s e r v a r a s u a v id a ,
palavras e atos se tornam a base para a fé p e rd ê -la -á , e q u a lq u e r q u e a p e r d e r , c o n ­
nele e uma compreensão de sua nature­ s e rv á -la -á . 34 D ig o -v o s: N a q u e la n o ite e s t a ­
za. Porém, mesmo assim, ainda podemos rã o d o is n u m a c a m a ; u m s e r á to m a d o , e o
falar do reino como estando tanto “ den­ o u tro s e r á d e ix a d o . 35 D u a s m u lh e re s e s t a ­
tro” do homem como “entre” os homens. rã o ju n ta s m o e n d o ; u m a s e r á to m a d a , e a
o u tr a s e r á d e ix a d a . 36 (D ois h o m e n s e s ta r ã o
Èm Jesus, o reino de Deus estabelece as no c a m p o ; u m s e r á to m a d o , e o o u tro s e r á
suas reivindicações sobre o coração, isto d e ix a d o .) 37 P e r g u n ta r a m - lh e : O nde, S e ­
é, sobre a vontade e as lealdades do ho­ n h o r? E re s p o n d e u -lh e s : O nde e s tiv e r o
mem, e exige uma decisão. Não é, por co rp o , a í se a ju n ta r ã o ta m b é m os a b u tr e s .
conseguinte, uma questão do que está O problema do interregno, o período
“lá fora” , quer no tempo, quer no espa­ entre o ministério de Jesus e a Parousia,
ço; mas do que está “ aqui dentro” , em tomou-se especialmente agudo para a
comunidade cristã ao tempo em que Lu­ incongruentes com o que Jesus ensinou
cas escreveu este seu Evangelho. Dois a respeito do fim dos tempos. No começo
perigos particulares precisavam ser de­ da história da Igreja, foram criados pro­
frontados. O primeiro era a possibilidade blemas por pessoas que ensinavam que a
de desespero e falta de fé. O outro era o Parousia já havia ocorrido (cf. II Tess.
apelo enganoso do sensacionalismo apo­ 2:2). É este tipo de declaração que a ad­
calíptico. Estas são as espécies de consi­ vertência de Jesus anula.
derações que determinaram a seleção e o Os sinais serão totalmente desnecessá­
uso de palavras de Jesus usadas por rios, porque quem o Filho do homem é e
Lucas aqui e em outras partes do seu o que ele será está bem claro para todos.
Evangelho. Os ensinos e advertências são Ele será tão brilhante como um clarão de
dirigidos aos discípulos, isto é, à Igreja. relâmpago, que ilumina todo o céu
O intenso desejo de uma igreja pere­ (como ele apareceu na transfiguração —
grina e mártir será alcançar o destino 9:29). Note-se a pequena, mas significa­
para o qual está avançando. Como os tiva diferença da passagem paralela, em
fariseus, os discípulos também se preo­ Mateus 24:27. Ali, será a Parousia, que
cupavam com o fim do século. Os dias do será semelhante ao clarão do relâmpago;
Filho do homem são considerados, por aqui, é o próprio Filho do homem.
Leaney (p. 68 e ss.), como referentes às Porém, antes de acontecer a Parousia
manifestações que começam com a trans­ do Filho do homem, ele precisava pri­
figuração, em que os discípulos testemu­ meiro sofrer. Talvez esta declaração,
nharam a glória de Jesus como Filho do além disso, insinue que o caminho do
homem. Essa experiência teria propicia­ sofrimento também seja essencial para a
do ipspiração e esperanças renovadas, Igreja, antes que ela possa experimentar
para ajudá-los a enfrentar os problemas a glória da nova era.
da vida nesta era. Esta interpretação é A experiência da geração de Noé é
possível, mas dificilmente provável aqui. usada como ilustração da impossibilida­
Pelo contrário, toda a passagem trata do de de se prever o fim dos tempos. Não
problema de uma Parousia que não houve sinais. A vida estava continuando
acontece quando esperada e ansiada. na sua rotina diária, quando o dilúvio
Dias do Filho do homem é sinônimo de começou de repente, sem aviso prévio, e
“dias do Messias” , expressão rabínica, os destruiu a todos. Ao contrário das
designando a era messiânica (Strack-Bil- pregações imaginosas que se tem feito, o
lerbeck, II, p. 237). De acordo com Con- Velho Testamento não diz nada a respei­
zelmann, “o plural indica que o Esca- to de advertências, nem da parte de Noé.
thon não é mais imaginado como um A mesma situação prevalecia por ocasião
evento completo, mas como uma suces­ da destruição de Sodoma. A vida, nessa
são de acontecimentos distintos um do ímpia cidade, estava continuando como
outro” (p. 124). O que eles ansiavam de costume, até que veio o dia em que
por ver era o raiar da nova era. Mas os Ló saiu de Sodoma. Os únicos dias dife­
anseios eram em vão; “ não porque ela rentes foram os da catástrofe.
nunca virá, mas porque ela não virá nos Da mesma forma, a vida nesta era
dias em que se anseia por ela” (Plum- continuará inalterada até o dia da Pa­
mer, p. 407). rousia. O ponto de vista básico, do qual
Nesta situação, os seguidores de Jesus isto é declarado, é apocalíptico, mas é
serão especialmente susceptíveis aos pro­ um apocalipticismo despido dos seus as­
nunciamentos autoritários dos apocalip- pectos sensacionais. É apocalíptico por­
sistas. Porém, qualquer esforço para que expressa a opinião pessimista de que
identificar o lugar e o tempo da Parousia a ordem do mundo atual é essencial e
deve ser rejeitado. Essas declarações são irremediavelmente corrupta. Ele tam-
bém está baseado na convicção de que o identifica abutres com as águias dos es­
reino de Deus é uma realidade transcen­ tandartes romanos, cujo emblema era
dental, que interromperá o processo cor­ uma águia. É considerado como referên­
rupto desta era. A era messiânica não é cia à conquista de Jerusalém pelos exér­
considerada um a utopia, que é o estágio citos romanos. Mas parece melhor rela­
final de uma evolução inevitável, em cionar-se, essa passagem, à Parousia. Os
direção do bem. abutres (talvez águias) são símbolos de
As advertências do versículo 31 se en­ julgamento. Não há nenhuma resposta
quadram melhor no seu contexto em para a pergunta a respeito do tempo e
Mateus 24:17,18 e Marcos 13:15,16, lugar. Jesus simplesmente afirma que o
onde se referem à destruição de Jerusa­ juízo será inevitável e que terá lugar
lém. Aqui elas se referem e dão ênfase à quando, dentro dos propósitos de Deus,
necessidade de se estar preparado e pron­ o tempo chegar.
to quando o Filho do homem se há de
3) A Viúva Importuna (18:1-8)
manifestar. A dedicação a Deus precisa
ser tão completa que ultrapasse e anule 1 C ontou-lhes ta m b é m u m a p a rá b o la
so b re o d e v e r d e o r a r s e m p re , e n u n c a d e s ­
todo e qualquer desejo de apego às coisas fa le c e r. 2 d iz e n d o : H a v ia , e m c e r t a c id a d e ,
desta era. Nesta conexão, a referência u m iu iz q u e n ã o te m ia a D eu s , n e m resp e i-
à mulher de Ló é importante (v. 32). ta v a os h o m e n s. 3 H a v ia ta m b é m n a q u e la
Em vez de enfrentar resolutamente o m e s m à c id a d e u m a v iú v a qu e ia te r co m ele,
d iz e n d o : F a z e -m e ju s ti ç a c o n tr a o m e u
futuro, ela olhou para trás, com saudade a d v e r s á r io . 4 E p o r a lg u m te m p o n ã o n u is
do passado, algo que os discípulos não a te n d ê -la ; m a s d ep o is d is se consigõT~ÃIn3ã
podem fazer no último momento. Esta q u e n a o te m o a D e u s, n e m re s p e ito os h o ­
tentativa de salvar a vida (sendo a exis­ m e n s , 5 to d a v ia , c o m o e s ta v iú v a m e in c o ­
tência interpretada em termos de posses m o d a . h e i d e fa z e r-lh e j u s tiç a , p a r a q u e e la
n ão c o n tin u e a v ir m o le s ta r -m e. 6 P r o s s e ­
e posição nesta era) fará com que a pes­ gu iu o S e n h o r: O uvi o q u e d iz e sse ju iz
soa a perca, isto é, perca o futuro que in ju sto . 7 E n ã o f a r á D e u s ju s tiç a a o s se u s
Deus preparou para o povo que está esco lh id o s, q u e d ia e n o ite c la m a m a e le , j á
pronto para essa espécie de vida. q u e é Io n g â n im o p a r a c o m e le s ? 8 D igo-vos
Quando o fim vier, cortará as mais X'qquuaen ddoe pvrie e s s a lh e s f a r á ju s tiç a . C o n tu d o ,'
r o F ilh o do h o m e m , p o rv e n tu ra
íntimas relações da ordem atual. A vinda l a c h a r á fé n a te r r a ? —
é retratada como algo que tem lugar
próximo ao fim da última vigília (cf. Uma parábola da fonte especial de
12:38), isto é, quando os covardes aban­ Lucas serve de conclusão para os ensi­
donarem toda esperança. Os homens namentos anteriores, a respeito do futu­
ainda estão na cama,32 mas as mulheres ro. Dirigida aos discípulos, ela se refere
já estão nos primeiros momentos da ár­ especificamente ao problema do ínterim.
dua tarefa de preparar pão para o dia. r~Quando os anseios e expectativas dos se-'
Será tomado significa ser tomado para a 1 guidores de Jesus, vivendo em uma era
salvação em Deus, provavelmente pelos hoitfllTestranha, não são cumpridos p ü ãT
seus anjos. vinda do reino, há sempre o perigo dé se
Os discípulos ainda estavam pergun­ f desesperarem.. Portanto, eles precisam
tando onde. A resposta é outra daquelas tomar cuidado para não desfalecer. —
difíceis declarações às quais nenhuma Em contraposição, a este espírito de
interpretação dogmática pode ser dada. desesperança, coloca-se uma vida_de.cm-
Leaney (p. 232), juntamente com outros, tínua oração^que é mnjconstante^teste-
munho da fi^ õ ^ c rè n te? ^ o~ouê~s^
32 O masculino “ dois” pode também referir-se a um supõe, a petição central é a prece da co­
homem e sua esposa. Também o v. 36 não aparece em
alguns dos melhores manuscritos, mas estã incluído munidade primitiva: maranatha (“Vem,
entre parêntesis na versão da IBB. Senhor Jesus” I Cor. 16:22). A parábola
de Jesus estabelece a base para essa vida muito mais Deus será movido pelos cla­
Cde
L oração. Os crentes devem orar sem- ( mores dos seus e s c o lh id o s . Como Caird
pre, porque existe Um que ouve as suas ? >bserva, se “eleição significa favoritismo,
> reces e certamente responderá. > é porque Deus tem um a inclinação irre­
O uso eficiente de contrastes é carac­ sistível em favor das vítimas inocentes da
terístico em várias parábolas de Jesus. perseguição” (p. 201). A justiça que elas'
Aqui, mais uma vez, a^Jigm ra^entral estão esperando acontecera no juízo, no
é um homem de caráter t o ta lm ^ te r ? fim desta era. As vítimas oprimidas,
preensível, exatamente o inverso do que indefesas, da hostilidade e da injustiça,
^ ? umTúiz déve ser. No Velho Testamento, que colocam a sua causa nas mãos de
a base para o desempenho consciente de Deus, verificarão que têm razão em_ter
responsabilidades jurídicas era o temor a fê.
Deus, isto é, o reconhecimento de que O versículo 7b é difícil. É improvável
h á um Juiz de instância superior, ao qual que ele tenha o significado dado pela
todos os juizes humanos têm que prestar versão americana (RSV). que se coloca
contas (v.g., Êx. 23:6.7). Mas o iuiz em em contraposição com o contexto da
questão não temia a Deus. E, também, parábola, e, indubitavelmente, de todo o
não respeitava outros seres humanos, e Evangelho. Em Lucas, o ensinamento é
por isso não podia ser movido por consi­ que o tempo do fim é desconhecido: daí.
deração para com eles. Visto que ele agia ô período anterior à Parousia pode ser
apenas por interesse próprio, as súás mais longo do que se espera. Mas é certo
sentenças eram sempre determinadas que ela acontecerá. Podemos dãr à jra se
pelo tamanho do suborno que as partes grega~ã süa tradução costumeira, e colo-
lhe ofereciam. "carl a n a forma de afirmação: “e ele é
Portanto, este é o tipo de juiz perante paciente para com eles” (J. Jeremias,
quem o caso~de uma pobre viúva devia p. llòJTDiferentemente do juiz iníquo,
ser lulgado. Um só juiz tinha compe- Deus ouve pacientemente as petições dos
TêncTa para decidir este tipo de causa, de seus filhos. Depressa, no verso 8, prova­
disputa financeira (Strack-Billerbeck, I, velmente deveria ser ‘‘inesperadamente’’.
p. 289). Alguém devia dinheiro à viúva, Deus será fieL mas pode o mesmo ser
ou de alguma forma estava tentando díto a c e rc a d o homem? A õtem põ^da
defraudá-la. Uma viúva é usada na pará­ Varõuslã^quando vier'~o Filho do ho­
bola, porque ela é o símbolo de desampa­ mem, terão todos os homens se desespe­
ro e das pessoas indefesas (veja sobre 7: rado, de forma que nenhum mais crerá
12). Ela nem tinha o dinheiro para subor- f \ no futuro triunfo do reinado soberano de
y nar o poder para influenciar um ju iz / Sum Deus justo?
^ egoísta e ambicioso. O seu único recurso
foi ficar importunando-o. esperando que 4) O Fariseu e o Publicano (18:9-14)
por fim lhe fosse concedido alívio da 9 P ro p ô s ta m b é m esta, p a r á b o la a u n s q u e
injustiça que lhe era infligida pelo seu c o n fia v a m e m si m e s m o s , c re n d o q u e e r a m
adversário, a parte oposta na questão.^ ju s to s , e d e s p r e z a v a m os o u tro s : 10 D ois
' Finalmente o iuiz egocêntrico aeiu da-' h o m e n s s u b ir a m a o te m p lo p a r a o r a r ; u m
acordo com o seu papel. Decidiu darV fa r is e u , e o o u tro p u b lic a n o . 11 O fa r is e u , de
p é , a s s im o r a v a c o n sig o m e s m o : Ó D e u s,
l um veredicto a favor dela, isto é, fazer-í g r a ç a s te d o u q u e n ã o so u co m o o s d e m a is
jlhe justiça, simplesmente para livrar-se_) h o m e n s, ro u b a d o re s , in ju sto s, a d ú lte ro s ,
\dos seus incessantes rogos. n e m a in d a co m o e s te p u b lic a n o . 12 J e ju o
O argumento é, nesta história, do me­ d u a s v e z e s n a s e m a n a , e d o u o d ízim o d e
tu d o q u a n to g an h o . 13 M a s o p u b lic a n o ,
nor para o maior. Se um juiz corrupto e sta n d o d e p é d e lo n g e , n e m a in d a q u e ria
atende as súplicas de uma pobre viúva. le v a n ta r o s o lhos a o c é u , m a s b a ti a no p e ito ,
bor quem nenhum interesse ele tem. d iz e n d o : Ó D e u s, s ê p ro p íc io a m im , o p ec a -
d o r! 14 D igo-vos q u e e s te d e s c e u ju s tific a d o , autocongratulações. A moralidade con­
p a r a s u a c a s a , e n ã o a q u e le ; p o rq u e to d o o cebida em termos negativos é de impor­
q u e a si m e s m o se e x a lt a r s e r á h u m ilh a d o ; tância vital para o conceito legalista de
m a s o q u e a si m e s m o se h u m ilh a r s e r á
e x a lta d o . retidão. O homem reto é aquele que não
transgride a lei. Ele não comete os atos
à parábola da viúva importuna é de que são culpadas as pessoas como os
acrescentada outra, ligada a ela pelo publicanos.
tema da oração. Na anterior, uma mu­ Depois de dizer que não era transgres­
lher figura proeminentemente; na outra, sor da lei, o fariseu menciona duas áreas
dois homens — um bom exemplo da importantes, pelas quais expressou a sua
predileção de Lucas por pares. Mudança justiça, indo além das exigências da
de auditório, bem como de tema, é indi­ Lei. Pela Lei, os judeus eram obrigados a
cada pela declaração introdutória. Esta jejuar no Dia da Expiação apenas (cf.
parábola é a primeira, em uma série de 5:33 e ss.). Porém os mais piedosos entre
episódios em que os requisitos para se eles haviam adotado o costume de jejuar
entrar no reino de Deus são delineados. duas vezes na semana, considerando esse
Visto que o templo é palco da pará­ ato como de especial mérito religioso.
bola, o incidente tem lugar em Jerusa­ Como é declarado em Deuteronômio 14:
lém. Dois homens, que se colocam reli­ 22 e ss., a Lei requeria o dízimo de cer­
giosa e socialmente em ambos os extre­ tos produtos agrícolas, especificamente
mos do judaísmo, vão ao templo para de cereais, vinho, óleo, e dos primogêni­
orar, por ocasião da oração da manhã, tos dos rebanhos e manadas. Mas o fari­
por volta das 9 horas, ou da tarde, por seu diz ter ido além disso. Ele dava o
volta das 3 horas. Somos levados a ter dízimo de tudo que ganhava.
uma opinião distorcida sobre o fariseu, Esta expressão pode ter três significa­
que personifica justiça própria, hipocri­ dos (Strack-Billerbeck, II, p. 244 e ss.).
sia e outros males. Mas se esta espécie de (1) O fariseu havia estendido o dízimo,
pessoa fosse única na história da religião, até cobrir todos os produtos agrícolas,
dificilmente serviria como ilustração. inclusive as ervas de sua horta (veja
O fato é que os pecados e fraquezas, 11:42). (2) Os judeus mais piedosos tam ­
bem como as virtudes dos fariseus são as bém tinham o costume de dizimar todos
que as pessoas religiosas têm a tendência os produtos agrícolas que compravam,
de possuir. Conseqüentemente, eles ilus­ com medo de que pudessem estar usando
tram o perene perigo de institucionalizar mercadorias que não haviam sido dizi­
a piedade, de fazer da religião um amon­ madas. (3) A expressão tudo quanto ga­
toado de regras e de deixar de perceber nho pode referir-se a todas as aquisi­
a centralidade dos relacionamentos com ções desse homem, quer trabalhando no
Deus e com o homem. campo, quer negociando, embora a lei do
Geralmente se fazia orações em pé. dízimo incluísse apenas produtos agrí­
O fariseu ficou de pé... consigo mesmo, colas.
longe da multidão, ou orava consigo mes­ O problema do legalismo é que ele
mo. A última hipótese indica que a ora­ define a justiça de tal forma que ela seja
ção dele foi um monólogo, e não um diá­ atingível pelo homem. Tendo alcançado
logo com Deus. A primeira palavra pro­ os padrões pelos quais julgam estes as­
nunciada é o nome de Deus. Porém, suntos, os homens têm a tendência de
porque um a pessoa pronuncia o nome de cair no pecado do orgulho moral. Este
Deus e outras frases piedosas, não signi­ assunto é moeda que tem dois lados.
fica necessariamente que esteja falando Num, está o julgamento errôneo do eu;
com Deus. Ao invés de ser um a oração, o no outro, o desprezo daqueles que não
monólogo do fariseu era um exercício de satisfazem aos padrões.
Em contraste com a arrogância e auto­ alguma menos reais. Podemos presumir
confiança do fariseu, vemos a humildade que o publicano havia abusado dos ou­
e angústia do publicano, isto é, do cole­ tros financeiramente, extorquindo deles
tor de impostos. Estando em pé de longe mais do que deviam em impostos. Por
não pode significar que ele estava em causa do seu preconceito e orgulho, o
outra área do Templo, por exemplo, fariseu abusara dos outros de maneiras
o Pátio dos Gentios, porque o fariseu o que podiam ser ainda mais danosas.
estava vendo. Mas ele nao se achava Como muitos bons freqüentadores de
digno de se aproximar do santuário, sím­ igreja, entre nós, ele não pensaria em ter
bolo da presença de Deus, que ficava lucros ilícitos, em prejuízo de outros,
diante do Pátio de Israel (veja sobre mas não hesitava em tratá-los com des­
1:9,10). E, também, ele nao olhava para prezo, se julgasse que a posição racial ou
o céu, isto é, para Deus, com olhos religiosa deles fosse inferior.
pecadores. Ele batia no peito, expressão O princípio que sempre volta à baila,
pungente da agonia de sua culpa. Ele da reversão dos valores humanos pelo
nem percebeu a presença do fariseu, julgamento de Deus, é declarado nova­
pois não olhava para os pecados dos mente em 14b. Todos os homens são
outros, mas sô para os seus. Não tendo pecadores; todos necessitam de perdão.
absolutamente nenhuma base para se Conseqüentemente, todos estão no mes­
autojustificar, ele possuía apenas uma mo nível diante de Deus. As boas-novas
âncora de esperança: que Deus é de fato proclamadas por Jesus são que Deus não
propício. Não se diz que, se realmente o é como o deus do fariseu; ele é como o pai
fariseu estivesse falando com Deus, o do filho pródigo.
publicano estaria condenado. Do Deus
do fariseu, um a pessoa como ele podia 9. A Entrada no Reino (18:15-30)
esperar apenas desprezo, rejeição e casti­ 1) Jesus e as Crianças (18:15-17)
go. Por outro lado, se Deus realmente 15 T ra z ia m -lh e ta m b é m a s c r ia n ç a s , p a r a
respondeu ao grito lancinante do publi­ q u e a s to c a s s e ; m a s o s d isc íp u lo s, v en d o
cano, as idéias religiosas do fariseu eram isso , os r e p r e e n d ia m . 16 J e s u s , p o ré m , cha-
insustentáveis. m a n d o -a s p a r a si, d is s e : D e ix a i v ir a m im
a s c ria n ç a s , e n ã o a s im p e ç a is , p o rq u e d e
Note-se o direto e autoritário digo-vos ta is é o re in o d e D e u s. 17 E m v e rd a d e vos
(v. 14). Jesus assume a prerrogativa de digo q u e , q u a lq u e r q u e n ã o r e c e b e r o re in o
falar em nome de Deus. Nele, o juízo d e D eu s co m o c ria n ç a , d e m o d o a lg u m e n ­
escatológico se torna atual, contempo­ t r a r á n e le .
râneo. A voz passiva evita a menção do Lucas agora retorna à sua fonte de
nome de Deus. Deus justificou o publi­ Marcos, que fornece o material para o
cano. Esta declaração nos leva de volta resto do capítulo (Mar, 10:13 e ss.). Ele
para o verso 9. A justiça própria anula a descreve as crianças que são trazidas a
possibilidade de receber a justiça de Jesus como “infantes” , pequena variação
Deus. Dizer que o publicano foi justifi­ da palavra usada em Marcos (10:13).
cado é dizer que ele foi perdoado, e que O sujeito de traziam-lhe, provavelmente
uma nova relação entre ele e Deus foi os pais, que desejavam que Jesus aben­
estabelecida. çoasse as crianças, encontram o seu ca­
Jesus não condena, implicitamente ou minho bloqueado pelos discípulos. Os
explicitamente, o bem que há no fariseu, discípulos estavam cometendo um sério
nem concorda com o mal que há no erro de interpretação do seu papel. Eles
publicano. O fariseu não é condenado se consideravam como guardiães da dig­
por causa das suas virtudes, mas por nidade e do tempo de Jesus. O mestre
causa dos seus pecados. Estes são dife­ não devia ser perturbado por pessoas
rentes dos do publicano, mas de forma pequenas, sem importância. Jesus ensi­
nara que ele era especialmente acessí­ p o ssív e is a D e u s. 2S D isse -lh e P e d r o : E is
vel a essas pessoas, e que os discípulos q u e n ó s d e ix a m o s tu d o , e te se g u im o s. 29
R e sp o n d eu -lh e s J e s u s : E m v e rd a d e vos
deviam ter especial cuidado para não digo q u e n in g u é m h á q u e te n h a d eix a d o
ofendê-las. Evidentemente, eles não ha­ c a s a , o u m u lh e r, ou ir m ã o s , o u p a is , ou
viam ainda aprendido esta lição. filh o s, p o r a m o r d o re in o d e D e u s, 30 q u e n ão
Jesus passa por cima dos discípulos, h a ja d e r e c e b e r n o p re s e n te m u ito m a is , e
e recebe as crianças, usando-as como no m u n d o v in d o u ro a v id a e te r n a .
veículo para enfatizar um tema impor­ Lucas descreve esse inquiridor como
tante do seu ensino. O reino de Deus um dos principais; Marcos não o identi­
pertence às “crianças” . Ou seja, ele é fica (10:17). Este é o segundo homem,
composto de pessoas que sabem que são em Lucas, que pergunta o que deve fazer
filhas de Deus, que o chamam de Pai e para herdar a vida eterna (veja sobre
que aceitam o estado de dependência 10:25). Para o outro homem, a pergunta
dele em que estão. era um subterfúgio, mas para este é
O reino de Deus não é um prêmio a pergunta de importância pessoal vital.
ser ganho, um a recompensa pela fideli­ Herdar a vida etema é sinônimo de “en­
dade a um programa moral e religioso trar no reino” . Jesus havia acabado de
intensivo. É um presente que deve ser responder a essa pergunta: “Você precisa
recebido, um relacionamento em que se recebê-lo como criança.” Mas, na vida e
entra. Na parábola anterior, o fariseu na experiência desse homem, em parti­
estava fora do reino porque se havia cular, o que é que isso significava?
apegado a um a ilusão de auto-suficiência Notamos um problema fundamental
e autonomia. Visto que Deus é o Pai, não logo de início. Jesus havia usado o verbo
precisamos fazer nada para merecer o receber, enquanto o homem usa o verbo
seu amor. Tudo que temos a fazer é fazer. Ele tem a impressão errada de que
apenas entrar no relacionamento que o pode arrancar a vida eterna de Deus por
seu amor torna possível, cônscios do fato meio de um esforço pessoal.
de que somos crianças e de que precisa­ Jesus desafia e rejeita o uso do adje­
mos dele como Pai. tivo bom. (Note-se a variação em M a­
teus 19:16,17. Porque os cristãos primi­
2) O Moço Rico (18:18-30) tivos consideravam Jesus inteiramente
18 E p e rg u n to u -lh e u m d o s p rin c ip a is : bom, tinham dificuldade em aceitar o
B om M e s tre , q u e h e i d e f a z e r p a r a h e r d a r a fato de ele ter rejeitado este adjetivo.)
v id a e te r n a ? 19 R e sp o n d e u -lh e J e s u s : P o r O judaísmo farisaico havia definido cla­
q ue m e c h a m a s b o m ? N in g u é m é b o m , s e ­
n ã o u m , q u e é D e u s. 20 S a b e s os m a n d a ­ ramente o que era um homem bom: ele
m e n to s : N ão a d u lt e r a r á s ; n ã o m a t a r á s : guardava a Lei da maneira prescrita nas
n ã o f u r t a r á s ; n ã o d ir á s fa lso te s te m u n h o ; tradições. Portanto, era de primária im­
h o n ra a te u p a i e a tu a m ã e . 21 R e p lic o u o portância o que ele não fazia (cf. 18:11).
h o m e m : T udo isso te n h o g u a rd a d o d e sd e a
m in h a ju v e n tu d e . 22 Q uan d o J e s u s o u v iu É perigoso usar a palavra bom. O ho­
isso , d is se -lh e : A in d a te f a l ta u m a c o is a ; mem assim descrito pode levar o quali­
v e n d e tu d o q u a n to te n s e re p a r te -o p elo s ficativo a sério, e se convencer de que é
p o b re s , e te r á s u m te s o u ro no c é u ; e v e m , bom porque vive de acordo com padrões
se g u e -m e . 23 M a s, ouvindo e le isso , en ch eu - aceitos. Ou o homem que o usa pode ser
se d e tr is te z a ; p o rq u e e r a m u ito ric o . 24 E
J e s u s , vendo-o a s s im , d is s e : Q uão d ific il­ levado a pensar que pode ser bom se
m e n te e n tr a r ã o no re in o d e D e u s o s q u e tê m elevar-se até o nível dos padrões prescri­
riq u e z a s! 25 P o is é m a is fá c il u m c a m e lo tos, de conduta moral e religiosa. Só
p a s s a r p elo fu n d o d u m a a g u lh a , d o q u e e n ­ Peus é bom. Isto significa que não há
t r a r u m ric o no re in o d e D e u s. 26 E n tã o os
q u e o u v ira m is so d is s e r a m : Q u em p o d e,
lugar para o orgulho religioso. Não im­
e n tã o , s e r sa lv o ? 27 R e sp o n d e u -lh e s: As porta o quanto tente, o homem nunca
c o is a s q u e sã o im p o ssív e is a o s h o m e n s sã o pode ser bom no sentido absoluto. As­
sim, ele nunca alcança um ponto em que Jesus havia colocado o dedo exatamen­
não necessita da graça; e também, ele te no problema. O homem, que se jac­
nunca alcança um nível do qual possa tara de guardar os mandamentos, na rea­
olhar para baixo, com desprezo, para as lidade, era um transgressor da Lei. Era
pessoas que não são boas. idólatra! Ele estava tentando adorar a
De modo característico, Jesus indica Deus e a “mamom” ao mesmo tempo.
ao jovem rico os mandamentos. A res­ Mas quando enfrentou o teste, tomou-se
posta da pergunta acerca da vida eterna óbvio que as suas propriedades eram o
encontra-se nas Escrituras, que o rico seu verdadeiro deus. Jesus requereu que
aceita e está seguindo ostensivamente ele se desfizesse de suas possessões e con­
(cf. 10:26; 16:29,31). Notamos que Jesus fiasse somente em Deus, para o supri­
não menciona os mandamentos do De­ mento de necessidades futuras. Ele pre­
cálogo que se relacionam com a relação cisava cessar com seus esforços para
do homem com Deus. Pelo contrário, ele amealhar tesouros na terra, e começar a
começa com o sétimo mandamento, reci­ ajuntar tesouros celestiais. Para um ho­
tando uma lista (todos os cinco últimos), mem, a riqueza é o seu ídolo; para outro,
que o moço rico também conhece de cor. pode ser a aceitação social, poder político
Jesus está sabendo que ele pode respon­ ou qualquer um a de inúmeras coisas. Em
der, como de fato faz: Tudo isso tenho cada caso, a lealdade a Deus exige que
guardado desde a minha juventude, a nos desfaçamos de tais deuses, não im­
saber, desde que se tom ara filho da porta quão doloroso possa ser o processo.
Torah, com cerca de doze anos de idade Agora vemos o que significa receber o
(cf. Fil. 3:6). reino como criança. O destino da criança
Lucas não tem a pergunta que encon­ está nas mãos de seu pai. Se ela morre de
tramos em Mateus 19:20: “Que me falta fome ou é bem alimentada, depende de
ainda?” Mas isso apenas torna expli­ como o seu pai supre as suas necessida­
cito o que aqui está implícito. A pressu­ des, visto que ela normalmente não tem
posição natural é que Jesus teria conti­ outros recursos. Da mesma forma, uma
nuado na mesma direção, e mencionado pessoa precisa confiar em Deus para
os primeiros mandamentos, ao que o todas as coisas, dependendo completa­
jovem rico também teria respondido da mente do seu cuidado e amor.
mesma forma. Pelo contrário, Jesus de­ A tendência de se confiar em “ ma­
monstra que ele havia perdido de vista o mom” é dominante. Nenhum esforço
verdadeiro significado desses manda­ deve ser feito para diminuir a força da
mentos. E o faz, apresentando-lhe uma analogia do verso 25. É mais fácil um ca­
escolha inequivocamente clara, mas melo passar pelo fundo de uma agulha de
imensamente difícil. Requer que ele faça costurar do que um rico entrar no reino
apenas uma coisa, a saber: vender todas — em outras palavras, é uma clara im­
as suas propriedades, repartir o seu pro­ possibilidade.
duto pelos pobres, e seguir a Jesus. Quem pode, então ser salvo? é uma
Ao invés de receber alegremente a res­ interrogação lógica, se a entrada para o
posta para a sua pergunta religiosa, tão reino é tão pequena. Alguém pode fazê-
candente, e que tanto o havia preocupa­ lo, atravessando o “fundo da agulha” ?
do, esse príncipe encheu-se. de tristeza. Mas as perspectivas não são tão desfa­
Pedir-lhe que desse um décimo ou até a voráveis como os discípulos supunham.
metade seria aceitável, mas dar toda uma É impossível o homem poder negociar a
enorme fortuna e se tornar paupérrimo, entrada para o reino com seus próprios
inteiramente sem dinheiro, sem seguran­ esforços. Mas, o que está além da capa­
ça financeira, era mais do que ele podia cidade do homem de conseguir, está den­
suportar. tro das possibilidades de Deus de dar.
Em qualquer caso, a salvação é um mila­ triunfo do Messias ocorreria em Jerusa­
gre executado pela graça de Deus, e não lém. Apesar de eles acharem as palavras
pelo poder do homem. de Jesus inadmissíveis, e por isso incom­
Pedro fala em nome dos discípulos, preensíveis, ele repete, na terceira pala­
quando afirma que eles cumpriram os vra acerca da paixão, que Jerusalém seria
requisitos estabelecidos por Jesus para o lugar de rejeição e morte.
jovem rico. Lucas grafa deixamos tudo, Os discípulos partilham, com outras
como Marcos (10:28). Outras versões pessoas, de uma básica falta de com­
grafam em Lucas “ deixamos nossos la­ preensão das Escrituras. Os profetas es­
res” . A resposta de Jesus é uma certeza creveram que o sofrimento é um prelúdio
renovada de que ninguém escolhe em vão essencial para a glória, e o que eles
o reino de Deus em preferência a outras escreveram se cumprirá. Nos profetas,
lealdades que com ele competem. Há pe­ não há nenhum relato minucioso de uma
quenas diferenças na lista, feita por Lu­ morte como a descrita nos versículos 32 e
cas, dessas lealdades, e a lista encontra­ 33, nem há uma predição de que haverá
da em Marcos 10:29. Ele apresenta mu­ uma ressurreição como a descrita no ver­
lher, combina “irmãos” e “irmãs” na sículo 33. Portanto, como poderia ser
palavra irmãos, “mãe” e “pai” na pala­ interpretada a experiência de Jesus como
vra pais, e omite “campos” . cumprimento das coisas que pelos profe­
As recompensas da lealdade inflexível tas foram escritas? A resposta é que os
são incomensuráveis, tanto na era pre­ profetas falam de duas figuras que de­
sente como no mundo por vir. O proble­ sempenharão um papel no drama da
ma é que a maioria das pessoas prefere os redenção. Uma é o Servo Sofredor de
valores mais tangíveis, materiais, que Isaías; a outra, o Filho do homem de
provêm dos tesouros e relações desta era. Daniel, juntamente com o Rei-Messias
Depreciam os valores que se originam do dos Salmos e de outras passagens. Na
serviço a Deus e dos novos relacionamen­ experiência de Jesus, essas figuras se
tos do reino (veja a parte de Marcos fundem e se tornam uma Pessoa. O Servo
10:30, que Lucas omite). de Deus deve sofrer; isto se iguala à cruz.
10. A Aproximação de Jerusalém Ele deve reinar em glória; isto se iguala à
(18:31-19:27) ressurreição, ascensão e Parousia. Esta é
a maneira pela qual Jesus cumpriria o
1) A Terceira Palavra Acerca da Paixão que os profetas declararam a respeito do
(18:31-34) sofrimento e glória do Servo de Deus, o
31 T o m a n d o J e s u s co n sig o os doze, d isse- Filho do homem.
lh e s : E is q u e su b im o s a J e r u s a lé m e se Os conterrâneos de Jesus desempenha­
c u m p r ir á no F ilh o do h o m e m tu d o o q u e riam um papel decisivo no drama que se
p elo s p ro fe ta s fo i e s c r ito ; 32 p o is s e r á e n ­
tr e g u e a o s g e n tio s, e e s c a rn e c id o , in ju ria d o
aproximava, ao entregá-lo aos represen­
e c u sp id o ; 33 e d ep o is de o a ç o ita re m , o tantes gentios de Roma, especificamente
m a t a r ã o ; e a o te r c e ir o d ia re s s u r g ir á . Pilatos e os soldados que iriam crucifi­
34 M a s e le s n ã o e n te n d e ra m n a d a d is so ; car. Os judeus conspiravam para levá-lo
e s s a s p a la v r a s lh e s e r a m o b s c u ra s , e n ã o à morte; os gentios a executariam. Mas
p e rc e b ia m o q u e se lh e s d iz ia .
Deus, e não o homem, tem a última
Agora os acontecimentos fatais que palavra: o Filho do homem ia ressurgir.
estavam para ter lugar na capital judai­ Os discípulos não entendiam a relação
ca, aproximavam-se rapidamente. Mais entre sofrimento e glória. Isto eles com­
uma vez os discípulos são lembrados de preenderiam apenas à luz dos aconteci­
qual era o seu destino, e se defrontam mentos que estavam imediatamente à
com um a explicação do que isso signifi­ sua frente. Então eles veriam que preci­
cava. Eles têm a idéia de que o glorioso savam palmilhar a mesma estrada. Para
eles, o sofrimento também seria um pre­ antes de sua entrada em Jerusalém. Ali
lúdio necessário para a glória (como na Jesus se apresentaria como Messias, mas
experiência de Estêvão, At. 7:54-8:la). em termos que não se coadunavam com
2) Cura de um Cego (18:35-43) as aspirações nacionalistas de muitos dos
seus contemporâneos.
35 O ra , q u a n d o e le ia ch e g a n d o a J e rlc ó ,
e s ta v a u m cego s e n ta d o ju n to d o c a m in h o ,
Da mesma forma como o publicano no
m en d ig an d o . 36 E s te , p o is, o u vindo p a s s a r a Templo, o pobre cego só conseguiu cla­
m u ltid ão , p e rg u n to u q u e e r a aq u ilo . 37 D is­ mar por misericórdia, por compaixão.
se ra m -lh e q u e J e s u s , o n a z a re n o , ia p a s ­ Ele não apresentou nenhuma reivindica­
san d o . 38 E n tã o e le se p ô s a c la m a r , d iz e n ­ ção a Deus, baseado em suas próprias
do : J e s u s , F ilh o d e D a v i, te m c o m p a ix ã o de
m im ! 39 E os q u e ia m à fr e n te re p re e n d ia m - realizações. Seria a repreensão, infligi­
no, p a r a q u e se c a la s s e ; e le , p o ré m , c la m a ­ da ao cego, uma expressão da mesma
v a a in d a m a is : F ilh o d e D a v i, te m c o m p a i­ atitude demonstrada para com as crian­
x ão d e m im l 40 P a r o u , p o is, J e s u s , e m a n ­ ças, pelos discípulos (18:15)? Ele tam ­
dou q u e lho tro u x e s s e m . T en d o e le ch eg a d o ,
p e rg u n to u -lh e : 41 Q ue q u e re s q u e te fa ç a ? bém era um dos pequeninos do mundo,
R esp o n d e u e l e : S en h o r, q u e e u v e ja . 42 D is ­ insignificante demais para merecer aten­
se-lhe J e s u s : V ê; a tu a fé te sa lv o u . 43 I m e ­ ção durante essas horas cruciais que pre­
d ia ta m e n te re c u p e r o u a v is ta , e o foi se g u in ­ cediam a entrada fatal de Jesus em Jeru­
do, g lo rific a n d o a D e u s. E todo o povo, v e n ­ salém. Por outro lado, a ordem para que
do isso , d a v a lo u v o re s a D eu s.
ele se silenciasse pode indicar que o tí­
Em Marcos, o cego é curado quando tulo Filho de Davi tivesse perigosas co­
Jesus e seus companheiros estão saindo notações revolucionárias e políticas. Ele
de Jericó (10:46 e ss.), enquanto, em facilmente podia ser mal interpretado,
Lucas, a cura tem lugar quando eles naqueles dias tensos de paixões inflama­
entram na cidade. Marcos o identifica das.
como Bartimeu, filho de Timeu, uma Seja qual for o caso, Jesus atendeu aos
tautologia que é omitida em Lucas. A en­ clamores do pobre homem, da mesma
trada de uma cidade era localização fa­ forma como sempre dera atenção aos pe­
vorável para que um mendigo cego fizes­ queninos. E requer que o mendigo defina
se o seu apelo aos viandantes que iam e exatamente os seus desejos. Em sua res­
vinham. O som de um grupo incomu- posta, notamos mais uma vez o uso de
mente grande, passando pela estrada, Senhor, importante título de Jesus usado
suscitou a curiosidade do cego. Visto que depois de sua ressurreição e tão freqüen­
Jesus (Joshua) era nome comum entre os temente encontrado em Lucas. O pedido
judeus, foi necessário identificá-lo com desse homem se baseia numa fé implí­
referência à sua cidade natal, Nazaré. cita na autoridade de Jesus sobre os
Aparentemente, a fama de Jesus era poderes que o tornaram cego — uma con­
tal que o cego imediatamente reconheceu fiança que foi justificada na cura que se
quem era ele, e que aquele era o seu seguiu. A fé, de que um grão pode desar­
momento particular de oportunidade. Fi­ raigar árvores (17:6), o salvou. O verbo,
lho de Davi é um título messiânico que ambíguo em grego, pode referir-se à cura
ele usou, e que, provavelmente, tinha um física, tanto quanto à salvação. A fé não
significado especial nessa ocasião. O, ce­ é o poder que cura, mas foi a recepti­
go reconheceu Jesus como o descendente vidade que fez com que o poder de Deus
de Davi que os judeus esperavam, e que fosse usado para resolver os seus pro­
devia trazer fim à humilhação nacional, blemas. Esta referência à fé desse cego,
libertando Jerusalém e assumindo o cetro bem como ao seu subseqüente ato de
de seu governante maior. O reconheci­ discipulado (ele foi seguindo Jesus) indi­
mento declarado pelo cego, de que Jesus ca que ele foi salvo de cegueira tanto
era o esperado Messias, aconteceu pouco física como espiritual. Tanto o cego cura­
do como o povo reconheceram a cura numerosos projetos de construções na
como um ato de Deus; que é, aliás, a cidade, durante esse período, seguiam o
correta interpretação de acontecimentos padrão da arquitetura romana.
como este. Zaqueu, portanto, ocupava um posto
Este é o último dos milagres de cura importante, que lhe devia render genero­
realizados por Jesus, e, no material si­ sas somas. Chefe de publicanos era cargo
nóptico, ele é considerado como sinal a respeito do qual nada se sabe, mas
messiânico. Ã luz do programa messiâ­ podemos presumir que ele era o cabeça
nico, abrangido por Jesus no começo do de um distrito, com vários subordinados,
seu ministério, ele foi um sinal especial­ coletores que eram responsáveis perante
mente adequado para acontecer perto do ele. Os impostos pessoais e sobre as
seu fim (cf. 4:18,19). propriedades eram coletados diretamen­
te pelo governo romano; mas os impostos
3) A Conversão de Zaqueu (19:1-10) alfandegários, sobre os bens, eram arren­
1 T en d o J e s u s e n tr a d o e m J e r ic ó , ia a t r a ­ dados, sistema que dava campo para
v e ss a n d o a c id a d e . 2 H a v ia a li u m h o m e m ilimitadas oportunidades de exploração.
c h a m a d o Z a q u eu , o q u a l e r a c h e fe d e publi- A despeito do fato de que o seu nome
ca n o s, e e r a ric o . 3 E s te p r o c u r a v a v e r significa puro ou reto, Zaqueu, provavel­
q u e m e r a J e s u s , e n ã o p o d ia , p o r c a u s a d a
m u ltid ã o , p o rq u e e r a d e p e q u e n a e s ta tu r a . mente, era culpado dos males comuns à
4 E , c o rre n d o a d ia n te , su b iu a u m sicô m o ro , sua profissão.
a fim de vê-lo, p o rq u e h a v ia d e p a s s a r p o r As circunstâncias que levaram ao no­
a li. 3 Q uando J e s u s c h eg o u à q u e le lu g a r , tável encontro dele com Jesus são descri­
olhou p a r a c im a e d is se -lh e : Z a q u eu , d esc e
d e p r e s s a ; p o rq u e im p o rta q u e e u fiq u e h o je tas. A multidão era enorme, e, sem dúvi­
e m tu a c a s a . 6 D e sc e u , po is, a to d a a p re s s a , da, ficava maior à medida que outros
e o re c e b e u c o m a le g r ia . 7 Ao v e re m isso , peregrinos, que iam celebrar a Páscoa
to dos m u r m u r a v a m , d izen d o : E n tro u p a r a em Jerusalém, eram atraídos a ela. Za­
s e r h ó sp e d e d e u m h o m e m p e c a d o r. 8 Z a ­
q u eu , p o ré m , le v a n ta n d o -s e , d is se a o S e­
queu era pequeno demais para ver por
n h o r: E is a q u i, S en h o r, do u a o s p o b re s m e ­ sobre a multidão, que se comprimia tan­
ta d e d o s m e u s b e n s ; e , se e m a lg u m a c o is a to ao redor de Jesus que ele não pôde
te n h o d e fra u d a d o a lg u é m , e u lh o re s titu o penetrar nela. Ninguém estava disposto a
q u a d ru p lic a d o . 9 D isse-lh e J e s u s : H o je veio abrir caminho para um odiado coletor de
a sa lv a ç ã o a e s t a c a s a , p o rq u a n to ta m b é m
e s te é filh o de A b ra ã o . 10 P o rq u e o F ilh o do impostos. A fim de ser capaz de ver
h o m e m v eio b u s c a r e s a l v a r o q u e se h a v ia Jesus, o baixinho corre pela avenida prin­
p e rd id o . cipal da cidade, até que passa à frente da
multidão. Ele sobe em um sicômoro, de
As referências ao séquito que acom­ forma a conseguir um bom ponto de
panhava Jesus no episódio anterior (18: observação, pois se tivesse ficado no
35-43) preparam o palco para a narra­ chão, podia ter sido empurrado para fora
tiva do encontro de Jesus com Zaqueu, do caminho pela pressão da turba. O si­
encontrado apenas em Lucas. Jericó era cômoro, árvore que produzia um tipo de
uma cidade importante, na fronteira da figo usado como comida pelos pobres,
Judéia, cerca de vinte e cinco quilômetros era fácil de nele se trepar por causa dos
a nordeste de Jerusalém. Todo o comér­ seus ramos grandes e baixos.
cio do leste passava por essa cidade; mas Dadas as circunstâncias, o fato de
ela era importante também por ser cen­ Jesus ter aceitado o desprezado Zaqueu e
tro de uma região agrícola fértil, notável se ter identificado com ele constituiu em
especialmente pelas suas plantações de um ato ousado e público. Nenhuma ou­
palmeiras e de bálsamo. Devido ao seu tra história dá evidências mais vívidas da
clima mais quente, os Herodes usavam notável liberdade exercida por Jesus em
Jericó como capital de inverno. Os seus sua associação com as pessoas. Onde
o bem-estar de um homem estivesse em ta pelo roubo de uma ovelha: restituição
jogo, ele ignorava todos os tabus e pro­ quadruplicada (Êx. 22:1; II Sam. 12:6).
tocolos sociais. Ele não apenas reconhece A resposta de Jesus é mais apropriada­
e fala com Zaqueu, mas decide fazer da mente dirigida à atitude dos críticos do
casa de um homem impuro o seu pouso, que à declaração de Zaqueu. O signifi­
desta forma chocando todos os religiosos cado da entrada de Jesus em sua casa é
da multidão. revelado nas palavras veio a salvação a
A reação ansiosa e alegre de Zaqueu esta casa. Da mesma forma como os atos
aos acontecimentos totalmente inespera­ poderosos de Jesus eram demonstrações
dos é compreensível. Nenhum judeu que concretas do poder de Deus, também os
se respeitasse gostaria de ter algo a ver seus atos de aceitação e graça eram ex­
com ele. Ninguém o saudava ou tinha pressões concretas da salvação de Deus.
com ele a mais comesinha cortesia; quan­ A cláusula porquanto também este é
to mais oferecer-lhe calor e amizade! filho de Abraão não faz da raça a base
E, então, ali vem aquele homem, que lhe para a salvação de Zaqueu. A explicação
fala sem censuras, declarando, na frente dessa observação é o verso 10. Embora
de todo o povo, que ia para a casa do esse publicano fosse um filho de Abraão,
publicano. era um pária desprezado pelo seu próprio
A aceitação do “proscrito” acarreta povo — o tipo de pessoa que Jesus viera
identificação com ele, ao ponto de que o buscar. Os perdidos são os coletores de
que o aceita se torna alvo da hostilidade e impostos e prostitutas. Eram também as
do tratamento brutal que lhe é dispensa­ multidões que não satisfaziam às exigên­
do: todos murmuravam. O fato de Jesus cias religiosas das tradições. Esses eram
ter aceito Zaqueu era incondicional. Ele excluídos do círculo interior da comuni­
não disse: “ Se você abandonar o seu dade religiosa, objetos de zombaria e
emprego e parar de fazer as coisas que depreciação. Assim como o pastor vai
fazem com que seja difícil eu me associar buscar a ovelha perdida, Jesus também
com você, irei à sua casa.” busca esses perdidos e negligenciados
Sob o impacto da aceitação incondicio­ filhos de Abraão. É com tais pessoas que
nal de sua pessoa por Jesus, um a trans­ ele lança os alicerces do novo Israel.
formação é operada na vida de Zaqueu.
O sinal dessa transformação é uma mu­ 4) As Dez Minas (19:11-27)
dança radical na sua atitude para com a 11 O uvindo e le s isso , p ro s s e g u iu J e s u s , e
co ntou u m a p a rá b o la , v is to e s t a r e le p e rto
riqueza. Ela não é mais o seu deus. d e J e r u s a lé m , e p e n s a r e m e le s q u e o re in o
A metade de sua fortuna seria dada aos d e D e u s se h a v ia d e m a n if e s ta r im e d ia ta ­
pobres (cf. 12:33). O resto seria usado m e n te . 12 D isse , p o is : C e rto h o m e m n o b re
para corrigir os erros que ele havia come­ p a rtiu p a r a u m a t e r r a lo n g ín q u a , a fim d e
tido. Se... tenho defraudado alguém não to m a r p o sse d e u m re in o e d ep o is v o lta r.
13 E , c h a m a n d o d ez s e rv o s s e u s , d eu -lh es
dá a entender a possível inocência de d ez m in a s , e d is se -lh e s: N e g o c ia i a té q u e
Zaqueu, quanto a esses atos errados. e u v e n h a . 14 M a s os s e u s c o n c id a d ã o s odia-
O significado é: “Naqueles casos em que v am -n o , e e n v ia r a m a p ó s e le u m a e m b a i­
defraudei...” Quando uma pessoa, que x a d a , d iz e n d o : N ã o q u e re m o s q u e e s te h o ­
m e m re in e so b re n ó s. 15 E su c e d e u Que, ao
adquiriu propriedades de outrem injusta­ v o lta r e le , d e p o is d e t e r to m a d o p o sse do
mente, tomava a iniciativa de reconhecer re in o , m a n d o u c h a m a r a q u e le s s e rv o s a
e confessar a fraude, era-lhe requerido q u e m e n tr e g a r a o d in h e iro , a fim d e s a b e r
que ele devolvesse a propriedade mais com o c a d a u m h a v ia n e g o c ia d o . 16 A p re ­
um quinto do seu valor, como compen­ sen to u -se, p o is, o p rim e iro , e d is s e : S en h o r,
a tu a m in a re n d e u d ez m in a s . 17 R esp o n d eu -
sação (Lev. 6:5; Núm. 5:7). Mas Zaqueu lh e o s e n h o r: B e m e s tá , se rv o b o m ! p o rq u e
vai muito além disso, em uma decisão n o m ín im o fo ste fiel, s o b re d ez c id a d e s te r á s
voluntária de dar a compensação impos­ a u to rid a d e . 18 V eio o se g u n d o , d iz e n d o :
S en h o r, a tu a m in a re n d e u cin co m in a s. contudo, muitas diferenças. A parábola
19 A e s te ta m b é m re s p o n d e u : Sê tu ta m b é m de Lucas é mais complexa e desajeitada,
so b re cin c o c id a d e s. 20 E v eio o u tro , d iz e n ­
do : S en h o r, e is a q u i a tu a m in a , q u e g u a rd e i em grande parte, porque ela reúne dois
n u m le n ç o ; 21 p o is tin h a m e d o d e ti, p o rq u e temas: a responsabilidade dos discípulos
és h o m e m s e v e ro ; to m a s o q u e n ã o p u s e s te , no período anterior à Parousia, e as te­
e c e ifa s o q ue n ã o s e m e a s te . 22 D isse-lh e o míveis conseqüências da rejeição de Je­
S en h o r: S erv o m a u ! p e la tu a b o c a te ju l ­
g a re i ; s a b ia s q u e e u so u h o m e m se v e ro , que
sus, levada a efeito pelos judeus. Há mui­
to m o o q u e n ão p u s, e ceifo o q u e n ã o s e ­ to tempo os eruditos têm sugerido que, a
m e e i; 23 p o r q u e , p o is, n ã o p u s e s te o m e u uma parábola acerca da responsabilida­
d in h e iro no b a n c o ? e n tã o , v in d o e u , o te r ia de dos servos para com um senhor au­
r e tira d o com os ju r o s . 24 E d is se a o s q u e sente, foi fundida uma alegoria a respeito
e s ta v a m a l i : T ira i-lh e a m in a , e d a i-a ao q u e
te m a s dez m in a s . 25 R e sp o n d e ra m -lh e e l e s : de um rei que foi rejeitado pelos seus
S enhor, e le te m d ez m in a s . 26 P o is eu vos súditos.
digo qu e a todo o q u e te m , d a r-se -lh e -á ; m a s Esta conjectura não é exigida, porque
ao q u e n ã o te m , a té a q u ilo q u e te m ser-Ih e -á os dois temas da história estão intima­
tira d o . 27 Q u an to , p o ré m , à q u e le s m e u s in i­ mente relacionados. Jerusalém não era a
m ig o s q u e n ã o q u is e ra m q u e e u re in a s s e
so b re e le s , tra z e i-o s a q u i, e m a ta i-o s d ia n te cidade em que o reino seria inaugurado,
de m im . mas o lugar em que ele seria rejeitado.
Como resultado dessa rejeição, o des­
à medida que eles se aproximavam tino de Jerusalém, seria selado. Ela seria
de Jerusalém, as expectativas dos discí­ destruída. Mas essa destruição, que seria
pulos de que o reino seria manifesto uma conseqüência do fato de que essa
depois que eles ali chegassem continuava cidade deixara de aceitar o seu rei, não
a aumentar em intensidade. Eles pre­ devia ser associada com os acontecimen­
viam a Parousia, em lugar da crucifica­ tos do fim. Esta é uma significativa ca­
ção, indicando que ainda não haviam deia de pensamentos no terceiro Evange­
percebido o verdadeiro curso da história lho.
redentora. Eles tinham uma “concepção A Parábola das Minas provavelmente
errada tanto da cristologia como da es- incorpora reminiscências históricas das
catologia” (Conzelmann, p. 74). O pe­ experiências de Arquelau. Embora men­
dido dos filhos de Zebedeu, omitido por cionado, no testamento de Herodes, co­
Lucas, é mais um a evidência de que os mo herdeiro da parte mais importante do
discípulos associavam a sua chegada a seu reino e do titulo de rei, Arquelau
Jerusalém com a vinda do reino (Mar. sofreu a oposição de uma embaixada
10:35-45). No Evangelho de Lucas, o judia em Roma. O imperador confirmou
fato e o propósito desse ínterim entre o o testamento de Herodes, mas nomeou-o
ministério de Jesus e a Parousia são tetrarca. Arquelau voltou para dominar
enfatizados como um a correção das ex­ um território rebelde, que foi capaz de
pectativas de uma Parousia imediata ti­ governar durante apenas dez anos.
das pelos cristãos contemporâneos. Nesta Bem pode ser, portanto, que o padrão
história, três pontos a respeito desse as­ para o nobre seja Arquelau, e a terra
sunto podem ser ressaltados: (1) Haverá longínqua seja Roma. Antes de sua par­
um ínterim; (2) esse ínterim será um tida, o nobre dá uma mina, aproximada­
período de provas para os discípulos; mente vinte a vinte e cinco dólares, a
(3) haverá uma ocasião de acerto de cada um dos seus dez servos. Eles deviam
contas, isto é, uma Parousia. provar a sua devoção e capacidade, com
A parábola de Lucas é semelhante à o uso dessa soma (veja 16:10) na ausência
Parábola dos Talentos, contida em Ma­ do seu senhor. Porque ele viaja para um
teus, à qual também é dada um a apli­ país distante, um período longo e inde­
cação escatológica (Mat. 25:14-30). Há, finido se passa antes que ele volte.
O segundo grupo de pessoas agora ro estaria igualmente a salvo com os ban­
entra em cena. São os seus concidadãos, queiros, como estava em seu lenço. Além
que rejeitam o governo do nobre. Neles disso, ele teria recebido os juros, isto é,
temos uma figura do povo judeu, que ceifado o que o seu proprietário não ha­
rejeita Jesus como seu Rei. via semeado.
Ao voltar, o nobre primeiro tem um Devido ao seu fracasso, esse servo é
ajuste de contas com os seus servos. So­ privado do pouco que lhe fora confiado.
mos informados de três apenas, que são O versículo 25 pode ser considerado co­
representantes de todo o grupo. O pri­ mo uma exclamação dos que ouvem Je­
meiro teve bastante êxito, mas, na sua sus contar a história, e que protestam
modesta resposta, ele não se ufana de sua involuntariamente contra a severa deci­
capacidade ou engenhosidade. £ a mina são do nobre. Ou ele pode fazer parte da
de seu senhor que rendeu mais dez. Não história — um a exclamação dos mem­
obstante, o louvor do nobre ao seu servo é bros da corte. Há também a possibili­
efusivo. Porque ele foi aprovado no mí­ dade de que este versículo seja uma in­
nimo, ele agora será capaz de enfrentar terpolação, colocada no texto, porque ele
uma grande responsabilidade no governo é omitido por importantes testemunhas
do nobre. Talvez o segundo possuísse textuais. A decisão do senhor está de
menos talento ou fosse menos industrio­ acordo com um princípio básico que
so, mas ele também tivera sucesso. Ele pressupõe a responsabilidade de cada
foi capaz de apresentar cinco outras mi­ pessoa pelas capacidades e responsabi­
nas ao seu senhor. A ele também ê dada lidades que lhe são dadas. O seu uso fiel
uma participação proporcional nas res­ abrirá maiores possibilidades de serviço e
ponsabilidades do reino. confiança. Mas as pessoas que não co­
Em contraste com os servos anteriores, locam os dons que têm em ação, para os
o terceiro teve que fazer um discurso usarem apropriadamente, os perdem.
avantajado para justificar o seu fracasso Agora a parábola muda, para apresen­
em comparar-se com as realizações dos tar a decisão do nobre a respeito dos seus
outros. Ele pôde apenas dizer que guar­ súditos rebeldes. O seu castigo é seme­
dou fiel e cuidadosamente o que o seu lhante à terrível sorte, destinada aos re­
senhor lhe dera. Ele era semelhante aos beldes, por monarcas orientais ofendi­
legalistas, mestres que levantaram uma dos. Esta é uma referência alegórica à
cerca ao redor da Lei, guardando-a cui­ destruição de Jerusalém, que é vista co­
dadosamente contra qualquer invasão. mo terrível conseqüência da rejeição que
Mas eles também impediram decisiva­ Israel fez o seu Rei sofrer. Um terrível
mente que os dons de Deus dessem o morticínio de seus habitantes seguiu-se à
pretendido fruto no mundo. O problema queda da capital, diante das legiões, sem
desse homem era o conceito que ele tinha misericórdia, comandadas por Tito.
de seu senhor, a quem retrata como ho­
mem duro e injusto. Se o servo de Deus VI. O Ministério em Jerusalém
tiver conceito semelhante do seu Senhor, (19:28-23:56)
ele também ficará excessivamente teme­
roso de violar os “não faça” , e não terá a 1. Jesus Apresenta as Suas Reivindica­
liberdade de se empenhar em uma vida ções Messiânicas (19:28-48)
de serviço alegre e criativo. 1) A Sua Aproximação de Jerusalém
O senhor indica a falta de lógica na (19:28-40)
defesa do seu servo. Se o conceito que ele
28 T en d o J e s u s a s s im fa la d o , ia c a m i­
tinha a respeito de seu senhor era o que n h a n d o a d ia n te d e le s , su b in d o p a r a J e r u ­
ele descrevera, a inteligência devia ter sa lé m . 29 Ao a p ro x im a r -s e d e B e tfa g é e de
ditado um outro curso de ação. O dinhei­ B e tâ n ia , ju n to d o m o n te q u e se c h a m a d a s
O liv e ira s, en v io u do is d o s d isc íp u lo s, 30 d i­ nome. Só um animal que jamais houves­
zen d o -lh es: Id e à a ld e ia q u e e s tá d e fro n te , e se sido usado como besta de carga era
a í, a o e n tr a r , a c h a re is p re s o u m ju m e n tin h o
e m q u e n in g u é m ja m a is m o n to u ; d e s p r e n ­ considerado apropriado para objetivos
dei-o e tra z e i-o . 31 Se a lg u é m v o s p e r g u n ta r : sagrados (Núm. 19:2; I Sam. 6:7). Um
P o r q u e o d e s p re n d e is ? re s p o n d e re is a s s im : jumentinho sobre que ninguém jamais
O S e n h o r p r e c is a d e le . 32 P a r t ir a m , pois, os havia montado precisava ser usado para
q u e tin h a m sid o en v ia d o s, e a c h a r a m co n ­
fo rm e lh e s d is s e r a . 33 E n q u a n to d e s p re n ­
a apoteótica entrada do Rei de Israel na
d ia m o ju m e n tin h o , os se u s d o nos lh e s p e r ­ capital. Preparativos anteriores para con­
g u n ta r a m : P o r q u e d e s p re n d e is o ju m e n ti­ seguir o animal podem ter sido feitos poi
n ho? 34 R e s p o n d e ra m e le s : O S e n h o r p r e ­ Jesus. Mas a passagem também pode dar
c is a d e le . 35 T ro u x e ra m -n o , p o is, a J e s u s a entender conhecimento sobrenatural,
e, la n ç a n d o os se u s m a n to s so b re o ju m e n ­
tinho, fiz e ra m q u e J e s u s m o n ta s s e . 36 E , como de fato é indicado no verso 32. A ex­
e n q u a n to ele ia p a s s a n d o , o u tro s e s te n d ia m periência dos discípulos que procuravam
no c a m in h o os s e u s m a n to s . 37 Q u an d o j á ia o animal correspondeu exatamente ao
c h e g a n d o à d e s c id a do M on te d a s O liv e ira s, que eles esperavam, como resultado das
to d a a m u ltid ã o do s d iscíp u lo s, reg o zijan d o -
se , c o m eç o u a lo u v a r a D eu s e m a lt a voz,
instruções de Jesus. A sua resposta sim­
p o r to d o s os m ila g r e s q u e tin h a v isto , 38 ples, à interrogação dos donos, parece
d iz e n d o : B en d ito o B ei q u e v e m e m n o m e do tê-los satisfeito. Só em Marcos 11:3,
S e n h o r; p a z no c éu , e g ló ria n a s a ltu r a s . paralelo ao verso 31, encontramos o mes­
39 N isso , d is s e ra m -lh e a lg u n s d o s fa ris e u s mo uso da palavra Senhor, encontrada
d e n tre a m u ltid ã o : M e s tre , re p re e n d e os
te u s d iscíp u lo s. 40 Ao q u e e le re s p o n d e u : tão freqüentemente em Lucas.
D igo-vos q u e , se e s te s se c a la re m , a s p e d ra s Da mesma forma como os ministros de
c la m a rã o . Davi colocaram Salomão sobre a mula de
Somos agora levados para uma nova seu pai, para a sua procissão real (I Reis
fase das experiências de Jesus: os últimos 1:33), os discípulos agora colocam outro
dias, anteriores à sua crucificação. Para filho, um maior Filho de Davi, sobre um
o relato que faz, dos acontecimentos que jumentinho, para a sua entrada real em
ocorreram nesses últimos dias, Lucas de­ Jerusalém. Como em outra ocasião os
pende principalmente de Marcos. israelitas haviam pavimentado o cami­
Depois de se desenvencilhar das falsas nho do recém-ungido Jeú com suas pró­
esperanças levantadas pela peregrinação prias capas, e o haviam aclamado rei
a Jerusalém, Jesus reinicia a sua jornada, (II Reis 9:13), também estes israelitas
liderando a grande multidão de seguido­ cobrem o caminho do seu Rei, que eles
res em direção à cidade. Não importava a agora aclamam. Lucas omite a referência
direção de onde estivesse vindo, pensava- à colocação de ramos ao longo da estrada
se sempre que ele estava subindo para (Mar. 11:8; Mat. 21:8).
Jerusalém. Estar fora de Jerusalém era Tanto ele como Marcos omitem a cita­
sempre estar em nível mais baixo. Betfa- ção de Zacarias 9:9 (cf. Mat. 21:5):
gé,‘cuja exata localização é desconhe­ “Dizei à filha de Sião: Eis que aí te vem o
cida, ficava, provavelmente, a leste de teu Rei, manso, e montado em um ju ­
Betânia, aldeia que ficava cerca de dois mento, em um jumentinho, cria de ani­
quilômetros e meio a leste de Jerusalém. mal de carga.” Não obstante, ambos en­
De acordo com João, Betânia era o lar de tenderam que Jesus entrou em Jerusalém
Lázaro e suas irmãs, M arta e Maria de forma a cumprir esta profecia. Ao
(João 11:1). Na vizinhança dessas duas fazê-lo, Jesus apresentou as suas reivin­
aldeias, Jesus pára, até que os discípulos dicações a Israel: ele é o Rei-Messias de
possam procurar o jumentinho em que Israel. Mas ele o fez de um a forma que
completaria a sua viagem a Jerusalém. repudiava as ambições militaristas e na­
A aldeia em que o jumentinho devia cionalistas projetadas sobre o Messias.
ser encontrado não é mencionada por Tanto a sua humildade como a sua missão
de paz eram simbolizadas pelo animal errado como perigoso. Eles consideraram
sobre que ele, o Ungido de Deus, caval­ que era sua responsabilidade fazê-los pa­
gava. A descrição de Lucas acerca da rar. Porém, pelo contrário, Jesus re­
chegada de Jesus a Jerusalém difere da preendeu os fariseus. Tão apropriada era
dos paralelos, porque ele prepara o palco a aclamação dos seus seguidores que as
para o lamento sobre Jerusalém, que se pedras fariam ouvir o mesmo coro, se
encontra apenas no terceiro Evangelho. não houvesse vozes humanas para fazê-
Ele descreve a chegada da multidão ao lo. Ele deu a entender que Deus usaria
topo do Monte das Oliveiras, de onde pedras, antes de precisar recorrer aos
eles têm a primeira vista abrangente da fariseus (cf. 3:8)!
cidade de Jerusalém. Ali a multidão ir­
2) O Lamento de Jesus Sobre Jerusalém
rompe em louvores a Deus. Todos os
(19:41-44)
milagres eram aqueles atos poderosos
de Jesus, que revelavam, aos que ti­ 41 E , q u a n d o c h eg o u p e rto e v iu a c id a d e ,
ch o ro u s o b re e la , 42 d iz en d o : A h! se tu co­
nham percepção, o fato de que nele o n h e c e ss e s, a o m e n o s n e s te d ia , o q u e te
poder do reino estava em ação no mun­ p o d e ria tr a z e r a p a z ! m a s a g o r a isso e s tá
do. e n c o b e rto a o s te u s o lh o s. 43 P o rq u e d ia s
Os clamores da multidão contêm uma v irã o so b re ti e m q u e o s te u s in im ig o s te
c e r c a r ã o d e tr in c h e ir a s , e te s itia rã o , e te
parte de Salmos 118:26, que era cantado a p e r ta r ã o d e to d o s o s la d o s , 44 e te d e r r i­
quando os peregrinos entravam no Tem­ b a rã o , a ti e a o s te u s filh o s q u e d e n tro d e ti
plo, durante a Festa dos Tabernáculos. e s tiv e re m ; e n ã o d e ix a rã o e m ti p e d r a so b re
Ele é agora usado na procissão de coroa­ p e d ra , p o rq u e n ã o c o n h e c e ste o te m p o d a
ção do Rei messiânico, “aquele que vem” t u a v is ita ç ã o .
(veja 3:16). Usando o Rei que vem em Quando a multidão, que canta, chega
nome do Senhor, em vez de “o reino que ao cume da montanha, se depara com o
vem, o reino de nosso pai Davi” (Mar. primeiro vislumbre da cidade. O pano­
11:10), Lucas suaviza as possíveis impli­ rama da cidade faz com que Jesus se
cações revolucionárias da aclamação da conscientize repentina e fortemente da
plebe. A conclusão é semelhante ao cân­ tragédia que está para se abater sobre
tico do coro angelical que anunciara o ela. Chorou é um verbo forte, usado para
nascimento de Jesus (2:14). Paz no céu descrever os soluços de um coração par­
é a garantia do triunfo da paz no univer­ tido, em um funeral (v.g., 7:13,32;
so todo. Na obediente submissão de Je­ 8:52). A atitude de Jesus para com a
sus aos propósitos redentores de Deus cidade rebelde é muito diferente da do
está a semente do triunfo de Deus sobre cruel déspota para com os seus vassalos
as forças do mal e a desintegração do conforme retratado na parábola, no ver­
mundo. Em lugar de “hosana” , Lucas so 27.
registra glória (doxa), palavra de louvor Jerusalém, que significa “monte de
mais compreensível para os leitores gen­ paz” , estava trilhando um curso que
tios. Não há dúvida de que o povo com levaria a uma inevitável confrontação
que Jesus entrou em Jerusalém entendeu, com o poderio de Roma. Em vez de
pelo menos em parte, o significado de abraçar Jesus e a sua interpretação do
sua entrada, e o considerava o Messias. reino de Deus, os judeus tentariam fazer
Só em Lucas encontramos a objeção com que os seus desejos de um reino se
expressa pelos fariseus. O povo aclamava tomassem realidade através da força das
Jesus como Rei. Os fariseus persistiram armas. A porta da oportunidade se
em chamá-lo de mestre. Um entusiasmo abriu, mas também se fechou, com ca­
exagerado e politicamente volátil como racterísticas inflexivelmente definitivas.
esse, gerado no povo que cercava Jesus, Os olhos do povo, que não viam, também
era, do ponto de vista dos fariseus, tanto não percebiam que durante um curto in-
terregno eles tinham tido em seu meio o 47 E to d o s o s d ia s e n s in a v a n o te m p lo ;
único homem que lhes podia trazer a m a s os p rin c ip a is s a c e r d o te s , os e s c r ib a s , e
os p rin c ip a is do p o v o p r o c u r a v a m m a tá - lo ;
paz. 48 m a s n ã o a c h a v a m m e io d e o fa z e r ; p o r ­
Nos versículos 43 e 44 é feita uma pre­ q u e to d o o p o v o f ic a v a e n le v a d o a o ouvi-lo.
dição do cerco e destruição de Jerusalém.
Muitos eruditos presumem que esta pre­ Várias diferenças entre Marcos e Lu­
dição foi influenciada pelos acontecimen­ cas aparecem neste ponto (cf. Mar. 11:
tos, quando ocorreram, e que eles já ha­ 11-25). Em Lucas, a purificação do Tem­
viam acontecido quando Lucas foi escri­ plo se segue imediatamente ao relato da
to. Contudo, nada há, nesta predição, entrada triunfal. Não se faz menção ao
que faça com que esta conclusão seja fato de ele ter pousado em Betânia, à
necessária. Ela não é mais específica do figueira infrutífera, nem aos ensinamen­
que predições semelhantes, feitas pelos tos associados. E também a purificação
profetas, de que os babilônios iriam des­ do Templo, narrada por Lucas em ape­
truir Jerusalém. Pelo contrário, é uma nas vinte e cinco palavras, abrevia gran­
declaração genérica, baseada no conhe­ demente o relato de Marcos, feito em ses­
cimento das táticas militares da época, senta palavras.
por um lado, e um reconhecimento do Lucas não diz que Jesus entrou na ci­
grande poderio militar de Roma, por dade nessa vez (cf. M ar. 11:11,15; Mat.
outro. A rejeição de Jesus deveu-se, em 21:10). Faz-se referência apenas às suas
parte, a um a cega dedicação à espécie atividades no Templo. Um empreendi­
de nacionalismo messiânico que levava os mento comercial rendoso se havia desen­
judeus a um futuro choque com Roma, volvido ali, para suprir o que os adora­
que ocasionaria, inevitavelmente, a des­ dores requeriam para cumprir as suas
truição total de Jerusalém. obrigações religiosas. Animais e aves que
A única forma pela qual um a Jerusa­ satisfaziam os requisitos rituais eram
lém fanaticamente defendida podia ser vendidos no Pátio dos Gentios, para se­
invadida era mediante um longo cerco. rem usados nos sacrifícios. Viajantes que
A interrupção de suprimentos e o cerco vinham de outras terras podiam trocar o
por uma força superior, que podia espe­ seu dinheiro estrangeiro pelo meio-she-
rar pacientemente pelo inevitável, levaria quel de que os judeus do sexo masculino
a cidade, mais cedo ou mais tarde, a precisavam para pagar o imposto do
render-se. Te derribarão também pode Templo (Mar. 11:15b — omitido por
significar “lançar-te ao nível do solo” , Lucas). Visto que havia muita procura
isto é, destruir-te. Os habitantes de Jeru­ para essas mercadorias e serviços, espe­
salém são chamados de seus filhos (cf. cialmente durante as festas, as autorida­
23:28). A sina de Jerusalém é atribuída des do Templo estavam dirigindo o que
ao fato de ela não ter conseguido ver que, devia ser um a concessão muito lucrativa.
em Jesus, Deus havia visitado o seu povo, Lucas omite a cena um tanto violenta que
e lhes havia oferecido a salvação. O seu Marcos descreve. Mas os mercadores não
tempo (kairos) de visitação veio e se foi, ficaram intimidados pela força física de
sem que eles se tivessem apercebido apenas um homem. Pelo contrário, fo­
disso. ram o poder da sua ira justa e o impac­
to do seu senhorio sobre os homens,
3) A Purificação do Templo (19:45-48) ligados a um senso de culpa que eles
tinham, que ocasionou um a interrupção,
45 E n tã o , e n tr a n d o e le no te m p lo , c o m e ­ pelo menos temporária, em seu comér­
çou a e x p u ls a r os q u e a li v e n d ia m , 46 d iz e n ­
d o -lh es: E s tá e s c r ito : A m in h a c a s a s e r á cio. As palavras de Jesus se baseiam em
c a s a d e o r a ç ã o ; v ó s, p o ré m , a fiz e ste s covil uma combinação de Isaías 56:7 e Jere­
de sa lte a d o r e s . mias 7:11. O Templo não era mais a casa
de Deus; tomara-se, agora, um covil de e os e s c r ib a s , co m o s a n c iã o s , 2 e fa la ra m -
salteadores, onde o povo usava a religião lh e d e s te m o d o : D ize-nos, co m q u e a u to r i­
d a d e fa z e s tu e s ta s c o is a s ? O u, q u e m é o que
para exploração comercial. Todo esse te d e u e s ta a u to r id a d e ? 3 R esp o n d e u -lh es
episódio deve, provavelmente, ser consi­ e le : E u ta m b é m v o s f a r e i u m a p e rg u n ta ;
derado como cumprimento de Malaquias d izei-m e, p o is : 4 O b a tis m o de J o ã o e r a do
3:1: “De repente virá ao seu templo o c é u o u d o s h o m e n s ? S Ao q u e e le s a r r a z o a ­
v a m e n tr e s i: Se d is s e rm o s : d o c é u , ele
Senhor, a quem vós buscais.” d ir á : P o r q u e n ã o o c re s te s ? 6 M a s, se
Depois de limpar o Templo, Jesus o d is s e rm o s : D o s h o m e n s , to d o o povo nos
usa para os últimos dias de ensinamentos a p e d r e j a r á ; p o is e s tá c o n v en cid o d e q u e
(cf. Conzelmann, p. 75-78). Porém esta J o ã o e r a p ro fe ta . 7 R e s p o n d e ra m , p o is, que
ocupação é apenas um interlúdio tempo­ n ã o s a b ia m d o n d e e r a . 8 R ep lico u -lh es
J e s u s : N e m e u v o s d ig o co m q u e a u to r i­
rário, que não altera o fato de ele, ju n ­ d a d e fa ç o e s ta s c o is a s.
tamente com a cidade, estarem destina­
dos à destruição. Todos os dias ensinava Em Marcos a questão da autoridade
dá a entender um ministério mais longo, de Jesus se relaciona intimamente com as
em Jerusalém, do que o tempo a ele medidas que ele tomara para impedir as
atribuído na tradicional Semana da Pai­ atividades comerciais na área do Templo
xão. Isto também é insinuado na fonte de (Mar. 11:27-33). Pela interposição do
Lucas, onde Jesus diz: “Todos os dias comentário editorial do versículo 1, Lu­
estava convosco no templo, a ensinar” cas dá a entender que a pergunta foi
(Mar. 14:49). provocada pelo ensino de Jesus e por suas
0 ato drástico de Jesus, no Templo, foi atividades, pregando no Templo, isto é,
uma afronta direta para a família do pela maneira que ele tomara posse deste
sumo sacerdote e para os saduceus, cuja e se estava conduzindo como alguém que
base de poderio eram o Templo e o si­ tivesse sanção oficial para suas ativida­
nédrio. Principais sacerdotes, escribas, e des. Estas são descritas como ensinava e
principais do povo eram os vários grupos anunciava o evangelho. Esta última ex­
de que eram provindos os setenta mem­ pressão traduz um a palavra que significa
bros do sinédrio. O sumo sacerdote era o “proclamar as boas-novas” . Nesta fase
presidente dessa mais alta corte judaica, do seu ministério, Jesus não realiza mais
que era também o corpo executivo. Ago­ obras poderosas. Ele prefere apresentar-
ra, toda a estrutura de poder estava se aos habitantes de Jerusalém de manei­
unida, na determinação de destruir Je­ ras cjue falem do cumprimento das ex­
sus. Os líderes estavam convencidos de pectações messiânicas de Israel. Ele
que deviam apanhar a luva, que Jesus aproximara-se da cidade como Messias.
lhes havia lançado, como um desafio. E como Messias ele purificou o Templo
Não obstante, havia um obstáculo de e tomou posse dele. Agora, como Mes­
grandes proporções ao seu desígnio: Je­ sias, ele ensinava, ao povo, o verdadeiro
sus era extremamente popular. O povo já significado da Lei e dos profetas, e pro­
não era mais susceptível ao conselho dos clamava-lhe as boas-novas do reino vin­
seus líderes, por causa de sua atração a douro.
Jesus. Esta brecha, entre os líderes ju ­ Jesus é desafiado pelos que represen­
daicos e o povo, é um aspecto caracte­ tavam a mais elevada autoridade de Is­
rístico do Evangelho de Lucas. rael: os membros do sinédrio, composto
2. Controvérsias no Templo (20:1-21:4) de principais sacerdotes, escribas e an­
ciãos. Depois da deposição de Arquelau
1) Â Questão da Autoridade (20:1-8) (6 d.C.), a Judéia passou a fazer parte de
1 N u m d e s s e s d ia s , q u a n d o J e s u s e n s in a ­ uma província imperial, governada por
v a o povo no te m p lo , e a n u n c ia v a o e v a n ­ um governador. A essa época, o governa­
g elho, s o b r e v ie ra m os p rin c ip a is sa c e rd o te s dor, que era Pôncio Pilatos, era respon-
sável primordialmente pela manutenção João havia aparecido, conclamando os
da ordem e coleta dos impostos. Em judeus ao arrependimento e batizando-
grande parte, os negócios internos eram os, como preparação para a crise vindou­
deixados por conta da jurisdição do siné­ ra. A questão era: Que autoridade tinha
drio, composto de setenta e um (seten­ ele para fazer tais coisas? Do céu signi­
ta?) membros, inclusive o sumo sacerdo­ fica de Deus. Conseqüentemente, os lí­
te, que era o seu presidente oficial. Al­ deres judeus foram convocados para fa­
guns desses membros eram líderes re­ zer um julgamento público. Será que
ligiosos, ou seja, sacerdotes e escribas; João, que também agira sem nenhuma
outros eram importantes cidadãos judeus capacidade oficial, e sem sanção oficial,
ou anciãos. tinha um a autoridade mais alta, a saber,
Em seu ministério didático no Templo, a de Deus? Ou teria ele agido por de­
Jesus assumira o lugar dos rabis ordena­ cisão independente, e por isso inaceitá­
dos, sem o consentimento das autorida­ vel, humana?
des do Templo ou do sinédrio. Ele foi Agora a situação subitamente se inver­
capaz de desempenhar essas atividades te; os líderes religiosos, de quem se es­
temporariamente por causa do povo, que perava dessem respostas com autoridade,
o apoiava, e não queria saber das autori­ a tais inquirições, são colocados em uma
dades constituídas. Desta forma, a auto­ situação insustentável. Eles se agrupam,
ridade e o papel do sinédrio, na vida para discutir as três alternativas possí­
judaica, foi levado a um desafio especí­ veis. Eles podiam reconhecer que a auto­
fico. Os líderes não podiam permitir que ridade de João era divina — autoridade
esse desafio continuasse sem resposta, e de profeta, e não a sansão oficial da ins­
por isso levantaram-se para o ataque. tituição religiosa. Mas eles se haviam
Duas perguntas foram feitas, signifi­ recusado a dar ouvidos à mensagem dele
cando: (1) “Qual é a natureza de tua e a aceitar o seu batismo. Assim, uma
autoridade?” e (2) “Quem é a sua fon­ pergunta iria apenas levar a outra, bas­
te?” Estava claro que a fonte não era tante embaraçosa: Por que não o crestes?
oficial. Outra opção era negar a autoridade di­
Segundo o bom método rabínico, uma vina de João, o que com efeito eles ha­
pergunta era freqüentemente respondida viam feito, recusando-se a ouvir a sua
com outra pergunta. Jesus não responde­ conclamação ao arrependimento. Mas
ria à pergunta deles num vácuo. A sua isso os colocaria, em vez de Jesus, em
obra e ensinamentos precisavam ser co­ dificuldades com o povo. Lucas declara
locados no contexto da história redentora explicitamente que eles tiveram medo de
recente. Qualquer discussão a respeito de ser apedrejados (cf. Mar. 11:32). Segun­
sua autoridade precisava proceder de do a opinião pública, João era um pro­
uma consideração da autoridade de João. feta, o que acarretava a crença de que ele
O seu ministério foi relacionado com o de era “enviado de Deus” (João 1:6). Os
João, visto que ele aceitara o batismo líderes escolheram a terceira opção. Não
deste, e fora beneficiário do testemunho estando dispostos a enfrentar a pergunta,
de João. Ambos haviam proclamado o eles confessaram ignorância. Ao fazê-lo,
reino de Deus. A identidade da mensa­ eles fizeram com que se tornasse impos­
gem de ambos é mais clara em Marcos e sível qualquer discussão ulterior da per­
Mateus do que em Lucas, onde se faz gunta que eles próprios haviam feito.
mais um a distinção entre Jesus e João
2) Os Lavradores Maus (20:9-18)
(cf. M ar. 1:14; Mat. 3:1; 4:17). Uma
9 C o m eço u e n tã o a d iz e r a o p o v o e s ta
apreciação adequada do ministério de p a r á b o la : U m h o m e m p la n to u u m a v in h a ,
João inclui um reconhecimento da conti­ a rre n d o u -a a u n s la v r a d o re s , e a u se n to u -se
nuidade entre ele e Jesus. d o p a ís p o r m u ito te m p o , lo N o te m p o p ró-
p rio m a n d o u u m se rv o a o s la v r a d o r e s , p a r a tros. Em Lucas, só o filho é sacrificado.
qu e lh e d e ss e m d o s fru to s d a v in h a ; m a s os Desta forma, a parábola, em Lucas, vai
la v r a d o re s , esp a n c a n d o -o , m a n d a ra m -n o
e m b o ra d e m ã o s v a z ia s . 11 T o rn o u a m a n ­
crescendo em intensidade, até chegar a
d a r o u tro s e r v o ; m a s e le s e s p a n c a r a m t a m ­ um clímax. Cada servo é tratado mais
b é m a e s te e, a fro n ta n d o -o , m a n d a ra m -n o vergonhosamente do que o primeiro, le­
e m b o r a de m ã o s v a z ia s . 12 E m a n d o u a in d a vando a um quarto e final episódio, a
u m te r c e ir o ; m a s f e r ir a m ta m b é m a e s te e
la n ç a ra m -n o fo r a . 13 D isse e n tã o o se n h o r
saber, o assassinato do filho. Pelo uso de
d a v in h a : Q ue fa r e i? M a n d a re i o m e u filho um método literário, que é reminiscência
a m a d o ; a e le ta lv e z re s p e ita r ã o . 14 M a s da repetição, em Amós, da frase: “ Por
q u an d o os la v r a d o re s o v ir a m , a r r a z o a r a m três transgressões... e por quatro” (Am.
e n tr e si, d izen d o : E s te é o h e rd e iro ; m a te - 1:3, etc.), o palco está preparado para a
m o-lo, p a r a q u e a h e r a n ç a s e ja n o ss a . 15 E ,
lan ça n d o -o fo ra d a v in h a , o m a ta r a m . Q ue declaração de que a hora do julgamento
lh e s f a r á , p ois, o s e n h o r d a v in h a ? 16 V irá e chegara.
d e s tr u ir á e s s e s la v r a d o re s , e d a r á a v in h a
a o u tro s. O uvindo e le s isso , d is s e r a m : T a l Ào contrário das expectativas do pro­
n ã o a c o n te ç a ! 17 M a s J e s u s , o lh an d o p a r a prietário, os arrendatários não respeitam
e le s, d is s e : P o is , q u e q u e r d iz e r is to q u e e s t á o seu filho. Filho amado pode intencio­
e s c r ito : nalmente estar trazendo à mente do lei­
A p e d r a q u e os e d ific a d o re s r e je ita r a m ,
e s s a foi p o s ta co m o p e d r a a n g u la r ?
tor as palavras pronunciadas por ocasião
18 Todo o q u e c a ir s o b re e s t a p e d ra s e r á do batismo de Jesus (3:22). O detalhe
d e sp e d a ç a d o ; m a s a q u e le so b re q u e m e la que coloca a morte do filho fora da vinha
c a ir s e r á re d u z id o a pó. faz com que a história de Lucas corres­
ponda mais intimamente à experiência
Lucas segue a ordem de Marcos, ao
de Jesus propriamente dita, do que o
colocar a Parábola dos Lavradores maus
paralelo de Marcos. O pecado de Israel,
depois da discussão acerca da autoridade
ao rejeitar Jesus, é retratado como a
de Jesus (Mar. 12:1-12). Existe uma rela­
renúncia à soberania de Deus sobre Is­
ção entre esta parábola e o cântico da
rael. Os líderes religiosos, a quem Deus
vinha, de Isaías 5:1-7. Desde o tempo de
havia confiado o seu povo, traíram a sua
Isaías, a vinha era um símbolo de Israel.
mordomia e tentaram impedir Deus de
Lucas omite os detalhes, apresentados
entrar na sua própria vinha.
por Marcos, que descrevem a extensão
do investimento inicial, do proprietário, O proprietário da vinha destrói os ar­
em tempo e esforço (cf. Mar. 12:1). rendatários usurpadores, e dá o seu lugar
Parece que ele entregou a vinha a lavra­ a outros. O significado desta declaração
dores, ou seja, a arrendatários, como um não escapa aos ouvintes, que exclamam:
ato de confiança, porque logo em seguida Tal não aconteça! Este protesto, que não
empreendeu um a viagem que o levou a se encontra em Marcos, propicia uma
afastar-se, como acrescenta Lucas, por transição da história para a citação bí­
muito tempo. Quando chegou o tempo, blica (Sal. 118:22). Este salmo era, pro­
isto é, depois que os frutos da vinha, o vavelmente, um texto de prova messiâ­
vinho, havia sido preparado, ele enviou nico, freqüentemente usado pela igreja
servos para receber a renda da vinha, que primitiva. Ao invés de continuar a cita­
era parte de sua produção. ção, com a adição de Salmos 118:23, que
Esta parábola é mais uma alegoria do Marcos menciona, Lucas apresenta uma
que as outras que já consideramos. Os declaração, que é reminiscência de Da­
profetas maltratados são representados niel 2:34,44 e Isaías 8:14. A figura agora
pelos servos maltratados. Lucas mencio­ é mudada, e pensa-se no povo de Deus
na apenas três, enquanto Marcos (12:5) como um templo, em vez de uma vinha.
fala de outros “ muitos” . Em Marcos, o A pedra rejeitada é Jesus, que se tornou
terceiro servo é morto, bem como os ou­ pedra angular de um novo edifício. Mas
essa pedra também é um a pedra de juízo. verno romano. Ao invés de atacá-lo aber­
Ela não é susceptível de destruição pelos tamente, eles enviaram agentes, que se
seus inimigos. Todos os esforços contra a plantaram no meio do auditório a fim de
pedra são despedaçados. E, sobretudo, fazerem, a Jesus, perguntas provocantes,
ela cai como juízo sobre os que a rejei­ à guisa de sincero desejo de orientação,
tam. O verbo traduzido como reduzido a simulando respeito pelos seus ensinos.
pó significa primariamente peneirar, ci­ A introdução editorial a este episódio
randar, mas as versões antigas confir­ (v. 20) lança o alicerce para o julgamento
mam a tradução da IBB. subseqüente de Jesus, onde, em verdade,
ele é acusado de hostilidade contra o
3) Á Questão do Tributo (20:19-26) imperador, acusação que, com esta nar­
19 A in d a n a m e s m a h o r a os e s c r ib a s e os rativa, Lucas prova ser falsa (cf. 23:2).
p rin c ip a is s a c e r d o te s , p e rc e b e n d o q u e c o n ­ Deve-se notar que Lucas não menciona
t r a e le s p r o f e r ir a e s s a p a rá b o la , p r o c u r a ­ os herodianos — nem aqui, nem em ne­
r a m d e ita r-lh e a s m ã o s , m a s te m e r a m o nhuma outra parte (cf. Mar. 12:13).
povo. 20 E , a g u a rd a n d o o p o rtu n id a d e , m a n ­
d a r a m e sp ia s, o s q u a is se fin g ia m ju s to s , A lisonja dos espias tinha o objetivo de
p a r a o a p a n h a r e m e m a lg u m a p a la v r a , e o influenciar Jesus a fazer declarações ou­
e n tr e g a r e m à ju r is d iç ã o e à a u to r id a d e do sadas contra o governo. Não consideras a
g o v e rn a d o r. 21 E s te s , p o is, o in te rro g a ra m ,
d izen d o : M e s tre , sa b e m o s q u e fa la s e e n s i­ aparência da pessoa significa que ele não
n a s r e ta m e n te , e q u e n ã o c o n s id e ra s a a p a ­ permitia que poder ou posição o influen­
rê n c ia d a p e ss o a , m a s e n s in a s seg u n d o a ciassem. O caminho de Deus é a maneira
v e rd a d e o ca m in h o d e D e u s; 22 é-nos líc ito em que uma pessoa deve viver, conforme
d a r tr ib u to a C é s a r, ou n ã o ? 23 M a s J e s u s ,
p e rc e b e n d o a a s tú c ia d e le s , d is se -lh e s: 24
delineado pela vontade de Deus. Eles
M o stra i-m e u m d e n á rio . D e q u e m é a im a ­ esperavam que a sua lealdade a Deus o
g e m e a in s c riç ã o q u e e le te m ? R e sp o n ­ levasse a tomar uma posição que pudesse
d e r a m : D e C é sa r. 25 D isse -lh e s e n tã o : D ai, ser interpretada como deslealdade para
pois, a C é s a r o q u e é d e C é s a r, e a D eu s o q u e com o imperador.
é de D e u s. 26 E n ã o p u d e r a m a p a n h á -lo e m
p a la v r a a lg u m a d ia n te do p o v o ; e, a d m i r a ­ Tributo era o imposto pessoal e direto
dos d a s u a re s p o s ta , c a la ra m - s e . requerido pelo governo romano, dos ci­
dadãos da Palestina. Era um a recorda­
Os representantes do judaísmo fica­ ção constante e inflamadora, para eles,
ram mui enfurecidos pelas implicações de sua sujeição a um poder estrangeiro.
da parábola precedente, e só não prende­ Em 6 d.C., quando foi ordenado um re­
ram Jesus imediatamente por medo do censeamento para compor as listas de
povo. O quadro desses últimos dias, da impostos, houve uma revolta abortada,
forma como é apresentado por Lucas, é liderada por Judas da Galiléia. A questão
muito dramático. De um lado estava do tributo era, portanto, um problema
Jesus, um homem solitário, que assumira melindroso para o povo.
o controle da instituição central da reli­ Caracteristicamente, a história de Lu­
gião israelita. Do outro, os membros do cas, em comparação com a de Marcos, é
sinédrio, enfurecidos, mas cautelosos. um tanto abreviada, o que a torna menos
No meio estava o povo — volátil, impre­ dramática. Em resposta ao pedido de
visível, mas por enquanto lançando o Jesus, alguém do auditório lhe apresen­
peso de sua proteção ao redor de Jesus. tou um denário de prata, moeda com que
Nessa situação, os seus inimigos se re­ o imposto era pago. O fato é que eles
solvem a seguir um curso que esperavam mesmos estavam carregando moedas que
viesse fazer com que Jesus apresentasse, ostentavam a imagem de César. Até esse
inadvertidamente, alguns motivos para ponto, por conseguinte, eles estavam se
que o acusassem de traição contra o go­ submetendo ao governo de (Tibério) Cé­
sar e aceitando os seus benefícios. 4) A Questão da Ressurreição
A prerrogativa do governante de uma (20:27-40)
região era a fundição e distribuição de 27 C h e g a ra m e n tã o a lg u n s d o s s a d u c e u s ,
moedas, que, segundo o costume antigo, q u e d iz e m n ã o h a v e r r e s s u rre iç ã o , e p e r ­
eram consideradas como propriedade g u n ta r a m - lh e : 28 M e s tre , M o isés n o s d eix o u
e s c rito q u e , se m o r r e r a lg u é m , te n d o m u ­
dele. Conseqüentemente, o povo judeu lh e r, m a s n ã o te n d o filh o s, o ir m ã o d e le c a se
estava usando moedas que, na verdade, co m a v iú v a , e su s c ite d e sc e n d ê n c ia a o i r ­
pertenciam ao imperador. Quando ele m ã o . 29 H a v ia , p o is, s e te ir m ã o s . O p rim e iro
pedia uma delas, estava apenas requisi­ caso u -se e m o r re u s e m filh o s; 30 e n tã o o
tando o que por direito lhe pertencia. seg u n d o , e d e p o is o te r c e ir o , c a s a r a m co m a
v iú v a ; 31 e a s s im to d o s os se te , e m o r r e r a m ,
O princípio era claro: Dai, ou melhor, se m d e ix a r filh o s. 32 D ep o is m o r r e u t a m ­
devolvei a César o que pertence a ele. b é m a m u lh e r. 33 P o rta n to , n a re s s u rre iç ã o ,
Mas Jesus não pára aí. O uso de moe­ d e q u a l d e le s s e r á e la e sp o s a , p o is o s se te
das ou qualquer outra coisa que osten­ p o r e s p o s a a tiv e ra m ?
34 R esp o n d e u -lh e s J e s u s : Os filh o s d e ste
tasse imagens eram evitadas pelos ju ­ m u n d o c a s a m -s e e d ão -se e m c a s a m e n to ;
deus, como violação do segundo manda­ 35 m a s os q u e sã o ju lg a d o s d ig n o s d e a lc a n ­
mento. O culto, ao imperador já era ç a r o m u n d o v in d o u ro , e a re s s u r r e iç ã o d e n ­
amplamente praticado no Oriente. Por tr e os m o rto s , n e m se c a s a m n e m se d ã o e m
esta razão, a imagem de César, em suas c a s a m e n to ; 36 p o rq u e j á n ã o p o d e m m a is
m o r r e r , p o is sã o ig u a is a o s a n jo s , e são
moedas, tinha uma conotação religiosa. filhos d e D e u s, sen d o filh o s d a re s s u rre iç ã o .
Para algumas pessoas, representava a 37 M a s q u e os m o rto s h ã o d e r e s s u r g ir , o
imagem de um deus (cf. Leaney, p ró p rio M o isés o m o s tro u , n a p a s s a g e m a
p. 252 e ss.). Portanto, Jesus advertiu r e s p e ito d a s a r ç a , q u a n d o c h a m a ao S e n h o r:
D eu s d e A b ra ã o , e D eu s d e Is a q u e , e D e u s de
contra prestar-se a César a adoração e o J a c ó . 38 O ra , e le n ã o é D e u s d e m o rto s , m a s
culto que pertencem somente a Deus. d e v iv o s; p o rq u e p a r a e le to d o s v iv e m .
Pelo fato de Jesus ter falado tão pouco 39 R e s p o n d e ra m a lg u n s d o s e s c r ib a s : M e s­
acerca do Estado, esta afirmação tem tr e , d is s e s te b e m . 40 N ã o o u s a v a m , p o is,
p e rg u n ta r-lh e m a is c o is a a lg u m a .
sido considerada como contendo- um
enorme peso de idéias e interpretações. No lado oposto do espectro, em con­
Ele certamente nunca pretendeu que a traposição aos nacionalistas radicais, se
vida devesse ser dividida em duas esferas: encontravam os saduceus. Organizados
a secular e a espiritual. Os ensinos de ao redor do sumo sacerdote, a sua base
Jesus enfatizam que Deus é rei sobre de poder eram o Templo e o sinédrio.
tudo. Não há áreas autônomas, em que Na ausência de independência nacional,
os homens possam escapar às suas exi­ o sumo sacerdote, como presidente do
gências éticas e morais. César devia re­ sinédrio, era a figura política judaica da
ceber uma moeda, um a ninharia. Mas o mais elevada condição, na província im­
homem precisa dar a sua vida toda a perial. Como já vimos, Roma concedeu,
Deus. A vontade de Deus precisa ser a ao sinédrio, grande parte da responsabi­
determinante em todas as suas decisões lidade pela administração dos negócios
quanto a política, economia ou morali­ internos da província. Pelo fato de se
dade pessoal. beneficiarem com o status quo, os sadu­
Ê patente que os espias fracassaram ceus se opunham basicamente a qual­
em seus esforços para fazer Jesus cair quer mudança política. Eles também
numa armadilha. Ele respondeu à sua eram religiosamente conservadores. Dis­
pergunta sem identificar a sua missão cordavam de muitas idéias farisaicas,
com a dos nacionalistas radicais. Ao com a alegação de que eram inovações.
mesmo tempo, ele apresentou, para to­ Rejeitando in totum as tradições orais,
dos eles, a verdade básica de sua men­ eles aceitavam, como sua autoridade reli­
sagem: só Deus é realmente Rei. giosa, apenas o Pentateuco, em que di­
ziam não encontrar base para crer na rato, que foram feitas para ir de encontro
ressurreição. às circunstâncias produzidas pela morte,
A situação hipotética que os saduceus não se aplicam a uma situação que não
apresentaram a Jesus, numa tentativa de será afetada pela morte. Visto que a
embaraçá-lo, devia ser um enredo usado população do céu não será dizimada pela
comumente em suas discussões com pes­ morte, o casamento não será uma insti­
soas de convicções farisaicas. O exemplo, tuição pertinente.
que é propositalmente levado ao ponto As categorias de família e raça são
do absurdo, estava baseado na prescrição abolidas, em uma existência em que to­
do casamento de levirato, em Deuteronô- dos os filhos de Deus se relacionam uns
mio 25.5 10. Essa palavra é derivada de com os outros da mesma forma. A única
levir, que significa irmão. De acordo com família no mundo futuro é a família de
a passagem de Deuteronômio, essa obri­ Deus. Há só um Pai, que é Deus; todos
gação se aplicava a dois irmãos que vi­ os outros são filhos. Filhos da ressurrei­
vessem juntos. Se um morresse, o outro ção é um semitismo que significa res­
devia coabitar com a sua viúva. O pri­ suscitados.
meiro filho dessa união devia levar o Depois de responder à pergunta deles,
nome do falecido. Jesus desafiou a rejeição da ressurreição
Há uma significativa diferença entre pelos saduceus. Ele o fez não questio­
Lucas e o seu paralelo em Marcos (Mar. nando o conceito de autoridade deles,
12:18-27). O terceiro Evangelho fala dos mas questionando a sua interpretação do
que são julgados dignos de alcançar... a Pentateuco, que eles aceitavam como au­
ressurreição dentre os mortos (v. 35). No toridade. Em Êxodo 3:6, o Senhor (Yah-
paralelo em Marcos encontramos “ao weh) se identifica como o Deus de
ressuscitarem dos mortos” (12:25). Esta Abraão... Isaque e... Jacó. Isto prova
diferença é freqüentemente interpretada que esses homens, embora tivessem mor­
como evidência de que a teologia de rido, ainda estavam vivos, naquele tem­
Lucas prevê um a ressurreição apenas de po, como servos de Deus ressurrectos. De
justos. Mas conclusões dogmáticas não outra forma, o título que Moisés deu a
podem ser baseadas em sugestões tão es­ Deus seria uma completa contradição.
cassas (veja 14:14). Falar de um Deus de mortos é um absur­
do.
Jesus respondeu, à parábola dos sadu­
ceus, com uma simples afirmação. A per­ Momentaneamente, alguns dos escri­
gunta deles não levou em consideração a bas esqueceram a sua hostilidade contra
diferença básica entre as duas eras. En­ Jesus, em sua alegria com a frustração e
volvida no conceito da ressurreição, es­ derrota dos seus oponentes teológicos.
tava também a crença de que a pessoa Eles cumprimentaram Jesus por sua sa­
ressuscitada era transformada. Por causa gaz defesa da ressurreição, em que ele
disso, as relações desta era não são deci­ voltara as armas dos saduceus contra eles
sivas para se determinar as da era vin­ mesmos.
doura. Depois da morte, os ressuscitados Com essa defrontação, Lucas dá fim
se tomam parte das hostes celestiais, o à série de tentativas, da parte dos ini­
que é equivalente a aiyos. Muitos vêem, migos de Jesus, para desacreditá-lo. Ao
nesta declaração, uma referência a Eno­ fazê-lo, ele omite o problema do maior
que 15:6, na passagem que fala de anjos mandamento (Mar. 12:28-34). Mas a in­
decaídos. Como participantes da era vin­ trodução à Parábola do Bom Samaritano
doura, essas pessoas transformadas não (10:27) tem muita semelhança com a
são mais mortais. Conseqüentemente, passagem de Marcos. Isto deve ter indu­
provisões como o do casamento de levi­ zido à omissão neste lugar.
5) A Pergunta Acerca do Messias Lucas já havia feito outra crítica, mais
(20:41-44) longa, dos líderes religiosos, derivada do
41 J e s u s , p o ré m , lh e s p e rg u n to u : C om o seu material provindo de Q (11:37 e ss.;
d izem q u e o C risto é filh o d e D a v i? 42 P o is o cf. Mat. 23:13 e ss.). Esta passagem mais
p ró p rio D a v i diz, n o liv ro do s S a lm o s : curta é baseada em Marcos 12:38-40.
D isse o S en h o r a o m e u S e n h o r: A introdução à história, contudo, é do
A sse n ta -te à m in h a d ir e ita ,
43 a té q u e e u p o n h a o s te u s in im ig o s p o r
próprio Lucas. Nela diz que as advertên­
e sc a b e lo dos te u s p é s . 44 L ogo, D a v i lhe cias de Jesus contra os escribas foram
c h a m a S e n h o r; com o, pois, é e le s e u filh o ? dirigidas tanto ao povo quanto aos dis­
cípulos.
Tendo posto os seus inimigos em fuga, Desejo de reconhecimento público e
pela sagacidade de suas respostas às per­ ambição inescrupulosa foram os pecados
guntas ardilosas que eles haviam feito, de que Jesus acusou os escribas. A nota
Jesus agora se tom a o inquiridor. Ele profética, tão proeminente nos ensinos
desafia o conceito nacionalista messiâni­ de Jesus, outra vez sobe à tona aqui.
co, corporificado pela compreensão po­ A falta de interesse, de uma pessoa, pelos
pular do título filho de Davi. O problema indefesos e necessitados é prova inelu-
não era o que o povo pensava na vinda dível de que a sua religião é uma zom­
do Messias como filho de Davi. Cristo, baria vazia. Por maior que seja a quanti­
“ungido” , é uma transliteração da pala­ dade de atividade religiosa, ela não pode
vra grega que é tradução da hebraica fazer-se agradável a Deus.
Messias. A igreja primitiva, inclusive Lu­ Os escribas foram acusados de devorar
cas, também entendia Jesus como filho as casas das viúvas. Não somos informa­
de Davi. Mas Jesus rejeitava a idéia de dos como, exatamente, eles faziam isto.
que o papel do Messias era restabelecer Talvez se aproveitassem da fé incondicio­
a dinastia davídica em Jerusalém e vingar nal, das viúvas, em seus líderes religio­
o humilhado povo judeu, elevando-o a sos. Plummer sugere que eles aceitavam
uma posição de supremacia sobre as “hospitalidade e ricos presentes de mu­
nações gentias. lheres piedosas e fracas” (p. 474). Esta é
O objetivo da citação de Salmos 110:1 uma forma muito comum de usar a reli­
é que o Messias precisa ser mais do que gião para explorar os outros. Por outro
filho de Davi e , herdeiro do seu tronov lado, as casas podiam ser penhor por
A declaração o Senhor (Yahweh) disse ao empréstimos e dívidas (Leaney, p. 256).
meu Senhor (o Cristo) é usada para Como tão freqüentemente acontece, o
provar que Davi pensava no Messias^ capítulo 21 faz uma infeliz divisão de
como algo m ^ ^ d o que um^filHo., Di­ material, que devia estar junto. A conde­
ficilmente um homem chamaria o seu nação dos escribas é pretendida para ser
filho de meu Senhor. Assim sendo, o vista em contraste com o louvor, que se
Messias não é apenas filho de Davi: ele £ segue, a uma viúva, como representante
também Senhor de Davi 1 de suas vítimas indefesas.
6) A Condenação dos Escribas
(20:45-47) 7) O Louvor à Viúva (21:1-4)
45 E n q u a n to to d o o povo o o u v ia , d isse
J e s u s a o s s e u s d is c íp u lo s: 46 G u a rd a i-v o s 1 J e s u s , le v a n ta n d o os olhos, v iu os ric o s
dos e s c r ib a s , q u e q u e re m a n d a r c o m v e ste s d e ita re m a s s u a s o f e r ta s n o c o f r e ; %v iu t a m ­
c o m p rid a s, e g o s ta m d a s s a u d a ç õ e s n a s b é m u m a p o b re v iú v a la n ç a r a li d o is le p to s ;
p r a ç a s , d o s p rim e iro s a s s e n to s n a s sin a g o ­ 3 e d is s e : E m v e rd a d e v o s d ig o q u e e s ta
g a s, e d o s p rim e iro s lu g a r e s n o s b a n q u e te s ; p o b re v iú v a d e u m a is do q u e to d o s ; 4 p o rq u e
47 q ue d e v o ra m a s c a s a s d a s v iú v a s , fa z e n ­ todos a q u e le s d e r a m d a q u ilo q u e lh e s s o ­
do, p o r p re te x to , lo n g a s o r a ç õ e s ; e s te s h ã o b r a v a ; m a s e s ta , d a s u a p o b re z a , d eu tu d o o
d e r e c e b e r m a io r co n d e n a ç ã o . q u e tin h a p a r a o se u su ste n to .
A crítica dos escribas é seguida pelo Marcos atribui uma declaração direta
louvor ou elogio a um a viúva. Jesus le­ acerca do Templo a um dos discípulos,
vantou os olhos, porque estava sentado, comentando que ela foi feita enquanto
na posição de mestre. O cofre ou cofres, Jesus saía com os discípulos desse edifício
pois eram vários cofres enfileirados, ti­ (13:1). Em Lucas, alguns, dentre o povo
nham um a abertura em forma de trom­ que ouvia a Jesus, chamam a atenção
beta, onde as ofertas eram colocadas. para a solidez e beleza do templo. As
Entre os ricos que se aproximaram dos dádivas eram as “ofertas votivas” (Mof-
cofres, para lançar neles as suas gordas fatt), que várias pessoas, inclusive o Rei
ofertas, estava uma pobre viúva, que Herodes e o próprio César Augusto, ha­
devia parecer estar deslocada em tal viam feito ao Templo.
companhia. Ela fez um a oferta muito Herodes, o Grande, começou, o que
insignificante: dois leptos, duas moedas chegou a ser uma reconstrução do segun­
de cobre, que valiam menos de vinte do Templo, em 19 a.C, Este terceiro
cruzeiros. Templo, um complexo de edifícios que
Surpreendentemente, Jesus declarou cobriam cerca de cinco hectares no Mon­
que a oferta dela era de mais valor do que te Moriá, pode ser que não estivesse
o total das contribuições de todos os completamente terminado quando ir­
outros. Eles haviam dado daquilo que rompeu a primeira Guerra Judaico-Ro-
lhes sobrava, e não estavam em piores mana. Josefo informa-nos que o Templo
condições do que antes, depois de terem foi construído de enormes blocos de m ár­
contribuído. Em contraste, as moedinhas more branco, e, à distância, parecia um
ofertadas pela viúva representavam toda pico de montanha brilhante, coberto de
a sua riqueza. A oferta que ela fizera era neve. Ele era ornamentado com ouro,
uma genuína expressão de sua fé em que pedras preciosas e tapeçarias caras.
Deus, na sua providência, iria suprir as Jesus replicou, aos comentários admi­
suas necessidades futuras. - rados a respeito desse Templo, com uma
Qs ricos não haviam demonstrado tal
predição de que esse edifício imponente,
fé. Eíèslíãõlíãviam prejudicado nem um
que possuía um ar tão convincente de
pouco a sua segurança financeira. Ào
permanência, um dia seria reduzido a
mesmo tempo, eles criam que haviam
escombros. No ano 70 d.C. os romanos
ganho o favor de Deus com uma oferta
puseram fogo no Templo, e, subseqüen­
em dinheiro.
temente, por ordem de César, nivelaram
3. Ensinos Acerca dos Acontecimentos as suas paredes, na demolição sistemá­
do Fim (21:5-38) tica da cidade. Quando terminaram, o
1) O Perigo de Ser Enganado (21:5-9) lugar onde a orgulhosa capital de Israel
5 E , falan d o -lh e a lg u n s a re s p e ito do outrora estivera era um a terra desolada e
te m p lo , com o e s ta v a o rn a d o d e fo rm o sa s desabitada (Josefo, Guerras 7, 1, 1-3).
p e d ra s e d á d iv a s , d isse e l e : 6 Q u an to a isto Da mesma forma como Jeremias havia
que v e d e s, d ia s v irã o e m que n ã o se d e ix a r á
p e d r a s o b re p e d r a , q u e n ã o s e j a d e rr ib a d a .
predito a destruição do primeiro Templo,
7 P e rg u n ta ra m -lh e e n tã o : M e s tre , q u an d o , como resultado da desastrosa política ex-
p ois, s u c e d e rã o e s ta s c o is a s? E q u e sin a l tema de Judá (26:6), Jesus também
h a v e rá , q u a n d o e la s e s tiv e re m p a r a se previu que o Templo de Herodes iria
c u m p r ir? 8 R e sp o n d e u e n tã o e l e : A cau telai- sofrer o mesmo destino.
v o s; n ã o s e ja is e n g a n a d o s ; p o rq u e v irã o
m u ito s e m m e u n o m e , d izen d o : Sou e u ; e : O Marcos conta-nos que Pedro, Tiago,
te m p o é c h e g a d o ; n ã o v a d e s a p ó s e les. João e André interrogaram Jesus acerca
9 Q u an d o o u v ird e s de g u e r r a s e tu m u lto s,
n ão v o s a s s u s te is ; po is é n e c e s s á rio q u e
de sua predição, “estando ele sentado no
p rim e iro a c o n te ç a m é s s a s c o is a s ; m a s o fim Monte das Oliveiras, defronte do tem­
n ão s e r á logo. plo” , de onde se via plenamente essa
impressionante estrutura (13:3). No en­ cláusulas modificadoras, primeiro e logo,
tanto, o Templo era o palco de todas as no texto de Marcos, Lucas torna claro
atividades didáticas de Jesus durante es­ que distúrbios caóticos, amedrontadores
tes últimos dias. Ali, pessoas não identi­ e históricos estão separados dos aconteci­
ficadas lhe perguntaram quando a des­ mentos de caráter supra-históricos, com
truição predita ocorreria, e como eles que esta era terá fim. No conceito de
seriam capazes de prevê-la. Elas pressu­ escatologia, encontrado em Lucas, certos
punham que um sinal seria dado, que desenvolvimentos históricos precisam ter
levaria a ficarem alerta aqueles que o lugar antes do fim, mas nenhum deles
reconhecessem, preparando-se para a ca­ será sinal, por si mesmo, de um a Parou­
tástrofe iminente. Evidentemente, a des­ sia iminente.
truição do Templo, segundo se presume,
2) Distúrbios e Perseguições (21:10-19)
foi um acontecimento escatológico inti­
mamente associado com o fim dos tem­ 10 E n tã o lh e s d is s e : L e v a n ta r -s e -á n a ç ã o
pos. c o n tra n a ç ã o , e re in o c o n tr a re in o ; 11 e
h a v e r á , e m v á rio s lu g a r e s , g ra n d e s t e r r e ­
Jesus, antes de tudo, deu uma palavra m o to s, e p e s te s e fo m e s ; h a v e r á ta m b é m
de advertência. Os seus ouvintes não co isas e s p a n to s a s , e g ra n d e s sin a is do céu .
deviam ser vítimas inocentes de falsas 12 M a s a n te s d e to d a s e s s a s c o is a s v o s h ão
expectativas. Da mesma forma como o d e p re n d e r e p e rs e g u ir, e n tre g a n d o -v o s à s
sin a g o g a s e a o s c á r c e r e s , e conduzindo-vos
faz em Marcos, Jesus aqui emite uma à p re s e n ç a d e r e is e g o v e rn a d o re s, p o r
palavra de acautelamento contra os em­ c a u s a d o m e u n o m e . 13 Is s o v o s a c o n te c e rá
busteiros messiânicos. 33 O mais famoso p a r a q u e d e is te s te m u n h o . 14 P ro p o n d e ,
pretendente judeu ao título de Messias, p o is, e m v o sso s c o ra ç õ e s , n ã o p r e m e d ita r
na história subseqüente, foi Bar Cochba, com o h a v e is d e f a z e r a v o s s a d e fe s a ; 15
p o rq u e e u vos d a r e i b o c a e s a b e d o ria , a q u e
que, aclamado como tal por ninguém n e n h u m d o s v o sso s a d v e r s á r io s p o d e rá
menos do que o Rabi Akiba, levou os r e s is tir n e m c o n tra d iz e r. 16 E a té p e lo s p a is ,
judeus à sua última rebelião abortada e ir m ã o s , e p a r e n te s , e a m ig o s , s e r e is e n ­
contra Roma (132-135 d.C.). Lucas ain­ tr e g u e s ; e m a ta r ã o a lg u n s d e v ó s; 17 e
s e re is o d ia d o s d e to d o s p o r c a u s a do m e u
da cita as advertências de Jesus contra as n o m e. 18 M a s n ã o se p e r d e r á u m ú nico
tentativas de fixar uma data específica c a b e lo d a v o s s a c a b e ç a . 19 P e la v o s s a p e r ­
para o fim, coisa que não se encontra em s e v e r a n ç a g a n h a re is a s v o ss a s a lm a s .
Marcos. A natureza inesperada, repen­
tina, da Parousia é um tema escatoló­ Conflito internacional, terremotos, fo­
gico constante, no terceiro Evangelho. mes, pragas, e fenômenos astrais inco-
Guerras e tumultos não devem ser muns têm sido associados, em ocasiões
interpretados como sinais de um fim diferentes, com o desprazer divino, ca­
iminente desta era. Os tumultos deno­ tástrofe iminente e juízo. Nos círculos
tam perturbações civis do tipo que afli­ cristãos, freqüentemente eles têm sido
giram o Império Romano desde a morte considerados como indicação da volta
de Nero até a ascensão de Vespasiano iminente do Senhor, e do juízo final de
(68 d.C.). Esta palavra é encontrada em Deus. Esta espécie de pensamento apo­
Lucas, em vez dos “rumores de guerras” calíptico cristão tem raízes no apocalip­
de Marcos (13:7). Pela introdução, das se judaico. As pragas infligidas ao Egi­
to, como prelúdio da libertação de Israel
do cativeiro, são símbolo das maravilhas
33 M anson (p. 231) argum enta que “ as pessoas que vêm
em nom e de Jesus precisam ser cristãs, reivindicando
que pressagiarão a redenção escatológica
a sua autoridade’’. Ele remove a dificuldade do cam i­ de Israel. Mas da maneira como este
nho desta interpretação, com a sugestão de que “ sou escritor considera este assunto, nesta
e u ” significa “ o M essias chegou” . A advertência, neste
caso, seria co n tra u m a p rem atu ra proclam ação da passagem de Lucas, estes fenômenos não
Parousia. E sta interpretação tem m uito m érito. estão associados com o fim iminente do
século. A omissão da frase “ isso será c las pessoas que lhes são mais íntimas:
princípio das dores” (Mat. 13:8b) é de­ pais, irmãos, etc. Alguns sofrerão o m ar­
cisiva a este respeito. tírio. Por volta da sétima década do pri­
De interesse mais imediato para o se­ meiro século, as fileiras do movimento
guidor de Jesus, todavia, é a perseguição cristão já terão sido duramente atingidas
que ele precisa suportar. Em tempos de pela perda de líderes, como Estêvão,
intenso sofrimento, os crentes são vítimas Tiago, Pedro e Paulo. Odiados de todos
susceptíveis de falsas esperanças. A lite­ descreve a hostilidade geral que será diri­
ratura apocalíptica é um produto de pe­ gida contra os cristãos, pela sociedade.
ríodos de crise e desânimo, quando o Porque já eram vistos com profunda sus­
povo desespera de qualquer alívio, exceto peita e antipatia, os cristãos foram os
através da direta intervenção de Deus. bodes expiatórios naturais sobre os quais
Ela expressa a esperança de que Deus Nero pôde descarregar a culpa pelo gran­
agirá para vencer os poderes malignos de incêndio de Roma. Esforços exten­
que oprimem o seu povo. Dois tipos de sivos foram feitos para, mais tarde, eli­
perseguição são previstos em nosso texto. minar completamente o cristianismo do
Os cristãos serão levados diante das cor­ território do Império.
tes da sinagoga judaica. Também serão O contexto mostra que a declaração
levados a julgamento diante de reis e não se perderá um único cabelo da vossa
governadores gentios, por causa do seu cabeça não significa que os discípulos es­
nome, isto é, porque eles reconhecem caparão a todo dano físico (veja 12:4). É
publicamente a sua lealdade a Jesus. uma declaração da certeza de que eles
Paulo foi uma vítima de ambos os tipos podem confiar em Deus, que cuida deles
de perseguição (II Cor. 11:23 e ss.). tanto que até “os cabelos de suas cabe­
Ao invés de associar a perseguição com ças estão todos contados” (12:7). Embo­
uma Parousia iminente, os seguidores de ra os homens possam tirar-lhes a vida,
Jesus devem entender que é hora de tes­ não podem roubar-lhes a sua segurança
tificar e disseminar o evangelho. A per­ final. Eles ganharão as suas vidas — não
seguição lhes dará uma oportunidade de a sua existência física, mas a vida no
dar o testemunho de sua fé. Atos contém mundo por vir. Os cristãos podem enfren­
inúmeras ilustrações da maneira como os tar os perigos de uma existência precária,
líderes cristãos usaram as audiências ju ­ nesta era, porque sabem que a perse­
diciais públicas como oportunidades verança, que é firmeza no tempo da per­
para proclamar o evangelho. seguição, tem a sua recompensa. Esta
O verbo premeditar (v. 14) significa ênfase, na persistência, sublinha o fato
preparar um discurso. Durante a expe­ de que os seguidores não podem esperar
riência das perseguições, os discípulos que os seus sofrimentos sejam abreviados
não serão limitados apenas aos seus re­ pela Parousia.
cursos próprios. Jesus lhes promete dar
3) A Destruição de Jerusalém (21:20-24)
boc^ isto é, palavras, e sabedoria, a
àabér; asabedoiia de Deus.-Marcos diz -20 M a s , q u a n d o v ir d e s J e r u s a lé m * c e rc a ­
que o Espírito Santo falará pelos crentes d a d e e x é rc ito s , s a b e i e n tã o q u e é c h e g a d a a
(13:11b). Não há diferença essencial no s u a d e so la ç ã o . 21 E n tã o , os q u e e s tiv e re m
n a J u d é ia fu ja m p a r a o s m o n te s ; os que
significado da declaração de Lucas. Isto e s tiv e re m d e n tro d a c id a d e , s a i a m ; e os q u e
é verificado, por exemplo, em Atos 4:8, e s tiv e re m n o s c a m p o s n ã o e n tr e m n e la .
em que Pedro fica “cheio do Espírito 22 P o rq u e d ia s d e v in g a n ç a sã o e s te s , p a r a
Santo” antes de começar a sua defesa. q u e se c u m p r a m to d a s a s c o is a s q u e e stã o
e s c r ita s . 23 Ai d a s q u e e s tiv e re m g rá v id a s , e
Os seguidores de Jesus precisam estar d a s q u e a m a m e n ta r e m n a q u e le s d ia s ! p o r­
preparados para pagar um elevado preço que h a v e r á g ra n d e a n g ú s tia so b re a te r r a , e
pela sua lealdade. Eles serão traídos pe­ ir a c o n tr a e s te povo. 24 E c a ir ã o a o fio d a
e s p a d a , e p a r a to d a s a s n a ç õ e s s e r ã o le v a ­ Mulheres grávidas ou que estivessem
d o s c a tiv o s ; e J e r u s a lé m s e r á p is a d a p e lo s amamentando bebês estariam correndo
g e n tio s, a té q u e o s te m p o s d e s te s se c o m ­
p le te m . especial perigo, porque não seriam capa­
zes de viajar suficientemente depressa
para escapar. Lucas fala de angústia em
Âgora é dada uma resposta à interro­ lugar da palavra “ tribulação” que M ar­
gação feita no verso 7. Quando os exérci­ cos usa, e que tem mais aguda conota­
tos romanos cercarem Jerusalém, este é o ção apocalíptica. Terra aqui se refere à
sinal de que a sua captura e destruição Palestina, a “terra santa” . Ira contra
estão iminentes. Jerusalém cercada de este povo é paralelo de angústia sobre a
exércitos substitui a frase de Marcos, terra, repetindo a interpretação da des­
“a abominação da desolação estar onde truição de Jerusalém como ato de juízo
não deve estar” (Mar. 13:14; cf. Dan. divino. Josefo relata que um milhão e
9:27; 11:31; 12:11). Talvez isto aconteça cem mil judeus foram imolados no cerco
devido às conotações apocalípticas deste de Jerusalém, além de noventa e sete mil,
último. A destruição de Jerusalém é que foram levados como prisioneiros.
apresentada de tal forma a mostrar que Embora esses números possam ter sido
ela não está associada com a Parousia. exagerados, o tributo da rebelião foi de
Sobretudo, o cristianismo é dissociado fato elevadíssimo.
das aspirações nacionalistas do povo ju ­
Freqüentemente acontece que as guer­
deu, que o levariam a destino tão terrível.
ras de libertação nacional e de expansão
Antes de Jerusalém ser completamente
produzem resultados que são exatamente
cercada pelo exército sitiante, os cristãos
o oposto dos esperados pelos seus pro­
deviam fugir da cidade. O historiador
motores. Ao invés de tornar-se a sede de
Eusébio, do quarto século, conta que os
uma nação judaica orgulhosa e indepen­
cristãos foram avisados, por um profeta,
dente, Jerusalém tomou-se a sede de um
para fugirem de Jerusalém antes da que­
acampamento gentio. Os tempos destes
da. Seja qual for o mérito histórico desse
(dos gentios) tem o significado de um
dado, sabemos que os cristãos de Jerusa­
lém, na verdade, se retiraram para a cida­ conceito semelhante, expresso por Pau­
de de Pela, na Peréia, a tempo de evitar o lo em Romanos (veja especialmente
Rom. 11:25). A rejeição, por parte dos
fim que tiveram os seus concidadãos que
judeus, da vontade de Deus, e a catás­
permaneceram na cidade. O fato de não
trofe conseqüente iniciaram um período
terem ajudado a sua nação, em sua resis­
de expansão missionária entre os gentios.
tência contra Roma, tomou definitiva a
O próprio Lucas estava vivendo nos tem­
já ampla brecha entre o cristianismo e o
judaísmo. pos dos gentios. Dificilmente esta expres­
são terá o peso de elaborados esquemas
Dias ,de vingança define o destino de apocalípticos, que interpretam a volta
Jerusalém como juízo de Deus. Talvez a dos judeus a Jerusalém como cumpri­
declaração seja considerada como o cum­ mento da profecia e início do fim. Isto é
primento de Ezequiel 9:1: “Chegai, vós, verdade, especialmente diante do fato de
os intendentes da cidade, cada um com que o ensinamento em Lucas divorcia
as suas armas destruidoras na mão” (cf. expressamente todos os desenvolvimen­
Jer. 5:29; Os. 9:7). A destruição de Je­ tos históricos do fim propriamente dito,
rusalém era o destino de uma nação que, excluindo exatamente este tipo de predi­
apegando-se obstinadamente ao seu re­ ções. Esta declaração expressa a convic­
belde nacionalismo, rejeitou o Messias de ção de que a missão aos gentios faz parte
Deus, porque ele não se enquadrava nas do movimento redentor de Deus, que
suas idéias acerca do reino de Deus. terá o seu auge antes que venha o fim.
4) A Vinda do Filho do Homem opção de interpretar esta passagem em
(21:25-28) relação a acontecimentos que tenham
25 E h a v e rá sin a is no sol, n a lu a e n a s ocorrido dentro do período de vida da
e s t r e la s ; e so b re a t e r r a h a v e r á a n g ú s tia primeira geração de cristãos.
d a s n a ç õ e s e m p e rp le x id a d e p e lo b ra m id o Depois dos sinais descritos nos versí­
do m a r e d a s o n d a s ; 26 o s h o m e n s d e s f a le ­ culos 25 e 26, o Filho do homem virá em
c e rã o d e te r r o r , e p e la e x p e c ta ç ã o d a s c o i­
s a s q u e s o b re v irã o a o m u n d o ; p o rq u a n to os uma nuvem, e não “em nuvens” , como
p o d e re s do c é u s e r ã o a b a la d o s . 21 E n tã o em Marcos 13:26. Leaney (p. 71 e 72)
v e rã o v ir o F ilh o do h o m e m e m u m a n u v e m , interpreta esta informação como uma
co m p o d e r e g ra n d e g ló ria . 28 O ra , q u an d o manifestação do Filho do homem seme­
e s s a s c o is a s c o m e ç a re m a a c o n te c e r, e x u l­
ta i e le v a n ta i a s v o s s a s c a b e ç a s , p o rq u e a
lhante à acontecida por ocasião da trans­
v o ss a re d e n ç ã o se a p ro x im a . figuração (9:28 e ss.) e da ressurreição-
ascensão (At. 1:9), as quais mencionam,
Até este ponto, a direção desta passa­ ambas, uma nuvem. Além disso, ele en­
gem apocalíptica tem sido claramente tende redenção (v. 28) como referência a
indicada. A parte que se inicia aqui um “evento realizado por Deus na his­
(v. 25-31) é muito mais difícil. Ela é tória” (p. 262). É inteiramente possível
geralmente interpretada em conjunto que a salvação dos cristãos, no desastre
com a volta do Senhor e o fim do sé­ iminente, seja concebida como outra re­
culo. Esta é a interpretação indicada pela velação do poder e glória do Filho do
referência ao mundo, palavra que se homem.
refere a toda a terra habitada (v. 26), à
vinda do Filho do homem (v. 27) e à 5) O Sinal da Figueira (21:29-33)
proximidade do reino (v. 31), além das 29 P ro p ô s -lh e s e n tã o u m a p a r á b o la : O lh ai
associações costumeiras da linguagem p a r a a fig u e ira , e p a r a to d a s a s á r v o r e s ;
apocalíptica que aparece aqui. Leaney 30 q u a n d o c o m e ç a m a b r o t a r , s a b e is p o r vós
m e s m o s, a o v ê -la s, q u e j á e s tá p ró x im o o
toma outra posição e atribui essa lingua­ v e rã o . 31 A ssim ta m b é m v ó s, q u a n d o v ird e s
gem ao “desejo de revestir a queda de a c o n te c e re m e s ta s c o is a s , s a b e i q u e o re in o
Jerusalém... de solenidade catastrófica” d e D eu s e s t á p ró x im o . 32 E m v e rd a d e vos
(p. 262). Que essa linguagem pode ser digo q u e n ã o p a s s a r á e s t a g e ra ç ã o a té que
tu d o isso se c u m p r a . 33 P a s s a r á o c é u e a
aplicada a um ato de Deus, na história e te r r a , m a s a s m in h a s p a la v r a s ja m a is p a s ­
experiência da comunidade primitiva, s a rã o .
verifica-se em Atos 2:16 e ss. Ali, as
maravilhas do Pentecostes são declara­ O fato de a figueira e todas as ár­
das cumprimento da passagem apocalíp­ vores brotarem (uma adição feita por
tica de Joel 2:28-32. Lucas a Marcos 13:28a) é um sinal indis­
E, também, Lucas precisava presumir cutível de que o verão está se aproxi­
que as palavras de Jesus eram dirigidas mando, De maneira semelhante, as tri­
aos seus ouvintes imediatos, sendo, por bulações de que Jesus estava falando são
isso, importantes para eles. A mais sim­ indicação ineludível de que o reino de
ples interpretação do verso 32 (veja adian­ Deus está próximo. A questão é se isto se
te) é considerá-lo em conexão com a pri­ refere à última crise do mundo, que
meira geração de cristãos. E, sobretudo, a precede imediatamente a consumação do
outorga de sinais (v, 25) que indicam a reino. D a outra única vez que Lucas usou
aproximação da Parousia parece contra­ a frase o reino de Deus está próximo, ela
dizer o ensino consistente em Lucas, de não tinha esta conotação (10:11). A ma­
que a volta do Senhor será um a surpresa nifestação do poder de Deus para preser­
para o mundo, e que apanhará os cris­ var o seu povo e assegurar o progresso de
tãos desapercebidos, a não ser que eles sua obra redentora também pode indicar
estejam sempre alerta. Portanto, temos a a proximidade do seu reino.
Geração pode ser a “humanidade em Devassidão e bebedeira amortecem os
geral” (Conzelmann, p. 131). Ellis (p. sentidos; concentração nos cuidados da
247) diz que é “a geração do tempo vida, isto é, alimentação, vestuário, se­
do fim” de que Jesus está falando, e que gurança financeira, etc., tiram a mente
se estende da missão anterior à ressur­ (corações) das preocupações com os in­
reição até a Parousia. Mas é mais pro­ teresses do reino. Para os que assim
vável que esta palavra se refira aos que imergem nos negócios desta era, aquele
eram contemporâneos de Jesus, alguns dia, o dia do Senhor, virá de improviso,
dos quais ainda estavam vivos ao tempo como um laço. Ele não será saudado ale­
do conflito com Roma. O versículo 33 é gremente, mas será um acontecimento
um brado solene de certeza de que nada inesperado e desagradável.
impedirá o cumprimento do que Jesus Comparada com o julgamento limita­
dissera. Esta declaração reveste as pala­ do, que sobrevirá à terra da Palestina e
vras de Jesus com a autoridade e o cará­ a Jerusalém, a Parousia será um período
ter absoluto próprios da Torah (cf. de juízo sobre todos, em toda a face da
16:17). terra. Não haverá escapatória para esta
Lucas omite Marcos 13:32, talvez para crise final e universal. Os discípulos de­
evitar uma declaração que afirma que o vem permanecer alertas para a Parousia,
Filho ignora o tempo da Parousia. Ele nesse ínterim, orando e pedindo forças
também não usa Marcos 13:33-37, que é para emergir vitoriosos das provas e an­
semelhante a material já incorporado à gústias a respeito das quais Jesus falou.
sua narrativa (12:35-40). Alguns manus­ Se eles exercerem tal vigilância em ora­
critos apresentam a perícope da mulher ção, serão capazes de estar em pé, jus­
adúltera depois do verso 38 (veja João tificados e desembaraçados, diante do
7:53-8:11). filho do homem. Os fiéis seguidores de
6) A Necessidade de Estar Alerta Jesus nada terão a temer na crise final,
(21:34-36) que introduzirá a nova era.
34 O lh ai p o r v ó s m e s m o s ; n ã o a c o n te ç a 7) O Ministério no Templo (21:37,38)
q u e os v o sso s c o ra ç õ e s se c a r r e g u e m de 37 O ra , d e d ia e n s in a v a n o te m p lo , e à
g lu to n a ria , d e e m b ria g u e z , e d o s cu id a d o s n o ite, sa in d o , p o u s a v a n o m o n te c h a m a d o
d a v id a , e a q u e le d ia v o s so b re v e n h a de d a s O liv e ira s. 38 E todo o povo i a t e r co m ele
im p ro v iso , co m o u m la ç o . 35 P o rq u e h á de no te m p lo , d e m a n h ã cedo, p a r a o o u v ir.
v ir so b re todos os q u e h a b ita m n a fa c e d a
te r r a . 36 V ig iai, pois, e m todo o te m p o ,
o ra n d o , p a r a q u e p o s s a is e s c a p a r de to d a s Com esta nota editorial, Lucas faz
e s ta s c o is a s qu e h ã o d e a c o n te c e r, e e s t a r encerrar-se o ministério público de Jesus.
e m p é n a p r e s e n ç a do F ilh o do h o m e m . O Templo, recém-purificado, era a cena
Estas palavras são colocadas no fim da do seu ministério didático. Cada tarde
passagem apocalíptica de Lucas, en­ ele saía do Templo, e passava a noite no
quanto Marcos 13 termina com uma pa­ monte chamado das Oliveiras. De acordo
rábola. Embora diferentes em conteúdo, com Marcos, Jesus passou a primeira
os dois epílogos são semelhantes, no seu noite, depois da entrada triunfal, em Be-
tema. Há também pronunciadas carac­ tânia, que ficava pouco além do Monte
terísticas paulinas nessa passagem (cf. das Oliveiras (11:11). Ele também é co­
I Tess. 5:1-10), que contém grande nú­ locado em Betânia em Marcos 14:3. Lu­
mero de palavras e expressões caracterís­ cas omite esta história da unção em Be­
ticas de Lucas. tânia, que é muito semelhante ao episó­
Um perigo sempre presente, para os dio já narrado em 7:36 e ss. Marcos
discípulos cristãos, é que aqueles que são 11:19 nos informa que Jesus, à noite,
“filhos da ressurreição” se tornem en­ “saía da cidade” , provavelmente referin­
volvidos demais com a vida deste século. do-se também a Betânia, visto que ele e
os discípulos passaram pela figueira todo que não suscitasse ira popular. De
seca, ao voltar (veja Mar. 11:12-14). acordo com Marcos 14:2, eles primeira­
Cada manhã o povo acorria ao Tem­ mente decidiram não consumar os seus
plo, para ouvi-lo. Mais uma vez notamos planos “ durante a festa, para que não
a predileção de Lucas pela palavra todo. haja tumulto entre o povo” . Porque a
A atitude do povo é contrastada, no Páscoa era um popular festival de pere­
decorrer de Lucas, com a de seus líderes, grinação, pode ser que houvesse cem mil
que não atenderam à nova exposição das peregrinos ou mais em Jerusalém, nessa
Escrituras, feita por Jesus. época do ano. Com esse número de ju ­
4. A Preparação Para a Paixão (22:1 -53) deus na cidade, muitos deles ardentes
nacionalistas, as possibilidades de uma
1) A Conspiração Para Matar Jesus explosão popular, com a inevitável re­
( 22 : 1-6) pressão brutal e represálias dos romanos,
1 A p ro x im a v a -se a fe s ta d o s p ã e s á zim o s, eram muito grandes.
q u e se c h a m a a p á s c o a . 2 E os p rin c ip a is
Aparentemente, o dilema dos líderes
s a c e rd o te s e os e s c r ib a s a n d a v a m p ro c u ­
ra n d o u m m o d o d e o m a t a r ; p o is te m ia m o hostis foi resolvido com a ajuda de um
povo. 3 E n tro u e n tã o S a ta n á s e m J u d a s , que membro do círculo íntimo dos discípulos
tin h a p o r so b re n o m e Is c a rio te s , q u e e r a u m de Jesus. Pela primeira vez, desde a nar­
dos d o z e ; 4 e foi e le t r a t a r c o m os p rin c ip a is rativa da tentação, o adversário de Jesus,
sa c e rd o te s e co m os c a p itã e s d e com o lho
e n tr e g a r ia . 5 E le s se a le g r a r a m c o m isso , e Satanás, é mencionado. Isto nos dá no­
c o n v ie ra m e m lh e d a r d in h e iro . 6 E e le tícia de que o ministério de Jesus agora
con co rd o u , e b u s c a v a o c a siã o p a r a lho e n ­ havia cumprido o seu curso (cf. 13:32).
tr e g a r s e m alv o ro ço . Satanás havia procurado destruir Jesus
Em lugar da nota específica (14:1) no começo, tentando perverter o seu pro­
“dois dias antes da Páscoa” , encontra­ grama. Tendo falhado nisso, ele volta a
mos, aqui, uma observação mais indefi­ atacar, a fim de conseguir a sua morte
nida. Ela aumenta a impressão geral de com a ajuda de Judas. Lucas menciona
um ministério um tanto prolongado, em que Judas era um dos doze, preparando o
Jerusalém. Tecnicamente, a festa dos caminho para a narrativa do preenchi­
pães ázimos ou asmos e a Páscoa eram mento de sua vaga (At. 1:15 e ss.). Esse
diferentes. A Páscoa designava o ritual lugar ficou vago agora, e não mais tarde,
da imolação do cordeiro pascal em 14 de quando Judas cometeu suicídio.
Nisã, que era seguida da refeição domés­ Há duas perguntas importantes, levan­
tica, naquela noite, o início de 15 de Nisã tadas pela traição de Judas. A primeira
(cf. Êx. 12:3 e ss.). A festa de sete dias, é: Por que fez ele isso? Dizer que Satanás
dos Pães Asmos, era observada de 15 a entrou em Judas não responde à per­
21 de Nisã. Porém, no uso popular, já a gunta especificamente. Simplesmente
Páscoa e os Pães Asmos eram títulos usa­ significa que agora Judas estava se iden­
dos indiferentemente para os dois festi­ tificando com os poderes hostis (ou o
vais, por causa de sua íntima relação em reino) que se opõem ao reino de Deus.
matéria de tempo. Josefo(Antig., 14,2,1) Tem havido muitas suposições. Talvez a
escreve a respeito da “festa dos Pães melhor seja que Judas estava desiludido.
Asmos, que chamamos de Pascha” , em­ Ele seguira Jesus com grandes esperan­
bora, em outros lugares, ele também faça ças de que participaria do glorioso rei­
distinção entre as duas. nado do Messias. Mas agora ele percebia
Os principais sacerdotes e os escribas, que Jesus não tinha a intenção de dar os
membros do sinédrio, haviam decidido passos que prometessem cumprir as suas
que Jesus devia ser eliminado. O único ambições.
problema deles era como fazê-lo, pois Outra opinião é que Judas traiu Jesus
sentiam-se obrigados a encontrar um mé­ a fim de forçá-lo a exercer os poderes
miraculosos que possuía, como Messias. Cinco passagens do Novo Testamen­
Desta forma, o ato de traição seria con­ to relatam eventos que ocorreram na
siderado como uma espécie de ato de noite em que Jesus foi traído (I Cor.
lealdade pervertido, da parte de alguém 11:23 e ss.; Mar. 14:17 e ss.; Mat. 26:20
que desejava precipitar o início do reino e ss.; Luc. 22:14 e ss.; João 13:1 e ss.).
messiânico. Talvez a conjectura menos Todas concordam que Jesus participou
satisfatória seja de que Judas levou a de uma refeição com os seus discípulos
efeito esse ato apenas pelas trinta peças naquela noite. No entanto, problemas
de prata. críticos são levantados, se fizermos uma
A segunda pergunta é: O que foi que comparação desses vários relatos, espe­
Judas fez? Aparentemente, ele foi capaz cialmente das versões sinópticas e joani­
de dar aos inimigos de Jesus as informa­ na. As narrativas sinópticas identificam
ções e a ajuda de que eles precisavam, a refeição como uma celebração da Pás­
a fim de realizar os seus propósitos. coa, enquanto certas passagens em João
Guiados por Judas, eles prenderam Jesus indicam que não era. João começa a nar­
em um tempo e lugar quando ele es­ rativa com a frase: “Antes da festa da
tava isolado das multidões. 34 Assim, ele páscoa” (13:1). Em João 18:28, lemos
teve um encontro com os principais sa­ que os judeus “não entraram no pretório,
cerdotes e capitães, que ficaram felizes para não se contaminarem, mas poderem
em conseguir essa ajuda de direção to­ comer a páscoa” (cf. também 19:31).
talmente inesperada. Os capitães coman­ A narrativa joanina parece colocar a
davam a guarda do Templo, a serviço do morte de Jesus mais ou menos ao mesmo
sinédrio. Eles seriam usados para pren­ tempo em que o cordeiro pascoal era
der Jesus. Nessa conferência, eles concor­ imolado. 35 Também tem sido sugerido
daram em um plano, e, no papel de que a declaração de Paulo: “Porque Cris­
Judas nele, em troca, os sacerdotes lhe to, nossa páscoa (ou cordeiro pascal) já
prometeram dinheiro, “trinta moedas de foi sacrificado” , está também baseada
prata” , de acordo com Mateus 26:15. nessa coincidência (I Cor. 5:7). Precisa­
2) A Ültima Ceia (22:7-38) mos acrescentar a isso o fato de que
Paulo não identifica a Ültima Ceia com a
a. O Local da Ceia (22:7-13)
Páscoa (I Cor. 11:23).
7 O ra , ch egou o d ia d o s p ã e s á z im o s, e m Joachim Jeremias 36 apresentou um
que se d e v ia im o la r a p á s c o a ; 8 e J e s u s
e n v io u a P e d ro e a J o ã o , d iz e n d o : Id e , p re- argumento muito convincente, dizendo
p a ra i-n o s a p á s c o a , p a r a q u e a co m a m o s. que a última refeição de Jesus com os
9 P e rg u n ta ra m -lh e e l e s : O nde q u e re s q u e a seus discípulos, antes da crucificação, foi
p re p a r e m o s ? 10 R e sp o n d e u -lh e s: Q uando de fato a refeição pascal. É bem possível
e n tr a r d e s n a c id a d e , sa ir-v o s -á a o e n c o n tro
u m h o m e m , le v a n d o u m c â n ta ro d e á g u a ;
que Jesus e os discípulos tenham celebra­
segui-o, a té a c a s a e m q u e ele e n tr a r . 11 £ do esta páscoa antes do dia estipulado
d ire is a o dono d a c a s a : O M e s tre m a n d a pelo calendário judaico. Um ato como
p e rg u n ta r-te : O nde e s tá O a p o se n to e m que esse não seria sem precedentes (Ellis, p.
h e i d e c o m e r a p á s c o a ç o m :os m e u s d is c í­ 249 e 250). Nesse caso, tanto João como
p u los? 12 E n tã o ele vos m o s tr a r á u m g ra n d e
c e n ácu lo m o b ila d o ; a í fa z è i os p re p a r a tiv o s .
os Sinópticos estariam expressando o
13 F o r a m , p o is, e a c h a r a m tu d o com o lh e s
d is s e ra , e p re p a T a ra m a p á sc o a . 35 Consulte a exegese d as passagens pertinentes no Co­
m entário a João, neste volume. Veja tam bém a obra
34 De acordo com A lbert Schweiter (The Q uest of the d e F ra n k Stagg, New T estam ent Theojogy, p. 240-242,
Historical Jesus, T rad. p a ra o inglês p or W . Montgo- onde há um a sugestão que harm oniza João, com os
mery (New York: M acm iilan, 1950), p. 396.), Judas Sinópticos. Nas p. 235-249 da mesma obra, encontra-se
traiu o “ segredo messiânico” , dando, assim, aos ini­ um a discussão mais com pleta d a C eia do que pode ser
migos de Jesus, um a base p a ra acusá-lo de sedição, dada nesta obra.
para a qual, até que essa traição ocorreu, eles não 36 The Eucharistic W ords of Jesus, trad. p a ra o inglês por
achavam que tin h am evidências suficientes. A m old E h rh ard t (Oxford: Basil Blackwell, 1955).
que realmente aconteceu. Esta é nada redor de uma mesa origina-se de arte reli­
mais do que uma explicação possível giosa, especialmente do quadro A Última
para um problema muito complexo, para Ceia, de Leonardo da Vinci. Mas essa
o qual nenhuma resposta totalmente sa­ pintura é estranha aos costumes da Pa­
tisfatória pode ser dada, com base nos lestina, onde os convivas se reclinavam
dados existentes. para comer a Páscoa.
Os dois discípulos escolhidos por Je­ b. O Cálice e o Pão (22:14-23)
sus, para fazerem os preparativos para a
Páscoa, não mencionados por nome em 14 E , c h e g a d a a h o ra , p ô s-se J e s u s à
m e s a , e c o m e le os ap ó sto lo s. 15 E disse-
Marcos 14:13, são identificados como lh e s : T en h o d e s e ja d o a r d e n te m e n te c o m e r
Pedro e João, por Lucas. Esta responsa­ co n v o sco e s ta p á s c o a a n te s d a m in h a p a i­
bilidade era geralmente desempenhada x ão ; 16 p o is v o s digo q u e n ã o a c o m e re i m a is
pelo líder do grupo de peregrinos, neste a té q u e e la se c u m p r a no re in o d e D eu s.
11 E n tã o , h av e n d o re c e b id o u m c á lic e , e
caso Jesus; mas a passagem dá a enten­ ten d o d a d o g r a ç a s , d isse :. T om ai-o, e r e ­
der que a oposição contra ele fazia com p a rti-o e n tr e v ó s; 18 p o rq u e v o s digo que
que movimentos seus na cidade, aberta­ d e sd e a g o r a n ã o m a is b e b e re i o fru to d a
mente, se mostrassem perigosos. A pre­ v id e ira , a té q u e v e n h a o re in o d e D e u s. 19 E ,
paração para a refeição pascal incluía a to m a n d o p ã o , e h a v e n d o d a d o g r a ç a s , p a r ­
tiu-o e deu -lh o , d iz e n d o : Is to é o m e u co rp o ,
compra, sacrifício e cocção de um cor­ q u e é d a d o p o r v ó s ; fa z e i is to e m m e m ó ria
deiro, e a provisão de pão asmo, ervas d e m im . 20 S e m e lh a n te m e n te , d e p o is d a c e ia ,
amargas e vinho. to m o u o c á lic e , d iz e n d o : E s te c á lic e é o novo
Considerando-se como devia estar api­ p a c to e m m e u s a n g u e , q u e é d e r r a m a d o p o r
nhada a cidade durante aquela época, vós. 21 M a s e is q u e a m ã o do q u e m e tr a i
e s tá co m ig o à m e s a . 22 P o rq u e , n a v e rd a d e ,
deviam ser muito limitados os cômodos o F ilh o d o h o m e m v a i se g u n d o o q u e e s tá
disponíveis para a celebração da Páscoa. d e te r m in a d o ; m a s a i d a q u e le h o m e m p o r
Evidentemente, Jesus já havia arranjado q u e m é tr a íd o ! 23 E n tã o e le s c o m e ç a ra m a
um cômodo. De acordo com o costume p e r g u n ta r e n tr e s i q u a l d e le s s e r ia o que
i a fa z e r isso .
corrente, os residentes da cidade cediam
o uso de salas, mediante pedido, aos A narrativa feita por Lucas, da Ceia,
peregrinos, durante a Páscoa. Em troca, é mais longa do que a encontrada nos
eles recebiam as peles do cordeiro sa­ outros Evangelhos Sinópticos. De modo
crificado. Os dois discípulos deviam ser característico, a refeição é usada por
guiados à casa por um homem, levando Jesus como ocasião para instruir os pre­
um cântaro de água, provavelmente um sentes. Algumas palavras são encontra­
sinal combinado de antemão. Visto que das em outros contextos em Mateus e
essa era considerada uma tarefa femini­ Marcos, e algumas ocorrem apenas em
na, o homem seria facilmente identifica­ Lucas. A extensão e natureza das dife­
do. A história pode dar a entender, mas renças entre o terceiro Evangelho e M ar­
não necessariamente, que as instruções cos indicam que Lucas estava usando
de Jesus estavam baseadas em conheci­ uma fonte independente, em adição à
mento presciente. Provavelmente, o dono sua fonte primária. A variação mais no­
da casa era rt sidente de Jerusalém e se tável é a reversão da ordem dos elemen­
tomara discípulo; para ele, Jesus seria tos, o que, indubitavelmente, de forma
também o mestre ou rabi. alguma modifica o significado da Ceia.
O dono da casa já havia feito os prepa­ Claro que as práticas litúrgicas das várias
rativos, ao ponto de haver mobilado a comunidades cristãs estão refletidas, até
sala para a refeição, isto é, provido de certo ponto, nas narrativas da Ceia, dei­
almofadas ou divãs, e talvez de uma xadas pelos três Evangelistas e por Paulo.
mesa baixa. A nossa concepção popular Pôs-se... à mesa seria mais exatamente
de Jesus e seus discípulos assentados ao traduzido como “reclinou-se à mesa” .
Os doze (Mar. 14:17) são chamados, por sofrimentos_(cf. Mar. 10:39, em uma
Lucas, de apóstolos. passagem omitida por Lucas). Desta vez,
Tenho desejado ardentemente pode em um paralelo à narrativa dos outros
dar a entender que Jesus não participou Sinópticos, outra referência se faz ao
pessoalmente da refeição . 37 O mesmo banquete messiânico, em que Jesus de
verbo grego é usado em 15:16 e 17:22, novo beberá com os seus discípulos,
com o sentido de “desejo não cumprido” . quando vier o reino de Deus.
Até certo ponto, esta posição tem o apoio A outorga do cálice é seguida pela
da afirmação do verso 16, que não contém entrega do pão, acompanhada das pala­
a palavra mais no sentido de “outra vez” , vras: Isto é o meu corpo. Tem havido
de acordo com as melhores evidências. longa e acalorada controvérsia sobre o
Não obstante, a interpretação dada é significado do verbo é, que ironicamente
bem duvidosa. É difícil duvidar-se que não estaria presente na declaração ara-
Jesus não participou de uma refeição maica subjacente. “Isto significa o meu
com os seus discípulos, na noite em que corpo” seria igualmente uma tradução
foi traído. apropriada. Mas este argumento não re­
A declaração introdutória de Jesus ser­ solve a questão básica a respeito de como
ve a dois propósitos: (1) Indica que esta o pão representa o corpo de Cristo. Se­
refeição foi a única coisa que se inter­ gundo o pensamento paulino, o corpo de
pôs entre ele e seu sofrimento. (2) Identi­ Cristo não é o pão, mas o povo que
fica a Ültima Ceia com o banquete mes­ participa do pão (I Cor. 11:27-29). O pão
siânico, que Jesus compartilhará com os não é apresentado em lugar do corpo
seus discípulos no reino vindouro. Esta “quebrado” ou “partido” de Cristo (João
nota escatológica é encontrada também 19:36). Esta palavra não está no melhor
nas outras narrativas (Mar. 14:25; Mat. texto de I Coríntios 11:24 e está, de fato
26:29; I Cor. 11:26). Mas aqui é-lhe dada em desarmonia com o ensino de Paulo
uma ênfase mais proeminente, e ela con­ aqui . 38 O importante aspecto desta expe­
corda com a associação, que é caracte­ riência é que todos participam do mesmo
rística de Lucas, de uma refeição com a pão — expressão da unidade da nova
comunhão no reino. A refeição é um ato comunidade criada pela autô-entrega re­
de simbolismo profético que se cumprirá dentora do Filho do homem.
no reino de Deus. Neste ponto há um sério problema
Embora o pão preceda o cálice no es­ textual. Os versículos 19b-20 não cons­
boço feito por Paulo, a respeito da or­ tam no texto Ocidental. Todavia, o texto
dem seguida na Ceia (I Cor. 11:23-26), mais longo é sustentado por muitas das
em I Coríntios 10:16, o cálice é mencio­ melhores autoridades. O argumento de­
nado antes do pão. Isto pode indicar que cisivo contra a inclusão de 19b-20 é a sua
a ordem não erá universalmente fixada semelhança com I Coríntios 11:24,25.
na prática das igrejas. Segundo o cos- 1 Ê difícil evitar-se a conclusão de que ele é
~tume comum, cada pessoa tinha o seu uma interpolação dessa fonte. Se esta
ptóprío cálice, durante a celebração d a ) cláusula não é original, Lucas não tem
Pásooa. Mas aqui todos os discípulos j paralelo à referência feita nos outros
bebem do cálice de Jesus. Isto não indica- sinópticos, ao “ meu sangue, o sangue do
~ãpenas a unidade de sua comunhão, u ns pacto (Mat. 26:28; Mar. 14:24). Esta
com os outros, nele, mas tambenTlem­ expressão liga a morte de Jesus mais
bra, aos discípulos, que eles sãcTchãmã^ intimamente à experiência da Páscoa e à
dos para beber o mesmocálice do qual , fuga do Egito. Aconteceu uma nova li^
éle bébèu, islõ é', a participar dos séüs bertação da escrávidão7 üm novo êxodg.

37 Jeremias, ibid. p. 165. 38 Veja Stagg, New T estam ent Theology, p. 236 e ss.
ocorreu, um novo Israel nasceu e uma 20:25-28). Também nos faz recordar os
nova aliança foi instituída. Desta for* ensinamentos de Jesus no relato que João
ma, para a comunidade cristã, a Ceia faz da Ültima Ceia (13:3-16).
tomou o lugar da Pás,a3a j-iidaica. Na sua contenda, os discípulos esta­
à narrativa de Marcos começa com a vam seguindo os padrões do mundo pa­
predição da traição, que é colocada aqui gão. Nas estruturas da sociedade gentí­
por Lucas (Mar. 14:18). A enormidade lica, as pessoas grandes, nobres e honra­
da traição é caracterizada pelo fato de das são as que possuem e exercem poder
que ela foi cometida por uma pessoa que sobre os outros. Benfeitores era um título
participava da comunhão à mesa com bastante comum, dado aos governantes
Jesus, isto é, pessoa cuja mão estava com gentios.
ele à mesa (v. 21). Nos círculos sociais Mas os padrões normais da sociedade
semíticos, só um vilão trairia o seu hos­ devem ser completamente invertidos, na
pedeiro desta forma. Segundo o que está comunhão dos crentes. O maior deve ser
determinado substitui a expressão de como o mais novo. A idade era um fator
Marcos “conforme está escrito a seu res­ extremamente importante na sociedade
peito” (14:21), mudança característica, antiga, especialmente nos relacionamen­
feita, por Lucas, para fortalecer o ensino tos familiares. O mais novo era o mem­
de que a morte de Jesus era uma neces­ bro menos importante da família, aquele
sidade divina. que precisava executar as tarefas mais
Embora Jesus morresse, devido à sua servis e podia esperar a menor recom­
obediência à vontade de Deus, isto não pensa. Quem govema como quem serve
diminuía a culpa e responsabilidade do é paralelo à declaração precedente. Des­
traidor. Ele precisava arcar com as con­ te ponto de vista, as maiores pessoas, na
seqüências do seu feito. Judas não é re­ comunidade cristã, são as que, em hu­
tratado como um fantoche, sem vontade mildade e amor, se dedicam a serviço dos
própria, necessário aos propósitos de outros. Ao invés de competir, para estar
Deus. Ele não serviu aos propósitos de à frente dos outros, nós, que seguimos
Deus, mas aos do inimigo de Deus. Deus a Cristo, devemos competir no afã de
não matou Jesus; os homens maus exe­ servir aos outros. Grande parte das po­
cutaram este ato, porque não toleravam líticas denominacionais e eclesiásticas
viver no mesmo mundo com ele. O diá­ são, desta forma, condenadas pelo ensi­
logo em Marcos 14:19 é substituído pela no de Jesus. Muitas pessoas que chega­
declaração indireta de Lucas, no verso ram ao topo da escada, em sua deno­
23. minação, depois de anos, procurando o
reconhecimento público, podem conside­
c. Discussão Sobre Grandeza (22:24-27) rar que possuem um recibo marcado por
34 L e v a n to u -se ta m b é m e n tr e e le s c o n ­ Deus: “pago” (cf. Mat. 6:2,5,16).
te n d a , so b re q u a l d e le s p a r e c ia s e r o m a io r. Na organização normal da sociedade
25 Ao q u e J e s u s lh e s d is s e : Os re is dos humana, o homem que está à mesa é
g en tio s d o m in a m s o b re e le s, e os q u e so b re
e le s e x e rc e m a u to r id a d e sã o c h a m a d o s
considerado superior à pessoa que lhe
b e n fe ito re s. 26 M a s v ó s n ã o s e r e is a s s im ; serve a comida. Porém, a vida de Jesus
a n te s o m a io r e n tr e v ó s s e ja c o m o o m a is instituiu uma nova escala de valores,
n o v o ; e q u e m g o v e rn a co m o q u e m se rv e . uma abordagem completamente revolu­
27 P o is q u a l é m a io r, q u e m e s tá à m e s a , ou cionária, quanto às relações humanas,
q u e m s e rv e ? E u , p o ré m , e sto u e n tr e vós
com o q u e m s e r v e . para os seus seguidores. Pois ele esteve
entre os homens como servo (como em
Esta é uma passagem que só Lucas João 13:3 e ss.). Ele veio para ser imi­
coloca aqui, mas relaciona-se, em con­ tado em seu serviço. Ninguém verdadei­
teúdo, com Marcos 10:42-45 (cf. Mat. ramente pode chamar-se seguidor de Je-
sus se não estiver disposto a adotar esta fiantemente a respeito de um reino que o
nova escala de valores. seu Pai já lhe havia conferido. Ê de se
Note-se que Lucas não contém nada notar que mesmo ao ele ser chamado
que corresponda à citação de Marcos: para sofrer, ainda chamou a Deus de
“e para dar a sua vida em resgate de Pai. Ao fazê-lo, ele deixou um exemplo
muitos” (10:45). Lucas enfatiza a neces­ para os, dentre nós, que são mais fracos,
sidade divina, e não o significado divino que algumas vezes se voltam para Deus
da morte de Jesus. só quando a vida se torna difícil. A par­
d. Á Promessa do Reino (22:28-30) ticipação na vitória de Cristo está rela­
cionada intimamente com a participação
28 M a s vó s sois os q u e te n d e s p e r m a n e ­ nas suas provações (cf. Fil. 3:10,11).
cido co m ig o n a s m in h a s p ro v a ç õ e s ; 29 e
a s s im com o m e u P a i m e c o n fe riu do m ín io ,
O reino que Deus confere a Jesus, isto
eu vo-lo co n firo a v ó s; 30 p a r a q u e c o m a is e é, a sua posição de autoridade e glória, é
b e b a is à m in h a m e s a no m e u re in o , e vos a base para a esperança dos seus dis­
s e n te is so b re tro n o s, ju lg a n d o a s doze trib o s cípulos. A nossa confiança quanto ao
de I s r a e l. futuro é, desta forma, ligada ineludivel-
Pelo motivo de ter Jesus escolhido vir mente à nossa confiança de que Jesus é
ao mundo como quem serve, ele precisou de fato o Filho de Deus, cuja ressurreição
aceitar as conseqüências de sua escolha, representa vitória sobre as desigualda­
isto é, as suas provações. A mesma pala­ des e injustiças da vida. A crença no
vra é traduzida como tentação, em 4:13. futuro de Jesus era, para os discípulos,
Ela pode referir-se às pressões contínuas, crença também no futuro deles. Foi no
exercidas sobre ele, para assumir o pa­ momento em que eles perderam esta fé
pel messiânico elaborado pelo desejo po­ no futuro dele, que começaram a temer e
pular, como, por exemplo, com o pedido a desesperar quanto ao futuro deles mes­
de um sinal. Mais provavelmente, as mos.
suas provações foram a hostilidade e Jesus fez um a dúplice promessa aos
ameaças, que agora o assediavam. Ime­ doze. Eles participariam da comunhão
diatamente pensamos como Jesus foi do seu reino, isto é, iriam comer e beber
abandonado, até pelos doze, no momen­ à sua mesa no banquete messiânico. Eles
to de crise, dali a apenas algumas horas. iriam compartilhar da autoridade do seu
Mas o texto enxerga além desse fracasso, governo como juizes das doze tribos de
e vê a lealdade subseqüente desses mes­ Israel. Provavelmente, há uma analogia
mos homens, cujos sacrifícios apagam o entre a relação dos patriarcas para com o
fato de terem tropeçado tão tragicamen­ Israel de outrora e a dos discípulos para
te. com o novo Israel. Os doze representa­
Satanás havia oferecido um reino a Je­ vam o começo da nova comunidade; o
sus — um reino deste mundo (4:5-7). povo da nova aliança.
Naquela ocasião, Jesus repudiara os al­
vos presentes, tangíveis, mundanos, e e. Á Predição de Que Pedro o Negaria
reafirmara a sua lealdade a Deus. Agora (22:31-34)
ele enfrentava as conseqüências dessa
escolha. Porém, no momento de inde- 31 S im ão , S im ão , e is q u e S a ta n á s vos
p e d iu p a r a v o s c ir a n d a r c o m o t r ig o ; 32 m a s
fensabílidade diante das ondas ameaça­ e u ro g u e i p o r ti, p a r a q u e a tu a fé n ã o d e s­
doras do mal e da paixão humana, ele fa le ç a ; e tu , q u a n d o te c o n v e rte re s , f o r ta ­
afirmou a sua convicção de que Deus é o le c e te u s ir m ã o s . 33 R esp o n d e u -lh e P e d ro :
rei do universo. Desta forma, ele, que em S en h o r, e sto u p ro n to a i r co n tig o ta n to p a r a
a p ris ã o c o m o p a r a a m o r te . 34 T o m o u -lh e
breve estaria dependurado em uma cruz, J e s u s : D ig o -te, P e d ro , q u e n ã o c a n ta r á h o je
como vítima do ódio e injustiça dos do­ o g a lo a n te s q u e tr ê s v e z e s te n h a s n e g a d o
minadores do mundo, conversava con­ q u e m e co n h e c e s.
Marcos coloca, a predição de que Pe­ causada pela crucificação. O papel de
dro iria negar Jesus, depois da ceia, a Simão como líder da comunidade cristã
caminho do Monte das Oliveiras (14:26- primitiva é atestado por este texto. Mas
31). A repetição Simão, Simão empresta os outros discípulos foram chamados de
solenidade às palavras subseqüentes e irmãos. A relação não é hierárquica, mas
expressa profunda preocupação. Satanás familiar. Todas as distinções artificiais
é retratado, em Jó (1:6-12; 2:1-6), como o entre clero e laicato são uma distorção de
acusador dos homens diante de Deus e nossas relações uns com os outros. Todos
também como alguém que tenta destruir nós somos filhos de Deus; todos somos
a fé que eles têm em Deus, usando os irmãos uns dos outros.
meios que lhe estão disponíveis. Satanás A sugestão de que Pedro falharia no
vos pediu, isto é, pediu a Deus, reforça o teste, logo a seguir, o estimulou a protes­
ensinamento de que o mal não é final no tar. Ele estava disposto a ir até a prisão
universo. O poder de Satanás é limitado, ou à morte. Prisão é mencionada apenas
tanto em relação ao tempo quanto ao seu em Lucas (cf. Mar. 14:31). Atos narra
alcance. Cirandar descreve o processo de como Pedro reagiu ousadamente diante
provas pelo qual o genuíno é separado do de prisões e ameaças, depois da ressur­
falso, o bom do mau. Vos (v. 31) refe­ reição (cf. v.g., 4:19 e s.). Mas isso
re-se a todos os discípulos, pois a lealda­ aconteceu mais tarde, quando ele enten­
de de todos eles seria testada pelos acon­ deu melhor o significado do reino. Agora
tecimentos daquela noite. ele ainda era dominado por idéias de
Contra as demandas de Satanás, são poder e grandeza terrenos. A fim de
colocadas as orações de Jesus pelos seus. ajudar Jesus a ganhar o seu reino messiâ­
Jesus é o seu advogado quando Satanás nico, ele estava disposto a morrer. E ele
é o seu acusador (cf. I João 2:1). Desta estava dizendo a verdade. A história está
declaração, não devemos admitir a idéia cheia de nomes de homens que morre­
errada ou distorcida de um Deus neutro ram, buscando o poder. Mas aqueles que
ou distante, influenciado por um lado se dispuseram a morrer um tipo de morte
pelas demandas de Satanás, e, por outro, redentora são poucos.
pelas orações de Jesus. A opinião cristã a Jesus prediz que Pedro o negaria antes
respeito de Deus é que ele estava “em do dia raiar. O cantar do galo era a
Cristo, reconciliando consigo o mundo” terceira vigília da noite, de acordo com a
(II Cor. 5:19). Dizer que Cristo veio para contagem romana do tempo. A hora de
os homens que são fracos e pecadores é que se está falando era cerca de 3 horas
dizer que Deus não os abandona na hora da manhã, fim da terceira vigília romana
da necessidade. (veja também Mar. 13:35). Hoje é colo­
Jesus havia orado por Simão (singular cado em lugar de “hoje, nesta noite”
ti, no v. 32), que seria o instrumento (Mar. 14:30). O dia judaico começava ao
usado para fortalecer os outros discípu­ pôr-do-sol.
los. Fé é a espécie de dedicação a Cristo
que faz com que a pessoa o reconheça f. Instruções aos Discípulos (22:35-38)
publicamente, quando for difícil fazê-lo.
35 E p e rg u n to u -lh e s: Q u and o vos m a n d e i
O fato de Simão negá-lo seria apenas um se m b o ls a , a lfo rje , ou a lp a r c a s , falto u -v o s
episódio temporário. Ele voltaria, isto é, p o rv e n tu ra a lg u m a c o is a ? E le s re s p o n d e ­
renovaria a sua dedicação em seguir a r a m : N a d a . 36 D isse -lh e s, p o is: M a s a g o ra ,
Jesus. Ele seria o primeiro dos doze a se q u e m tiv e r b o ls a , to m e -a , co m o ta m b é m o
encontrar com o Senhor ressurrecto, e a a lf o rje ; e q u e m n ã o tiv e r e s p a d a , v e n d a o
seu m a n to e c o m p re -a . 37 P o rq u a n to vos
entender o fato da ressurreição (cf. 24: digo q u e im p o rta q u e se c u m p r a e m m im
34). E então ele seria capaz de ajudar os isto q u e e s t á e s c r ito : E co m os m a lfe ito re s
que estivessem sofrendo com a dúvida foi c o n ta d o . P o is o q u e m e diz re s p e ito te m
se u c u m p rim e n to . 38 D is s e ra m e le s : Se­ maneira como Jesus se compreendia a si
n h o r, e is a q u i d u a s e s p a d a s . R esp o n d eu -
lh e s : B a s ta .
mesmo, bem como o retrato que o Evan­
gelho apresenta dele sejam grandemente
Esta difícil passagem encontra-se ape­ influenciados por Isaías 53, esta citação é
nas em Lucas. Bolsa ou alparcas não são a única que provém diretamente desse
mencionadas no comissionamento dos capítulo. A seqüência normal, na exe­
doze (cf. 9:3), mas no dado aos setenta cução de um líder rebelde, era que os
(cf. 10:4). Talvez a falta de coincidência seus seguidores fossem caçados e exter­
seja devida a um cochilo de editoria, minados. Esse era o perigo, que se tor­
quando os materiais, provindos de várias nou tão real para Simão Pedro apenas
fontes, foram colocados em sua forma algumas horas mais tarde. Podemos ima­
fin»l. O significado básico deste texto ginar o que teria acontecido se Pedro
não é afetado. Jesus estava colocando em tivesse reconhecido, naquela hora, o seu
contraste a missão anterior com o mo­ relacionamento com Jesus, em vez de
mento de perigo e conflito em que eles o negar.
agora entrariam. Anteriormente, os dis­ Os discípulos não entenderam Jesus,
cípulos não haviam necessitado de supri­ e dificilmente perceberam que duas (ou
mentos para a sua jornada; as casas se onze) espadas não propiciariam prote­
lhes abririam e o povo lhes seria hospi­ ção. Que Jesus não pretendia que armas
taleiro. violentas fossem usadas, é demonstrado
Agora a situação mudara, fato deno­ claramente nos versículos 49-51, mais
tado pelas referências à renovada ativida­ adiante. Basta quase não faz sentido, se
de de Satanás (22:3,31). Os discípulos interpretarmos este termo com o signifi­
precisavam estar preparados para en­ cado de que duas espadas eram suficien­
frentar hostilidade. Eles descobririam tes. Afinal de contas, Jesus havia acaba­
que a mão de seus companheiros estaria do de aconselhar a cada um deles que
contra eles. Agora, as atitudes e atos arrumasse uma espada. Provavelmente,
deles precisavam ser determinados pela podemos entender a resposta com este
nova atmosfera. Jesus os advertiu para significado: “Basta de falar de espadas.”
levarem consigo provisões, e se armarem Jesus encerra abruptamente uma discus­
com uma espada, mesmo que para tal são, cujo verdadeiro significado os seus
precisassem vender o seu manto.O man­ seguidores não haviam conseguido en­
to era peça indispensável, de vestuário tender.
exterior, que servia tanto de capa como
de cama. 3) No Monte das Oliveiras (22:39-46)
Aqui encontramos um problema ób­ 39 E n tã o s a iu e, se g u n d o o se u c o stu m e ,
vio. Como podia Jesus, que havia coe­ foi p a r a o M o n te d a s O liv e ira s ; e os d is c í­
rentemente rejeitado o uso da força, ago­ p u lo s o s e g u ira m . 40 Q u an d o c h eg o u à q u e le
lu g a r, d is s e -lh e s : O ra i, p a r a q u e n ã o e n tre is
ra aconselhar os seus discípulos a pro­ e m te n ta ç ã o . 41 E a p a rto u -s e d e le s c e r c a d e
curarem uma espada? É quase certo a u m tiro d e p e d r a ; e, pond o-se d e jo e lh o s,
resposta ser que as suas declarações de­ o ra v a , 42 d iz e n d o : P a i, se q u e re s a f a s ta de
vem ser entendidas metaforicamente. O m im e s te c á lic e ; to d a v ia , n ã o se f a ç a a
que ele queria dizer é que os discípulos m in h a v o n ta d e , m a s a tu a . 43 E n tã o lh e
a p a re c e u u m a n jo do c éu , q u e o c o n fo rta v a .
estavam diante de graves perigos, e que 44 E , p o sto e m a g o n ia , o r a v a m a is in te n s a ­
precisavam estar realisticamente côns­ m e n te ; e o se u s u o r to rn o u -se co m o g ra n d e s
cios disso. g o ta s d e sa n g u e , q u e c a ía m so b re o ch ã o .
O perigo se originava no fato de eles 45 D ep o is, le v a n ta n d o -s e d a o ra ç ã o , v eio
p a r a os se u s d isc íp u lo s, e a c h o u -o s d o rm in ­
estarem associados a ele. Ele seria con­ do de tr is te z a ; 46 e d is s e -lh e s : P o r q u e e s ta is
denado à morte como proscrito, ou seja, d o rm in d o ? L e v a n ta i-v o s, e o ra i, p a r a que
contado... com os malfeitores. Embora a n ã o e n tr e is e m te n ta ç ã o .
Deixando o cenáculo, Jesus foi, segun­ que estava procurando a morte. Ele rogou
do o seu costume... para o Monte das a Deus para que o poupasse da prova que
Oliveiras. Esta frase indica que os seus estava imediatamente diante dele. Em ­
movimentos não foram furtivos ou secre­ bora ninguém possa sondar essa prova
tos (Grundmann, p. 411). Ele agora es­ terrível, a agonia de Jesus no Getsê­
tava seguindo o seu curso normal de mane pode ser explicada, em parte, pelo
atividades (como em 21:37,38). Lucas fato de que ele enfrentou a rejeição do
omite Getsêmane (Mar. 14:32), prova­ seu próprio povo, daqueles a quem ele
velmente em consonância com o seu cos­ havia-se dado, e a quem ele abrira a
tume de omitir nomes semíticos, e indica porta do reino. Sobretudo, ele estava
apenas o lugar. Ele também não revela amargurado devido às terríveis conse­
que Pedro, Tiago e João acompanharam qüências dessa rejeição, que ele retratou
Jesus além do lugar onde os outros dis­ tão vividamente. Todavia, nessa hora de
cípulos pararam (Mar. 14:33). Em vez de provação, Jesus mais uma vez conquistou
três períodos separados de oração, segui­ a vitória. Ele não seria dissuadido de sua
dos, em cada caso, por um retorno ao dedicação. E, também, ele não se ame­
lugar onde estavam os três discípulos, drontaria diante de suas últimas conse­
Lucas condensa o episódio em uma só qüências.
vigília de oração e uma volta. A con­ Tudo o que Jesus precisava fazer, a
densação de narrativas feitas por Marcos fim de escapar da morte, era sair do Get­
é característica tanto de Lucas como de sêmane e procurar algum refúgio seguro
Mateus. — era recusar-se a confrontar o seu povo
Agora que os poderes malignos ha­ com a necessidade de este fazer a sua
viam-se preparado contra o reino de escolha final, decisiva. Mas, se ele tives­
Deus, os discípulos foram conclamados se saído do Getsêmane, não existiriam
para orar, para que não entrassem em evangelho nem Novo Testamento nem
tentação. Tentação aqui refere-se a hos­ hinos cristãos nem igrejas. O Getsêmane
tilidade, angústia e pressões, a que bem foi o lugar onde a tendência para salvar-
logo os discípulos estariam sujeitos. Em se a si mesmo, por parte de Jesus, entrou
Marcos, Jesus explica a base para esta em direto conflito com o encargo que lhe
pressuposição: “O espírito, na verdade, foi dado por Deus para se doar reden­
está pronto; mas a carne é fraca” (Mar. toramente. Nessas situações, geralmente
14:38). Em outras palavras, os discípulos escolhemos nos salvar a nós mesmos.
simplesmente não estavam preparados Mas ele escolheu perder-se, para salvar-
para a crise que estava para irromper. nos. Portanto, a sua oração terminou
Na condição em que estavam, o seu único como deveriam terminar todas as orações
recurso era orar para que não fossem feitas por alguém que é dedicado a Deus:
envolvidos em uma situação que os levas­ não se faça a minha vontade, mas a tua.
se a pecar. Os versículos 43 e 44 são omitidos de
Jesus então se afastou deles cerca de um alguns manuscritos, inclusive do B (Va­
tiro de pedra, ou seja, suficientemente ticano), uma das principais autoridades
perto para que os discípulos pudessem textuais. A maioria dos manuscritos, in­
testemunhar a sua luta. Notamos que Je­ clusive alguns dos melhores, contém es­
sus ainda se dirigiu a Deus como Pai. tes versículos. Eles também são bem
Mesmo agora, quando ele era forçado a atestados nos Pais da Igreja. No entanto,
andar como solitário, pela terrível estrada alguns estudiosos têm sugerido que eles
do sofrimento, ele afirmou o relaciona­ são uma interpolação antignóstica. Con­
mento básico dele com Deus. Este cálice tudo, mais provavelmente a sua omissão,
significava o seu sofrimento e morte. Ê em alguns manuscritos, é devida à ten­
claro que Jesus não era um masoquista, dência de menoscabar a luta de Jesus.
Eles nos dizem que Jesus não foi abando­ Jesus, devido à sua íntima relação com
nado na hora da crise, mas que ele ele. A situação exigia que a prisão fosse
recebeu forças celestiais. Eles também consumada com rapidez, a fim de provo­
descrevem a profundidade de sua agonia. car o mínimo possível de turbulência.
Agonia significa ansiedade, tensão inte­ Marcos nos revela que o beijo era um
rior. Não devemos pensar nela como sinal, antecipadamente combinado, de
“medo da morte, mas como preocupação identificação (14:44). Lucas não diz isso,
pela vitória, em face da batalha decisiva apresentando, pelo contrário, a observa­
que se aproximava, da qual dependia a ção de Jesus para Judas. Com um beüo
sorte do mundo” (E. Stauffer, TDNT, vem em primeiro lugar, no texto grego —
I, p. 140). posição enfática. O ato de traição foi
Nessa hora crucial, os discípulos não consumado com um gesto ostensivo de
estavam orando: estavam dormindo! E amor.
apenas a um tiro de pedra da arena em Só Lucas menciona a pergunta dos
que Jesus estava se empenhando em companheiros de Jesus: Feri-los-emos a
uma batalha titânica! Lucas, que sempre espada? Sem esperar resposta, o ato foi
tende a defender os discípulos, adiciona consumado. Lucas, bem como João (18:
a expressão de tristeza como explicação 10 ), nos dizem que a orelha diréita do
atenuante. Ele também omite Marcos servo (escravo) do sumo sacerdote foi
14:41,42, talvez devido à sua falta de cortada. Só Lucas nos informa que Jesus
clareza, e encerra o episódio com uma reparou o dano. Basta é uma palavra
repetição da injunção do versículo 40. enigmática, susceptível de várias inter­
4) Jesus é Preso (22:47-53) pretações (cf. Plummer, p. 512). Literal­
mente, é “permiti-o até aqui” . Com
47 E , e sta n d o e le a in d a a f a la r , e is que
su rg iu u m a m u ltid ã o ; e a q u e le q u e se c h a ­ Creed, podemos interpretar: “Deixem os
m a v a J u d a s , u m d o s do ze, i a a d ia n te d e la , e acontecimentos seguir o seu curso — até
ch eg o u -se a J e s u s p a r a o b e ija r . 48 J e s u s , a minha prisão” (p. 274). É um repúdio,
p o ré m , lh e d is s e : J u d a s , co m u m b eijo tr a is feito por Jesus, desse ato de violência.
o F ilh o do h o m e m ? 49 Q u an d o o s q u e e s t a ­
v a m co m e le v ir a m o q u e i a s u c e d e r, d is s e ­
Seja o que for que esteja querendo dizer
r a m : S en h o r, fe ri-lo s-em o s a e s p a d a ? 50 o verso 36, esta passagem mostra que o
E n tã o u m d e le s fe riu o se rv o do su m o s a c e r ­ uso óbvio de uma espada não é o que se
d o te, e c o rto u -lh e a o re lh a d ir e ita . 51 M as tem em vista.
J e s u s d is s e : D eix a i-o s; b a s ta . E , tocando- Lucas difere dos paralelos, incluindo
lh e a o re lh a , o c u ro u . 52 E n tã o d is se J e s u s
a o s p rin c ip a is s a c e r d o te s , o fic ia is do te m p lo elementos do sinédrio, principais sacer­
e a n c iã o s, q u e tin h a m ido c o n tr a e le : S a ís ­ dotes e anciãos, no contingente que veio
te s , co m o a u m s a lte a d o r , co m e s p a d a s e prender Jesus. Os líderes são um cons­
v a r a p a u s ? 53 T odos o s d ia s e s ta v a e u c o n ­ tante fator nas ações levadas a efeito,
vosco no te m p lo , e n ã o e s te n d e s te s a s m ã o s
c o n tra m im ; m a s e s ta é a v o s s a h o ra e o
desde a prisão de Jesus até a sua cruci­
p o d e r d a s tr e v a s . ficação. Os guardas do Templo vieram
armados, para prender Jesus, como se ele
A chegada da multidão interrompeu fosse um salteador. Esta palavra era usa­
as injunções de Jesus aos seus discípulos. da para designar os membros dos ban­
Ela foi dirigida por Judas, que, desta dos armados, quase revolucionários, que
forma, compriu o seu pacto com os ini­ consistiam em problema contínuo para o
migos de Jesus. Mais uma vez é-nos feito governo romano, especialmente na Ga-
recordar que ele era um dos doze. Só liléia. Os inimigos de Jesus haviam vindo
ele sabia exatamente onde Jesus estava. preparados como se fossem lidar com um
E, até na escuridão, iluminada insufi­ revoltoso, que podia ser que fosse de­
cientemente pela tremeluzente luz das fendido pelos seus seguidores — uma
tochas, ele pôde identificar facilmente interpretação pervertida, à luz dos ensi­
nos e da conduta pública de Jesus. Ele O grande número de aspectos que di­
não era um rebelde que estava-se escon­ ferenciam a narrativa da paixão, feita
dendo das autoridades. por Lucas, constitui um dos argumentos
A falta de convicção moral real, por usados pelos que advogam um Proto-
parte dos líderes judeus, foi demonstrada Lucas (veja Introdução). De acordo com
por não terem conseguido prender Jesus esta teoria, elementos de Marcos foram
enquanto ele aparecera diariamente no interpolados em uma narrativa anterior,
Templo. Apenas sob a capa das trevas da paixão, já composta por Lucas. Lucas
eles haviam ousado levar os seus obje­ de fato faz extensivo uso de outros ma­
tivos a efeito. Esta é a vossa hora indica teriais, nesta seção, mas a estrutura bá­
que as forças do mal pareciam estar sica ainda provém de Marcos.
sendo vitoriosas por ora. As forças demo­ Lucas não identifica o sumo sacerdote
níacas estavam sendo desatadas no mun­ (cf. 3:2). João diz que Jesus foi primeira­
do, cuja autoridade (poder) vinha das mente levado a Anás (18-: 13). Possivel­
trevas. Os inimigos de Jesus eram ferra­ mente, Anás e seu genro, Caifás, sumo
mentas desse poder tenebroso. Mas cada sacerdote naquela época, viviam na mes­
fato, cada acontecimento é avaliado à luz ma casa. De acordo com Marcos, houve
da soberania eterna e final de Deus. O uma audiência nessa noite, da qual par­
poder (autoridade) das trevas era, por­ ticiparam “ os principais sacerdotes e
tanto, limitado e temporário; era apenas todo o sinédrio” (14:55). Não há evidên­
por uma hora. cias, na literatura rabi nica, de que uma
Lucas não fala da fuga dos discípulos reunião oficial, que seria muito irregu­
(Mar. 14:50) nem do estranho episódio lar se realizada de noite. tivesse alguma
da fuga do jovem (Mar. 14:51,52). vez sido convocada para a casa do sumo
sacerdote. Talvez Marcos se estivesse re­
ferindo a um interrogatório informal.
VII. A Paixão de Jesus (22:54- Lucas fala de apenas uma reunião do
23:56a) sinédrio, que ele coloca em hora poste­
1. O Julgamento de Jesus (22:54-23:25) rior ao romper do dia. Freqüentemente é
seu costume encaixar desta forma o ma­
1) Pedro Nega Jesus (22:54-62) terial provindo de sua fonte.
O fato de Pedro ter negado Jesus segue
5 i E n tã o , pred en d o -o , o le v a r a m e o in tr o ­ imediatamente à nota a respeito da pri­
d u z ira m n a c a s a do su m o s a c e r d o te ; e
Pe.dro seg u ia-o d e lo n g e. 55 E , te n d o e le s
são e detenção de Jesus na casa do sumo
a c e n d id o fogo no m e io do p á tio e h av en d o -se sacerdote. Seja qual for o juízo que fi­
s e n ta d o à ro d a , sen to u -se P e d ro e n tr e e les. zermos de Pedro, precisamos lembrar
56 U m a c ria d a , vendo-o s e n ta d o a o lu m e , que ele pelo menos teve a temeridade de
fixou os olhos n e le e d is s e : E s s e ta m b é m seguir a Jesus, embora furtivamente, de
e s ta v a co m e le , 57 M a s P e d ro o n eg o u ,
d izen d o : M u lh e r, n ã o o c o n h eço . 58 D a í a longe. A Páscoa ocorria em março-abril,
pouco, o u tro o v iu , e d is s e : T u ta m b é m é s época em que as noites eram ainda frias,
u m d e le s . M a s P e d ro d is s e : H o m e m , n ão por vezes. Por esse motivo, eles acende­
so u . 59 E , te n d o p a s s a d o q u a se u m a h o ra , ram fogo. Não somos informados como
o u tro a f ir m a v a , d izen d o : C e rta m e n te e s te
ta m b é m e s ta v a co m e le , p o is é g a lile u . 60 foi que a criada identificou Pedro como
M as P e d ro re s p o n d e u : H o m e m , n ão se i o um dos companheiros de Jesus. Apanha­
q ue d iz e s. E im e d ia ta m e n te , e s ta n d o e le do, Pedro, pelo brilho que o holofote
a in d a a f a la r , c a n to u o g alo . 61 V iran d o -se o dessa acusação lançava sobre ele, a sua
S en h o r, olhou p a r a P e d r o ; e P e d ro lem b ro u - coragem se foi. Ele nega qualquer rela­
se d a p a la v r a do S en h o r, c o m o lh e h a v ia
d ito : H o je, a n te s q u e o g alo c a n te , tr ê s v e z e s cionamento com Jesus. Plummer nota:
m e n e g a rá s . 62 E , h a v e n d o sa íd o , ch o ro u “Não foi Pilatos nem qualquer membro
a m a r g a m e n te . do sinédrio nem um contingente de sol-
dados, mas uma simples criada que ame­ 2) Zombam de Jesus (22:63-65)
drontou o Apóstolo autoconfiante, levan­ 63 O s h o m en s q u e d e tin h a m J e s u s z o m b a ­
do-o a negar o seu Mestre” (p. 516). v a m d ele, e ferla m -n o 64 E , v en d an d o -lh e
Isto é realmente desagradável. Talvez a o s olhos, p e rg u n ta v a m : P ro fe tiz a , q u e m foi
sua fraqueza possa ser melhor descrita q u e te b a te u ? 65 E , b la s fe m a n d o , d iz ia m
como a de um homem desiludido, cujos m u ita s o u tr a s co is a s c o n tr a ele.
sonhos caem em frangalhos diante dele. Os soldados romanos zombaram de
Ao invés de ser levado por Jesus a vencer, Jesus, depois de ter sido julgado diante
parece mais provável que ele foi vítima de Pilatos, de acordo com Marcos 15:16-
dos acontecimentos que, em rápida su­ 20. Lucas segue Marcos, nesse ponto.
cessão, transformaram esperança em de­ Diz que os captores de Jesus — talvez os
sespero. Morrer, quando há esperança guardas do Templo — zombaram dele e
de vitória, é uma coisa; morrer por uma o açoitàram. Era evidentemente uma es­
causa perdida, é outra, bem diferente. pécie de passatempo cruel, para m atar o
Todos os Evangelhos registram uma tempo até o dia amanhecer. O brinquedo
que eles inventaram, tendo Jesus como
acusação tríplice e uma negação tríplice.
vítima, mostra que ele ganhara a reputa­
Há algumas variações quanto aos deta­
lhes, particularmente quanto à identida­ ção, de todos conhecida, de profeta. Um
profeta tem profundo discernimento das
de dos acusadores de Pedro. Outro
atividades e dos propósitos de Deus. De
(v. 58) é a mesma empregada de Marcos
fato, ele vê o que os outros não podem
14:69). Outro (v. 59) substitui “ os que ali
ver, e ouve o que os outros não conse­
estavam” de Marcos 14:70. O sotaque
guem ouvir. Mas isso é totalmente dife­
regional de Pedro deve ter traído o fato
rente de clarividência ou mágica. Os seus
de que ele era galileu. Era simplesmente
atormentadores participavam da manei­
natural concluir-se que um galileu fosse
ra como o povo interpretava mal a ver­
seguidor de Jesus. De acordo com a sua
dadeira função de um profeta, O tema
tendência, Lucas poupa o apóstolo, não
principal é a profunda humilhação de
dizendo que ele “começou a praguejar e
Jesus, e a vergonha que ele deve ter
a jurar” (Mar. 14:71).
sentido. Ele estendera aos homens a mão
Só o terceiro Evangelho registra a cena de amor; eles replicavam com o punho
pungente que teve lugar quando o galo fechado de ódio e zombaria.
cantou: Virando-se o Senhor, olhou para
3) Jesus Diante do Sinédrio (22:66-71)
Pedro. De onde? Talvez através de uma
porta ou janela que dava para o pátio. 66 L ogo q u e a m a n h e c e u , re u n iu -se a a s ­
se m b lé ia d o s a n c iã o s do povo, ta n to os p r in ­
O canto do galo e o olhar do Senhor c ip a is s a c e r d o te s com o o s e s c r ib a s , e o c o n ­
fizeram Pedro reconhecer a enormidade d u z ira m a o sin é d rio d e le s , o n d e lh e d is s e ­
do seu fracasso. Ele não se desculpou, r a m : 67 Se tu é s o C risto , dize-no-lo. R e p li­
como bem podia ter feito. Afinal de co u -lh es e le : Se e u vo-lo d is s e r, n ã o o c r e ­
contas, ele não agira pior do que os r e is ; 68 e se e u v o s in te r r o g a r , d e m o d o
a lg u m m e re s p o n d e re is . 69 M a s d e sd e a g o r a
outros que haviam desertado do Senhor. e s t a r á a s s e n ta d o o F ilh o do h o m e m à m ã o
E, havendo saído, chorou. Este é o mo­ d ir e ita do p o d e r d e D e u s. 70 Ao q u e p e rg u n ­
mento quando a graça pode começar a t a r a m to d o s: L ogo, tu é s o F ilh o d e D e u s?
sua obra — quando o homem é despido R e sp o n d e u -lh e s: V ós d iz e is q u e e u sou.
71 E n tã o d is s e r a m : P o r q u e a in d a te m o s
da sua arrogância, e se coloca diante de n e c e ss id a d e d e te s te m u n h o ? p o is n ó s m e s ­
Deus nu, mostrando a sua necessidade. m o s o o u v im o s d a s u a p ró p r ia b o c a .
O versículo 62, paralelo exato de Mateus
26:75b, é omitido, do texto, por velhos Depois que o dia amanheceu, o siné­
manuscritos latinos. Bem pode ser uma drio se reuniu, em sessão oficial. Como já
interpolação. notamos, Lucas encaixa a narrativa, feita
por Marcos, de duas audiências diante poder, a palavra podia ser usada np seu
do sinédrio, fazendo das duas uma. sentido absoluto, como um dos nomes de
Também é possível que ele esteja seguin­ Deus. Estar sentado à mão direita de
do outra fonte, que citasse apenas uma Deus é ocupar o lugar de maior honra no
audiência. A pergunta, feita em Marcos céu.
14:61, aqui é dividida em duas. Primei­ Filho de Deus tornou-se o título su­
ro, os membros do sinédrio perguntam a premo, para Jesus, na Igreja. Mas a
Jesus se ele é o Cristo (Messias). Segun­ concepção que a Igreja faz de Jesus,
do, perguntam se ele é o Filho de Deus. como o Filho de Deus, tem o seu fun­
Mediante todas as evidências, concluí­ damento em sua própria consciência,
mos que Jesus não declarou publicamen­ de uma relação única com Deus, expres­
te que era o Messias, durante o seu sa, por exemplo, na maneira como ele
ministério. Ele viveu e agiu de acordo falou de Deus como seu Pai. Para ele,
com o programa retratado em Isaías isso não era um dogma abstrato, meta­
61:1,2, e compeliu as pessoas a tomarem físico, da trindade. Era uma convicção
as suas próprias decisões. Faltando-lhes existencial de que a sua vida pertencia
o tipo de evidência direta, de qúe neces­ unicamente a Deus. Para nós, também,
sitavam, os interrogadores queriam que os dogmas teológicos que procuram deli­
Jesus admitisse publicamente que era near o indefinível, são freqüentemente
o Messias. Então eles poderiam interpre­ sem verdadeiro significado. A convicção
tar essa declaração em termos políticos, de que Jesus é o Filho de Deus pode
acusando Jesus de ser um revolucioná­ significar muita coisa que não entende­
rio. Na audiência realizada durante a mos. Mas pelo menos significa que não
noite, citada por Marcos, Jesus responde há nem pode haver outra revelação de
afirmativamente (14:62). Aqui se recusa Deus, na história, tão clara e tão profun­
a responder, dizendo que seria inútil ele da como esta. Jesus é a chave do nosso
tentar defender-se. Não importava o que entendimento, acerca de Deus e do mun­
ele dissesse, eles não creriam nele. E, do, de nós mesmos e dos nossos seme­
igualmente, eles não responderiam se lhantes, da história e do futuro.
ele, em defesa própria, os questionasse. Vós dizeis que eu sou é difícil. Apa­
Era prática processual aceita que se per­ rentemente, significa: “Vocês é que
mitisse ao acusado levantar questões e usam esta frase, e não eu.” Mas também
fazer perguntas. As autoridades textuais deve, certamente, querer dizer concor­
Ocidentais acrescentam “nem me solta­ dância, porque então os juizes disseram
reis” ao verso 68 , que pode ser a redação que Jesus se incriminou. No caso de
original. O significado da resposta de Je­ confissão feita pelo acusado, as teste­
sus é que a causa movida contra ele já munhas eram desnecessárias. O pecado
fora julgada antecipadamente, de tal for­ de que Jesus era culpado, aos olhos da
ma que nenhuma decisão honesta podia corte, era a blasfêmia. Este é um crime,
ser feita. segundo a perspectiva da lei judaica, mas
De modo característico, Lucas não essa acusação não podia ser feita diante
menciona a vinda do Filho do homem de uma corte romana.
“com as nuvens do céu” (Mar. 14:62).
Os inimigos de Jesus podiam fazer o que 4) Jesus Diante de Pilatos (23:1-5)
quisessem, mas depois da morte ele se 1 E , le v a n ta n d o -s e to d a a m u ltid ã o d ele s,
assentaria à mão direita de Deus. Ã pala­ c o n d u z ira m J e s u s a P ila to s . 2 E c o m e ç a ra m
vra “Poder”, citada por Marcos (14:62), a a c u sá -lo , d iz en d o : A c h a m o s e s te h o m e m
p e rv e rte n d o a n o s s a n a ç ã o , p ro ib in d o d a r o
Lucas acrescentou a expressão explana- trib u to a C é s a r, e d izen d o s e r e le m e sm o
tória de Deus, para os leitores gentios. C risto , re i. 3 P ila to s , p o is, p e rg u n to u -lh e :
Visto que Deus era a fonte de todo o É s tu o r e i dos ju d e u s ? R esp o n d eu -lh e
J e s u s : É com o d izes. 4 E n tã o d is se P ila to s dizer: “Você é um revolucionário, pro­
a o s p rin c ip a is s a c e r d o te s , e à s m u ltid õ e s:
N ão a c h o c u lp a a lg u m a n e s te h o m e m .
curando estabelecer um estado judeu in­
5 E le s, p o ré m , in s is tia m a in d a m a is , d iz e n ­ dependente?” É como dizes. Ou seja:
do: A lv o ro ça o povo, en sin a n d o p o r to d a a “Você está usando esta terminologia com
J u d é ia , co m eç an d o d e sd e a G a lilé ia a té suas implicações políticas, mas eu não.”
aq u i. Essa resposta deve ter sido considera­
Como Marcos o descreve, “tiveram da, por Pilatos, como negação da acusa­
conselho... todo o sinédrio” , depois do ção, pois agora ele declara a sua convic­
que Jesus foi entregue a Pilatos (15:1). ção de que Jesus é inocente. Esta é a
Visto que o sinédrio, evidentemente, não primeira de três declarações assim claras
tinha autoridade para executar a senten­ de Pilatos, característica de Lucas, na
ça capital, o fato de Jesus comparecer narrativa da Paixão. Todos os Evangelis­
diante dele deve ter tido o caráter de tas retratam Pilatos como uma ferramen­
audiência informal. Ao invés de ser o ta dos inimigos judeus de Jesus, agindo
juiz de Jesus, o sinédrio fez o papel de de má vontade, mas nenhum dos outros o
promotor diante de Pilatos. Porque o seu faz tão claramente como Lucas.
propósito era assegurar a execução de O seu veredicto não é aceito pelo povo,
Jesus, os líderes judeus precisavam pre­ que decidira que Jesus precisava morrer.
parar contra ele uma causa que alcanças­ Insiste que ele é um agitador, que amea­
se o fim desejado. Portanto, toda a mul­ ça a paz dos súditos judeus de Roma.
tidão, isto é, todo o concílio ou sinédrio, Judéia é equivalente a Palestina. De acor­
o acusava de crime de traição. do com a acusação feita, Jesus não era
Embora a diferença seja primariamen­ apenas uma pessoa insignificante, que
te uma questão de ênfase, Lucas enfa­ podia ser descartada facilmente. A sua
tiza a culpa dos lideres judeus na morte influência foi exercida desde a Galiléia
de Jesus mais do que qualquer outro até Jerusalém, isto é, desde os limites
Evangelista. Marcos diz que eles o acusa­ externos até o centro da Palestina.
ram de muitas coisas (15:3). Em Lucas,
5) Jesus Diante de Herodes (23:6-12)
três acusações específicas e relacionadas
entre si são proferidas contra Jesus, pelo 6 E n tã o P ila to s , o u v in d o isso , p e rg u n to u
sinédrio. Pervertendo a nossa nação sig­ s e o h o m e m e r a g a lile u ; 7 e, q u a n d o so u b e
q u e e r a d a ju r is d iç ã o de H e ro d e s, re m e te u -o
nifica que ele estava minando a sua a H e ro d e s, q u e ta m b é m n a q u e le s d ia s e s t a ­
lealdade a Roma. O pagamento do tri­ v a e m J e r u s a lé m . 8 O ra , q u a n d o H e ro d e s
buto era um reconhecimento de sobera­ viu a J e s u s , a le g ro u -se m u ito ; p o is d e longo
nia. Qualquer tentativa para induzir os te m p o d e s e ja v a vê-lo, p o r t e r o uvido f a l a r a
se u re s p e ito ; e e s p e r a v a v e r a lg u m sin a l
cidadãos a não pagá-lo era também um feito p o r e l e ; 9 e fa z ia -lh e m u ita s p e rg u n ta s ;
ato traiçoeiro. Cristo (Messias) foi inter­ m a s e le n a d a lh e re s p o n d e u . 10 E s ta v a m ali
pretado em seu sentido político. Ele esta­ os p rin c ip a is s a c e rd o te s , e os e s c r ib a s ,
va procurando tomar-se rei dos judeus. ac u san d o -o co m g ra n d e v e e m ê n c ia . 11 H e ro ­
Essas três acusações são patentemente d e s, p o ré m , c o m os s e u s so ld ad o s, d e s p r e ­
zou-o e, e s c a rn e c e n d o d e le , v estiu -o co m
falsas à luz da apresentação que Lucas u m a ro u p a re s p la n d e c e n te e to rn o u a e n v iá-
faz do ensino e dos atos de Jesus. Ele lo a P ila to s . 12 N e sse m e s m o d ia P ila to s e
havia repudiado o nacionalismo extremo, H e ro d e s to m a r a m - s e a m ig o s ; p o is a n te s
e havia, de fato, reconhecido o direito de a n d a v a m e m in im iz a d e u m co m o o u tro .
César de recolher tributos, e interpretara Só Lucas apresenta o episódio em que
a sua missão em termos apolíticos. Jesus compareceu perante Herodes Anti-
O acusado é questionado por Pilatos pas (cf. 3:1). A declaração, a respeito das
com respeito às suas ambições políticas. atividades de Jesus na Galiléia, faz com
Quando ele pergunta a Jesus se é o rei que Pilatos levante a questão da jurisdi­
dos judeus, na verdade, está querendo ção. Se ele fosse um galileu, cujas ativi-
dades constituíssem ameaça para a paz jnconseaiiente- Os soldados de Herodes
política da região, o seu caso devia ser (cf. 3:14) fazem de Jesus um deplorável
decidido por Herodes. Possivelmente, o objeto de diversão para o seu coman­
tetrarca da Galiléia estava em Jerusalém dante. Jesus é vestido com uma roupa
para a celebração da Páscoa. Os Herodes resplandecente, o manto branco da rea-
eram judeus, embora, por serem descen­ leza, para zombarem das suas pretens.ões
dentes de um idumeu, cujo povo havia messiânicas. Dépois^deTer^iedivertido
sido forçado a se tornar prosélito, por cÒnTJêsus, Herodes o manda de volta a
João Hircano, a sua linhagem não fosse a Pilatos. Ele chegara à conclusão de que
melhor. Eles eram mais helenistas do que Jesus não consistia em ameaça para o seu_
judeus, em suas vidas e atitudes pessoais, governo. O contato que Herodes e Pilatos
mas não lhes era incomum comparece­ entabulam, como resultado do seu envol­
rem a Jerusalém, para participar de uma vimento no processo movido contra Je­
festa religiosa. sus, serve para destruir a hostilidade que
Esta é a segunda referência ao desejo havia entre eles, de sorte que se tornam
de Herodes de ver Jesus (cf. 9:7-9). Agora amigos. Não há outra evidência que lan­
se explica por que Herodes queria vê-lo: ce luz sobre este relacionamento entre
queria ver um milagre realizado por Je­ Herodes e Pilatos.
sus. O helenista Antipas provavelmente^
6) A Condenação de Jesus (23:13-25)
acariciava a idéia de que Jesus devia ser
um ente divino, de determinada espécie, 13 E n tã o P ila to s con v o co u os p rin c ip a is
sa c e rd o te s , a s a u to r id a d e s e o povo, 14 e
que pudesse provar a sua divindade com
d isse -lh e s: A p re se n ta ste s -m e e s te h o m em
uma exibição mágica de poder. Mas os' com o p e r v e r te d o r do p o v o ; e e is q u e , in te r-
milagres não são feitos sob encomenda rog an d o -o d ia n te d e v ó s, n ã o a c h e i n ele
(cf. 4:16-30). Além do mais, Jesus não se n e n h u m a c u lp a , d a s q u e o a c u s a is ; 15 n e m
aproveitaria desse expediente para se sal­ ta m p o u c o H ero d e s, p o is no-lo to rn o u a e n ­
v ia r ; e e is q u e n ã o te m feito e le c o isa a lg u ­
var. O seu poder era usado para ajudar a m a d ig n a d e m o r te . 16 C astigá-lo-ei, po is, e o
redimir os outros, e não em favor de si so lta re i.
mesmo. As perguntas de Herodes foram 17 (E e ra -lh e n e c e s s á rio so lta r-lh e s u m
recebidas por um pétreo silêncio. O si­ p e la fe s ta .) 18 M a s to d o s c la m a r a m à u m a ,
d izen d o : F o r a co m e s te , e so lta-n o s B a rra -
lêncio de Jesus, diante dos seus acusado­ b á s! 19 O ra , B a r r a b á s fo ra la n ç a d o n a p r i­
res, é mencionado pelos outros sinópti­ sã o p o r c a u s a d e u m a se d iç ã o fe ita n a c id a d e ,
cos, embora em contexto diferente (cf. e d e u m h o m icíd io . 20 M ais u m a vez, pois,
Mar. 15:5; Mat. 27:14). Sem dúvida, isto falo u -lh e s P ila to s , q u e re n d o s o lta r a J e s u s .
ilustra a referência ao silêncio do Servo 21 E le s , p o ré m , b r a d a v a m , d izen d o : Cru-
cifica-o! cru c ific a -o ! 22 F a lo u -lh e s, e n tã o ,
Sofredor em Isaías 53:7. p e la te r c e ir a v e z : P o is , q u e m a l fez e le ? N ão
Contra o silêncio de Jesus e o fato de a c h e i n e le n e n h u m a c u lp a d ig n a d e m o rte .
ele não se queixar, colocam-se as vee­ C astig á-lo -ei, p o is, e o s o lta re i. 23 M as ele s
mentes acusações dos principais sacerdo­ in s ta v a m co m g ra n d e s b ra d o s , p ed in d o que
tes e escribas, membros do sinédrio. Eles fo sse c ru c ific a d o . E p re v a le c e ra m os seu s
c la m o re s . 24 E n tã o P ila to s re s o lv e u a te n ­
também fazem parte desta nova cena, d e r-lh es o p e d id o ; 25 e so lto u -lh es o q u e fo ra
quando, provavelmente, fazem as mes­ la n ç a d o n a p ris ã o p o r c a u s a d e se d iç ã o e de
mas acusações. <_ h o m icíd io , q u e e r a o q u e e le s p e d ia m ; m a s
O desprezo de Herodes por Jesus e o e n tre g o u J e s u s à v o n ta d e d e le s.
pequeno crédito que deu às acusações Pilatos convoca os acusadores para a
feitas contra este, são demonstrados no_- sua segunda declaração da inocência de
tratamento que lhe dispensaram. Visto Jesus. Os sacerdotes, as autoridades e o
que ele chega à conclusão de que Jesus" povo, representando a nação de Israel,
não é~cteüs, trata-o como pessoa sem ouvem o pronunciamento. Num estranho
poderes especiais e como ser humano encaminhamento dos eventos, o juiz, o
governador romano, se torna o advogado importantes omitem completamente o
de defesa. Na verdade, não temos evidên­ versículo 17. Algumas poucas testemu­
cias suficientes para sermos capazes de nhas Ocidentais o colocam depois do ver­
entender completamente a dinâmica da sículo 19. É uma interpolação feita para
situação. Que impacto Jesus causou so­ explicar por que o povo exigia a liberta­
bre Pilatos? Até que ponto foi Pilatos ção de Barrabás. Mais uma vez o fato de
motivado por um senso de responsabili­ Pilatos defender Jesus dá de encontro
dade judicial? Considerando-se todas as com oposição ferrenha.
desigualdades e a crueldade do Império De acordo com Marcos 15:7, Barrabás
Romano, o governo exercia fortes pres­ era participante de um grupo de rebeldes
sões sobre os seus representantes, para que havia sido lançado na prisão. Em
exercer justiça, em suas decisões. Até que outras palavras, Barrabás era culpado do
ponto a antipatia que Pilatos sentia pelos próprio crime de que Jesus estava sendo
judeus influenciou as suas ações? Ele acusado falsamente. Ele se envolvera,
certamente não é justificado pelos Evan­ talvez, como pretendente messiânico, em
gelistas, mas colocado sob a luz mais uma insurreição. De acordo com Lucas,
favorável possível, em vista das circuns­ isso aconteceu mesmo em Jerusalém.
tâncias. Sem dúvida, os Evangelistas não O fato de eles terem escolhido. Barra­
estavam interessados em reabilitar Pila­ bás define claramente a posição dos lí­
tos. Eles eram motivados por um desejo deres judeus. Eles, que estavam acusan­
de mostrar que Jesus não era culpado do do Jesus de hostilidade contra Roma,
crime pelo qual foi executado. Ele era o eram os verdadeiros inimigos de César,
Messias de Deus e o Salvador da huma­ pois as suas simpatias se voltavam para
nidade, e não um revolucionário desilu­ um homem que era culpado de uma
dido, derrotado. revolta violenta. A história mostra que o
Lucas mostra que os dois homens que julgamento de Jesus foi a mais grosseira
representam Roma como governantes falha da justiça. Afinal de contas, Pi­
das maiores regiões da Palestina chega­ latos permitiu que fosse executado um
ram à conclusão de que Jesus era ino­ homem que não tinha ambições de go­
cente. De acordo com a lei judaica, o vernar em um reino terreno.
testemunho corroborador de duas teste­ Os inimigos de Jesus realmente pro­
munhas era suficiente. Pilatos entendeu nunciaram a sua sentença. Em oposição
que Herodes não teria mandado Jesus de às tentativas de Pilatos para libertá-lo,
volta a ele se tivesse chegado à conclu­ eles gritaram para que ele fosse crucifi­
são de que era um agitador galileu cado. Pela terceira vez Pilatos declara
(v. 15). que Jesus era inocente. Em resposta ao
O mais suave, castigá-lo-ei, em vez de clamor, pedindo a sua crucificação, o
“açoitá-lo-ei” , é outra indicação da ten­ governador assevera que ele não havia
dência de Lucas em amenizar a parte que cometido crime capital. Mais uma vez ele
Pilatos teve no sofrimento de Jesus. O fa­ sugere a sua sentença: ia castigar e soltar
to de que Jesus foi açoitado por ordem de Jesus. Mas a vontade dos líderes judeus
Pilatos (Mar. 15:15), tratamento comum era mais forte do que a vontade de Pi­
dispensado aos prisioneiros destinados à latos. O governador promulga uma sen­
execução, é omitido em Lucas. Castigar tença que representa os pedidos dos ini­
pode significar castigo corporal, mas não migos de Jesus, e não as suas próprias
necessariamente. Pode significar sim­ convicções. O oficial romano não estava
plesmente advertir. sendo leal aos princípios de justiça que o
A terceira tentativa de Pilatos para seu governo requeria dele. Sobretudo, ele
libertar Jesus traz à baila um criminoso libertou o revoltoso, cuja libertação os
chamado Barrabás. Muitos manuscritos líderes judeus desejavam. Mostra-se a
morte de Jesus, bem cuidadosamente, le v a s s e a p ó s J e s u s . 27 S eg u ia-o g ra n d e m u l­
como uma rejeição do seu próprio povo, e tid ã o d e povo e d e m u lh e re s , a s q u a is o
não como a vontade dos administradores p ra n te a v a m e la m e n ta v a m . 28 J e s u s , p o ­
ré m , v o lta n d o -se p a r a e la s , d is s e : F ilh a s de
de Roma. Aqueles, e não Pilatos, devem J e r u s a lé m , n ã o c h o re is p o r m im ; c h o ra i
carregar o principal peso da culpa. Ao a n te s p o r v ó s m e s m a s , e p o r v o sso s filhos.
mesmo tempo, Pilatos é definitivamente 29 F o rq u e d ia s h ã o d e v ir e m q u e se d ir á :
retratado como mau administrador da B e m -a v e n tu ra d a s a s e s té r e is , e o s v e n tr e s
q ue n ã o g e r a r a m , e os p e ito s q u e n ã o a m a ­
justiça romana. m e n ta r a m ! 30 E n tã o c o m e ç a rã o a d iz e r a o s
O significado contemporâneo da cruz é m o n te s. C aí so b re n ó s; e a o s o u te iro s:
um julgamento do mal de toda a huma­ C obri-nos. 31 P o rq u e , se is to se fa z n o len h o
nidade. Durante séculos os homens des­ v e rd e , q u e se f a r á n o se co ?
tramente evitaram as implicações da
cruz, com uma manobra simples: colo­ Com exceção do versículo 26, esta des­
caram a culpa pelo assassinato de Jesus crição da jornada de Jesus para a cruz
sobre os judeus. Essa idéia tem sido ver­ se encontra apenas aqui, nos Evange­
gonhosamente cultivada: que os judeus lhos. Ela ressalta a relação entre a re­
que conspiraram para a morte de Jesus jeição de Jesus, por Jerusalém, e a des­
eram uma raça especial de pessoas, ex­ truição ulterior da cidade — importante
traordinariamente má e perversa. Mas a tema de Lucas.
verdade é que eles eram exatamente pes­ Simão é identificado como nativo de
soas como todas as pessoas, inclusive a Cirene. Esta cidade, capital do distrito
presente geração — com as mesmas am­ norte-africano de Cirenaica, tinha uma
bições, as mesmas fraquezas, os mesmos considerável população judaica. Simão
problemas. Preconceito racial, religião estava na Palestina para a celebração da
institucionalizada, injustiça social — es­ festa da Páscoa, ou havia emigrado para
ses eram os males que Jesus desafiava. a terra de seus pais. Marcos 15:21 o
Quem, entre nós, ousa negar que os identifica como pai de Alexandre e de
mesmos males estão presentes em nossa Rufo, que deviam ser membros conheci­
sociedade? dos da comunidade cristã primitiva. A
O próprio povo de Jesus reagiu ao seu conjectura de que Simão subseqüente­
desafio, tentanto afastar Deus do seu mente se tornou cristão é, portanto, ló­
mundo. Ao invés de abrir-se honesta­ gica. A cruz é a vigajtransversai, à qual
mente para a palavra de Deus, eles deci­ eram fixados os braços da pessoa a ser
diram silenciar a voz perturbadora que a crucificada. Os criminosos condenados
proclamava. Nós também tentamos em­ eram forçados a carregá*la, como parte
purrar Deus para fora do seu mundo, do espetáculo público que compunha a
tomá-lo para nós mesmos e usá-lo para sua execução e como advertência a outros
alcançar as nossas próprias ambições. possíveis criminosos. Por que Jesus não
Isto é o máximo da idolatria. Neste sen­ carregou a viga de sua própria cruz?
tido a crucificação não é apenas algo que Talvez o açoitamento ao qual fora su­
aconteceu há muito tempo; ela tem lugar jeito (Mar. 15:15) tivesse sido tão severo
todos os dias, em nosso mundo. que ele estava fisicamente incapacitado
de fazê-lo. Simão parece representar,
2. A Crucificação de Jesus (23:26-56a) para Lucas, o ideal do discípulo que
segue a Jesus, carregando a sua cruz.
1) As Mulheres Que Choravam Nenhum discípulo estava ali para fazer o
(23:26-31) que um estranho foi compelido a fazer,
26 Q uando o le v a r a m d a li, to m a r a m u m Era uma procissão funeral para Jesus,
c e rto S im ão , c ire n e u , q u e v in h a do c a m p o , e antes de sua morte. As mulheres desem­
p u se ra m -lh e a c ru z à s c o s ta s , p a r a q u e a penhavam um papel importante no ritual
do funeral judaico. Eram elas que can­ seco? Primavera é a estação da semea­
tavam as elegias ou cânticos fúnebres . 39 dura; outono, época de colheita. Jerusa­
Algumas mulheres, na multidão pran­ lém estava plantando sementes agora,
teavam e lamentavam por Jesus. Isto sig­ que produziriam uma colheita de frutos
nifica que elas batiam no peito, pro­ amargos. Só três cruzes rasgavam o hori­
nunciavam as lamentações costumeiras e zonte, naquele dia fatídico. Mas somos
choravam (de acordo com o v. 27). Isto informados que os conquistadores roma­
chegava a ser uma aclamação pública a nos crucificaram incontável número de
Jesus, que ia de encontro a todo o tra­ judeus, depois da queda de Jerusalém.
tamento costumeiro dispensado a um
2) A Execução de Jesus (23:32-38)
condenado.
Se elas realmente entendiam o signi­ 32 E le v a v a m ta m b é m co m e le o u tro s
ficado do evento que suscitava as suas dois, q u e e r a m m a lfe ito re s , p a r a s e re m
m o rto s. 33 Q u an d o c h e g a r a m a o lu g a r c h a ­
lamentações, estariam clamando a Deus, m ad o C a v e ira , a li o c r u c ific a ra m , a e le e
pedindo misericórdia para si mesmas e ta m b é m a o s m a lfe ito re s , u m à d ir e ita e
para seus filhos. Jesus rejeita a lamenta­ o u tro à e s q u e rd a . 34 J e s u s , p o ré m , d iz ia :
ção das mulheres por ele, fazendo uma P a i, p e rd o a -lh e s ; p o rq u e n ã o s a b e m o q u e
proclamação para que lágrimas fossem fa z e m . E n tã o r e p a r ti r a m a s v e s te s d e le,
d e ita n d o s o rte s so b re e la s . 35 E o povo e s t a ­
derramadas sobre uma cidade condena­ v a a o lh a r. E a s p ró p ria s a u to rid a d e s z o m ­
da. Isto era, com efeito, uma conclama- b a v a m d e le , d iz e n d o : A os o u tro s sa lv o u ;
ção profética ao arrependimento. Elas e sa lv e -se a s i m e s m o , se é o C ris to ; o e s c o ­
todos os circunstantes deviam reconhe­ lhido d e D e u s. 36 O s so ld a d o s ta m b é m o
e s c a r n e c ia m , c h e g an d o -se a e le , o fe re c e n ­
cer a sua própria culpa, a sua solidarie­ do-lhe v in a g re , 37 e d iz e n d o : Se tu é s o re i
dade com a rejeição que aquela cidade dos ju d e u s , s a lv a -te a ti m e s m o . 38 P o r c im a
dispensava a Jesus, e a inevitabilidade do d ele e s ta v a e s t a in s c riç ã o (e m le tr a s g r e ­
juízo. g a s , ro m a n a s e h e b r a ic a s :) E S T E É O R E I
Aguardavam a Jerusalém dias de terrí­ DOS JU D E U S .
vel sofrimento e tragédia. Naqueles dias Jesus é acompanhado, ao lugar de
a esterilidade seria considerada uma bên­ execução, por dois malfeitores, destina­
ção, e a maternidade uma maldição — dos à mesma sorte. Eles são chamados de
exatamente o oposto da atitude normal. salteadores, por Marcos (15:27). O lugar
As mulheres sem filhos ficariam conten­ da crucificação é desconhecido, mas era
tes por não terem dado à luz e não es­ fora da cidade (Heb. 13:12 e s.), perto de
tarem amamentando um filho, só para uma estrada de muito movimento. Lucas
experimentar as torturas que cercariam a omite o nome semita Gólgota, e apresen­
morte dessa cidade. Os habitantes em ta apenas a tradução: Caveira. Talvez o
vão procurariam um lugar para se es­ outeiro tivesse configurações que lembra­
conderem de sua sorte, pedindo, em de­ vam um crânio.
sespero, a proteção de montes e outeiros A crucificação era método para a apli­
(cf. Os. 10:8). cação da pena capital, emprestado, pelos
A partícula se (v. 31) deve referir-se romanos, dos fenícios e persas. Esta for­
aos senhores romanos de Jerusalém. Se ma de execução extremamente bárbara
esses gentios estavam crucificando uma era geralmente reservada para os não-
pessoa como Jesus na primavera, quando romanos. As mãos e os pés da vítima
o lenho era verde, o que não acon­ eram pregados ou amarrados com cordas
teceria no outono, quando ele estivesse à cruz. O seu corpo era sustentado por
uma cavilha, afixada à parte principal
39 Veja os artigos de Gustav Itahlin, em TDNT, III, da cruz (a vertical), em que o condenado
p. 148-155 e 830-860, para a discussão dos termos
gregos traduzidos como “pranteavam” e “lamenta­ literalmente montava. Muitas vezes ele
vam” . ficava dependurado ali, vivo, durante
vários dias, sujeito à tortura dos elemen­ Os soldados que levaram a efeito a
tos, insetos, o escárnio dos passantes e a crucificação também juntaram-se à zom­
dor e exaustão físicas. A morte era cau­ baria. Vinagre era o vinho azedo e ba­
sada pela fome, sede, estado de choque e rato bebido pelo populacho. Aqui, ele foi
fadiga, pouco sangue, ou mesmo, ne­ oferecido como escárnio a Jesus, acom­
nhum sangue era derramado. Dizer que panhado por um desafio zombeteiro. Os
Jesus “ derramou o seu sangue” significa soldados romanos entendiam Rei dos Ju­
que ele deu a vida. Os criminosos foram deus no sentido político. Pensavam em
crucificados um de cada lado de Jesus. Jesus como um pretendente frustrado e
A oração de Jesus pelos seus inimigos derrotado, ao governo de um hipotético
(v. 34) está ausente em várias autorida­ reino judaico. Este era um Rei do tipo
des excelentes, e alguns estudiosos a jul­ que não pode salvar-se a si mesmo!
gam uma inserção, feita no texto ori­ Era costume escrever a acusação, que
ginal. Grundmann (p. 432 e ss.), toda­ se fizera contra a pessoa executada, em
via, argumenta, persuasivamente, basea­ uma placa, e afixá-la à cruz, ou depen­
do nas evidências intrínsecas, que ela é durá-la ao redor do seu pescoço. De
genuína. Há, por exemplo, uma íntima acordo com a acusação, Jesus foi exe­
relação entre as orações de Jesus e de cutado como um rebelde contra Roma.
Estêvão (At. 7:60). A pregação apostóli­ 3) O Ladrão Penitente (23:39-43)
ca também declara que o povo judeu 39 E n tã o u m d o s m a lfe ito re s q u e e s ta v a m
tinha outra oportunidade para se arre­ p e n d u ra d o s , b la s fe m a v a d e le , d iz e n d o : N ão
pender, porque a crucificação foi trama­ é s tu o C risto ? s a lv a -te a ti m e s m o e a n ó s. 40
da em ignorância (At. 3:17). E, sobretu­ R esp o n d en d o , p o ré m , o o u tro , re p re e n d ia -o ,
do, a oração estava de acordo com o d iz e n d o : N e m a o m e n o s te m e s a D eu s,
e sta n d o n a m e s m a c o n d e n a ç ã o ? 4 1 E nó s, n a
caráter e os ensinamentos de Jesus (cf. v e rd a d e , c o m j u s t i ç a ; p o rq u e re c e b e m o s o
Luc. 6:28), da maneira como são retra­ q u e o s n o sso s fe ito s m e r e c e m ; m a s e s te
tados nos Evangelhos. Enquanto Jesus n e n h u m m a l fez . 42 E n tã o d is s e : J e s u s ,
ora, os endurecidos soldados decidem, le m b ra -te d e m im , q u a n d o e n tr a r e s no te u
re in o . 43 R e sp o n d e u -lh e J e s u s : E m v e rd a d e
lançando sortes, qual deles ficaria com as
te d ig o q u e h o je e s t a r á s co m ig o n o p a ra ís o .
roupas dele.
O povo observa; as autoridades zom­ Este é outro episódio contado apenas
bam — a distinção é um toque carac­ por Lucas, declara: “Também os
terístico de Lucas. Uma vida redentora que com ele foram crucificados o inju-
não era prova suficiente, para os líderes, riavam” (15:32b). (^Aicapconta-nos que
de que Jesus era o Messias. Se ele era o üm deSstes homens percebeu^ auem era
Cristo, precisava prová-lo, usando o seu Jesus. Ele repreendeTTfseíTcompanheiro
poder a favor de si mesmo. Eles não po­ a ecm n ê^ - dizendo que a hora da morte
diam conceber poder, ou posição, que não é momento apropriado para um cri­
não fosse usado em proveito próprio. minoso injuriar um homem inocente.
E, também, não entendiam que salvar-se Tendo sido sentenciados pela corte ro-
é incompatível com salvar os outros. Da mana, eles logo iriam entrar no juízo de
mesma forma, não conseguiam crer que Deus, pelas portas da morte.
Deus permitisse que o seu Escolhido “ t, efffâõ"õ^ãIíèHd5rpêinii1tente se volta
fosse tão humilhado. O seu Deus era para Jesus com um pedido para ser lem­
uma projeção dos interesses próprios e brado quando ele vier em seu reino. Al­
das idéias deles mesmos. Assim, eles guns bons manuscritos dizem “quando
presumiam que ele agiria da mesma for­ vieres em teu poder real” . O texto se­
ma como eles o fariam, nas mesmas cir­ guido pela versão da IBB é apoiado por
cunstâncias. excelentes autoridades e se enquadra me-
lhor no contexto. O moribundo pede “o poder das trevas” (22:53) parecia estar
para ser lembrado por ocasião da Parou- sendo vitorioso. O véu do santuário sepa­
sia, o que era uma expressão de fé”emj rava o Santo dos Santos do restante do
I Jesus7 como o Messias. {< santuário. O sumo sacerdote o ultrapas­
Em sua resposta,(Jesus dá-lhe a certe­ sava uma vez por ano, para fazer expia­
za de que ele não precisava esperar até ção pelos pecados do povo. A ruptura do
data futura, a fim de ser lembrado. véu significou que abrira-se, através de
E possívSTcolòcar a virgula depois de Cristo, um acesso direto a Deus, tornan­
hoje, mas a pontuação constante do texto do desnecessária a instituição do sacer­
T~è mais apropriada. Portanto, qualquer"! dócio. E, também, isso pode ser conside­
\ pessoa que se volta para Jesus, mesmo I rado como augúrio do juízo de Deus
1 que seja no último momento, recebe o J sobre um Templo condenado.
|privilégio de comunhão com ele. A morte A morte de Jesus foi invulgarmente
ê apresentada sob nova luz, visto que ela rápida. Talvez isso se devesse ao efeito do
era necessária para o cumprimento da açoitamento efetuado pelos soldados ro­
palavra de Jesus para o moribundo. T a n r manos. Alguns homens morriam sob a
to Jesus como o homem precisavam m oi- chibata. Lucas omite o grito de desam­
rer, para que se encpntrassem no Paraí­ paro, tirado de Salmos 22:1 (cf. Mar.
so, palavra de origem persa, que"significaT 15:34). A última palavra de Jesus, no
céu. Assim, a mcyte não é um a deçreta. terceiro Evangelho, é uma citação de
TelcTcontrári<yé uma^^ext^nencianeces- Salmos 31:5. Mesmo nesta hora final,
sária. se alg u éj^ d e^ ejjy y ^ Jesus não vacila em sua confiança de que
I X“morte é interpretada como entrada n a ! Deus é seu Pai. Além da dor e do deses­
I presença de Deus, tanto para Jesus comoí pero, além da solidão e do ódio, estava
I para aqueles que nele crêem. * Deus, esperando para receber o seu Fi­
lho.
4) A Morte de Jesus (23:44-49) O centurião era o oficial que havia
supervisionado a execução de Jesus. Ele
44 E r a j á q u a s e a h o r a s e x ta , e h ouve
tr e v a s e m to d a a t e r r a a té a h o ra n o n a , p o is acrescenta o seu veredicto ao de Pilatos e
o sol se e s c u r e c e r a ; 45 ra s g o u -s e a o m e io o Herodes: Na verdade, este homem era
v éu do s a n tu á rio . 46 J e s u s , c la m a n d o co m justo (cf. Mar. 15:39). Desta forma, to­
g ra n d e voz, d is s e : P a i, n a s tu a s m ã o s e n ­ dos os representantes oficiais da presença
tre g o o m e u e sp írito . E , h a v e n d o d ito isso , de Roma na Palestina, mencionados na
e x p iro u . 47 Q u an d o o c e n tu riã o v iu o q u e
a c o n te c e ra , d e u g ló ria a D eu s, d iz en d o : N a narrativa, estavam de acordo que um
v e rd a d e , e s te h o m e m e r a ju s to . 48 E to d a s homem inocente fora executado. As mul­
a s m u ltid õ e s q u e p r e s e n c ia r a m e s te e s p e ­ tidões deixam a cena, batendo no peito,
tá c u lo , v en d o o q u e h a v iá a c o n te c id o , v o l­ que era uma expressão de remorso. Os
ta v a m b a te n d o n o p eito . 49 E n tre ta n to ,
todos os co n h ecid o s de J e s u s , e a s m u lh e re s
seguidores de Jesus galileus estavam de
q ue o h a v ia m seg u id o d e sd e a G a lilé ia , e s t a ­ longe, e testemunhavam a crucificação
v a m de lo n g e, v en d o e s ta s c o isa s. e morte de Jesus. As qualificações dessas
testemunhas do Ressuscitado são cuida­
Marcos nos informa que Jesus foi cru­ dosamente indicadas por Lucas: elas o
cificado à “hora terceira” , isto é, às 9 vêem morrer; vêem-no sendo sepultado;
horas da manhã. De acordo com Lucas, e descobrem o seu túmulo vazio. As
dois sinais significativos ocorreram, en­ mulheres mencionadas aqui eram as re­
quanto Jesus estava na cruz. O sol se es­ feridas em 8:2, e outra vez em 23:55 e
curecera desde o meio-dia até as 3 horas 24:10 (veja o comentário sobre 8:2). Um
da tarde (a hora nona), o que enfatiza o tema antignóstico provavelmente está
significado cósmico da morte de Jesus. presente aqui, pois Lucas empenha-se
Este era um momento fugaz, em que em estabelecer solidamente a identida-
de dAquele que morreu, foi sepultado e dos mortos. Mateus nos diz que José era
ressuscitou. rico (27:57), o que se supõe pelo fato de
que ele possuía um sepulcro escavado em
5) O Sepultamento de Jesus (23:50-56a) rocha. Lucas faz um comentário adicio­
50 E n tã o u m h o m e m c h a m a d o J o s é , nal: onde ninguém ainda havia sido pos­
n a tu r a l d e A rim a té ia , c id a d e d o s ju d e u s ,
m e m b ro do sin é d rio , h o m e m b o m e ju s to , 51
to. Visto que era novo, era apropriado
o q u a l n ã o tin h a co n sen tid o no c o n selh o e nos para uso tão sagrado.
a to s d o s o u tro s, e q u e e s p e r a v a o re in o de Preparação é a palavra judaica para
D eu s, 52 c h e g a n d o a P ila to s , p e d iu -lh e o sexta-feira. Nessa época do ano, o sá­
co rpo d e J e s u s ; 53 e, tira n d o -o d a c ru z , bado começava, aproximadamente, às
envolveu-o n u m p a n o d e lin h o , e pô-lo n u m
se p u lc ro e s c a v a d o e m ro c h a , o n d e n in g u é m 18 horas. Todos os Evangelhos concor­
a in d a h a v ia sido p o sto . 54 E r a o d ia d a p r e ­ dam que Jesus foi crucificado na sexta-
p a r a ç ã o , e ia c o m e ç a r o s á b a d o . 55 E a s feira, e que descobriu-se que o túmulo
m u lh e re s q u e tin h a m v in d o c o m e le d a G ali- estava vazio no primeiro dia da semana.
lé ia , se g u in d o a J o s é , v ir a m o se p u lc ro , e
co m o o co rp o foi a li d ep o sita d o . 56 E n tã o As mulheres verificaram Jesus ser sepul­
v o lta ra m e p r e p a r a r a m e s p e c ia ria s e u n ­ tado (veja, acima, o v. 49). Especia­
g u en to s. rias e ungüentos, substâncias aromáticas
usadas para ungir o corpo dos mortos,
Os cuidados para com o corpo de Jesus foram por elas preparadas antes do sá­
foram tomados por parte de uma fonte bado, enquanto esperavam um a primeira
inesperada: de um membro-do próprio oportunidade para uma visita ao túmulo.
sinédrio que haviâ tramado á'crucifica­
ção. Geralmente, localiza-se Arimatéia VIII. A Ressurreição de Jesus
na região montanhosa da Judéia, ã no­ (23:56b-24:53)
roeste de Jerusalém, mas a sua locali­
zação exata é desconhecida. A piedade A narrativa da ressurreição, feita por
de José não era parcial ou superficial. Lucas, está dividida em três episódios,
Ele era bom para com os seus conci­ que são reunidos de forma a formar uma
dadãos, e justo para com Deus; em ou­ unidade literária conexa, excelentemen­
tras palavras, classificando-se com Zaca­ te construída. Só no primeiro episódio
rias (1:6) e Simeão (2:25). Lucas explica se encontram paralelos com os outros
que José não havia concordado com os Evangelhos, mas até esta unidade é pe­
outros membros do sinédrio, no planeja­ culiar. Em dois lugares significativos,
mento e execução do seu plano de se encontramos variações da história, con­
livrarem de Jesus. Além do mais, como tada por Marcos, a respeito do sepulcro
Simeão (2:25), ele estava esperando an­ vazio: (1) em Marcos, o anjo diz, às
siosamente o cumprimento das palavras mulheres, para contarem aos discípulos a
proféticas a respeito do reino de Deus. mensagem de que Jesus os encontraria na
Isto pode explicar o seu interesse em Galiléia (Mar. 16:7; cf. Luc. 24:6,7).
Jesus, que havia proclamado a proximi­ (2) De acòrdo com Marcos 16:8, as mu­
dade do reino. lheres “não disseram nada a ninguém,
Como homem justo, pode também ser porque temiam” (cf. Luc. 24:9). Mas o
que José tivesse sido motivado pelo man­ relato feito por Marcos naturalmente
damento para não se deixar o corpo de pressupõe que as mulheres mais tarde
um homem executado dependurado no contaram a história, pois, se não, ela não
madeiro de um dia para outro (Deut. poderia ter encontrado maneira de figu­
21:23). Ele requisitou e recebeu permis­ rar no Evangelho.
são de Pilatos para sepultar Jesus. O cor­ As histórias restantes são encontradas
po nu foi envolvido em um pano de li­ apenas em Lucas. Elas têm como palco
nho, lençol com que se envolvia o corpo Jerusalém ou suas circunvizinhanças.
A forma de apresentação é determinada, maior do que a jornada de um sábado do
em grande parte, por certos temas e lugar onde estavam hospedadas.
conceitos de Lucas. Em Lucas, as ações De acordo com Lucas e Marcos, o ob­
na vida de Jesus se movem da Galiléia jetivo, para as mulheres se dirigirem ao
para Jerusalém. A capital judaica, des­ túmulo, foi embalsamar o corpo de Jesus
ta forma, se tom a o centro, do qual com especiarias. Marcos diz que elas
começa o testemunho da igreja primitiva. “passado o sábado... compraram aro­
O fluxo da ação se faz de Jerusalém para mas” (16:1). Elas foram bem de m a­
Roma, no livro de Atos. Conseqüente­ drugada, logo que houve um pouco de
mente, Lucas não relata nenhum apare­ luz que as capacitasse a ver. O primeiro
cimento de Jesus na Galiléia. Se tivésse­ dia da semana havia começado às seis
mos apenas este Evangelho, seriamos horas da tarde do sábado, cerca de doze
forçados a concluir que Lucas concebia horas antes.
que todas as experiências que registrou A pesada pedra colocada na entrada
haviam ocorrido no domingo da ressur­ do túmulo protegia o corpo da profana­
reição, chegando ao apogeu na ascensão. ção por animais; ela estava afastada da
Mas, em Atos, ele fala de aparições entrada, quando elas chegaram. Dentro,
durante um período de quarenta dias, não havia corpo nenhum. Muitas autori­
antes da ascensão. dades fazem seguir a palavra corpo pela
frase “ do Senhor Jesus” , título que não
1. As Mulheres Vão ao Sepulcro
(23:56b-24:ll) se encontra em outros lugares, nos Evan­
gelhos. Esta é a primeira, de várias re­
E n o s á b a d o re p o u s a ra m , c o n fo rm e o
m a n d a m e n to .
dações deste capítulo, omitidas pelas
1 M a s j á no p rim e iro d ia d a s e m a n a , b e m fontes textuais Ocidentais, a maior parte
d e m a d r u g a d a , fo r a m e la s a o se p u lc ro , das quais se julga, geralmente, que sejam
le v a n d o a s e s p e c ia r ia s q u e tin h a m p r e p a ­ interpolações.
ra d o . 2 £ a c h a r a m a p e d r a re v o lv id a do O fato de não terem encontrado o
se p u lc ro . 3 E n tra n d o , p o ré m , n ã o a c h a r a m
o c o rp o do S e n h o r J e s u s . 4 E , e sta n d o e la s corpo produz perplexidade, e não fé.
p e rp le x a s a e s s e re s p e ito , e is q u e lh e s a p a ­ A narrativa da ressurreição, em Lucas,
r e c e r a m d o is v a rõ e s e m v e s te s re s p la n d e ­ enfatiza que a tumba vazia, por si mes­
c e n te s : 5 e , fic a n d o e la s a te m o riz a d a s e ma, não é prova de ressurreição. A cren­
a b a ix a n d o o ro s to p a r a o c h ã o , e le s lh e s
d is s e r a m : P o r q u e b u s c a is e n tr e os m o rto s
ça na ressurreição é baseada no apare­
a q u e le q u e v iv e ? 6 E le n ã o e s t á a q u i, m a s cimento do Senhor ressurrecto. Mas
re s s u rg iu . L e m b ra i-v o s d e c o m o v o s fa lo u , também era importante que a igreja mos­
e sta n d o a in d a n a G a lilé ia , 7 d ize n d o : I m ­ trasse que fora o próprio corpo de Je­
p o r ta q u e o F ilh o do h o m e m s e j a e n tre g u e sus de Nazaré que ressuscitara, a fim de
n a s m ã o s d e h o m e n s p e c a d o re s , e s e ja c ru c i­
ficad o , e a o te r c e ir o d ia r e s s u r ja . 8 L e m ­ contrariar as especulações dos gnôsticos.
b r a r a m - s e , e n tã o , d a s s u a s p a la v r a s ; 9 e, Dois homens vestidos como mensagei­
v o ltan d o do s e p u lc ro , a n u n c ia r a m to d a s ros celestiais explicam o significado do
e s ta s c o is a s a o s onze e a to d o s os d e m a is. sepulcro vazio. Marcos 16:5 diz “um
10 E e r a m M a r ia M a d a le n a , e J o a n a , e
M a ria , m ã e d e T ia g o ; ta m b é m a s o u tr a s
moço” . Lucas tem predileção por pares,
q u e e s ta v a m c o m e la s r e l a ta r a m e s ta s em consonância com o tema de testemu­
c o is a s a o s a p ó sto lo s. 11 E p a re c e r a m -lh e s nhas, tão proeminente em seus escritos.
com o u m d e lírio a s p a la v r a s d a s m u lh e re s e Por ocasião da ascensão, “ dois varões
n ã o lh e s d e r a m c ré d ito . vestidos de branco” também aparecem
de novo (At. 1:10), para definir a atitude
Ê explicado que a obediência à lei adequada da igreja em relação à partida
judaica a respeito do sábado impediu que e à volta do seu Senhor. Leaney (p. 291 e
as mulheres se dirigissem ao sepulcro, s.) sustenta que os dois homens servem
talvez porque ele ficasse à distância para ligar a ressurreição com a transfi­
guração. Ele os identifica com Moisés e vêem-no ser sepultado e descobrem a
Elias. sepultura vazia. O versículo 12 , omitido
Os mensageiros disseram às mulheres nas autoridades Ocidentais, é, provavel­
que elas se dirigiram para o lugar errado, mente, uma interpolação, baseada em
ao procurarem Jesus. Visto que ele estava João 20:4-6.
vivo, não devia ser procurado em um
2. A Aparição a Dois Discípulos
sepulcro. Algumas autoridades incluem:
(24:13-35)
“ele ressurgiu; não está aqui” , uma in­
terpolação clara de Marcos 16:6. 1) A Conversa no Caminho de Emaús
Em Marcos as mulheres recebem ins­ (24:13-27)
truções para dizerem aos “seus discípu­ 13 N e sse m e s m o d ia , ia m d ois d e le s p a r a
los e a Pedro” que Jesus os encontraria u m a a ld e ia , c h a m a d a E m a ú s , q u e d is ta v a
na Galiléia (16:7). Lucas, todavia, res­ de J e r u s a lé m s e s s e n ta e s tá d io s ; 14 e ia m
c o m e n ta n d o e n tr e si tu d o a q u ilo q u e h a v ia
tringe a sua narrativa da ressurreição a su c e d id o . 15 E n q u a n to a s s im c o m e n ta v a m e
Jerusalém. As mulheres são levadas a d is c u tia m , o p ró p rio J e s u s se a p ro x im o u , e
lembrar que Jesus havia predito a res­ ia co m e le s ; 16 m a s o s olhos d e le s e s ta v a m
surreição durante o seu ministério na com o q u e fe c h a d o s, d e s o r te q u e n ã o o re c o ­
Galiléia (Luc. 18:32,33). Elas lembra­ n h e c e ra m . 17 E n tã o e le lh e s p e rg u n to u : Que
p a la v r a s sã o e s s a s q u e , c a m in h a n d o , tr o ­
ram-se, entio, das suas palavras, isto é, c a is e n tr e v ó s? E le s e n tã o p a r a r a m tr is te s .
então elas interpretaram o túmulo vazio 18 E u m d e le s , c h a m a d o C leo p as, resp o n -
à luz da profecia de Jesus. As mulheres d e u -lh e : É s tu o ú n icó p e re g rin o e m J e r u ­
entenderam que o corpo não fora removi­ s a lé m q u e n ã o so u b e d a s c o is a s q u e n e la tê m
do, mas que Jesus ressuscitara. Mediante su ced id o n e s te s d ia s ? 19 Ao q u e e le lh e s
perguntou*: Q u a is? D is s e ra m -lh e : A s q u e
a narrativa, presumimos que os discípu­ d iz e m re s p e ito a J e s u s , o n a z a re n o , q u e foi
los haviam estado juntos durante aquele p ro fe ta , p o d e ro so e m o b ra s e p a la v r a s d i­
período. Voltando a eles, aos onze e a n te d e D e u s e d e to d o o p o v o ; 20 e c o m o os
todos os demais, elas divulgaram o que p rin c ip a is s a c e r d o te s e a s n o ss a s a u to r i­
d a d e s o e n tr e g a r a m p a r a s e r c o n d e n a d o à
haviam experimentado. Mas a sua narra­ m o rte , e o c ru c ific a ra m . 21 O ra, n ó s e s p e r á ­
tiva foi recebida como fantasia. Pode­ v a m o s q u e fo sse e le q u e m h a v ia d e r e m ir
mos ver aqui uma expressão da polêmica I s r a e l; e, a lé m de tu d o isso , é j á h o je o
que havia na igreja primitiva. Os ini­ te r c e ir o d ia d e sd e q u e e s s a s c o is a s a c o n te ­
c e ra m . 22 V e rd a d e é, ta m b é m , q u e a lg u m a s
migos do cristianismo possivelmente ca­ m u lh e re s do n o sso m e io n o s e n c h e ra m de
racterizaram o relato da ressurreição e s p a n to ; p o is fo r a m d e m a d r u g a d a a o s e ­
simplesmente como um conto emocional p u lc ro 23 e , n ã o a c h a n d o o c o rp o d ele , v o lta ­
de mulheres emocionadas, iludidas. A r a m , d e c la ra n d o q u e tin h a m tid o u m a v isã o
narrativa revela que esta foi exatamente d e a n jo s q u e d iz ia m e s t a r e le vivo. 24 A lém
d isso , a lg u n s d o s q u e e s ta v a m conosco
a reação dos primeiros discípulos. Eles fo ra m a o se p u lc ro , e a c h a r a m s e r a s s im
não creram nas mulheres enquanto não com o a s m u lh e re s h a v ia m d ito ; a e le , p o ­
se convenceram da ressurreição por sua ré m , n ã o o v ir a m . 25 E n tã o e le lh e s d is s e :
experiência pessoal, deles mesmos. Ó n é scio s, e ta r d o s d e c o ra ç ã o p a r a c re r d e s
tu d o o q u e os p ro f e ta s d is s e ra m ! 26 P o r v e n ­
Três das mulheres são mencionadas tu r a n ã o im p o rta v a q u e o C risto p a d e c e s s e
nominalmente, duas das quais haviam e s s á s c o is a s e e n tr a s s e n a s u a g ló ria ? 27 E ,
sido jâ nomeadas em 8:3. Marcos men­ c o m e ç a n d o p o r M o isés, e p o r to d o s os p r o ­
ciona Maria Madalena, Maria, mãe de fe ta s , e x p lic o u -lh e s o q u e d e le se a c h a v a e m
Tiago, o Menor, e de José, e Salomé, to d a s a s E s c r itu r a s .
como testemunhas da crucificação (15:
40). Sô Lucas menciona Joana, ao mes­ O restante da narrativa de Lucas, a
mo tempo que não se refere a Salomé. respeito da ressurreição, é peculiar a
Estas são as testemunhas galiléias que o Lucas. Dois deles fazem parte do grupo
seguem até Jerusalém, vêem-no morrer, de discípulos que havia ouvido a narra­
tiva das mulheres, mas não iazem parte a missão do Messias como sendo a reden­
dos onze (v. 33, adiante). Nesse mesmo ção de Israel de sua sujeição a Roma.
dia é o dia em que se descobrira que o Para eles, portanto, a sua morte sig­
sepulcro estava vazio. A localização de nificou que ele não era o redentor de
Emaús é incerta, mas pode ser a aldeia Israel.
moderna de Kolonieh. Havia um outro elemento na história.
Quando Jesus se aproximou dos discí­ O corpo imolado de seu líder não fora
pulos no caminho de Emaús, eles não o achado no sepulcro. As mulheres o ha­
reconheceram. O relato de Lucas acerca viam encontrado vazio, e haviam relata­
da ressurreição enfatiza a continuidade do um encontro com aitfos, que afirma­
entre o Jesus crucificado e o ressurrecto, ram que Jesus estava vivo. Alguns dos
mas também indica que havia uma dife­ que estavam conosco, a saber, dos dis­
rença. Aqui a interpretação é de que os cípulos, haviam verificado que pelo me­
olhos deles estavam como que fechados, nos parte da história das mulheres era
de sorte que não o reconheceram, ou verdade: de fato o túmulo estava vazio.
seja, isso fazia parte do plano divino. A Mas um túmulo vazio não fora conside­
sua ignorância a respeito da identidade rado como prova de que Jesus ressusci­
do seu companheiro propiciou uma opor­ tara dentre os mortos.
tunidade para que ele lhes expusesse o Jesus acusou os dois discípulos de não
significado das experiências acerca das terem conseguido crer tudo o que os pro­
quais eles estavam falando. fetas disseram. Por essa razão, eles ti­
Os dois ficaram admirados por neces­ nham um conceito distorcido a respeito
sitar o estranho perguntar acerca do as­ da vida e da missão do Messias. Duas
sunto de sua discussão. Ês tu o único coisas eram essenciais: (1) que o Cristo
peregrino também pode ser traduzido padecesse e (2) que entrasse na sua gló­
como: “és tu a única pessoa de tal forma ria. Jesus então ensinou o que as Escri­
estranha em Jerusalém” , etc. A sua apa­ turas dizem, isto é, expôs a necessidade
rente ignorância fez com que eles con­ do sofrimento como um prelúdio para a
cluíssem que ele chegara depois que ha­ glória. Moisés era uma designação con­
viam acontecido esses fatos, que haviam temporânea da Torah. Os profetas eram
perturbado a cidade. a segunda das três principais seções das
A reação deles, ao pedido de infor­ Escrituras Hebraicas aceitas, como sen­
mações, demonstra que eles haviam en­ do de autoridade, pelos fariseus e pela
tendido a crucificação como a frustração maioria do povo judeu. Em cada seção
das grandes esperanças que haviam sido das escrituras há coisas que se acham ali,
inspiradas por Jesus. Ele era um profeta; a respeito de Jesus (cf. v. 27, o que dele se
a sua morte não mudou neles essa convic­ achava), à luz das quais os discípulos
ção. Ele demonstrara ser profeta tanto podiam interpretar os acontecimentos re­
em obras quanto em palavras. Diante de centes.
Deus e de todo o povo significa aos olhos 2) O Reconhecimento em Emaús
de Deus ou segundo a sua estimativa, (24:28-35)
tanto quanto conforme a opinião públi­
28 Q u ando se a p r o x im a r a m d a a ld e ia
ca. O poder evidente de Deus, expresso p a r a o n d e ia m , e le fez co m o q u e m ia p a r a
na vida de Jesus, era um sinal de apro­ m a is lo n g e. 29 E le s , p o ré m , o c o n s tra n g e ­
vação divina para o seu ministério. r a m , d iz e n d o : F ic a c o n o sc o ; p o rq u e é ta r d e ,
A responsabilidade pela morte desse pro­ e j á d eclin o u o d ia . E e n tr o u p a r a f ic a r com
feta é colocada, mais uma yez, sobre os e les. 30 E s ta n d o co m e le s à m e s a , to m o u o
p ã o e o a b e n ç o o u ; e p a rtin d o -o , lho d a v a .
ombros dos líderes judeus. 31 A b rira m -s e -lh e s e n tã o os o lhos, e o re c o ­
Os discípulos haviam esperado que ele n h e c e ra m ; n is to e le d e s a p a r e c e u d e d ia n te
fosse o Messias. Mas eles concebiam d e le s. 33 E d is s e ra m u m p a r a o o u tro : P o r ­
v e n tu r a n ã o se n o s a b r a s a v a o c o ra ç ã o , as aparições aos doze, a “mais de qui­
q u an d o p elo c a m in h o n o s fa la v a , e q u an d o nhentos irmãos” , a Tiago, a “todos os
n os a b r i a a s E s c r itu r a s ? 33 E n a m e s m a
h o ra le v a n ta ra m -s e e v o lta ra m p a r a J e r u ­ apóstolos” e depois ao próprio Paulo.
sa lé m , e e n c o n tr a r a m re u n id o s os onze e os 3. A Aparição em Jerusalém (24:36-53)
q ue e s ta v a m co m e le s, 34 os q u a is d iz ia m :
R e a lm e n te o S en h o r r e s s u rg iu , e a p a re c e u 1) A Prova da Ressurreição (24:36-43)
a S im ão . 35 E n tã o os do is c o n ta r a m o que
a c o n te c e ra no c a m in h o , e co m o se lh e s fi­ 36 E n q u a n to a in d a f a la v a m n isso , o p ró ­
z e ra co n h e c e r no p a r t i r do p ã o . p rio J e s u s se a p re s e n to u no m e io d e le s, e
d is se -lh e s: F a z s e ja co n v o sco . 37 M a s e les,
e s p a n ta d o s e a te m o riz a d o s , p e n s a v a m que
O “ desconhecido expositor” das Es­ v ia m a lg u m e sp írito . 38 E le , p o ré m , lh e s
crituras foi constrangido a ficar com os d is s e : F o r q u e e s ta is p e rtu rb a d o s ? e p o r que
discípulos em Emaús, pois o (lia estava su rg e m d ú v id a s e m v o sso s c o ra ç õ e s ? 39
quase terminado. E só quando ele estava O lh ai a s m in h a s m ã o s e o s m e u s p é s , q u e
sou e u m e s m o ; a p a lp a i-m e e v e d e ; p o rq u e
à mesa com eles, e foi restaurada a velha u m e s p írito n ã o te m c a rn e n e m o sso s, com o
comunhão, é que os dois homens final­ p e rc e b e is q u e eu te n h o . 40 E , dizen d o isso ,
mente reconheceram Jesus. Quando ele m o stro u -lh e s a s m ã o s e os p é s. 41 N ão a c r e ­
havia alimentado as multidões, revelara, d ita n d o e le s a in d a , p o r c a u s a d a a le g r ia , e
aos discípulos, quem era, ao abençoar e e sta n d o a d m ira d o s , p e rg u n to u -lh e s J e s u s :
T e n d es a q u i a lg u m a c o is a q u e c o m e r? 42
partir o pão (9:16). Esta foi a maneira E n tã o lh e d e r a m u m p e d a ç o de p e ix e a s s a ­
pela qual ele foi conhecido na comunhão do, 43 o q u a l e le to m o u e c o m e u d ia n te d e le s.
da ressurreição. Quando os crentes se A
reúnem ao redor da mesa, conhecem-no Enquanto ainda falavam nisso, coloca,
como o centro- 3e” sua” comunhão e a_ a aparição de Jesus aos discípulos reuni­
essência de seu ser. Quando o seu corpo dos, na noite da primeira Páscoa. Ê Je­
saiu da tumba, o seu corpo, a Igreja, sus que se apresenta no meio deles. O
também recebeu vida. O testemunho principal objetivo da passagem é enfati­
desta alegre comunhão com ele e de uns zar a corporalidade do corpo ressuscita­
com os outros é, até hoje, a maior “pro­ do e a identidade entre o Ressuscitado e o
va” da ressurreição. Depois de abençoar Jesus de Nazaré. De acordo com alguns
e partir o pão, Jesus desapareceu. Como manuscritos, Jesus saudou os discípulos
resultado de sua morte e ressurreição, a com a fórmula: “Paz seja convosco.”
comunidade cristã não depende mais da Mais provavelmente, isto é uma interpo­
sua presença física (Leaney, p. 293). lação de João 20:19b.
à luz desta nova revelação, os dois Os discípulos a princípio pensaram
discípulos se recordaram dos aspectos que um espírito lhes aparecera. Esta
incomuns de sua experiência com Jesus idéia era idêntica ao dogma gnóstico, que
na estrada de Emaús: os seus corações negava qualquer relação entre o Cristo,
haviam-se abrasado dentro deles, en­ que é puro espírito, e a carne, que é
quanto ele lhes interpretava as Escritu­ essencialmente má. Mas isto é apresenta­
ras. Imediatamente eles voltaram a Jeru­ do claramente como um erro. O verbo
salém, para compartilhar com os outros pensavam ver enfatiza que essa idéia
discípulos as alegres notícias de que Jesus inicial era contrária aos fatos. Este episó­
estava vivo. No entanto, eles descobri­ dio participa dos temas da literatura joa­
ram que os outros também criam que nina, que também repudiava o erro gnós­
Jesus ressuscitara, devido ao testemunho tico. Os discípulos foram convidados a
que Pedro lhes dera (cf. 22:32). Na lista, verificar e sentir e apalpar, a fim de con­
feita por Paulo, das aparições do Cristo cluir que se tratava realmente um corpo
ressuscitado a discípulos, ele menciona, de carne e ossos, e não de um espírito (cf.
em primeiro lugar, a aparição a Cefas I João 1:1). O versículo 40 é rejeitado por
(I Cor. 15:5). Em seguida, ele menciona algumas traduções, por estar ausente em
algumas testemunhas Ocidentais, sendo por se cumprir. O evangelho precisava
considerado uma interpolação de João agora ser pregado a todas as nações.
20:20. A época da igreja também é prevista nas
Mas o convite para olhar e apalpar Escrituras (cf. Luc. 2:32; 3:6; At. 13:47,
não convenceu totalmente os discípulos etc.). Lucas não compreende a história
de que a sua suposição inicial estava da salvação em termos dos três períodos
errada. Não acreditando eles ainda, por (Conzelmann, p. 16), mas em termos de
causa da alegria é característica do Evan­ apenas dois períodos. O primeiro é o
gelho, que mostra os apóstolos sob a luz tempo da profecia. O segundo, o tempo
mais favorável possível. Eles tinham difi­ do cumprimento, que tem higar em dois
culdade em aceitar o fato incrível, mara­ estágios. Primeiro há o cumprimento da
vilhoso, da ressurreição. As dúvidas deles Escritura na vida de Jesus. Subseqüente­
só se dissiparam quando Jesus comeu um mente, há o cumprimento na vida da
pedaço de peixe assado... diante deles. Igreja. É claro que isto tem o efeito de
2) Interpretação da Escritura (24:44-49) separar a vida de Jesus da Parousia.
É digno de nota o fato de que em toda
44 D epois lh e s d is s e : S ão e s ta s a s p a la v r a s esta seção pós-ressurreição, em Lucas,
que v ó s fa le i, e s ta n d o a in d a convosco, q u e não há absolutamente nenhuma palavra
im p o rta v a q u e se c u m p ris s e tu d o o q u e d e
m im e s ta v a e s c r ito n a L e i d e M o isés, n o s
a respeito da vinda de Jesus. A ênfase é a
P ro f e ta s e no s S a lm o s. 45 E n tã o lh e s a b r iu o sua entrada na glória, e não a sua volta
e n te n d im e n to p a r a c o m p re e n d e re m a s esperada. No desvendamento do plano
E s c r itu r a s ; 46 e d is se -lh e s: A ssim e s t á e s ­ divino, a Igreja precisa desempenhar pa­
c rito q u e o C risto p a d e c e s s e , e a o te rc e iro
d ia re s s u rg is s e d e n tr e os m o r to s ; 47 e que
cientemente a sua parte, e deixar o fim
e m se u n o m e se p re g a s s e o a rre p e n d im e n to da história nas mãos de Deus (At. 1:7,8).
p a r a re m is s ã o d o s p e c a d o s, a to d a s a s n a ­ O evangelho deve ser pregado aos gen­
ções, c o m e ç a n d o p o r J e r u s a lé m . 48 Vós so is tios em seu nome. Como apóstolos para
te s te m u n h a s d e s ta s c o is a s. 49 E e is q u e as nações, os crentes sãó representantes
so b re v ó s en v io a p ro m e s s a d e m e u P a i ;
ficai, p o ré m , n a c id a d e , a té q u e d o a lto
do seu Senhor. A sua missão se processa
s e ja is re v e s tid o s d e p o d e r. debaixo da autoridade dele. Eles não
precisam apelar para nenhuma autori­
Em sua última reunião com os discí­ dade mais alta, como justificação para
pulos, registrada no terceiro Evangelho, o fato de estarem conclamando os ho­
Jesus lhes apresentou a perspectiva cor­ mens ao arrependimento (At. 2:38). Na
reta para a interpretação da Escritura. pregação do evangelho, eles estão agindo
Este é o único lugar em o Novo Testa­ de açordo com a vontade dele. Jerusa­
mento em que os salmos são menciona­ lém devia ser o ponto de partida para a
dos juntamente com a lei e os profetas. missão que alcançaria todas as nações do
Eles constituíram uma das mais abun­ mundo.
dantes fontes de textos messiânicos para Aqueles que haviam acompanhado Je­
a igreja primitiva. Naturalmente, nem sus desde a Galiléia, que o haviam visto
todas as escrituras hebraicas podem ser morrer, e a quem ele aparecera, tinham
relacionadas com o sofrimento e ressur­ uma função especial na obra redentora
reição de Jesus. O que Jesus ajudou os de Deus. Eles eram as testemunhas des­
discípulos a entender foi o que dele se tas coisas, o fundamento para a confia­
achava em todas as Escrituras. bilidade histórica do evangelho. Que um
Porém agora o tema da profecia e seu homem como Jesus viveu, que ele mor­
cumprimento foi levado um passo adian­ reu, e que ele ressurgiu dentre os mortos,
te. O que fora escrito a respeito de Jesus era fato autenticado pelo seu testemu­
se cumprira. Ainda permanecia, contu­ nho. Lucas declara que o fundamento do
do, uma expectativa profética que estava seu Evangelho é a mensagem dessas “tes-
temunhas oculares e ministros da pala­ rativa acerca da ressurreição, encontra­
vra" (1:1-4). da no Evangelho, o autor não é governa­
O Senhor enviará da glória a promessa do pelo desejo de apresentar uma se­
de meu Pai. Como é interpretado em qüência cronológica, das experiências
Atos, esta promessa é a mensagem de pós-ressurreição dos discípulos, à manei­
Joel invocada por Pedro no dia de Pente­ ra de uma reportagem noticiosa moder­
costes (At. 2:16 e ss.). O Senhor da Igreja na. Ele é dominado principalmente pela
está na glória, mas a Igreja não é deixada necessidade de concluir a história de
sem direção. O vácuo deixado pela remo­ Jesus de maneira apropriada, focalizan­
ção da presença física de Jesus será pre­ do certos temas indispensáveis.
enchido pelo Espírito. Os discípulos fo­ Jerusalém e o Templo ainda eram os
ram instruídos para não saírem de Jeru­ centros da vida e da adoração dos cren­
salém enquanto não fossem revestidos de tes. A comunidade cristã ainda era judai­
poder do alto. Jerusalém, a cidade na ca. A instituição central do judaísmo
qual a Igreja precisava começar a sua ainda era de grande importância para a
missão, era também o lugar onde ela sua vida e adoração. E também, a pri­
seria equipada para tanto. Depois da ex­ meira tarefa da comunidade seria con­
periência do Pentecostes, os crentes pos­ frontar Jerusalém com a mensagem do
suiriam recursos de forças e liderança evangelho, e dar à cidade que crucifi­
para a sua tarefa. cara Jesus ainda outra oportunidade
3) A Despedida Final (24.50-53) para se arrepender e reivindicar a pro­
messa de Deus, tornando-se parte do
50 E n tã o os lev o u fo r a , a té B e tã n ia ; e, Novo Israel (At. 2:38,39).
le v a n ta n d o a s m ã o s , o s ab e n ç o o u . 5 1E a c o n ­
te c e u q u e , e n q u a n to os a b e n ç o a v a , a p a rto u - Desesperança e frustração se transfor­
se d e le s ; e foi ele v a d o a o cé u . 52 E , d ep o is de maram em alegria, verdadeiro júbilo,
o a d o r a r e m , v o lta ra m co m g ra n d e jú b ilo pela fé, da parte dos discípulos, na res­
p a r a J e r u s a lé m ; 53 e e s ta v a m c o n tin u a ­ surreição. Agora eles compreendiam
m e n te no te m p lo , ben d ize n d o a D eu s.
como a vontade e o propósito de Deus
A narrativa da ressurreição foi encai­ eram melhores e mais altos do que a sua
xada no Evangelho, no que parece ser o própria compreensão inicial, limitada e
período de um dia — a primeira Páscoa. distorcida, a respeito dela. E, assim, eles
Depois de abençoar os discípulos, Jesus ofereceram o sacrifício de louvor ininter­
apartou-se deles. Alguns manuscritos rupto a Deus, que lhes mostrara como o
acrescentam a frase: e foi elevado ao céu. sofrimento e a glória estão ligados indis­
Esta interpolação provavelmente inter­ soluvelmente. O seu Senhor fora exal­
preta corretamente o verso 51, como uma tado à mão direita de Deus. De lá, ele
descrição da ascensão de Jesus, embora lhes acenava, enquanto eles também ca­
não possamos tirar uma conclusão dog­ minhavam, através do sofrimento, para a
mática. Em sua recapitulação do minis­ glória, em obediência ao propósito que
tério de Jesus aos discípulos depois da ele havia colocado diante deles (cf. Rom.
ressurreição, Lucas diz que as suas apari­ 8:17). A história dessa peregrinação
ções a eles aconteceram durante um pe­ triunfante ainda está por ser contada no
ríodo de quarenta dias (At. 1:3). Na nar­ livro de Atos.
- » cr foui'
flW Sidon /í s v . SÍRIA
D am asco •
: -■: - t iSàt&ft,
■'T* J A r ' - ^ '4
|# T i r o

O Grande Mar
(Mediterrâneo)
João
João
WILLIAM E. HULL

Introdução feita se não se tomar em conta a sua


O Evangelho de João é ao mesmo forma. Por último, nenhum livro é tão
tempo o livro mais fácil e mais difícil da ^conscientemente teológico, no afã de
Bíblia. Nele, a simplicidade e a majes­ fincar a fé cristã na vida histórica de
tade se interligam de modo inseparável. Jesus. A importância dada a João se deve
Embora vazada em termos singelos, sua exatamente a este esforço e aos métodos
teologia expressa uma das visões mais para alcançá-lo.
elevadas da verdade maior encontrada
na Bíblia. _ I. O Cenário do Quarto
J O desafio supremo de um Evangelho é Evangelho
explicar o sigmHcâdo de JesusC risto
para a vida da humanidade. O problema' O Evangelho de João envolveu-se em
fundamental é a relação entre a fé e a . três direções, numa equilibrada tentativa
história. O que quer dizer, no pensa­ de preservar sua herança iudaica do-f ,
mento joanino, que o “.VertxT se fez ^passado, comunicar de modo atual sua fé-* / +
“carne”. (1:14)? Em outras palavras, cristã e preparar para as responsabili- h*
por que a auto-revelação do Deus eterno dades missionárias para com os gentios
conheceu o limite do tempo e do espaço? no futuro. Isto explica porque pensa­
A pergunta suscita duas outras: Por que mentos oriundos de todos estes três mun­
razão o Evangelho de João está interes­ dos aparecem em suas páginas.
sado em apresentar um testemunho
1. O Cenário Cristão
digno de crédito sobre a vida terrena de
Jesus? e: Por que razão o Evangelho
1L III '■ * 1 I L» W
Os Evangelhos Sinópticos — Pelo fato
procura comunicar as realidades eternas de estarem os quatro Evangelhos preo­
que estão além das categorias de tempo cupados com o ministério histórico de
e de espaço? Jesus, é muito natural que se pense que
Os esforços para resolver o problema'*' houve alguma fonte original comum a
joanino podem ser vistos melhor em três J todos. A posição mais aceita hoje é que
facetas. Antes de tudo, em nenhum livro João, o último Evangelho^ serviu-se de
/ ’N coloca-se de modo tão evidente a cons- um ou mais dos SinòptícósT"especia 1
y ciência do histórico. O diálogo do Quarto mente de Marcos e Lucas, como vigoro­
Evangelho com seu ambiente determinou samente dètende C. K. Barrett, em seu
amplamente não só o material que seria comentário principal de 1955. No en­
incluído, como também a interpretação tanto, desde o aparecimento da obra
que receberia. Mais ainda, num sentido pioneira de Percy Gardner-Smith, Saint
literário, nenhum outro livro foi'ê!ãüõ^ John and the Synoptic Gospels, (Cam-
^ rado com tanto cuidado. Uma avaliação bridge University Press, 1938), os estu­
adequada do seu conteúdo não pode ser diosos têm percebido, cada vez mais cla-
ramente, que as diferenças são grandes João coloca no início a confissão de fé dos
demais para uma dependência, direta de discípulos em Jesus, como Messias, ao
João, de qualquer fonte sinóptica. A passo que os Sinópticos retardam este
conclusão de que o Quarto Evangelho compromisso para bem mais tarde. Am­
independeu dos outros três ganhou um bos sabem que Jesus morreu numa sexta-
apoio fundamental, no demorado estudo feira, mas João data este episódio como
de C. H. Dodd, intitulado Historical tendo acontecido na véspera da Páscoa
Tradition in the Fourth Gospel, (Cam­ (14 de Nisã), enquanto os Sinópticos
bridge, University Press, 1963). destas intenções estivessem na mente do
O espaço disponível aqui não é sufi­ (15 de Nisã). Além destas e de outras
ciente para descrever a amplitude das difèrSnçãSVTÍá uma série de discrepân-
evidências sobre o assunto, mas os pon­ cias menores, que sugerem, de modo
tos mais salientes podem ser sintetizados. r inequívoco,“que o quarto Evangelho não
(Primeiro^) estão ausentes, em João, os j foi escrito com base em nenhuma fonte
elementos centrais’ dos“ Sinópticos: as I Sinóptica. 1 "
narrativas do nascimento, o batismo e L=~ Aqueles que acham que João conhecia
as tentações de Jesus, a pregação pública os Sinópticos cHegaram a esta conclusão
do Reino de Deus, as expulsões de de­ a -partir da suposição de que o Quarto
mônios, os ensinos por parábolas, o Pai Evangelho foi escrito para completãrT
nosso, o convívio com publicanos e pe­ corrigir ou substituir os outros três. É
cadores, o ministério centrado na Gali- pouco provável, porém, que algumas
léia em torno de Cafarnaum, a confissão destas intenções estivessem na mente do
em Cesaréia de Filipe e a transfigura­ evangelista. Pode ser considerada como
ção, a visita apoteótica a Jerusalém, o um pouco mais plausível a idéia de que
sermão escatológico no Monte das Oli­ j "João estava preocupado em explicar a fe
veiras, a instituição da Ceia do Senhor I para membros de sua própria comuni-
e a agonia noGetsêmane. l dade cristã, em vez de aperfeiçoar os
; Na mesma Imha) os elementos jnais ■ Evangelhos usados por outros grupos
importantes de João não aparecem nos ; cristãos. IoSã/O e ov/ro vi ei»
relatos sinopticos: a transformação da A Literatura Joanina — Tradicional­
água em vinho, a visita de Nicodemos, o mente, o Quarto Evangelho, as três
ministério na Judéia antes da prisão de Epístolas joaninas e o Apocalipse têm
João, o encontro com a mulher samari- sido aproximados, na suposição de que
tana, a cura em Betesda, o ministério um só autor, o filho de Zebedeu, os
centrado em Jerusalém, os discursos com escreveu. Todavia, só no Apocalipse
o "Eu sou” (egõ eimi), a cura de um cego o autor diz chamar-se^JoãoXApoc. 1:1,
de nascença, a ressurreição de Lázaro, 4, 9; 22:8); na segunda e na terceira
como ponto de partida para o apres- epístolas, ele se refere a si mesmo como
samento da morte de Jesus, o lavar dos “o ancião” (II João 1; III João 1); na
pés dos discípulos, os discursos de des­ phmeira epístola e no Evangelho, por
pedida e a oração sacerdotal, e o papel sua vez, ele se identifica apenas pelos
do discípulo amado. pronomes “eu” e “nós” (I João 1 e ss;
De fato, há muito material comum a 2:1, 7:12 e ssf 21:24,25). Comparando-
João e aos Sinópticos, mas mesmo estes
_são apresentados de forrnji~~dístTntas.
1 Uma possível exceçãojxjde ter .sido algum contato de
Por exemplo: ambos descrevem a puri­ Joio com õ m ateijal especial de Lucas (denominado L).
ficação do Templo, mas João a colocaTno Veja J. À. Êayley, The Traditions Common to the
princípio do ministério, enquanto os Gospels of Luke and Jonh (“Suplements to Novum
Testamentum” , VII Leiden: E.J. Brill, 1963); Pierson
Sinópticos colocam-na no final. Ambos Parker, Luke and tje Fourth Evangelist” , New Testa­
relatam a chamada dos discípulos, mas ment Studies, 9(1963) p. 317-336.
se os textos, pode-se concluir, com cer­ Testamento, além dos Sinópticos e do
teza, que apèriàs 11 c III João são do corpus joanino. Uma possível excecão
mesmo autor. Nos outros casos, há curio- é Paulo. Além das convicções básicas,
sas misturas de semelhanças e désseme- compartilhadas iunto com todo o Novo
lhanças, %geralmente explicadas pela Testamento, ambos desenvolvem um
teoria da autori^ múltipla ou pela argu­ misticismo em Cristo que é tremenda­
mentação de q u e ujn só homjejn escre­ mente semelhante no pensamento, se
veu todos os cinco livros, num longo não na terminologia. Não há grandes
período de tempo e a partir de circuns- áreas de concordância entre João e as
fâncias as màisvãriadas. epístolas paulinas, pois o evangelho não
A posição aceita aqui é de que várias demonstra a mesma preocupação das
pessoas contribuíram para a composição cartas em relação ao grande debate sobre”
dos cinco livros joaninos, durante um justificação pela fé versus obras da
período de uma ou duas décadas, o que lei e circuncisão. Ademais, João está
explica as pequenas divergências de muito tróximo de (Colossensesj onde a
pensamento; estas pessoas deram sua cristologia da Sabedoria de 1:15-20 ante-
contribuição literária dentro de uma cipa a cristologia do Logos no prólogo, e
mesma “escola” ou comunidade cristã, o fEfésios^) onde o tema da unidade da
que explica as divergências maiores de Igreia encontra paralelos com João 10
pensamentos.2 e 17.
Nesta linha de raciocínio, os outros Como Efésios pode ter sido a última
escritosjoaninos não nos ajudam a co­ obra de Paulo (afora o problema das
nhecer o autor do Evangelho, embora Epístolas Pastorais) e como possivel-
forneçam indicações úteis sobre o cenário, mente circulou na Ãsia Menor ao redor
em que o Evangelho nasceu e para o qual 3è Èfeso (embora a expressão “em Éfe-
foi dirigido. A partir do corpus joanino, so” deva ser omitido em Efésios 1:1),
por exemplo, podemos ver, na Asia Me­
nor do final do primeiro século, um esta epístola e o Evangelho de J oão. É
cristianismo que poderia ser dêlcrito interessante observar a forma como
assim: suas relações com a sinagoga ambos utilizam categorias cósmicas
/judaica tinham chegado a um ponto (acima do mundo/abaixo do mundo)
intolerável (Apoc. 2:9; 3:9), cujo cisma para descrever o drama cristológico. No
ameaçava a unidade da Igreja (I João setor crucial da escatologia e de seus
l 2:19), a autoridade ministerial era as­ efeitos sobre a eclesiologia, pode-se per-
su n to de feroz polêmica (III João 9 e 10), fceber que João.de cêrto modo, modifi~
^ um incipiente gnosticismo advogava uma cou as investidas dos Sinópticos, assim
) cristologia docética (I João 4:2,3) e a ! leomo Efésios modificou as primeiras
) perseguição romana buscava impor sub- ( (cartas de Paulo. Não é preciso que se"
\missão absoluta a César, como rei (Apoc.jl estabeleça qualquer conexão direta entre
13:1,2). O Quarto Evangelho fala tão a Epístola aos efésios e o Evangelho~
diretamente desses e de outros proble­ efésio (?). Basta ver, nesta forma de
mas, que certamente fez parte do mundo paulinismo maduro, um fator que afeta
onde foi produzido. ~j-e> í Pwio ff'0 todo o contexto em que Joãò~Tor5roclu^~
Outras Fontes Cristãs Antigas — A zido.
Originalidade do Evangelho de João
2. O Cenário Judaico e 0
torna um pouco difícil a possibilidade de F
compará-lo com outros escritos do Novo O Velho Testamento — João faz me-
nos uso do Velho Testamento que os
2 Veja H. E. Dana, The Ephesian Tradition (Kansas City: outros Evangelhos: ele cita diretamente
Kansas City Seminary Press, 1940) textos bíblicos em apenas 14 passagens
-«ci I te > ,
(1:23; 2:17; 6:31; 6:45; 7:38; 7:42; 10:34; 3 como Isaías estivera de seus predeces-
12:13-15; 12:38-40; 13:18; 15:25; 19:24; sores (cf. o comentário sobre 12:36b-43).
19:28; 19:36,37).3 ^ V---Judaísmo Rabínico — Ao tempo de ■
Entretanto, estas citações e referências ^ Jesus, o movimento farisaico fez florescer
estão estrategicamente colocadas em % o estudo do Velho Testamento, pelos
pontos vitais, na narrativa, como, por ^ escribas, e das tradições orais em torno
exemplo, napregação de João Batista, n a ; ^ dele. Com aijueda de Jerusalém e a ruína
purificação do Templo, na multiplica- \ do Templo em 70 d.C., os rabinos tor-
ção dos pães, na entrada triunfal, na v naram-se os líderes religiosos indiscu­
rejeição de Israel, na traição de Judas ? tíveis do judaísmo normativo e sua insti­
e particularmente na crucificação. Ade- | tuição principal. a sina popa. O Quarto
mais, os temas do Velho Testamento l Evangelho, nos capítulos 1 a 12, mostra
fazem parte integrante da textura do S um interesse mais explícito nestas idéias
Evangelho, como ocorre, por exemplo, do que qualquer outro escrito do Novo
com as íêstâs dos grandes peregrinos, Testamento. De modo claro, o “livro dos
0 novo motivo do êxodo, as afirmações Sósinais” (João 2-12) imbrica-se intima-
"eu sou” , os títulos messiânicos e as ranentê com a crise de identidade pela
jmagens usadas em Israel. O Quarto rc^qual a oficialidade judaica passou na
Evangelho compreendeu de modo ine­ i;-®segunda metade doprimeiroséculo.
quívoco Jesus e sua Igreja em categorias ^ Os exemplos estão em cada página.
fundamentalmente bíblicas. ____ | Jesus dedicou praticamente todo o seu
^ Este emprego deliberado de elementos ” gministério a Jerusalém, onde a institui-
escriturísticos pelo Quarto Evangelho, ~-^vÇão religiosa se concentrava (veja o co-
reflete duas concepções do autor. De ''lim en tário sobre 2:1-12:50). A maioria
início, representa seu compromisso imu­ de seus debates aconteceu com pessoas.
tável para com o Israel de Deus como solo à j còmo iNicodemos, que representavam o
onde germinou a fé. Não importa que o U^sinédrio ou apoiavam seus esforços de
evangelista tenha tomado partido no ^—manutenção do status quo (ex.: 3:1;
violento conflito surgido entre cristãos 7:45-52; 9:28,29; 11:45-53). Em geral,
e judeus; o fato é que ele não podia estas controvérsias foram dirigidas con­
repudiar sua ligação com o verdadeiro tra os argumentos e as interpretações
Israel, pois agir assim seria uma espécie rabínicas (ex.: 5:10-18, 37-47; 7:15-24;
de amnésia espiritual, uma negligência 8:13-19; 10:31-38). Ademais, as disputas
para com a família fiel, de onde viera. cnm ns judeus estavam relacionadas à_
Ao mesmo tempo, adotar o Velho Testa­ sinagoga (6:59; 9:18-23) e refletiam os
mento não evitaria que recebesse as crí- procedimentos homiléticos do Hagga-
tícãs~de todos os ilIH&Bs aTie comparti-* dah. dõs~~rã6Tnos Tvefa o comentário
1 liavam de sua filiacão_cam.Abraão. pois sobre 6:1-71). De modo especial, a jjris J
êm suas páginas ele encontrou denúncias tologia de João reflete as preocupações J
proféticas dirigidas não aos pagãos, mas rabínicas sobre a origem e a natureza/
ao Israel não-arrependido./Desse modo, do Messias (ex.: 7:15-31, 40-44; 12:34), \
tanto suas afirmações quanto suas con­ sobre as afirmações de Jesus de ser o “Eu ^
denações do judaísmo surgiram de uma sou” (egô eimi) ou o nome de Deus (veja ;
fonte comumTJPor toda esta severidade, o comentário sobre 5:1-10:42) e com a ?
João jamais esteve tão perto dos judeus apresentação de Jesus como sendo o (
Logos (veia o comentário sobre 1:1-18). ^
O Judaísmo Apocalíptico — Ã pri­
3 Para um estudo porm enorizado de cada passagem, veja meira vista, o Evangelho de João mostra
E. D. Freed, Old Testament Quotations in the Gospel
of John (Supplem entes to Novum Testamentum” , XI pouco ou nenhum material da literatura
[Leiden: E. J. Brill, 19651 apocalíptica judaica; isto é, inclusive,_
lembrado como um dos seus contrastes tqueda de Jerusalém, quando as espe-A
mais significativos com os Sinópticos. I ranças apocalípticas, como interpretadas
Uma abordagem mais séria, entretanto^ popularmente pelos judeus, caíram em
capta, atras de uma aparente indife- descrédito. Sua estratégia foi conservar
rença, uma clara consciência deste tipo as convicções mais significativas, trazi­
de pensamento e uma estratégia delibe- das pela apocalíptica da herança do
rada de tratar dele. As relações p rováveis £ Velho Testamento, expondo-as, porém,
* èntre o fcvaneelho e o°Apocalipse de Joãoi de forma mais aceitável para o mundo!
(conforme já se viu) evidenciam que oí [heleno. ç-& • ',
i Evangelista conhecia esta forma de co- i O Judaísmo Sectário — As descobertas
municação. A hipótese se confirma cpm de Qumran, próximo ao Mar Morto,
o uso, do Evangelho, de conceitos tipi- acontecidas depois da Segunda Guerra
Mundial, aumentaram enormemente
do Homem (1:51; 3:13,14), reino (3:3, nosso conhecimento dos grupos sectários
5; 18:36), juízo (5:27-29), tribulação do judaísmo do primeiro século. Na lite­
(16:33) e ressurreição (11:23-26). Mais ratura que restou, dessa comunidade
genericamente, João compartilha, junto essênica de tons monásticos, percebemos
com o pensamento apocalítico, um inte- ã l^ n T trãços de pensàmento e termíno
resse em desvendar o mundo do além logia joaninos. Isto não implica neces­
e revelar o próprio Deus em seu esplen­ sariamente que existe uma relação de
dor celestial (cf. Apoc. 4:1; João 1:51). dependência direta entre os dois grupos
Ao mesmo tempo, João alterou ligei­ que produziram João e os Manuscritos,
ramente a linguagem apocalíptica ao mas sugere bem claramente que estas
aplicá-la ao Jesus histórico. Agora o u e o comunidades sofreram influências co­
Revelador já viera, o futuro temporal não muns, uma vez que foram contemporâ-
tinha mais o mesmo significado, para nêãs” mima mesma região (a Judéia)
seus seguidores, como tinha para a lite­ durante quase meio século.
ratura apocalíptica judaica. O simbo- Várias semelhangas consubstanciam
lismo espetacular (dragões, tronos, fogo) esta hipóteseTJoão e Qumran refletem
não é mais necessário para descrever a um dualismo modificado (isto é, mais
era futura, uma vez que as realidades do monoteísta do que metafísico), que é
reino da eternidade tinham-se manifes­ descrito, por exemplo, como um conflito
tado através das imagens históricas escatolôgico e ético, entre a luz e as
(água, pão, luz) usadas por Jesus. Em trevas. ÇhT35Isgrupos compãrtilhaTama
lugar de visões, sonhos e êxtases, pode-se solidariedade comunal dos filhos da luz e
aeora “ver” Deus pela contemplação^ do do amor fraternal, que os protegeriam
Jesus terreno (cf. 1:18; 3:32; 5:19; 6:40; contra os filhos das trevas, no mundo.
14:7-9). Mais claramente, o futuro con­ Ambos nutriam a mesma insatisfação
tinua crucial, para o cristão, como sendo com o Templo de Jerusalém e a mesma
o tempo da obra esclarecedora do Espí­ convicção de que o verdadeiro culto de­
rito Santo (14:25,26; 16:4b-15) e do tri­ veria ter uma natureza mais espiritual.
unfo final de Cristo (5:25-29; 6:38-40, Por outro lado, a cristologia ioanina não
54;17:24-26), mas este futuro não é mais incorporou muitas ênfases cerimoniais.
um enigiqa, que precisa ser decifrado fégalhitas e^Járêrdotois^de Qumran; os
pelo aprendizado lesotéricõl)
Seria uma supersimplificacão aceitar plenitude, que os cristãos já conheciam,
na pessoa de Jesus C r i s t o . p 61
mesmo modo, seria supersimplificar O Judaísmo Separatista — Uma das rs'°>'
concluir que o Evangelho a rechacou.
v y iiv tu ii Hwv v w ênfases que o Quarto Evangelho (4:1-42;
VUiAiJViJ VJUV V y u » l IW ^TAllgVUlU y T . l ’TA)

j- Possivelmente, João escreveu logo após a |^_8:48) compartilha, com alguns elementos
E r Q-j* Tl CO -> D fz -lr Císs *rv%
<<^.4-fa) ■fjUTfafaj
ta ch, p©"
/
V de Lucas (9:52; 10:30-37; 17:11-19), é passou o judaísmo da Diáspora, isto é, de
& um interesse pelos samaritanos (sò men­ trazer não-judeus a uma religião radica­
•Ng cionado aqui, exceto a referencia nega­ da na fé hebraica do Velho Testamento,
tiva de Mateus 10:5). Morando nas re­ e, ao mesmio tempo, tentar convertej;
giões montanhosas centrais da Palestina, judeus helenistas. Há muitas indicações
8 entre a Judéia e a Galiléia, este grupo foi de que o QuãrtcT Evangelho, mais que
sempre marginalizado pelo judaísmo qualquer outro, adaptou alguns dos mé-
^ a d O éü s casamentos todos que tinham sido desenvolvidos pelo p i L-
mter-raciais, sua teologia sincretista e[ judaísmo helerilsta como resposta ao seu '
seu desafiador centro de cultos. Como os a mbiente pagã o .I s to pode ser visto me-
tf
sectários essênios, os samaritanos diziam íhor mediante uma comparação entre.
conservar a fê israelita delorm a mais fiel João e a Sabedoria de Salomão (na Apó­
que qualquer outro grupo judeu; eles, crifa do Velho Testamento) e os escritos
por exemplo, veneravam a edição que de Filo, ambos produzidos pelo judaísmo
fizeram da Torah (Pentateuco) como a alexandrino, pouco antes e durante o
única expressão verdadeira das Escri­ primeiro século cristão. A doutrina do
turas. Lógos, no Prólogo, por exemplo, partURar'
Diferentemente da comunidade de “com estas obras a preocupação de falar
Qumran, todavia, não foram aceitos, dos atributos e dos atos divinos de uma
pelos judeus, como membros legítimos forma tão perfeita que permitisse fazer
m Pcasa de Israel: assim é que Josefo a passagem para o mundo dÕ~pensa­
pensou seriamente em tornar-se um mento pagão (veia o comentário sobre
essênio (Vida, 10-12), embora nunca 1:1-18).
tenha pensado em ser um samaritano.
Como os primeiros cristãos tiveram que 3. O Cenário Greco-Romano
se separar do judaísmo, eles se viram na r 1oão entendeu que traduzir uma men­
mesma~posiçao que os samaritanos, no sagem para uma nova situação exige uma
s"entido deferem considerados nem to­ adaptação criativa dos elementos con^
talmente judeus e nem totalmente pa­ _ceituais presentes nesse ambiente. Che­
gãos. gamos, agora, ao ponto em que o Quarto
-3 É digno de nota que o interesse pri-, Evangelho interagiu com certos quadros
■<3 meiro de, João pelos samaritanos gira em do pensamento pagão, a tim ae penetrar^
a torno da transformação do culto dò tem­ lhe de modo cabal com os_ ensinos de
plo (4:16-26), que é tambem o mesmo Cristo, j—p IrcsS e
interesse de Qumran. Os estudiosos A Filosofia Grega — No primeiro sé­
Ci começam a compor as peças das evi­ culo, a filosofia clássica de Platão tinha-
dências, o que poderá estabelecer os se tornado uma visão quase religiosa, que
liames históricos entre os samaritanos, superava cada vez mais as mitologias
os helenistas de Estevão, o judaísmo não- politeístas. Este monismo popular, em­
conformista de Qumran e o grupo joa­ bora fosse disseminado por intérpretes
nino responsável pelo capítulo 4, espe­ itinerantes, não chegou a ser uma reli­
cialmente no ponto em que há uma ati­ gião institucional, mas fez um contun­
tude comum em relação ao Templo . 4 dente apelo aos cidadãos instruídos dos
O Judaísmo Helenista — Quando a centros cosmopolitas do mundo hele-
Igreja começou a entrar no mundo greco- nístico.
romano, seus primeiros missionários Há muitas indicações de que o Evan­
enfrentaram o mesmo desafio por que gelho de João foi sensível a esta situação.
Para dialogar com o conceito platônico,
4 Oscar Cullmann, “ A New Approach to the Interpreta*
tion of the Fourth Gospel” , The Expository Times, 71
de um mundo invisível de realidades eter-
(1959), p. 8-12, 39-43. nas,■em ^posição ao mundo visível, que
era sua reprodução imperfeita e efêmera, mento aparentes no mundo, com um
Jesus é apresentado, em 8:23, como “de
cima” (ek tõn anõ), e seus adversários para com os outros.
como “ de baixo’’ (ek tõn katõ). Idéias O quarto evangelista parece ter real­
semelhantes aparecem em 3:31 e em çado as características de Cristo que
18:36. O adjetivo “verdadeiro” (aléthi- confirmassem as melHÕres^expressoes do
nos), usado com muita frequência, pode estoicismo. Neste ~ Evangelho. Tesus é
ter tomado a conotação de “real” ou apresentado fundamentalmente não
“arquétipo” , quando empregado junto como um H Õ ^inêirW Tns^^F^^gÕ fêr
com luz (1:9). pão (6:32) e vinho (15:1). (o termo “compaixão” não ocorre ne- -
Ao mesmo tempo, d sentí3õ~?ilosófico nhuma vez em João) mas como um Filho ^
não era a primeira preocupação, porque j divino e auto-suficiente (10:17,18), que 3^ 5f
a intenção centrãT~era ligar a luz, ao tinha o controle de todas as suas mani-
pão e o vinho “verdadeiros” não ao festações humanas (2:4; 6:15; 7:3-9; .1
mundo ideal, de cima, mas à pessoa 11:3-7), que enfrentou todas as s u a s ^ '|
histórica de Jesus Cristo. dores com o equilíbrio de um rei (como, |
Esta cautela sugere que o Evangelho por exemplo, no Getsêmane; veja o co- 5^
de João não estava interessado em pêdir mentário sobre 18:1-19:42), que, e m " W
emprestado e em polemizar. Um filósofo meio às tribulações, outorgava “paz” í*
r i cépticÕf compreenderia que seu autor aos seus discípulos (14:27; 16:33), e 3.“
estava consciente de e interessado em seus que se entregou completamente aos seus
problemas, mas sabia também que estai irmãos (13:1, 34) e ao bem dos outros \
va apresentando uma resposta decisi­ (5:17).
vamente nova. Esta inclepincfência, en­ Nada disto quer dizer, no entanto, que
tretanto, não se constituiu, de modo
algum, uma indiferença para com outros O Deus deste Evangelho é claramente
esforços de resolver os grandes proble­ pessoal,
-- e nãofpanEêüfãn
I -- --- -- t Embora l ---- ^ ^
mas da existência humana. O evangelis- nente/no mundo num sentido revelatorio
r ta encontrou ”nÕ™platonismo popular,
elementos que realçavam sua apresen­
(1:3, 4,9), primeiramente ele se encar­ £ sA ‘
nou, no mundo, num sentido redentor,
fWtí 'Lt

tação de Cristo aos gregos, sem com- que conheceu a realidade total da dor e
premeter a integridade de sua mensa­ da angústia (11:33, 35, 38; 12:27; 13:21).
gem. — O ministério de Jesus foi conduzido pela
O Estoicismo 5 — Fiel ao espírito vontade de Deus (4:34), e não por algum
eclético 1 do período neotestamentário, determinismo natural. O evangelista^ M
uma espécie de “estoicismo platonizan- aproxim ou-se propositadam ente do / 0 1C)4 _

i^ tte ” divulgou-se amplamente, através de estoicismo, para identificar suas contri­


íà í missionários populares, pregadores de buições positivas e para propor mudan­ - ^
moral que recusava a degeneração de sua ças radicais em sua maneira de pensar PrvJK5
)iante do cepticismo e mesmo do ■""D Gnosticismo — Sem dúvida, a ques­
| f fatalismo^ este estoicismo afirmava que tão mais difícil, mais controvertida e.
% uma umaade de propósito (logos) per-^ certamente, a mais importante, refere-se
vardiã^tocíoo~universo. Q homem sa- ao relacionamento do Evangelho de João
>fbio” , que percebesse esta ordem provi- com o gnòsticismo. Alguns estudiosos
’ . 'Mencial de coisas, cultivaria um elevado insistem que o gnosticismo dá a chave
^ ^ desinteresse interior (apatheia, literal- para a compreensão de nosso Evangelho
*1 mente apatia), pelo mal e pelo sofri- outros dizem não haver nenhuma relação
entre os dois, na suposição de que o
Sobre o estoicismo e o Evangelho de João, veja R. H.
Stracham, The Fourth Gospel (3a. ed.; London: SCM gnosticismo não existia ao tempo de
Press, 1941) p. 52-70. Evangelho. Em face da enorme comple^ y„<&J
Rcf <9f 5 7 rareio « P. e © 233 '
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xidade do assunto, há espaço, aqui, para tendências, que, de certo modo, podem
tratar apenas de uma interpretação. ser consideradas um gnosticismo incipi­
Durante o período helenístico (c. 300 ente ou nascente, e isto em dois sentidos.
a.C — 300 d.C.), as conquistas de Ale­ PrimeiroAo Evangelho usa, de vez em
xandre e a consolidação do Império quando, as formas de pensamento em­
Romano aceleraram um processo de pregadas pelo gnosticismo. para des­
assimilação religiosa, em que diversos crever o mundo como o reino das trevas
elementos do Oriente amalgamaram-se, (8:12; 12:35, 46), quando os homens são
para criar um novo tipo de alienação, divididos em dois grupos: aqueles que
muito bem descrito, por Gilbert Murray, são salvos por “conhecerem” a verdade
como “ a decadência da força’\ Fartos (8:32; 17:3) e aqueles que são condena­
dos à escravidão do pecado, por terem
estruturas totalitárias de poder, os ho­ rejeitado a palavra da verdade (8:33,34).
mens começaram a sentir a ausência de Para este mundo, Jesus é um “enviado”
1 uma sensação da presença divina neste do reino de cima, como portador da luz
mundo. O fracasso das esperanças apo (8:12) e da verdaSe (18:37). para jevelar
(í calípticas judaicas, na crise nacional sua glória aos homens de fé. Empegundo
de 66-73 d.C, foi um passo a mais na lugar, o ÊvangeÍfio~está. ao mesmo tem-
1 incrementação desta sensação de futi po, preocupado em corrigir a ênfase
lidade . 6 — gnós fic ^ a c C T ^ H Õ ^ B re n ^ ^ ^ ^ M ^ s ^
L.
Nesse clima de ebulição e frustaçâo, o tacar o papefdcTLogosna criação (1:3) e
gnosticismo começou a emergir, de início a plena encarnação do Logos na vida
não como uma religião institucional, mas história de Jesus (1:14). O conhecimento^
como uma abrangente visão do mundo, fàa. verdade acerca de Jesus não nos leva a
que salientava õ dualismo radical, que fugir do mundo, mas, sim, ã uma vida de
serviço ao mundo, no espírito do amor
I

tando, assim, o mundo como uma tirania 1(13:1-20). -----


cósmica, que aprisionava o homem no O Hermetismo — O Corpus Herme-
tempo e no espaço. A única esperança de ticum é uma coleção de escritos do se­
redenção residia na descoberta, através gundo e do terceiro séculos cristãos,
do gnosis (conhecimento), da centelha atribuídos a('Hermas Trismegísto? pre­
divina dentro da pessoa necessitada de sumivelmente um sábio do Egito antigo.
libertação, para que pudesse alcançar o Embora posterior ao Quarto Evangelho,
reino da luz, de onde tinha caído. O a literatura hermética contém muitos
gnosticismo era uma atitude de extrema paralelos interessantes, por ter assimi­
introspecção ou de apaixonada subjetivi- lado também elementos do platonismo,
dade (semelhante a certos tipos~3F exís^ do estoicismo, do gnosticismo e dos mis­
tencialismos contemporâneos), que, em térios. 8 No tratado de “Poimadres". por
função de sua perspectiva fatalista da exemplo, há referências à necessidade de
I vida, via a salvação na autocompreen- novo nascimento, à importância do co-
[_são . 7 nfíecimento, ao papel do Logos, ao dua­
O Quarto Evangelho parece ter-se lismo da luz e das trevas, do descenso e à
preocupado em “3íaíogar com algumas ascensão do homem celestial e à impor­
tância da espiritualidade na vida do
6 A tese de que o gnosticismo surgiu dos escombros do
apocaliptismo que estava em decadência, tem sido de­
crente.
fendida por Robert M. Grant, Gnosticism and Early O Corpus Hermeticum introduz ter­
Christianity (rev. Ed.; New York: Columbia University mos de comparação, para que se possa
Press, 1966).
7 Sobre o ethos do Gnosticismo em geral, veja Hans Jonas,
The Gnostic Religion (rev. ed; Boston: Beacon Press, 8 Veja C. H. Dodd, Hie Interpretation of the Fourth
1963). Gospel (Cambridge: University Press, 1953), p. 10-53
discernir o impacto exercido pelo evento reunidos num conjunto literário. A ma­
de Cristo sobre as noções religiosas do neira correta de. tratar Ha qn^ct^nHa
seu tempo, visto que em tantos sentidos autoria é a partir de uma avaliação eqni-
se assemelha ao Evangelho de João, librada das evidências externas e inter-^
exceto quanto a este fator decisivo. nas..
Quando se comparam os dois textos, fica As ejj^gjiçiasM ternas delineiam-se
claro que, embora João considere seria^ segundo referências muito antigas e se­
mente os pontos de contato oferecidos guras, vindas de fora do Evangelho.
pelo ambiente que o cerca, ele considera Como não há nenhuma menção direta
mais fundamental a responsabilidade de do Quarto Evangelho em qualquer fonte
confrontar este ambiente com a obra de então, inclusive o próprio Novo Testa­
j_crucial de Cristo. mento, dependemos totalmente das
fontes posteriores, do segundo seculo.
II. A Formação do Quarto íj-x que causam alguma confusão. Por um
Evangelho lado, (Inneu)afirmou (c. 180-200 d.C.)
A partir de uma perspectiva confes- que o Evangelho foi editado por “João,
sional, o impulso principal para a pro- o discrpuIo do~SFnhor, aquele que se
düçãõdo Evangelho de João foi gerado inclinara támÊvem so6 re~õ~seü~SIlQEl
pela inspiração divina concedida na vida (Contra as Heresias, III, 1:1; cf. I, 8:5;
de Jesus e mediada através do seu Espí­ II, 22:5; III, 3:4; veja Eusébio, História
rito. A partir de uma perspectiva his­ Eclesiástica, III, 23:1-4; IV, 14:3-6),
tórica, esta inspiração é vista como tendo embora esta tradição não possa ser re­
sidopermeada por um processo completo cuperada de forma cabal, a partir das
de composição literária, que durou várias fontes de Irineu. Por outro lado, a de­
décadas. Se o livro foi produzido num mora com que o Evangelho foi recebido
mesmo lugari durãnlFum breve período pela igreja (como se verá), inclusive uma
de tempo, seria muito difícil que fosse tão séria oposição de muita gente, “torna
sensível às várias influências do ambi- impossível crer-se de que foi publicado
ente, como acabamos de ver. Nas pági­ com a plena concordância do livro apos­
nas seguintes, a formação do Evangelho tólico” (Barrett, p. 97).
será traçada desde a época dos eventos A situação se complica ainda mais
que relata até o seu atual lugar nas escri­ quando se leva em conta as eyi,dê.ntias
turas cristãs. internas dentro do próprio Evangelho.
Na realidade, o Evangelho é anônimo,
1. A Origem do Quarto Evangelho embora traga afirmações importantes,
Começamos perguntando quando e mais indiretas, sobre sua autoria, espe­
onde, por quem e para quem, o livro cialmente em, 21:24,25. Vemos aí clara­
surgiu. Com estes marcos estabelecidos, mente que o processo de composição não
podemos falar do que houve „antes e se limitou a um só autor, mas envolveu
depois. j-& IS&Í lnv'>- ^ tr- e no mínimo três estágios distintos:
Autoria — A partir de um estudo da 1) O fundamento subjacente do Evan­
Bíblia em português, é fácil e comum gelho descansa, como se pretende, sobre
aceitar que o autor de um livro é aquele o testemunho de uma testemunha ,
apontado pelo título que recebeu, neste que viu"o Cristo crucificã3õ(T9?35)e
caso, “Evangelho Segundo João". Acon­ ressuscitado (21:24). O contexto, nestas
tece que esle título não faz parte~do texto passagens, indica sempre, com certeza,
original do Evangelho, tendo sido acres- mie esta testemunha foi o discípulo ama
3, do. depois de os
quatro Evangelhos terem sido termina­ 2) João 21:24 refere-se a uma comu­
dos, estarem circulando e terem sido nidade (“ nós”) que aceitou o testemunho
do discípulo amado; o uso da primeira (1) João era galileu. Na Galiléia foi
pessoa do plural implica que este grupo chamado e ali traballíou com Jesus.
apoiava o seu testemunho com a publi­ Além de o Evangelho mostrar pouco
cação do Èyange.lho (cf. 1:14; í João interesse pela_Galiléia. seu conhecimento
1:1-4). Este não pode ser o “ nós” edito­ geográfico limita-se quase que inteira­
rial do discípulo amado, uma vez que ele mente ao sul.
é referido separadamente no mesmo (2) Embora João fosse pescador, o
versículo (21:24- “nós sabemos... seu Quarto Evangelho, em contraposição aos
testemunho” ). Sinópticos, dispensa pouca atenção a
3) Uma comunidade, entretanto, não pescarias ou atividades em torno do mar,
pode escrever um livro, exceto através de cõm exceção do capítulo 2 1 .
algum representante, e este represen- (3) João tinha um irmão, Tiago. Os
rànte ê KtenHHcãHcT' como em 21:25 dois, junto com5rmYÕ"Pe3F5Hntegrarani
(“Eu”). Novamente, aparecendo no um círculo menor, no grupcTdos discí-
mesmo contexto, esta pessoa não pode pulos. Não há referência a este triun­
ser logicamente identificada com o dis­ virato no Quarto Evangelho, e Tiago
cípulo amado. jamais e mencionado (cf., porém, 2 1 :22).
Para resumir, a seqüência pronominal (4) João foi chamado de “filho do tro-
“ele — nós — eu” implícita na flexão vão” , por JesusTMarT^TlVA, pãra des-
verbal ocorrida em 21:24,25, indica um crever, possivelmente, um homem iras­
processo tríplice de composição. Teste-" cível. O discípulo amado era, evidente­
munho digno de crédito, acerca de Jesus mente, conhecido por sua disposição de
CristoTT õri3ã3o por um participante amar, uma característica nunca atri­
singularmente qualificado, em seu mi­ buída a João nos Sinópticos.
nistério, cuja dedicação espiritual lhe (5) João, certa vez, manifestou uma
conseguiu um lugar especial na atenção atitude de vingança para com os sama-
do Mestre. Alguma congregação cristã ntanos (Luc. 9:54), enquanto o Quarto
aceitou este testemunho e cooperou riã* Evangelho mostra uma atitude inusita-
proclamação de sua validade (20:31), damente favorável aos samantanos.
através de vários materiais orais e literá­ (6) João se interessava por exorcismos
rios, aos quais algum membro deu forma de demonios. Possivelmente, ele esteve
final. Isto é tudo que o Quarto Evangelho presente em todas as curas relatadas
afirma sobre a sua própria autoria. (Para nos Sinópticos; foi comissionado para
outra reflexão sobre o longo e complexo expulsar demônios (Mar: 3:15) e se mos­
processo em que o “ autor” de um Evan­ trou preocupado quando um exorcista
gelho participou, veja Lucas 1:1-4). não autorizado foi encontrado em ação
Podemos, agora, investigar se o dis- (Mar. 9:38). Este assunto, no entanto,
cípulo amado que participou còmo prin- iamai&_.é-_mencionado no Quarto Eyan-
cipaí testemünha deste Evangelho pode -gp.lhfu. <ntAj
n í.
ser identificado como “João, o discípulo (7) Como membro do círculo menor, rttft >
|o Senhor” , como o fizera a tradição da João, em especial, pôde presenciar a ^ ^
Igreja um século depois. Apesar de nu­ transfiguração de Jesus, que se seguiu à
merosos esforços para justificar esta confissão em Cesaréia de Felipe, ouvir o
conexão, as evidências indicam o con­ grande discurso escatológico do Monte
trário. 9 Considere-se, por exemplo, o das Oliveiras, preparar-se e participar da
seguinte: instituição da Ceia do Senhor e com-
& Co., 1958) p. v-xxxii. Sobre os argumentos contra esta
9 A clássica defesa, de que o filho de Zebedeu é o autor do identificação, veja Pierson Parker, “John The Son of
do Quarto Evangelho, é feita por B.F. Westcott, em Zebedee and the Fourth Gospel", Journal of Biblical
The Gospel According to St. John (London: James Clarke Literature, 81 (1962), p. 35-43.
partilhar da agonia do Getsêmane. peças do quebra-cabeça. Pode ser até
Assim mesmo, estes episódios tão funda- "que o editor final se apresentasse com a
mentais não aparecem nò“Quarto Êvan- identidade, do discípulo amado, para
permanecer desconhecido, a fim de que a
Como 21: 24-25 indica, o discípulo atenção não se focalizasse sobre sua
amado não foi o editor final do Quarto pessoa, mas sobre Aquele de quem tes-
mas apenas testemunha / ' temunhava.^ _
ocular. ^PoHemos“
Podemos, então, acrescentar A(segündaj questão ainda de pé vem,
algumas a características relacionadas evidentemente, do estado da evidência
ao filho de Zebedeu. As evidencias inter­ conforme a observamos até aqui como,
nas, todavia, sugerem que João certa­ então, foi o nome de “João” associado ao
mente não contribuiu para as semelhan­ Qu arto_EvangSHõj? A situação do se­
ças básicas encontradas aqui (veja o gundo século confunde mais o problema,
trecho, sobre as relações entre o Quarto embora introduza duas outras possibi­
Evangelho e os Sinópticos). Não é exa“ lidades alternativas. Af^pnmeira) é que
f gero concluir que nada do que sabemos João, o filho de Zebedeu, pode Jer muda-
sobre o filho de Zebedeu, com base nos do para a Âsia Menor e, venerado como
sinópticos, ajusta-se ao que sabemos do único apóstolo original a viver ate então
discípulo amado do Quarto Evangelho. nesta região, legou seu nome ao Évan-
Assim, sendo, pelo menos duas ques-" çclho ali produzido. Esta hipótese é frá-°
tõfiS_sobre a autoria têm que seFsuscíf? gil, mas não de toda implausível (não
das amda.fFrimeíra^quem foi o discípulo há qualquer evidência para ela em o
amado? As sugestões mais curiosas iden­ Novo Testamento; cf. com Justino. Diá­
tificam, èsta obscura figiura, ora com logo com Trlfo, LXXXI, 4, e com Eusé-
( Lázaro) 10 ora com i4ráoM arcos!l 11 É bio, História Eclesiástica, IV, 18:6-9;
verdade que Lázaro e. apresentado expli­ ...s..
a tradição
. 7- de que João foi martirizado — ------------
citamente como o discípulo que Jesus cedo é fraca). Aloutrajpossibilidade é que
amava (vejã o comentário sobre 11:3,5) e a atribuição do Evangelho a João node
que“êle tinha um lugar de grande rele­ ter surgido em face de sua relação, não
vância no testemunho do Evangelho. com o_Jilha_d.e_Zebedeu. mas com o
Ademais, é interessante notar que as “ancião” mencionado., em I e II João.
informações disponíveis, sobre ( João Papias, numa passagem muito questio­
Marcos^ ajusta-se bem às nossas mfe- nada, citada por Eusébio (História Ecle­
rencias sobre o autor do Quarto Evan­ siástica, III, 39:1-8), identificou um
gelho, a começar pelo convincente fato ‘^ p r e ^ t e r o j ^ ^ como uma fonte de
de se chamar João! Assim mesmo, po­ /palavras vivas de verdades do Senhor e
rém, estas hipóteses, como outras do Iisto parece implicar que ele também era
mesmo nível, permanecem como conjec­ i de Éfeso. Embora dificilmente o “an­
turas, por fálta de evidencias mais con­ cião” possa ser o discípulo amado, mui­
cretas. Ao mesmo tempo, estas hipóteses tos estudiosos acham que, ele foi o editor
ajudam a manter aberta a questão, ilus­ HnaI~do Quarto Evangelho, indepen­
trando também a dificuldade de chegar- dentemente do que o filho de Zebedeu
se a uma solução que harmonize todas as possa ter sido, e por isso o livro recebeu o
seu nome (veja a discussão completa em „
10 Veja Floyd V. Filson, “Who Was the Beloved Disci­ Bernard, I, XXXIV-LXXI). +
ple?" Journal of Biblical Literature, 63 (1949), p. 83- Data em Que Foi Escrito — Várias
88; J.N. Sanders, Who Was The Disciple Whom Jesus
Loved?” Studies in the Fourth Gospel, ed..., F.L.
sugestões indicam que o livro, em sua
Cross (London: S.R. Mowbray, 1957), p. 72-82. forma final, deve ser datado mais ao fim
11 Veja Pierson Parker, “John and John Mark” Journal do oue em meados do primeiro século.
of Biblical literature, 79(1960), p. 97-110 Obviamente, as relações com o judaísmo
tinham-se deteriorado até o ponto de região (veja as discussões acima, sobre
ruptura (9:22; 12:42; 16:2). Era necessá­ os escritos joaninos). Outra possibilidade
rio que se elaborasse uma teologia mar- incluiAlexandrfà) por causa das íntimas
eadamente cristã, que se fundamentasse conexões entre Filo e a literatura sapi-
no Velho Testamento, mas fosse além encial, e também (Ãntióquiav devido a
dele, como acontece no Prólogo e na possíveis liames com Inacio, mas há
doutrina do Parácleto. pouca evidência direta para apoiar estas
O capítulo 21 faz a contribuição mais hipóteses.
preciosa ao problema da datação, ao
cleixar subentender qüe a geráção apos­ 2. A Composição do Quarto Evangelho
tólica, inclusive Pedro (21:18,19) e o Depois de aceitar que o Quarto Evan­
discípulo amado (21:22,23), tinha desa­ gelho formou-se em Éfeso, em forma
parecido antes da vinda da Parousia. final, por volta do ano 100 d.C., pode­
Estes fatores, junto à situação geral, mos tentar traçar os estágios de sua
pintada na literatura joanina, aponta composição desde os eventos da Pales­
para um período não a n te r io r à última tina dos anos 30, sobre os quais todo o
década do primeiro seculo. Evangelho finalmente reside. Como este
Ao mesmo tempo, outros fatores suge- longo processo não é descrito na litera­
rem que a data mais tardia dificilmente tura cristã antiga, temos que reconstruir
poderia ultrapassar a primeira década do suas principais fases inteiramente, a
segundo século. Já por volta de 125-135 partir das inferências tomadas da pró­
d.C. algumas cópias do Evangelho cir­ pria natureza do Evangelho.
culavam no Eeito. conforme estabele­ Fontes — Ã medida que a grande
cido através de um fragmento de papiro vertente do testemunho cristão sobre
contendo João 18:31-33, 37, 38, que deve Jesus ia, aos poucos, sendo colocada em
ser datado de 135-150 d.C. (P .52 , Papiro forma literária, várias fontes principais
Rylands 457). Parece que(J n á c io lc. 110 eventualmente usadas na composicão do
d.C.) e (lustincT jc . 150 d.C.) tiveram QÜarto~EvãngÜho~começaram a apare-
alguma informação sobre João. O uso do cer. Provavelmente, o período vital da
Quarto Evangelho no mesmo pé de igual­ produção destes materiais foi entre os
dade com Sinópticos no Papiro Egerton 2 anos 50 e 80 d.C. ocasião em que o cris-
(c. 150 d.C.) e no Diatessaron, de Ta- tiamsmo começou a se afastar do judaís- ^
ciano (c. 175 d. C.), demonstra que ele mo. a penetrgTnas novas culturas e a Vj-T
conheceu uma aceitação geral em virtude defender-se da perseguição e das várias
de ter estado em circulação por um pe­ à unidade interna. Algumas
ríodo idêntico de tempo. Assim, ficamos destas fontes são tão diferentes, em seu
com a data possível de 100 d.C. com conteúdo e em suas ênfases, que podem
üma margem de dez anos para antes ou ser percebidas bem claramente no Evan-
depois. Ai;'», y jpreywel gelho. Três dglas são suficientemente
Lugar em Que Foi Escrito — As evi­ importantes para merecer uma atenção
dências externas, já citadas quando se especial de nossa parte (para detalhes,
discutiu o problema da autoria, favore­ veja as introduções a cada uma destas
cem claramente a província da Ãsia eüi seções no comentário).
geral e a cidade d^Efesoleni particular »rimeiroja “espinha dorsal” do Evan-
como olocal em q ü e o íju a rto Evangelho " gelho contribuiu para o “livro dos _si­
foi escrito. Esta identificação parece con­ nais” que compreendem os capftulos'
firmar-se pela evidência interna, que, 2-12 de agora. Este material consoli-
embora silenciosa sobre o assunto das dou-se, provavelmente, em território
epístolas joaninas e o Apocalipse, escri­ palestiniano depois do ano 70, para res­
tos que certamente se formaram nessa ponder àõ'problèmS’dõ coÍapso do culto
no Templo, conseqüente à queda de integridade literária da obra em sua for­
Jerusalém. ma atual.
^Segundo] esta fonte, inequivocamente As mais comuns são as tegnayjjyjgg;
judaica, dos capítulos 2- 12 , foi equili­ locamento. as quais, em alguns momen-
brada pelos redatores helenistas com tos, se apresentam como as mais plau­
uma fonte bem tipicamente “cgg^çulftr’’, síveis, porque visam a corrigir asTdescori-'
presente agora nos capítulos 13-17. e que tinuiâades geográficas e cronológicas
não demonstra qualquer interesse Pelos mais óbvias da narrativa. Para explicar '
judeus. A ênfase passa do institucional este fenômeno, conietura-se. às vezes.
ao pessoan~üsãndo uma linguagem mís­ que alguma folha de papiro foi deslo- \\ /
tica, dirigida especialmente ao culto cada, por acidente, nos estágios finais da pv
particular de pequenos grupos de con­ edição. Os exemplos mais luzidios de
vertidos gregos. junturas ou rupturas do texto serão indi­
Cferceiro) a narrativa da paixão, que cadas no comentário e a posição adotada
intrega os capítulos 18-20 de João, foi, na atual ordem planejada principalmen­
possivelmente, a primeira das fontes a te por razões teológicas ou literárias (cf.
ser elaborada, se realmente a história da o comentário sobre 5:1-47; 13:1-17:26).
morte e ressurreição de Jesus se conver­ Algumas teorias de redação propõem
teu no ponto de partida da pregação um deslocamento antigo do texto, que
apostólica. Todos os Evangelhos têm esta pode ser consertado por uma cuidadosa
espécie de fonte, mas a de João parece ser indicação das fontes básicas. Estas re­
anterior ao ano 50 d.C. devido aos seus construções são de valor dúbio, porque"
contatos com a fonte especial (da Ju- êías não sè sujeitam nem à sequência
déia?) sobre a paixão que aparece em original das palavras abalizadas de Jesus
Lucas. Quando, porém, ela foi integrada nem à seqüência intencional dos Evan­
aos capítulos fT -\7 , para formar o “livro gelhos canônicos, mas apenas à possível
da paixão” , na segunda parte do Evan­ seqüência de algum documento ainda
gelho, várias imagens destinadas a.aoelar não estabelecido e alojado num estágio
aos leitores gregos foram incluídas. __ intermediário entre os dois.
Estas três fontes foram, provavelmen­ Método Literário — A preocupação
te, reunidas para formar um primeiro com problemas de falta de unidade tem a
rascunho do Evangelho, a que se refere o I desvantagem de desviar a atenção do
editor final como “escritas” pelo discí-J cuidado do evangelista na utilização de
_pulo amado (21:24). Se aconteceu assim. suas fontes. Várias técnicas específicas
o editor se responsabilizou pela edição de aumentam a força dramática de sua
tres fontes menores: o prologo KmoBico. exposição: são usadas com freqüência,
para servir como uma introdução litúr- palavras de significado duplo (exemplos:
gica (1:1-18); uma série de informações anothen = de novo/de cima; pneuma =
sobre João Batista (1:19 e ss.); fragmen­ vento/Espírito; hupsõthénai = elevado
tos que podem estar espalhados em pas­ sobre a cruz/ elevado em exaltação).
sagens como 3:22-36; 5:33:35; 10:40-42, Às vezes, sentenças inteiras passam a
além do epílogo suplementa*- (21:1-23), ter um segundo sentido, oposto ao pre-
dedicado a responder aos problemas Téndidopelo locutor (exemplo: 11:50-52;
suscitados por ocasião do primeiro ras­ 12:19; 19:5,19). Outras vezes, um con-
cunho do Evangelho. ceito-chave será introduzido e mantido
^ Unidade — O simples fato de que 1 ün~süspenso, para ser ilustrado-depois
í Evangelho se serviu de várias fontes tem / (exemplo: “luz” , em 8:12, é ilustrada
levado muitos estudiosos a questionar sgj em 9:1-41; “expulsar” e “achar” , de
elas forem editadas corretamente. Mui- 9:34,36, são ilustrados em 10:1-30; “dar
tas teorias apareceram para desafiar a a vida pelas ovelhas” , de 10 : 1 1 , é ilus-
trado em 11:1-54). Discursos bem ela­ blemas por que passava o cristianismo,
borados esgotam um aspecto do assunto na primeira metade do segundo século,
e depois de outro (exemplo: “pão” , em ele não foi usado diretamente, nem
6:1-71; “permanência” , em 15:1-17). mesmo pelos autores deste período, que
Preste-se atenção às secões introdu­ possivelmente conheciam seu conteúdo
tórias do comentário sobre o texto, para (como fínácíÕ) (^Policarpô) e (íuÍfíno)7 So-
que se perceba o cuidado com que o mente por volta de ano 180 d.C.. quase
escritor organiza conjuntos simétricos de um sécuIcTÜêpofinir aparecido, é que o
2 2^* informações (exemplo: 2:1-4:54), faz Evangelho foi alçado ao mesmo nível dos
* ^cuidadosas transições entre seções apa- Sinópticos Tcomo o fizeram, por exem-
^ rentemente desconexas (exemplo: 2:23- pjo7flrmeui (^ a ria no) eyMelito^. Mesmo
25) e leva o leitor adiante para uma nessa data tardiaTfoi necessário que o
organização ascendente de títulos cris- livro fosse defendidõ^por seus advogados"
tológicos (exemplo: 4:1-42; 9:1-41). (como rrineuT CânÕn Tvluratoriano e
Estrutura — O exemplo supremo do Hipólito).
cuidado literário joanino constitui a for­ Não é difícil encontrar as razões oara
ma pela qual fontes originariamente esta resistência inicial. Já nesse período
distintas foram fundidas, pelo autor a pre-critico percebeu-se claramente que
fim de dar aoEvangeíhoto3õTuma estru­ 'Tjoão em muito diferia dos outros três
tura unifõrmeTorganizádá, em tomcT dò -^Evangelhos, (veja Clemente em Eusébio,
tema da “descidá” e dã~ ascensão” de História Eclesiástica, VI, 14:5-7). Ade-
Jesus. TOffi^ FilHõ^do HÕmem. O detã- mais, a atração que o livro exerceu sobre
TffaHo^esbo^ que aparece logoa seguir, ?)q mundo helenístico levou-o a ser logo
serve para mostrar como a estrutura do adotado pelos gnósticos. De fato, o mais
Evangelho se assemelha à de uma “figrg- antigo comentário de João que se co­
4iZ bola de redencão” . aue descreve a numi- nhece foi escrito por Heracleon, um
e exaltação de Jesus da mesma “estimado representante da Escola de
fornia como antecipada pelo grandioso Valentino” (Clemente, Stromata, 4:9).
Prólogo (veia introdução a 1:1-18). Este Além disso, os ensinos do Evangelho
princípio füütfórico| de organização dá obre o Espírito Santo tomou-o im-
uma conseqüente dimensão teológica à popular entre os montanistas: Irineu
narrativa do Evangelho. Não se permite, pârece” saber que foi por isso que eles
ao leitor, esquecer-se de que o Jesus que rejeitaram o livro (Contra as Heresias,
âpãrêc^~so5re^ãrt&rrF~veio de Deus ,e III, 11:9).
para Deus voltou. O temporal penetrou Canonicidade — Com a chegada do
ncTcontexto do eterno; o histórico e o terceirojjj^ulo^ a solidificação da igreja
antológico tornaram-se inseparáveis. primitiva, o questionamento inicial do
Quarto Evangelho diminuiu, com sua
3. A Transmissão do Quarto Evangelho aceitação tradicional iunto com os outros
Depois de esboçar a composição do três. A partir do instante em que aslistas
Quarto Evangelho até a época de sua canônicas oficiais começaram a ser di­
conclusão, por volta do ano 100 d.C., vulgadas, no cmartojéculOkO Evangelho
podemos comentar ligeiramente o cami­ de João estavã invãxiavelmente incluído
nho que tomou desde então. (exemplo: Carta Festiva de Stanásiõfim
Aceitação — Surpreendentemente 367 d.C.; Concílio de Roma, em 382
para um livro que se tornou um dos mais d.C.; Concílio de Cartago, em 397 d.C.).
queridos da Bíblia, o Evangelho de João Desde então, ele tem sido universalmente
de início não foi calorosamente recebido aceito dentro da cristandadeacíHental e
peia igreia. Apesar de tratar com pro­ õnmtãUcfTBroãdmmBnsre Comentary.
fundidade da maioria dos graves pro­ Vol. 8 , p. 33-40).
Texto — Como aconteceu com todos Interesses Evangelísticos — O propó­
os livros da Bíblia, nenhum texto original sito declarado do Evangelho, em 20:31,
de João sobreviveu.Dependémos total­ é bem claro: “Estes, porém, não estão
mente dá edições feitas um século depois escritos para que creiais,.” 12 Q,.verbo
de o Evangelfiõ ter sido escrito. Durante “crer” é fundamental- não só para o
as centenas de anos em que os manus­ contexto imediato (três vezes em 20:24-
critos "do Quarto Evangelho f_or_am_labp- 29), mas para o livro todo (98 vezes em
riolamente copiados à mão, muitas di­ João, contra apenas 34 vezes em todos os
vergência foram suscitadas por um Sinópticos). E staj~é. dirá depois o autor.
processo de erro acidental na transcrição conduz à “vi^a” Jeterna). outra ênfase
importante do bvangelíib (36 vezes em
deve ser exãmmádo pela cíência da crí­ João, contra apenas 16 vezes nos Sinóp­
tica textual (veja Broadman Bible Co- ticos reunidos). De modo bem claro, o
mentary, Vol. 8 , p. 33-40). objetivo primordial do livro foi facilitar
Em comparação com o restante da um relacionamento pessoal com Jesus.
Bíblia, e particularmente com outros que transformaraTo sen fido da existência
documentos antigos, os manuscritos re­ da pessoa.
manescentes de João são superiores em O escopo desse esforço é sugerido pelas
duas frases que qualificam o sentido cie
gelho pode ser encontrado em pratica-«■ 7 crer em seu nome’’(Primeiro,) o de
mente todos os manuscritos funciaisTe ' íionra é dado io precficãdõ “Cristo’’
minúsculos principais do Novo Testa­ ^ d e fin id o então como o “Messias” he­
mento e na maioria das cópias em papi­ braico ou o “ Ungido” (1:41; 4:25) *
ros (17) mais conhecidas que qualquer Como este termo era pouco inteligível,
outro livro dcT^Novõ^êstámêntorTnclu- para os gregos, seu uso aqui aponta
sive no papiro Bodmer, de cerca de 200 diretamente para a evangelização dos
d.C., recentemente publicado. jiAkus^Átravés de Atos (17:3; 18:5),
ficamos sabendo que os primeiros mis­
III. O Significado do Quarto sionários procuravam provar, nas sina-
Evangelho gogas dã Diáspora, qut o Jesus cruci­
ficado da história era o mesmo Messias
à luz da formação histórica e literária prometido do judaísmo. Esse debate
do texto joanino, podemos agora per­ chegou, entãõ, às páginãiTdo Evangelho,
ceber o seu significado teológico. em especial através das evidências dos
sinais que autenticaram seu ministério
1. Propósitos Teológicos como o c n m p r i m e n t o das Escrituras.
A notável originalidade do Evangelho (Ao mesmo tempg) o Evangelista está
de João é por si mesma a prova maior de preocupado em estabelecer também a fé
que a intenção do livro não foi perpetuar em Jesus, como o “Filho de Deus’’, um
um corpo imutável de doutrinas, mas conceito que, a exemplo de 1 ‘Cristo” para
* rea tar algumas convicções cristãs, em~ os gregos, era sem sentido e ofensivo para
V»face~dÕs desafi^s^sufRÍcTõs~ na~l:c^uní-~ os judeus. A despeito da aversão judaica
dade. Qualquer escrrtcTque tenha demo­ por esta singular identificação de ntn
rado inais de mejo-século, em sua ela­ homem com Deus Í 5 :18 e ss; 8:34 e ss),
boração, necessariamente refletirá preo- o conceito de “Filho” é central na cristo-
cupações distintas. Selecionamos, ‘para logia joanina, sugerindo um desejo de
nossa consideração, quatro tipos de inte-
rgsses que parecem ter influenciado o 12 Sobre o significado de 20:31, para uma compreensão
dos propósitos de Joào, veja W. C. van Unnik, “The
conteúdo do livro nos vários estágios de Purpose Of. St. John’s Gospel” , The Gospels Recon­
sua composição. sidered (Oxford: Basil Blackwell, 1960), p. 167-196.
apresentar Jesus em categorias inteligí- perseguição (16:1-33). Seu ministério
veis para os leitores gregos. O propósito /propicia o modelo e o critério p a ratodos
evangeíísticodeclarado de João, entre­ -os^ verdadeiros pastores do rebanho ( 10 :
tanto, é apresentar o evangelho de Jesus 1-18). Seu ^gão^ sua água e seu sangue
‘‘primeiro aos judeus e também aos gre:^ dão a substancia dos símoolos religiosos
gos ’ (.Rpm. 1:16). Isso explica por que o usados pela Igreja no batismo e na Ceia
livro se mostra tão preocupado com o do Senhor (exemplos: 6:52-58; 13:1-17;
judaísmo (cap. 2 -12 ) e com o vasto mun­ 19:34,35). Ao escrever um Evangelho
do, além dele (cap. 13-20). sobre Jesus.~ê~não um tratado filosófico
Interesses Eclesiásticos — Mesmo ou um comentário bíblico ou um código
procurando uma dimensão que englobe de ética, o evangelista estava expressan-/
todos os filhos dispersos de Deus (cf. klo sua convicção central de que o senti-)
11:52; 17:20,21), o quarto evangelista / do total do cristianismo estava latente n a )
não se despreocupou com as necessida­ >vida encarnada de Jesus, e não em algum I
des internas da Igreja. Tensões decorren­ 1 conceito, livro ou regra.
tes da tentativa de unir conversos judeus Interesses Apologéticos — Ao apre­
e gregos — simbolizadas na união de sentar Jesus aos judeus, o Evangelho
“Cristo” com o “Filho de Deus” , em enfrentou um duplo problema. Como o
2Õ73T^ faziam parte de uma revolta cristianismo se originara do judaísmo,
' maior, que afetou profundamente a Igre­ era muito difícil explicar por que os
ja duranxe o período de transição em que judeus tinham agora de entrar na Igreja
o Evangelho foi concluído. O cristia- como se viessem de fo ra .E ra preciso que
nismo estava penetrando em novas cul- se explicasse também por que os pri­
turas. Passara a geração dos apóstolos e meiros cristãos deixaram o Templo e,a
ãTarõusia não acontecera (veia o comen­ sinagoga. Este problema se exacerbou
tário sobre 21:18-23). A simples neces­ com a revolta de 66-73 d.C., quando
sidade de ter um Evangelho escrito — judeus cristãos, forçados a escolher entre
sem o qual a Igreja havia vivido mais de sua nação e sua fé, optaram pela última.
meio século — aumentou com novas A conseqüência do conflito, com Jeru-
pressões: formas sutis de heresia, au-
I mento de atividades hostis da parte dos
salém em ruínas, toi o judàísmo começar
a reorganizar sua vida religiosa em
inimigos e desunião interna provocaram, Jâmnia, excluindo os cristãos judeus que
ènTpãrte, uma crise na liderança minis­ antes o tinfiãm tÔferado(c fro cometv
terial.
tário sobre 9:22; 12:42; 16:2). Basta
Em resposta aos problemas comple­ refletir sobre as relações existentes entre
xos, o evangelista tomou uma decisão
judeus e cristãos durante os quase dois
fundamental: a preocupação maior âã mil anos passados para se compreender a
I f f e jf e r a ^ e ic o b rir a relação devida
fatalidade desta ruptura.
entre a vida contemporânea e o minis­
tério histórico de Jesus. Para este fim, o O Evangelho de João parece demons­
autor insistiu que Jesus continuava a ser trar um interesse especial na relação do
conhecido por seus seguidores através velho Israel confo riO
- ■' a r T n iíTr*r -~ií,, y_o, particularmente
b ~r i m^ « ; .
do ministério do Espírito e do Verbo nos capítulos 2 - 12 . Como este comentá­
(6:63; 14726; lóHYISJ. Como Jesus re­ rio mostrará, a estrutura desta seção foi
side agora em seu coração, a esperança determinada pelas grandes festas do
do cristão deve se fixar apenas no seu Templo em Jerusalém. A força do arguT
retorno futuro: num pensamento sem mento teológico, que geralmente se vê
sentido cosmico, a escatologia tem que como um debate sinagogal, é que a su-
ser “cumprida” (13:31-14:31). No poder K/l perioridade do cristianismo não é uma
de sua presença pode-se enfrentar até a ^ substituição do judaísmo, mas sua vi
dadeira realização. Mais do que renun­ tarefa de dar a João seu verdadeiro luear
ciar ao Templo, no momento em que na teologia cristã. Em nenhum lugar, o
corria perigo mortal, a Igreja foi o ver­ Batista é tratado como inimigo, como
dadeiro templo, como o corpo de Jesus. acontece enTrilação aos lT]udeus”T seus
em que a glóna de Deus^se tabemaculõú seguidores não receberam nenhum tipo
de ataque, como os fariseus. Ao contrá-
povo privado de suas festas tradicionais, rio, João é descrito como a testemunha
desenvolveu-se uma apresentação de ideai (1:7) e~um amigo C3Í29)~dêTêsus7
Cristo como a Páscoa, os Tabernáculos e que, com sua abnegação^ cumpriu a
a Dedicacão verdadeiros. A Igreja rejei­ maior de todas as tarefas: proclamar
tava somente as dimensões raciais e Cristo ao mundo . 14
políticas de Israel, não sua identidade
espiritual autêntica. Desse modo, os 2. Fontes e Métodos da Teologia
judeus foram convidados a aceitar Cris­ O Quarto Evangelho identifica não
to, a fim mais de cumprir do que de apenas as necessidades que procura pre­
rejeitar sua vocação bíblica. 13 encher, mas também as fontes básicas de
Interesses Polêmicos — Um propósito sua fé. Três fatores interagiram para
teológico secundário, mais importante produzir a perspectiva teológica deste
era corrigir a falsa compreensão da ver­ Evangelho.
dadeira relação entre lesus e João Batis- Lembranças de Jesus — A fonte pri­
ía. Isto foi realizado ao s<Tenfatizar as mária da verdade religiosa para o Quarto
recusas de João em ser comparado com o Evangelho eram as palavras vivas do
Cristo e ao se especificar as formas em Jesus encarnado (6:63,68). Os primeiros
que Jesus lhe era superior (cf. 1:8,15, discípulos foram, desde o início, ins­
19-34; 3:22-36:5:33-36; 10:42). É inte­ truídos para recordar seus ensinos (15:
ressante notar que a maioria das passa­ 20; 16:4). Os convertidos que vieram
gens sobre o Batista não se ajusta bem ao depois foram ajudados, nesta tarefa,
contexto presente, sugerindo a possibi­ pelas testemunhas oculares, que rela­
lidade de que elas foram tomadas de uma tavam o que tinham visto e ouvido (19:
fonte independente, escrita para tratar 35; 21:24; cf. I João I: 1-4). Esta recor­
deste problema específico. Aparente^” dação não era uma mera recontagem de
f mente, havia alguns, do movimento ini- fatos, mas uma reflexão equilibrada de
j ciado por João, que não tinham trans- um passado único, graças à ajuda do
1 ferido para Jesus sua lealdade (veja o Espírito Santo (14:26), à luz dos eventos
comentário sobre 3:22-28). Atos 9 : l - f posteriores (2:22). A base sobre o qual o
" refere-se a um semelhante em Éfeso, o evangelista depositava toda a sua teolo­
berço possível do Quarto Evangelho. gia era a auto-revelação do Jesus histó­
Indicações posteriores de uma seita ba- rico, e não alguma revelação que lhe
tista são sugeridas na literatura pseudo- viera através da experiência pessoal.
clementina (Reconhecimentos, I, 54, 60), A Relevância das Escrituras — As
onde os discípulos foram vistos como palavras de Jesus não poderiam ser com­
uma das quatro seitas judaicas que se preendidas isoladamente, entretanto.
opuseram à Igreja. Antes, precisavam ser vistas no contexto
Embora tenha contribuído para res­ das Escrituras inspiradas. Jesus ensina­
tringirias pretensões de João, esta polê­ ra, aos seus discípulos, que os eventos
mica estava preocupada também com a mais cruciais de seu ministério deveriam
14 Veja Walter Wink, John the Baptist hi the Gospel Tra­
13 Para maiores detalhes sobre esta seção, veja T. C. dition (“Society for New Testament Studies Monograph
Smith, Jesus in The Gospel of John (Nashville: Bro- Series” , 7 (Cambridge: University Press, 1968), p.
adman Press, 1959), especialmente as p. 22-56. 98-106.
ser entendidos como o cumprimento das das rápidas mudanças; isolar o Espírito
Escrituras (cf. 5:39, 46, 47; 6:31-33, como a chave para a verdade seria deixar
44,45; 13:18; 17:12). No entanto, nem sem nenhuma salvaguarda contra o entu­
sempre o Velho Testamento ajudava de siasmo incontrolado. Unir, porém, todos
modo claro na compreensão da vida de os três canais de revelação em torno da
Jesus (20:9). Depois da partida do seu realeza de Cristo e insistir que ele é co­
Mestre, todavia, os discípulos se empe­ nhecido nos eventos da história, nas
nharam numa pesquisa, para encontrar, páginas de um livro e na presença do
em suas páginas, respostas para as inter­ Espírito, criou os métodos teológicos
rogações que ainda tinham (2:17,22; mais produtivos do Novo Testamento.
12:16). Escrevendo seu evangelho, o
3. Ênfases Teológicas
evangelista ajudava o leitor a compre­
ender o significado profundo de alguns Ao optar por escrever uma narrativa
incidentes aparentemente sem impor­ histórica, o evangelista decidiu, renun­
tância, como, por exemplo, da crucifi­ ciar ao apelo de tomar algumas doutri­
cação de Jesus, enraizando-os na experi­ nas e sistematizá-las. Ouvir suas verda­
ência de Israel (19:24,28,36,37). Sem des mais salientes fora do contexto em
Jesus como a chave do mistério, o estudo que se entrelaçaram e reduzi-las a esbo­
da Bíblia se revela fútil (5:38-40), porque ços breves é correr o risco de distorcê-las.
foi dele que os patriarcas e os profetas Aqui, portanto, mencionaremos algumas
deram testemunho (5:46; 8:56; 12:41). das idéias religiosas principais de João e
O Senhor Ressuscitado — O evange­ citaremos referências bíblicas para indi­
lista não olhou apenas para o passado da car os contextos em que podem ser estu­
história e para o exterior dos escritos, dadas melhor.
mas também para o interior, para a Revelação — De todos os livros da
presença permanente do Espírito, como Bíblia, o de João é o que se mostra mais
fonte do discernimento teológico. Depois preocupado com a revelação divina
que Jesus ressuscitou, os discípulos não (1:51). Isto vem logo no Prólogo, onde se
interromperam seu crescimento devido à desenvolve o conceito do Logos como a
sua ausência física, mas entraram no seu auto-expressão de Deus (1:1-18). Ao
período mais frutífero ( 2 :22 ; 12:16; 16: identificar Jesus com o Verbo eterno,
23-25). Antes eles tinham sido capazes de coloca-se uma base inicial para a apre­
se “apossar” de apenas uma parte das sentação do seu ministério como instru­
“muitas coisas” que Jesus lhes quis di­ mento para se “conhecer” a Deus (10:
zer; agora, porém, o Espírito os condu­ 38; 14:7,20; 17:3,7,8,25), e, por conse­
ziria a “toda a verdade” (16:12,13). guinte, para se descobrir “a verdade”
Assim como Jesus era a chave da Escri­ (1:14,17; 4:24; 8:32,40,45,46; 14:6;
tura, era também o critério para “testar 17:17-19; 18:37). Os milagres, por exem­
os espíritos” pois o Parácleto não falaria plo, não eram atos de poder, mas “si­
com autoridade própria, mas apenas nais” que apontavam para uma realida­
revelaria uma compreensão mais plena de maior (2; 11; 4:54; 11:47; 20:30), que
de Deus na vida de Jesus (16:14,15). manifestava a “ glória” de Jesus (2:11;
O método do evangelista, em combi­ 11:40; 17:4,5). A grande freqüência de
nar estas três fontes, teve a clara inten­ termos para “ouvir” e “ver” num sentido
ção de alcançar um equilíbrio teológico espiritual (veja o comentário sobre 1:14)
dinâmico entre elas. Enfatizar Jesus à evidencia a convicção do Evangelho de
parte das Escrituras seria como tirar que a revelação de Deus foi dada e pode
uma flor de suas raízes; defender a Bíblia ser recebida.
à parte da direção do Espírito seria li­ Deus — Como um cristão cuja Bíblia
mitar a possibilidade do progresso diante era o Velho Testamento, o evangelista
podia aceitar a concepção do Deus de 35,36,46). Inevitavelmente, então, tiiiha.
Israel como fundamento de sua teologia. início um processo de julgamento que
Ele, entretanto, enriqueceu, esta com- èxaminava. os. homens seeundo sua res­
preenção herdada, à luz de seu esclare­ posta a Jesus (5:22-24.27.30: 8:16; 9:39;
cimento maior por Jesus. Deus, por \ 12*31)7 Nesta situação dialética, Deus
exemplo, é referido como “Pai” 119 ' determinava a necessidade, as alterna­
vezes, a despeito do fato de que esta não tivas e as conseqüências oferecidas à
era uma designação comum para o Di­ escolha humana, mas o homem deter-
vino entre os judeus (veja 5:17,18). minava se sua resposta seria dada na
Ainda, o amor eterno de Deus por todos
os homens é asseverado com eloqüência
Í Uberdade da fé ou na submissão à tirania
do mal (veja o comentário sobre 3:16-21;
(3:16; 17:23-26). Finalmente, em virtude 6:66-71; 8:12-59; 9:39-41; 12:36b-50).
do singular relacionamento entre o Pai e Embora, num sentido histórico, a salva­
o Espírito Santo, como ensinado por ção viesse “dos judeus” (4:22), Jesus —
Jesus, o Quarto Evangelho começa por um judeu que veio para o que era seu
desenvolver um trinitarianismo que (1:11) — era o “Salvador do mundo”
afirma a solidariedade e a individuali­ (4:42) e não de um grupo particular.
dade da família divina (1:1,18; 5:19-23; Unindo-se a ele (veja o comentário sobre
10:30; 14:18-26; 16:12-16; 17:5,22,24; 15:1-17), através da fé (veja o comentário
20:28). sobre 2:1-4:53), o crente recebe a “vida
eterna” , uma existência qualitativa -1
Crisíologia — Ao mesmo tempo que
aceitou o Deus do Velho Testamento,
João também aceitou a esperança mes­
! mente semelhante à vida que só Deusf
possui (3:15,16,36; 4:14,36; 5:21-24;
6:33,35,40,47,63; 10:10,28; 11:25; 14:6;
siânica, que transmitiu à Igreja. Real­
17:2,3; 20:31). Esta vida, que deveria ser
mente, todos os títulos tradicionais usa­
uma posse presente e futura, demonstra
dos para descrever o libertador esperado
que a^esçâtolQgiajájom ^ara a ser rea­
foram atribuídos a Jesus, como o Cristo,
lizada em Cristo.
o Filho do Homem, Profeta, Rei, etc.
A Igreja — Qualquer livro que tratasse
(ver o comentário sobre 1:19-51). Para­
da vida terrena de Jesus falaria da comu­
lela, entretanto, à atenção sobre Deus
nidade que ele chamou para existir
como Pai está a mesma ênfase dada a
apenas por um período de tempo. Toda­
Jesus como o “Filho” (1:14,18; 3:16-
via, João dá mais atenção à Igreiajfo que
18,35,36; 5:19-23; 6:40; 8:35,36; 14:13;
qualquer outro Evangelho ~ Ju n tò c o m
17:1). Este uso constante e inusitado
umTndmduãlismÕTÕrBBiênte persona-
destinava-se a combinar a subordinação
üsta. está a concepção da Igreja como
de Jesus a Deus e sua intimidade filial
um orgamsmõ~SõÍetivo. que recebe sua
com o Pai. Nesta familiar analogia está
vida exclusivamente de Cristo Ü5d-16:
um dos conceitos mais profundos da
33). Há uma preocupação especial para
cristologia do Quarto Evangelho. Sua
com a unidade desta comunidade (veia
expressão suprema todavia, reflete-se
o comentário sobre 10:1-30; 17:11-26;
no uso do “Eu sou” (ego eimi), para
2 1 : 1 1 ), particularmente quanáõ è ali­
identificar Jesus como uma teofania
mentada por um ministério fiel, mode­
histórica do ser eterno de Deus, a fim de
lado segundo o padrão do próprio Cristo
afirmar sua plena deidade (ver o comen­
(10:1-18). A missão desse corpo era reu­
tário sobre 5:1-10:42).
nir todo ~ó povo de Deus onde quer que
Salvação — Como a glória taberna- estivesse (cf. o comenlaríb sobre 7:35;
cular de Deus (1:14), a vinda de Jesus 11:51,52; 12:32; 17:20; 21:11). Para este
se assemelhava ao resplendor da luz nas fim, foi autorizado, por Jesus, a pregar o
trevas (1:4,5,9; 3:19-21; 8:12; 9:5; 12: evangelho de perdão e juízo no poder do
Espírito Santo (20:19-23). A Igreja deve- \ 1) João Batista e Jesus (3:22-24)
[ ria ser uma extensão tão completa do 2) A Subordinação de João (3:
ministério de Jesus (17:18; 20:21) que 25-30)
I suas celebrações do batismo e da Ceia do 3) A Superioridade de Jesus (3:
I Senhõr repTeseivíi^iãm Jesus, o qual é, e j 31-36)
somente ele , a verdade ira água e o Pãoí 5. A Nova Comunidade (4:1-42)
da vida. (veja o comentário sobre 6:52-i 1) IntroduçãoeCenário(4:l-6)
|59; 13:1-11; 19:34). f 2) O Oferecimento da Ãgua Viva
(4:7-15)
Esboço do Evangelho 3) O Oferecimento de Culto Es­
piritual (4:16-26)
Introdução (1:1-51) 4) O Testemunho da Mulher (4:
I. O Verbo de Deus: Prólogo (1:1-18) 27-30)
1. O Verbo e o Universo (1:1-5) 5) O Desafio aos Discípulos (4:
2. O Verbo e João (1:6-8) 31-38)
3. O Verbo e o Mundo (1:9-13) 6) A Resposta dos Samaritanos
4. O Verbo e a Igreja (1:14-18) (4:39-42)
II. O Testemunho dos Homens (1:19- 6 . A Nova Vida (4:43-54)
51) 1) A Volta àGaliléia (4:43-45)
1. O Testemunho de João Batista 2) A Cura do Filho de úm Oficial
(1:19-34) do Rei (4:46-54)
1) O Testemunho Negativo So­ II. A Resistência ao Revelador (5:1-
bre Si Mesmo (1:19-28) 10:42)
2) O Testemunho Positivo Sobre 1. A Autoridade da Vida (5:1-47)
Jesus (1:29-34) 1) A Cura de um Homem Para­
2. O Testemunho dos Primeiros lítico (5:1-9a.)
Discípulos (1:35-51) 2) A Crítica dos Judeus (5:9b-18)
1) André e o Outro Discípulo 3) As Reivindicações de Jesus
(1:35-42) (5:19-29)
2) Filipe e Natanael (1:43-51) 4) As Evidências para as Reivin­
dicações (5:30-47)
Primeira Parte: O Livro dos Sinais (2:1- 2. O Pão da Vida (6:1-71)
12:50) 1) A Alimentação dos Cinco Mil
I. A chegada do Revelador (2:1-4:54) (6:1-15)
1. A Nova Alegria (2:1-12) 2) A Travessia do Mar (6:16-24)
1) O Primeiro Sinal: Ãgua 3) A Fonte do Pão da Vida ( 6 :
Transformada em Vinho (2: 25-34)
1- 11 ) 4) A Natureza do Pão da Vida
2) A Visita a Cafamaum (2:12) (6:35-51)
2. O Novo Culto (2:13-25) 5) O Recebimento do Pão da
1) A Purificação do Templo (2: Vida (6:52-65)
13-22) 6) A Colocação dos Doze à Prova
2) A Reação à Purificação (2: (6:66-71)
23-25) 3. A Ãgua da Vida (7:1-52)
3. O Novo Nascimento (3:1-21) 1) A Chegada de Jesus a Jerusa­
1) O Diálogo com Nicodemos lém (7:1-13)
(3:1-15) 2) Conflito Sobre a Autoridade
2) O Monólogo do Evangelista de Jesus (7:14-24)
3:16-21) 3) Conflito Sobre a Procedência
4. O Novo Mestre (3:22-36) de Jesus (7:25-31)
4) Conflito Sobre o Destino de 5) A Reação dos Judeus (11:45-
Jesus (7:32-36) 54)
5) O Oferecimento da Ãgua Viva 2. A Preparação Para a Páscoa (11:
(7:37-39) 55-12:36a.)
6) A Reação do Povo (7:40-44) 1) O Complô Contra Jesus (11:
7) A Reação dos lideres (7:45- 55-57)
52) 2) A Unção em Betânia (12:1-8)
4. O Juiz da Vida (8 :12-59) 3) O Complô Contra Lázaro (12:
1) As Credenciais do Juiz (8:12- 9-11)
20) 4) A Entrada Triunfal de Jesus
2) A Crucialidade do Seu Juízo (12:12-19)
(8:21-30) 5) O Pedido dos Gregos (12:20-26)
3) As Conseqüências de Seu 6) O Cometimento da Paixão (12:
Juízo (8:31-38) 27-36a.)
4) O Critério do Seu Juízo (8:39- 3. Conclusão do Livro dos Sinais
47) 12:36b-50)
5) A Identidade do Juiz (8:48-59) 1) A Rejeição Final de Jesus (12:
5. A Luz da Vida (9:1-41) 36b-43)
1) Visão Para um Mendigo Cego 2) O Discurso Final de Jesus (12:
de Nascença (9:1-12) 44-50)
2) O Problema da Violação do
Sábado (9:13-17) 1 Segunda Parte: O Livro da Paixão (13:
3) O Problema de Expulsão de 1-20:31)
Sinagoga (9:18-23) I. Jesus Prepara Seus Discípulos (13:
4) O Problema de Um Tauma­ 1-17:26)
turgo Desacreditado (9:24-34) 1. A Última Ceia (13:1-30)
5) O Paradoxo do Juízo (9:35-41) 1) O Lava-pés dos Discípulos
6 . O Pastor da Vida (10:1-42) (13:1-11)
1) O Simbolismo das Ovelhas e 2) O Exemplo de Jesus (13:12-
do Pastor (10:1-6) 20)
2) Jesus e o Rebanho de Deus 3) A Traição Feita a Jesus (13:
10:7-18) 21-30)
3) A Separação Entre Ovelhas 2. A Partida e a Volta de Jesus (13:
Verdadeiras e Falsas (10:19- 31-14:31)
21) 1) A Discussão com Pedro (13:
4) A Obra do Bom Pastor (10: 31-38)
22-30) 2) A Discussão com Tomé (14:
5) A Personalidade do Bom Pas­ 1-7)
tor (10:31-39) 3) A Discussão com Filipe (14:
6) A Retirada Para Além do Jor­ 8-14)
dão (10:40-42) 4) A Discussão com Judas (14:
III. A Rejeição do Revelador (11:1-12: 15-24)
50) 5) Síntese: O Legado de Jesus
1. Jesus, a Ressurreição e a Vida (14:25-31)
(11:1-54) 3. A Responsabilidade dos Discí-
1) A Morte de Lázaro (11:1-16)
2) Jesus eM arta(ll:17-27) 1) Os Frutos da Permanência em
3) Jesus e Maria (11:28-37) Amor (15:1-17)
4) A Ressurreição de Lázaro 2) Os Odiados do Mundo (15:
(11:38-44) 18-16:4a)
3) A Ajuda do Espírito Santo 6) O Sepultamento de Jesus (19:
16:4b-15) 38-42)
4) O Paradoxo do Discipulado III. Jesus Vive Para os Seus Discípulos
(16:16-24) (20:1-31)
5) A Fé em Conflito (16:25-33) 1. O Aparecimento a Maria Mada­
4. A Oração de Consagração (17:- lena (20:1-18)
1-26) 1) A Descoberta da Tumba Va­
1) Jesus Ora por Si Mesmo (17: zia ( 20: 1 - 10 )
1-5) 2) A Descoberta do Senhor Res­
2) Jesus Ora por Seus Discípulos suscitado (20:11-18)
(17:6-19) 2. Os Aparecimentos aos Discípulos
3) Jesus Ora Pelos Futuros Cren­ (20:19-31)
tes (17:20-26) 1) O Aparecimento ao Grupo
II. Jesus Morre por Seus Discípulos (20:19-23)
(18:1-19:42) 2) O Aparecimento a Tomé (20:
24-29)
1. Jesus Aceita Sua Paixão(18:l-18)
3) O Significado dos Sinais (20:
1) O Aprisionamento no Jardim
30,31)
(18:1-11)
2) A Acusação Diante de Anás
(18:12-14) Conclusão (21:1-25)
3) A Chegada de Pedro e de I. A Revelação de Jesus na Galiléia
Outro Discípulo (18:15-18) (21:1-23)
2. Jesus Defende Sua Paixão (18: 1. Um Aparecimento Junto ao Mar
19-19:16) de Tiberíades (21:1-14)
1) O Interrogatório Pelo Sumo 2. A Responsabilidade de Simão
Sacerdote (18:19-24) Pedro (21:15-19)
2) A Negação de Pedro (18:25- 3. A Morte do Discípulo Amado
27) (21:20-23)
3) A Acusação Contra Jesus (18: II. A Conclusão do Evangelho (21:24-
28-32) 25)
4) O Comparecimento Diante de 1. A Autenticidade do Evangelho
Pilatos(18:33-38a) (21:24)
5) O Oferecimento de Barrabás 2. A Seletividade do Evangelho
(18:38b-40) (21:25)
6) Os Esforços Para Libertar
Jesus (19:1-11)
7) A Condenação de Jesus (19:
12-16)
3. Jesus Cumpre Sua Paixão (19: Bibliografia Selecionada
17-42)
1) A Crucificação e a Inscrição A maioria dos livros contemporâneos
(19:17-22) de relevância foi reunida e classificada
2) A Repartição das Vestimentas por Edward Malatesta, em St. John’s
de Jesus (19:23,24) Gospel: 1920-1965. A Comulative and
3) A Mãe de Jesus e o Discípulo Classified Bibliography of Books and
Amado (19:25-27) Periodical Literature on the Fourth Gos­
4) A morte de Jesus (19:28-30) pel (“Analecta Biblica” , 32) Roma:
5) O Testemunho do Sangue e Pontifical Biblical Institute, 1967. Mui­
da Ãgua (19:31-37) tas das descobertas importantes, dos
3.120 estudos arrolados por Malatesta, 4a ed. revista por C.K. Barret. Lon­
refletem-se nos seguintes títulos: don, Epworth, 1955.
BARRET, C.K The Gospel According to HUNTER, A.M. According to John. A
St. lohn. London, S.P.C.K., 1955. New Look at the Fourth Gospel. Phi­
BERNARD, J.H. A Critical and Exege- ladelphia, Westminster, 1968.
tical Commentary on the Gospel LIGHTFOOT, R.H. St. John’s Gospel.
According to St. John. Ed. A.H. Ed. C.F. Evans. Oxford, Clarendon
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Commentary”). Edinburgh: T.&.T. MACGREGOR, G.H.C. The Gospel of
Clark, 1928. John (“The Moffat New Testament
BROWN, Raymond E. The Gospel Ac­ Commentary” .) New York: Harper &
cording to John. (“The Anchor Bi­ Brothers, 1928.
ble” .) Garden City: Doubleday & SANDERS, J.N. The Gospel According
Company, 1966. Vol. I, introdução to St. John. Editado e concluído por
e comentário dos capítulos 1 a 12; o B.A. Mastin. (“Harper’s New Testa­
restante está em preparação). ment Commentaries” .) New York:
BULTMANN, Rudolf. Das Evangelium Harper & Bow, 1968.
des Johannes. (“Kritisch-exegetischer SCHNACKENBURG, Rudolf. The Gos­
Komentarüber das Neue Testa­ pel According to St. John. Tradução
ment” .) 17a. ed. Göttingen, Vanden- de Kevin Smith, (“Herder’s Theolo­
hoek & Ruprecht, 1962. (Tradução gical Commentary on the New Testa­
para o inglês supervisionada por ment” .) New York, Herder and Her­
G.R. Beasley-Murray, em prepara­ der, 1968. Vol. I, introdução e co­
ção. mentário sobre os capítulos 1 a 4; o
________. Theology of the New Testa­ restante está em preparação.
ment. Vol. II New York, Charles SMITH, T.C. Jesus in the Gospel of
Scribern’s Sons, 1955. John. Nashville: Broadman, 1959.
DODD, C.H. Historical Tradition in the STRACHAN, R.H. The Fourth Gospel:
Fourth Gospel. Cambridge, Univer­ Its Significance and Environment.
sity Press, 1963. (33. ed.) London: S.C.M. Press,
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sity Press, 1953. John’s Gospel. London: Macmillan
HOSKYNS, E.C. The Fourth Gospel. and Co., 1940.
Ed. F. N. Davey (2® ed.). London, WESTCOTT, B.F. The Gospel Accor­
Faber and Faber, 1947. ding to St. John. London: James
HOWARD, W .F. The Fourth Gospel in Clarke and Co., 1958 (reimpressão
Recent Criticism and Interpretation. da edição de 1880).

Comentário Sobre o Texto


Introdução (1:1-51)

Todos os quatro Evangelhos começam idéia começou com Marcos 1:1-13, foi
com uma introdução cuidadosamente usada em Mateus 1:1-2:23 e em Lucas
elaborada, para esclarecer o contexto 1:1-2:52, chegando ao seii clímax em
teológico a fim de facilitar a compreen­ João 1:1-51, Aí o testemunho de João
são do ministério histórico de Jesus. Esta Batista é mais completo que em qualquer
outro lugar (1:19-36), ao que é acres­ outro lado, ele ousou declarar a palavra
centado o testemunho de quatro outros vivificante de Deus (cf. 3; 34; 5:24; 6:63,
seguidores (1:37-49) e do próprio Jesus 68; 8:31, 47, 51; 12:48; 17:8, 14), que o
(1:50, 51). Os fundamentos do ministério próprio Pai autenticara (cf. 5:32, 37;
público de Jesus remontam a um tempo 8:18). Mais ainda, ele era apenas uma
anterior a João, a Abraão, e mesmo a testemunha modesta, que nada poderia
Adão e à própria eternidade (1:1). Isto fazer à base de sua própria autoridade
significa que as palavras com que Jesus (5:30,31; 18:37). Nestes dois papéis,
pretendeu revelar Deus (1:51) não eram Jesus confrontou os homens com a rea­
apenas uma extensão da mensagem de lidade de Deus e, ao mesmo tempo,
João (1:15) nem apenas o cumprimento levou-os a confessar que aceitavam a sua
da palavra de Deus na lei mosaica (1:17). divindade.
Mais do que isto, expressavam o Verbo
primordial pelo qual Deus sempre se
refere a seus próprios pensamentos (1:1) I. O Verbo de Deus: Prólogo
e pelo qual Jesus se expressou na cria­ (1:1-18)
ção do universo (1:3).
A introdução do Evangelho divide-se A forma de começar este Evangelho
claramente em duas partes: (1) um pró­ deve ser compreendida antes de seu
logo majestoso, em 1:1-18, que é uma conteúdo ser considerado, i O estilo é o
meditação poética sobre a Palavra de da poesia semítica, em que se faz uso
Deus; (2) uma narrativa histórica, em freqüente de artifícios rítmicos como o
1:19-51, que relata os diversos testemu­ paralelismo climáticos, em que um novo
nhos dos homens. Há um profundo sig­ verso traz um elemento-chave do verso
nificado teológico para a forma simétrica anterior; um exemplo disso está na tra­
se seqüencial destas seções. A Palavra de dução literal do versículo 1:
Deus é fundamental; se Deus não falou, No princípio era o Verbo,
os homens não podem dar testemunho e o Verbo estava com Deus,
algum. As múltiplas confissões, em 1:19- e o Verbo era Deus.
51, são as reações humanas à ação divi­ Ou ainda (v. 4 e 5):
na, apresentada em 1:1-18. Por outro Nele estava a vida,
lado, a Palavra de Deus não tem qual­ e a vida era a luz dos homens;
quer sentido para os homens, sem teste­ e a luz resplandece nas trevas,
munho terreno. Toda descoberta de uma e as trevas não prevaleceram contra
realidade espera a espontaneidade de um ela.
testemunho para compartilhar o que se As imagens poéticas do prólogo suge­
viu e ouviu. rem que este material foi adaptado, para
A unidade das duas seções é dada por ser usado como hino no culto cristão
Jesus mesmo, que era o Verbo divino em primitivo. Como indicam claramente os
1:1-18 e o testemunho humano supremo Salmos, o antigo Israel geralmente pu­
em 1:19-51. Esta perspectiva dual e um nha-se a recitar os atos salvíticos de
tema que se faz presente em todo o Deus (exemplo: Sal. 78). Aqui, o novo
Evangelho, onde Jesus é a revelação e o Israel resumia a história sagrada de seu
revelador da verdade, o objpto e o sujeito Messias numa forma hinódica, impu­
da fé. Como Filho de Deus (1:18) e Filho tando-lhe, assim, uma dignidade trans­
do Homem (1:51), ele era alguém em cendente, semelhante à atribuída à sa­
quem a realidade divina descera dos céus
à terra como era também aquele em 1 Sobre a poesia semítica e quatro estrofes no prólogo,
veja Joachim Jeremias, The Central Message of the New
quem a realidade humana subia da terra Testament (New York: Charles Scribner’s Sons, 1965)»
aos céus (1:51; cf. 3:13; 6:51,62). Por p. 71-90.
bedoria nos exaltados panegíricos de Pro­ conta a história do evangelho de Jesus,
vérbios 8, Eclesiástico 24 e Sabedoria numa seqüência organizada, como um
de Salomão 7-9. Isto significa que estes episódio histórico entre duas eternida­
versos refletem não apenas uma preo­ des. Em certo sentido, portanto, o pró­
cupação filosófica e uma afirmação teo­ logo se assemelha aos hinos judaicos da
lógica, mas também uma adoração sabedoria, com suas descrições de atri­
doxológica de um Senhor pessoal, cuja butos “infinitos” (exemplo: Sabedoria
vida levou seus seguidores a irromper em de Salomão 7:24-8:1), enquanto em
louvor. outro, ele se aproxima mais dos hinos
O padrão poético, encontrado na litúrgicos de confissão do Velho Testa­
maior parte do prólogo, é interrompido mento, que repetem os atos “eternos”
pelas referências, em forma de prosa, de Deus na história (exemplo: Sal. 105
a João Batista, especialmente nos versos ou 106). Sozinhos, os versos podem, si­
6-9,15. Tão prosaicas são estas seções, multaneamente, retroceder ao passado,
que elas mais parecem uma intromissão exteriorizar para o presente e apontar
na rapsódia lírica que as cerca. Mesmo para a eternidade (ex.: v.5), mas o es­
assim, os dois estilos são parte integral boço geral dos versos 1-18 leva o leitor
da fé cristã. Neste início somos introdu­ continuamente através dos principais
zidos à poesia e a prosa do Evangelho, estágios da época definitiva da redenção.
à glória do Verbo eterno e ao testemu­ Esta estrutura externa do prólogo se
nho singelo de um profeta mortal. assemelha ao arco de um pêndulo ou à
Depois de reconhecido o estilo basica­ curva de uma parábola, que é a mesma
mente do prólogo, não surpreende a forma refletida em alguns dos outros
descoberta de que sua estrutura interna hinos cristãos primitivos. 2 Filipenses
se organiza em quatro estrofes ou estân­ 2:6-11, por exemplo, descreve a condes­
cias hinódicas, que correspondem às cendência e a vindicação de Cristo Jesus
divisões do texto, como seguem: o Verbo em dois movimentos: primeiro, a descida
é sucessivamente apresentado em relação do pêndulo, na humilhação (v. 6-8);
a Deus e ao seu universo (v. 1-5), a João depois, a subida do pêndulo, na exalta­
Batista (v. 6-8) e ao mundo dos homens ção (v. 9-11). Esta estrutura simétrica
(v. 9-13) e à igreja comungante (v. 14- invertida, chamada quiasma, era uma
18). Como a sequência destas estâncias é forma literária muito usada na litera­
mais tópica (de assunto) do que crono­ tura antiga especialmente quando se
lógica, é errôneo pensar que certos versos queria exprimir o paradoxo ou a “grande'
se refiram exclusivamente ao Verbo inversão” no âmago do evangelho (cf.
preexistente, e outros, somente ao Verbo II Cor. 8:9).
encarnado. Do mesmo modo como qual­ Foi a ênfase sobre este movimento du­
quer pessoa pode ser conhecida melhor à plo de descida e subida que determinou a
luz de seus vários papéis ou relaciona­ estrutura toda do Evangelho. Desse mo­
mentos (exemplos: à família, ao traba­ do, não surpreende que o resumo de
lho, aos inimigos e aos amigos), o pro­ abertura adotasse o modelo geral. Enten­
pósito básico aqui é explicar a pessoa do dido assim, o prólogo se assemelha a
Verbo através da descrição dos seus uma porta para Deus, com suas colunas
envolvimentos mais importantes, sejam fincadas na eternidade acima e não no
eles anteriores, contemporâneos ou pos­ tempo finito. A humilhação do Filho de
teriores à sua encarnação. Deus se esboça nos versos 1-11, seguida
Ao mesmo tempo, embora as decla­
rações separadas dentro das quatro 2 Sobre o caráter de hino ou parabólico do prólogo, veja
M. E. Boismard, St. John’s Prologue, Carisbrooke Do­
estâncias não formem uma linha crono­ minicans, trans. (London: Blackpriars Publications,
lógica progressiva muito clara, o hino 1957), p. 73-81.
ver não apenas pelas palavras idênticas ato. Isto é indicado não somente pela
iniciais (“No princípio”), mas pelo con­ primeira frase do versículo 1 — literal­
teúdo, que tem paralelismos bem ínti­ mente, “o Logos existiu antes de qualquer
mos. Em ambos os casos, o Verbo de coisa começar” — mas também pela
Deus criou um mundo que a luz e as relação do versículo 1 com o 3, cuja
trevas foram diferenciadas. O Evangelho seqüência sugere que Deus tinha uma
de João começa como um novo Gênesis, palavra antes de ter feito um mundo. Há
que apresenta a obra redentora de Cristo uma espécie de empirismo pragmático,
como conduzindo a criação à sua consu­ que aceita que o significado emerge
mação prevista (cf. 5:17;9:4-5). simplesmente dos acontecimentos. João,
1 )0 Logos e Deus (v. 1 e 2) entretanto, está certo de que Deus pri­
meiro planejou, para depois fazer, e que
O primeiro versículo faz três afirma­ esta Palavra da verdade fundamentou
ções sobre o Logos, que são apresentados aquilo que depois aconteceu e deter­
simetricamente, pela forma verbal era/ minou seu sentido profundo.
estava, repetida três vezes. A Versão Um dos propósitos básicos do prólogo
Inglesa de Hoje Today’s English Version é identificar o Jesus histórico com o
parafraseia assim: Logos eterno, e, a partir daí, argumentar
“Desde o princípio, que aquilo que os homens ouviram, em
quando Deus era, o Verbo também seu breve ministério, é o que Deus sem­
era; pre quis dizer ao mundo. Esta ênfase
onde Deus estava, o Verbo estava com sobre a preexistência do Verbo não era
ele; especulativa, mas prática, na intenção de
o que Deus era, o Verbo era também.” enfrentar dois problemas de então:
No inicio, o prólogo afirma a eterni­ Primeiro, os judeus estavam inclinados
dade, a proximidade e a identidade do por venerar a Escritura, por causa de sua
Logos com Deus. O versículo 2 repete antiguidade, acima mesmo dos ensinos
selenemente a ênfase das declarações de Jesus. João argumentou que a revela­
centrais do verso 1, como se estivessem ção dada em Jesus era algo mais velho
titubeantes para serem assimiladas com que o Velho Testamento, pois ela existia
fundamento numa simples afirmação. com Deus antes da história primeva
Como “no princípio” sugere não só o com que Gênesis 1:1 começou. Jesus
começo da história do evangelho (cf. pode ter aparecido como um jovem
Mar. 1:1), mas da própria criação do (8:57), mas ele se apresentou como o
mundo (cf. Gên. 1:1), a conseqüência é Verbo, que antecedeu e inspirou as
que o Verbo sempre foi uma realidade, palavras de Isaías, Moisés e Abraão.
antes mesmo que o tempo tivesse come­ Na realidade, eles falaram dele, e assim é
çado. Isto quer dizer que, por natureza em função dele que devem ser compre­
eterna, Deus não é mudo, mas, antes, é endidos (5:39-47; 8:53-58; 12:37-41).
um Deus capaz de falar. Diferentemente Como Logos eterno, Cristo é a norma
dos ídolos, que são mudos (I Reis 18: pela qual se deve aferir toda a revelação
26-29; Sal. 115: 3-8; 135:15-18; Hab. bíblica.
2:18,19; I Cor. 12:2), Deus sempre teve Segundo, muitos gregos, em oposição
uma palavra. O Poderoso não é inco­ aos judeus, não atribuíram qualquer
municável; todos os significados pro­ autoridade absoluta às escrituras anti­
fundos da vida não são, portanto, nega­ gas. Em suas mitologias populares, os
dos por um silêncio definitivo. deuses eram volúveis e excêntricos, pelo
Ademais, a mensagem anunciada aqui que suas palavras não mereciam crédito.
é que o Verbo precedeu a criação, o que Para João, o “estar-com” do Verbo
quer dizer que o pensamento antecedeu o garantia a fidedignidade do Verbo. O
Logos é sempre constante, e não se con­ da. Como enfatiza o versículo 3b, “ne­
diciona pela contingência dos fatos. Po­ nhuma coisa” veio à existência — muito
demos parafrasear a primeira parte do menos adquiriu significado — a não ser
versículo 1 do seguinte modo: “Quando como uma expressão criativa de Deus.
Deus começou a se expressar, o conteúdo A relação do Verbo com a criação não
desta revelação não se constituía numa deve ser compreendida, todavia, em
inovação ou reflexão tardia, mas na co­ termos de um dualismo cósmico, que
municação de sua realidade imutável.” proponha um antagonismo absoluto
As duas expressões finais do versículo entre o espírito e a matéria. Antes, a
1 permanecem numa tensão criativa compatibilidade total entre Deus e o seu
entre si, dando ênfase, como se ambas mundo se estabelece pelo envolvimento
fizessem a separação e a conexão do Ver­ do Logos nas duas esferas. O mesmo
bo com Deus. Por um lado, o Logos estava Verbo que foi associado a Deus por três
face a face com ou “na companhia” de vezes, nos versos 1 e 2, é associado ao
Deus. Embora esta proximidade sugira mundo três vezes nos versos 3 e 4 (“por
uma intimidade filial (cf. “ no seio” , v. intermédio dele” , “sem ele” , “nele”).
18), a preocupação fundamental era Este Logos não é um ser intermediário
insistir sobre uma distinção adequada inferior entre um Deus perfeito e seu
entre o Logos e Deus (cf. Prov. 8:30). imperfeito mundo, como queriam os
Por outro lado, em acréscimo a esta gnósticos. Ao contrário, o Logos que
diferença, havia uma igualdade entre os deveria ser identificado com a totalidade
dois; pois, como a New English Bible da ordem divina (v. lc), era o agente de
(Nova Bíblia Inglêsa) belamente indica, Deus na emergência da totalidade (todas
“o que Deus era, o Verbo era” . O Verbo as coisas) da ordem criada (v. 3a.). Desse
não era apenas um atributo de Deus, modo, os dois extremos são recusados:
mas, antes uma expressão do verdadeiro o mundo não é eterno, e, portanto, defi­
ser de Deus. nitivo, e nem mau, e, portanto, despre­
Estas duas expressões equilibrada- zível.
mente aqui colocadas, preparam para os O que significa, então, confessar que
dois ensinos cristãos de que (a) Jesus e este universo é cristocêntrico (cf. I Cor.
Deus distintos em pessoa e em função 8:6; Col. 1:16; Heb. 1:2)? Três conclusões
(exemplo: Jesus não conversou consigo podem-se tirar daí:
mesmo quando orou; cf. 17:4,5) e, O sentido é anterior à matéria; assim
ainda, que (b) eles eram idênticos em as coisas tomam sua importância dos
natureza e em propósito (isto é, Jesus' propósitos espirituais intentados. Esta
não só revela algo sobre Deus, mas, argumentação opõe-se a qualquer mate­
antes, revelou-se Deus; cf. 14:9). rialismo que veja a realidade como tan­
gível, o mundo como de importância
2) O Logos e a Criação (v. 3 e 4)
mais intrínseca do que instrumental e a
O ser eterno do Logos, destacado pela vida como alcançada pelas experiências
tríplice repetição do verbo era/estava do sensoriais.
versículo 1, contrapõe-se, agora, à trans­ A criação, como uma atividade do
formação temporal de todas as coisas, Logos, é parte do esforço de Deus para se
destacada pelo tríplice fez (literalmente, comunicar com o homem (cf. Rom. 1:20;
“ tornou-se” ou “ tem-se tornado”) do At. 14:17). A significação do físico reside
versículo 3. Ao afirmar que a ordem em sua capacidade de significar ou servir
inteira criada veio a ser através da ins- como um sinal do espiritual. Se o uni­
trumentalidade do Verbo, a implicação verso foi fundado pelo Logos, então pode
do prólogo é que a matéria não é eterna haver uma analogia adequada entre o
e auto-suficiente, mas limitada e causa­ visto e não visto. É por isso que Jesus
falou de Deus em termos de símbolos, 8:12; 12:46). Em outras palavras, cada
como vinho (2:1-11), água (4:7-15) e pessoa (v. 9b) deve perceber que Deus é o
pão (6:25-59). criador poderoso e zeloso do universo, à
Como agente da criação, Cristo pode luz do milagre da vida, que transborda
reivindicar o universo como aquele que o na experiência humana (cf. Gal. 36:9).
recriou e redimiu (cf. Col. 1:15-18). Sua 3) O Logos e as Trevas (v. 5)
presença terrena no mundo que fez (v.
10) foi uma descida às “suas próprias Por que, então, tantos compreendem
coisas” (v. 11a). O Logos encarnado foi mal e até se opõem à luz ativa da vida na
investido com uma autoridade cósmica ordem criada? Por que é a vida tão
(3:35; 13:3; 17:2), porque toda a ordem barateada pelo preconceito, pela escra­
criada foi uma projeção perfeitamente vidão, pela guerra e por uma hoste de
incorporada em sua vida. Isto significa outros inimigos? Mais ainda, por que o
que nenhuma área de nossa existência, mundo destrói com tão brutal rapidez
mesmo mundana, está isenta de buscar uma vida tão iluminada pela luz de Deus
sua coerência na submissão a ele. (cf. 1:10, 11; 8:12-59; 12:35-50)? A res­
Uma interpretação correta do verso 4 posta dada é que a luz não brilha num
é extremamente difícil, porque nenhum vácuo moralmente neutro, mas no con­
texto exato ou nenhuma pontuação é flito cósmico com o poder das trevas.
possível, à base dos manuscritos dispo­ Somos, então, repentinamente introdu­
níveis. A Revised Standard Version zidos no problema do mal.
apresenta o dilema da tradução, ao ofe­ Logo depois de tratar da obra divina
recer uma leitura (marginal) alternativa, da criação (v. 3 e 4), a questão natural­
que junta o último trecho do verso 3 ao mente, suscitada é se o mal também teve
verso 4. Como seria necessário uma dis­ origem em Deus. É o Logos, que fez
cussão técnica complexa para evidenciar todas as coisas, também responsável
todas as possibilidades exegéticas, pode­ pelas trevas? Neste trecho, a resposta não
mos seguir a linha geral de pensamen­ parece ser sim. Ao contrário, as trevas
to, que não é afetada seriamente por são admitidas e apresentadas sem qual­
decisões sobre palavras e expressões quer ligação com a luz. A situação é a
individuais.4 mesma em Gênesis 1:1-5, onde “no prin­
Como inteligência pessoal em comu­ cípio” , antes que Deus proferisse sua
nhão com Deus, o Logos, ao funcionar palavra criadora, “ havia trevas sobre a
como o agente da criação, era funda­ face do abismo” .
mentalmente o colaborador da vida. O propósito básico do verso 5 não é
Qualquer ato criativo envolve mais que explicar nem amaldiçoar as trevas, mas
a fabricação de moléculas. A matéria afirmar a penetrante convicção de que a
tem sentido apenas enquanto vive, e a luz prevalece ao final (cf. I João 2:8).
afirmação aqui é de que nele estava a Isto foi verdade na criação, quando as
fonte da vida, por que todas as coisas trevas saíram de diante das palavras
tiveram a oportunidade de vir a ser. Em “haja luz” (Gên. 1:3). Foi verdade em
certo sentido, o Logos tinha o mesmo Cristo que, embora rejeitado por muitos
propósito na criação como na redenção: (1:10,11), chegou a ser a Luz do Mundo
“Eu vim para que tenham vida” (cf. (8:12). É verdade na Igreja, cujo teste­
5:26;5:40; 10:10; 14:6). Como dom munho não pode ser extinguido pela
divino, esta vida torna-se a luz, pela qual perseguição (cf. 9:22; 12:42; 16:2). Mais
os homens são indicados para Deus (cf. claramente, as trevas existirão enquanto
os homens preferirem o mal (cf. 3:19-21)
4 Para uma discussão mais detalhada, veja Bosmard, e, como elas coexistem com a luz, é
p.12-19. necessário que se tome uma decisão por
uma ou pela outra. O resultado, porém, nham transferido sua lealdade a Jesus e
da luta jamais esteve em questão, ficando precisavam ser lembrados que seu mestre
sempre claro que as trevas não domi­ jamais apontara para si mesmo (cf. At.
narão a luz. 18:24-26; 19:1-7).
Ao mesmo tempo, a humildade de
2 .0 Verbo e João (1 ;6-8) João deu o cenário para que se revelasse a
6 H ouve u m h o m e m en v ia d o d e D eu s, cu jo sua verdadeira grandeza. Embora fosse
n o m e e r a Jo ã o . 7 E s te v eio co m o te s te m u ­ um solitário arauto sem credenciais, ele
n h a , a fim de d a r te s te m u n h o d a lu z, p a r a ousou ser profeta num tempo que a
que todos c re s s e m p o r m eio d e le . 8 E le n ão
e r a a lu z, m a s v e io p a r a d a r te s te m u n h o d a
profecia estava relegada a um passado
luz. ideal. Sua única motivação era o sentido
de missão para a qual veio; seu único
Este segundo parágrafo do prólogo objetivo era indicar para além de si mes­
mostra uma ligação bem estreita e um mo como testemunha; sua única mensa­
contraste forte com o parágrafo anterior. gem era a da luz. Na primeira estrofe do
A coesão é estabelecida com a referência prólogo, fomos alçados a alturas enor­
à “luz dos homens” (v. 4) como tendo-se mes, mas nesta não se faz por menos:
cumprido num homem que veio teste­ um homem em contato com a transcen­
munhar da luz. Ademais, em João as dência, um homem preocupado com a
trevas encontraram uma testemunha luz num tempo em que os demais ho­
(v. 6-8), uma preocupação presente neste mens se contentavam em viver nas trevas,
capítulo e em todo o Evangelho. O Verbo um homem capaz de renunciar às como­
divino foi fundamental em que “todas as didades do status quo e de contar com o
coisas” vieram a existir “através dele” futuro para justificar a sua esperança.
(v. 3a.), mas o testemunho humano
apontava para o propósito redentor da 3. O Verbo e o Mundo (1:9-13)
criação, em que todos os homens seriam 9 P o is a v e rd a d e ira lu z, q u e a lu m ia a todo
chamados a crer através dele. h o m e m , e s ta v a ch e g a n d o a o m u n d o . 10 E s ­
Paralelamente, porém, a desconti- ta v a e le no m u n d o , e o m u n d o foi feito p o r
nuidade é tão evidente, que saltamos in te rm é d io d e le, e o m u n d o n ão o co n h eceu .
11 V eio p a r a o q u e e r a se u , e o s se u s n ã o o
subitamente, da eternidade para o tem­ r e c e b e ra m . 12 M as, a to d o s q u a n to s o r e c e ­
po, do universo para o deserto, das afir­ b e ra m , a o s q u e c rê e m no se u n o m e , d eu -lh es
mações exaltadas para as retratações o p o d e r d e se to r n a re m filh o s d e D e u s ; 13 os
insistentes (v. 8). Note-se como as duas q u a is n ã o n a s c e r a m do sa n g u e , n e m d a v o n ­
ta d e d a c a rn e , n e m d a v o n ta d e d o v a rã o ,
estrofes começam de modo diferente m a s d e D eus.
(v. 1 e 6). Jesus era o Verbo (lógos); João
era um homem (anthropos). Jesus con­ A forte negativa com que a segunda
vivia em intimidade “com” (pros) Deus; estrofe do prólogo termina (v. 8) prepara
João era um enviado de (para) sua parte. para a igualmente forte afirmação com
Jesus sempre “era” (ên) sem começo ou que a terceira começa (v. 9). Embora
fim; João “veio a ser” (egeneto) na ple­ João, em si, não fosse a luz prometida,
nitude do tempo (A RSV obscurece este da revelação final de Deus (cf. Is. 9:2;
final contrastante, ao traduzir os dois 42:6; 60:1-3, 19-20, o Logos, que era
verbos diferentes nos versos 1 e 6 como a verdadeira luz, preencheu a ardente
“era”). Estava clara a necessidade que se expectação do seu precursor, ao entrar
sentia de subordinar João a Jesus, como no mundo dos homens de forma tão
se vê particularmente na eloqüente ne­ nova. Isto é logo indicado pelo verso 10a,
gativa do verso 8a (cf. 1:15; 1:19-34; onde a ênfase do verso 9 é repetida (ele
3:22-30; 4:1; 5:33-36; 10:40,41). Parece realmente estava no mundo), como tam ­
que alguns seguidores de João não ti­ bém no "ele veio” do verso 11 e no “a
todos quantos o receberam” do verso 12. pelas obras entreviam .uma tendência
O terceiro parágrafo resume, assim, o para definir"’o objetivo da existência hu­
ministério terreno do Logos encarnado mana em termos daquilo que se alcan­ t f
e, ao fazê-lo, antecipa as linhas da his­ çava. e não em função daquilo que se
tória evangélica, que logo será contada recebia. Eles não viam a luz diante deles
(v.9=cap. 1; v,10=cap.2-4; v. ll= c a p . como dádiva absoluta, isto porque esta­
j>-12;v. 12 e 13=cap. 13-21). vam ocupados em tentar elaborar esta
O próprio prólogo deixa claro o quão graça em suas próprias mentes e em seus
incrível foi esta intervenção divina nos proprios cultos. Para descobrir a ver­
negócios do homem. A luz universal, que dade, nada é tão necessário quanto a
brilha em todo o homem, transformou-se^ abertura. Pálpebras cerradas obscure­
num homem particular. Aquele que cem todo o fulgor de um resplandecente
sempre existiu, antes mesmo de o mundo sol de meio dia. Assim, o prólogo aponta~
começar, veio agora, participar da histó­ ^diretamente para o c e n tr o d e u m ^ re s ;
ria. O agente aue criara o cosmo inteiro posta positiva na palãvrarecemda e liga
ocupa, agora, um lugar no esoaco da esH- rècepfivi3a3e^~natureza da fé, ao
terra. Um tjja, tudo tomara vida nele; identificar todos aqueles que o recebe­
agora, porém, ele vivia no mundo. ^Dè ram como aqueles que creram em seu
um ponto de vista humano, seria bas­ nome. O cristianismo é, desse modo,
tante difícil crer que Deus tenha prepa­ "~3efinidoT fundàmentaíminte, em termos
rado esta vinda apoteótica apenas com de graça (deu-lhes), que é, sobretudo, a
um arauto obscuro como João Batista. unica maneira pela qual o Logos e a luz
Seria também impensável que o evento — seja terrenal ou celestialmente —
escatológico envolvesse o eterno se trans­ podem se comunicar com o homem. Há
formando em temporal, o infinito em uma espécie de passividade humana cria­
espacial e o espiritual em material; é tiva, uma audição e uma visão aguçadas,
precisamente por isso que acontece o que permitem a atividade divina de falar
reverso do processo, pelo qual se descreve e brilhar.
geralmente a redenção. Não surpreende que a dádiva primeiro
Não surpreende, então, que os homens seia descrita como direito, ou privilégio,
estivessem tão despreparados para a (e não como poder, conforme em algu­
chegada da luz. A rejeição é descrita em mas versões) de se tomarem filhos de
dois estágio§JL_No /pnmeírdx o mondo, Deus. Esta figura sugere a comunhão da
que lhe pertencia através^aa criação, família da fé. Implica também a noção
compreendia aqui como a vida organi­ de um novo começo. A coisa mais carac­
zada da humanidade, não o conheceu terística, de um filho, é que sua vida está
com gratidão e reconhecimento. No sempre diante dele, o melhor está sempre
( slgõndoT^embora tenha vindo especial­ por vir. Neste contexto, .o mais^imppr%_
mente para o seu próprio lar, em Israel, o tante é a implicação de que os homens
povo de Deus, que lhe pertencia por con­ não são filhos de Deus por natureza,
certo, não o aceitou. A contundente afir-'l quer pertençam ao mundo criado através
\~ínação, feita agora, é que nem o mundo, do Logos quer ao povo escolhido, do
que vive na luz da razão natural, nem a Messias, como descendentes de Abraão.
religião, que vive na luz da revelação Ao contrário, eles se tornam filhos de
divina, podiam ver a verdadeira Luz do Deus através de uma nova criação, que
mundo, quando esta se incorporou na transcende todas as distinções nacionais,
vida humana! raciais e religiosas (cf. 8:39-47).
Qual era a razão básica dessa ce- ) Esta mudança inicial, no verso 12, é
gueira? Tanto o interesse dos gregos pela / melhor esclarecida depois como de ori­
Sabedoria como o interesse dos judeus/ gem divina, no verso 13. Três expressões
negativas, na realidade, de sentidos seqüência atrapalha a simetria da frase e
semelhantes, insistem que este nascimen­ altera sua linha de pensamento.)
to não é, de modo algum, o resultado de Observa-se inicialmente, as três limi­
uma reprodução biológica. A forma tações atribuídas ao Logos. no verso 14.
como Cristo nasceu, neste mundo, dá, o em comparação com o verso 1:
modelo como qualquer homem pode (1) O Verbo, que sempre “estava" em
tomar a nascer: não pela hereditarie- seu ser eterno, com Deus (v. 1), trans­
% dade ou pelo esforço humano, mas de
Deus (cf. o comentário sobre 3:1-15).
forma-se agora, num evento temporal.
num ponto da história, limitado à cir­
cunstância do tempo, como João Batista
4. O Verbo e a Igreja (1:14-18) asteve, conforme o verso 6. (O verbo
14 E o V erbo se fez c a rn e , e h a b ito u e n tre
grego egeneto, usado no verso 6, para
nós, cheio d e g r a ç a e d e v e r d a d e ; e v im o s a contrastar o João histórico com o Logos
s u a g ló ria , com o a g ló ria do u n ig én ito do eterno, do verso 1, é empregado, agora,
P a i. 15 J o ã o d eu te s te m u n h o d e le , e clam o u , para o Logos histórico, no verso 14.)
dizendo: E s te é a q u e le d e q u e m e u d is se : Ele, através de quem toda a criação
O q ue v e m dep o is de m im , p a ss o u a d ia n te de
m im ; p o rq u e a n te s d e m im e le j á e x is tia . ganhou a existência (v. 3), toma-se,
16 P o is todos nó s re c e b e m o s d a su a p le n i­ agora, uma criatura finita.
tu d e, e g r a ç a so b re g ra ç a . 17 P o rq u e a lei foi (2) Ademais, o Verbo, que “era Deus”
d a d a p o r m eio de M o is é s ; a g r a ç a e a v e r ­ (v. lc), agora torna-se como carne: isto é,
d a d e v ie r a m p o r J e s u s C risto . 18 N in g u ém
ja m a is viu a D eu s. O D eu s u n ig én ito que
ele começou a existir como um ser hu­
e s tá no seio do P a i, e ss e o d e u a co n h e ce r. mano (cf. I João 4:2; II João 7). O último
meio escolhido para comunicar a mensa­
A referência ao novo nascimento, no gem divina não era uma idéia, uma
final "da terceira estrole, leva, natural- emoção ou uma organização; antes, a
mente, a uma discussão sobre a vida revelação se incorporava numa pessoa.
cristã na estrofe final, mas com uma Não significa isto que o Verbo deixou de
diferença de perspectiva de grande im­ ser Verbo quando se fez carne, mas
portância. Pela primeira vez, no prólogo, que a realidade última e a existência
os pronomes mudam da terceira pessoa terrena fundiram-se perfeitamente na
(eles), de uma descrição objetiva, para vida de uma só pessoa.
a primeira pessoa (nós), de uma confis­ (3) Finalmente, o Verbo, aue estava
são subjetiva (cf. 21:24b; I João 1:1-4). eternalmente com (pros) Deus (v. lb).
^No climax do hino, uma comunidade( agora tornou-se do (para) Pai e habitou
daqueles que se tornaram “filhos de( temporariamente entre nós. O verbo
'D eus” (v. 12 e 13) celebra a encarnacão( habitar pode sugerir a idéia de fincar
do Logos (v. 14) à luz da dádiva que uma tenda, reminiscência do tempo em
receberam. que Deus tabernaculou com seu povo no
Este testemunho nasce, entretanto, de deserto (Êx. 25:8; 40:34).
um realismo de enorme sobriedade. Esta tríplice humildade não obscure­
O paradoxo do Verbo se fazer_carae. que ceu sua verdadeira grandeza, mas, antes,
pervade o prólogo, alcança sua expressão forneceu o contexto, a partir do quaTos
mais eloqüente no verso 14, quando as olhos da fé poderiam ver mais clara­
três marcas da condescendência, na mente. Q sentido último do Logos é
primeira parte do versículo, são justa­ agora afirmado em~tres'fãses~súcessivas.
postas a três marcas de exaltação, na Nós vimos sua glória — Glória é um dos
última parte (A versão bíblica usada termos mais ricos do vocabulário teológi­
alterou a ordem do texto grego, ao passar co da Bíblia, referindo-se basicamente às
cheio de graça e de verdade do fim para o manifestações visíveis do poder de Deus.
centro do versículo; esta mudança na à vida de Jesus brilhou, com a já referida
presença da majestade divina. Através dó" parecer algo de inflexível rieidez. Ao '
ministério terreno do Verbo, Deus con­ declarar sua natureza divina, Jesus com­
vocou os homens para uma nova cons- binou uma infinita ternura pelo pecador
:iência de seu propósito e de seu pres­ com uma inabalável fidelidade ao que é
tígio. direito.
O unigénito do Pai — A palavra tra­ Revendo-se o verso l^çom jijitratado,
duzida como unigénito (monogenous) 5 as duas partes dão a impressão inicial de
poderia dar a idéia de ‘,‘úniço gerado” . absoluta incoerência. A primeira metade"
como está na versão King James, visto descreve a ação divina na história como a
que o relacionamento pai-filho se esta­ vinda do Verbo, enquanto, a segunda,
belece pelo processo do nascimento. O descreve a reação humana em termos
sentido inicial do termo, entretanto, é de nós temos visto. Porém, uma palavra é
‘^o único de sua,espécie” , e a ênfase do algo que comumente não se vê, mas se
prólogo, sobre o “ser/estar” do Verbo, ouve; contrariamente, glória é geral­
sugere — ao contrário do que faz supor a mente compreendida como algo que não
King James — que a diferença desse tem som. A inusitada combinação de
Filho residia em não ser gerado. Ha -audição e visao, no verso 14, evidencia a
realidade, um contraste^deliberado entre verdade profunda de que~ em Jesus,
o verso 13 e o verso 14 pode implicar num Deus tornou-se_agessíyel à^vidajiumana, 4 ^
quiasmo: “Nós, homens da terra, que jilravés^iajjorta^o^rvido e^daj)orta dos
[nascemos na carne/ Fomos privilegiados olhas (cf. LJoão J :l)D e sse modo, ele
í em nos tornarmos filhos de Deus/Por í apelava tanto ao intelecto quanto à ima­
I procedermos não de um homem, mas de/ ginação. tanto ao sentido humano de
Deus/ Como não necessitasse ser nascido reflexão quanto de celebração. Ademais,
' de Deus/ Já que era o Filho incompa­ o Logos visível transcendeu a tradicional
rável e eterno Deus Ele desejou nascer da dicotomia entre palavra e acão. Havia
carne, em nosso favor. uma coerência total entre o que os ho­
Cheio de graça e de verdade — Como mens ^ v iã m T e s ü £ d 5 iF ê o que eles o
homem, o Logos não estava vazio da viam fazer. E m outras palavras, eles
realeza divina (como às vezes é erronea­ “viam” o que ele “ dizia” , porque ele
mente interpretado Fil. 2:7), mas cheio praticava de modo perfeito aquilo que;
de amor misericordioso e da impertur­ pregava. I
bável fidelidade, elementos centrais da A vinda da revelação divina em forma
compreensão veterotestamentária de de vida humana não era nada evidente
Deus (Êx. 34:6,7; Sal. 85:9-10; 89:14; por si mesma, uma vez que uma afirma­
108:4). Observe-se o equilíbrio alcançado ção dessa natureza não tinha paralelo
com as combinações desses dois termos.. algum com nenhuma outra religião.
Graça é uma compulsão irresistível aos Assim, o Verbo dõverso 14 está intima­
homens, mais do que eles merecem, e mente associado ao retumbante teste­
que flui espontaneamente da ilimitada munho de João, no verso 15. Esta cone-
!generosidade de Deus. Verdade, por xão se fez necessária, porquê João fora a
outro lado, finca-se na determinação primeira ligação decisiva entre Jesus e a
divina de ser coerente, inteligível e, por ininterrupta corrente de crentes incluída
conseguinte, digna de crédito no seu no nós deste parágrafo.
relacionamento com a humanidade. Talvez se devesse tomar o presente do
Graça sem verdade não passa de senti­ indicativo do verso grego (obscurecido
mentalismo; verdade sem graça pode pelo “ deu testemunho” de nossa versão)
literalmente, no sentido de que o profeta
5 Dale Moody, “God's only Son” , Journal of Biblical morto há bom tempo, continuava dando
literature, 72(1953), p. 213-219. testemunho, através das páginas de seu
Evangelho (como, por exemplo, nos v. adequado que os mandamentos escritos
19-36). Seu corajoso grito, dado por oca­ sobre as tábuas de pedra.
sião do seu breve ministério, continuava Nos versos 14-18 reside implícita a
a ecoar uma geração depois, uma vez que superioridade de Cristo sobre Moisés.
suas palavras tinham sido registradas, Em Êxodo 33 e 34, Moisés, a quem Deus
João, a exemplo de Abel, embora morto, falou “face a face” (33:11), pediu que a
“ainda fala” (Heb. 11:4). presença divina também acompanhasse o
O conteúdo deste testemunho relacio­ povo em sua peregrinação à terra pro­
nava-se ao problema da precedência na metida (33:14-17). Quando Deus con­
prática religiosa judaica. Uma vez que cordou, Moisés pediu-lhe para ver sua
Jesus era mais jovem que João e viera a glória (33:18), mas recebeu apenas uma
ele a fim de ser batizado, pode-se pre­ revelação oculta, “porquanto homem
sumir que pretendeu ser seu seguidor, nenhum pode ver a minha face e viver”
pois, no judaísmo, a expressão aquele (33:20). A despeito desta limitação, o
que vem após mim geralmente designava povo pôde conhecer o “nome” (natureza)
um discípulo (cf. Marc. 1:17; 8:34). do Senhor como aquele que transborda
João, entretanto, inverteu a relação ao em “beneficência e verdade” (34:6); foi
insistir que Jesus lhe passasse à frente, esta a base do concerto lavrado sobre as
por que ele era um ser preexistente (cf. tábuas de pedra (34:1,10,27,28). No
v. 30). prólogo, entretanto, o Logos, que esteve
face a face com Deus (v. 1), habitou entre
Ê importante que a súbita entrada nós, como o “tabernáculo do encontro” ,
parentética do verso 15 não obscurece a em que a glória de Deus foi vista e onde a
íntima relação entre o verso 14 e o verso plenitude de sua graça e verdade foi
16. Como fé é uma questão de aceitar recebida, não como uma lei, sobre pedra,
aquele que estava cheio de graça e de mas como uma vida na carne.
verdade, segue-se naturalmente que Esta comparação chega ao seu climax
recebemos da sua plenitude, e graça no verso 18, onde a impossibilidade de
sobre graça. A curiosa expressão graça Moisés “ver a Deus” (cf. ainda Juí. 13:22;
sobre graça significa, literalmente, graça Is. 6:5; João 5:37; 6:46; I João 4:12,20)
“em troca por” ou “em substituição a” é substituída pela obra do Unigénito, que
mais graça (cf. Rom. 1:17; II Cor. 3:18); o fez conhecido. A força maior desta
em outras palavras, como belamente afirmação torna-se confusa, por algumas
traduz a Bíblia na Linguagem de Hoje, variantes textuais, em que alguns ma­
“bênção e mais bênçãos” . Isto significa nuscritos falam em “unigénito” (mono-
que podemos tirar, de sua plenitude, genès huios), como acontece em nossa
como de uma fonte inesgotável. Uma vez versão, e outras em “único Deus” (mo-
que a graça foi recebida, ela não cessa de nogenês theos), como ocorre em notas
crescer. Recebemos “graça em lugar de marginais. Conquanto seja impossível
graça” . escolher com absoluta certeza entre
Para ser mais claro, Deus tem sido estas duas alternativas, as evidências
sempre um Deus de graça. No período do internas do contexto favorecem Filho
Velho Testamento, a lei foi dada por (para combinar com no seio do Pai); as
meio de Moisés; na era cristã, sua imu­ evidências externas dos manuscritos,
tável graça e verdade vieram por lesus porém, favorecem Deus (especialmente
Cristo. A diferença reside não apenas na os manuscritos mais antigos). Com cer­
natureza de Deus, como doador, mas teza, no pensamento do Quarto Evan­
nas potencialidades da graça, para gelho, estas opções não se excluem mu­
fazê-lo conhecido. Uma pessoa viva, tuamente, mesmo porque Jesus é com­
cheia da realeza divina, é um meio mais preendido tanto em termos de Deus
(como em 1:1; 20:28) como de Filho (a Jesus vindo ao seu encontro, e se dirige
exemplo de 3: 16-18; 5:19-23). De qual­ diretamente a ele, mas Jesus permanece
quer modo, se a palavra monogenés quer em segundo plano. No terceiro dia (v.
dizer “unigénito” , como nossa versão 35-42), entretanto, os dois aparecem
traduz o verso 14, uma combinação com juntos, e os discípulos de João começam
theos permitiria a seguinte tradução: a transferir para Jesus a sua lealdade.
“Deus, o unigénito” . Por igual modo, a No último dia (v. 43-51), João não é
expressão completa poderia ser parafra­ mencionado, enquanto Jesus domina a
seada assim: “Aquele que é o Filho cena. Para usar as palavras do próprio
único, porque só ele pode ser identifi­ João, são quatro os passos para que “ele
cado com Deus.” cresça e que eu diminua” (3:30).6
A referência a no seio do Pai remete-se Dentro da forma deste ciclo de quatro
à expressão “com Deus” , do verso 1. dias, o conteúdo central do testemunho é
Visto que, entre estes dois versículos apresentado por dez confissões cristoló-
paralelos, a vida terrena de Jesus foi gicas,7 nos lábios de cinco testemunhas:
descrita (v. 9-14), podemos aceitar, en­ João (v. 19-36), André (v. 37-42), Filipe
tão, que o verso 18 refere-se ao Senhor (v 43-46), Natanael (v. 47-49) e o próprio
exaltado, que realizou a parábola da Jesus (v. 50 e 51). Já no prólogo, termos
redenção e se encontra agora “à destra” como “Verbo” , “Deus” , “vida” , “luz” e
do Pai, na glória (At. 2:33-34). A ascen­ “unigénito” foram usados. Agora mesmo
são não é enfatizada, entretanto, porque Jesus é identificado como:
este versículo pretende antecipar a histó­ 1. Aquele (maior) que viria depois de
ria do evangelho, que logo seria contada João (v. 27 e 30)
e interpretada como um registro dos 2. O Cordeiro de Deus (v. 29 e 36)
meios pelos quais o “ unigénito... deu a 3. Aquele (que preexistia) antes de
conhecer (o Pai)” . A vida de Jesus era João (v. 30)
uma revelação do ministério divino (cf. 4. Aquele que batiza com o Espírito
12; 45; 14:9), um comentário visível (li­ Santo (v. 33)
teralmente: “exegese”) do Deus invisí­ 5. O Filho (ou Eleito/Escolhido) de
vel, um Verbo que explicava a pessoa de Deus (v. 34 e 49)
Deus, que ele desde a eternidade tão 6. O Rabi/Mestre (v. 38)
intimamente conhecia. 7. O Messias/Cristo (v. 41)
8. Aquele de quem Moisés e os profe­
II. O Testemunho dos Homens tas escreveram (v. 45)
(1:19-51) 9. O Rei de Israel (v. 49)
10. O Filho do Homem (v. 51)
Para equilibrar o hino poético ao Diferentemente de alguns títulos usa­
Verbo de Deus, de 1:1-18, a introdução dos no prólogo, esses dez são designações
ao Evangelho conclui, agora, com uma mais tradicionalmente judaicas, tiradas
narrativa, em forma de prosa, sobre o amplamente do Velho Testamento e da
testemunho dos homens, em 1:19-51. literatura intertestamentária. Tomados
A apresentação deste testemunho orga­ juntos, formam uma fotomontagem do
niza-se em torno da relação de João libertador esperado do povo de Deus. É
Batista com Jesus. Toda a seção se divide importante compreender, entretanto,
em quatro cenas, que se desenvolvem
cronologicamente.
Na primeira (v. 19-28), João ocupa 6 T. F. Glasson, “John The Baptist in the Fourth Gos­
pel", The Expositor; Times, 67 (1956), p. 245 e 246.
sozinho o lugar central, enquanto Jesus
7 Rudolf Schumackenburg, The Gospel According to St.
é o desconhecido, que ainda não apa­ John, traduzido para o ingles por Kevin Smyth (New
receu. No dia seguinte (v. 29-34), João vê York: Herder and Herder, 1968), I, p. 507-514.
que somente em Jesus as imagens foram espiritual, foi torturantemente devagar e
fundidas e atribuídas a uma pessoa histó­ marcada por muitos falsos começos e
rica. Somente ele satisfaz todas as neces­ muitos retrocessos.
sidades que tinham produzido estas ima­ Por que, então, não há indício desta
gens durante diferentes períodos da his­ luta em 1:19-51? Simplesmente, porque
tória de Israel. aí a fé está sendo apresentada à luz da
Isto significa que a cristologia é clara­ perspectiva do fim a que conduz. Certa­
mente distorcida, quando alguns desses mente, é importante compreender quão
papéis são enfatizados, com a exclusão modestamente a fé pode começar, mas é
de outros. Por exemplo: Jesus é, ao mes­ também importante entender o vasto po­
mo tempo, o Cordeiro, que resolve o tencial inerente no mais humilde com­
problema do pecado, o Rabi, que respon­ promisso. Nesta seção, somos levados a
de ao problema da ignorância, e o Mes­ tratar não da insignificância da semente
sias, que satisfaz o problema da falta de quando plantada, mas da grandeza da
liderança. Quando apenas algumas des­ floresta já latente nela. Não quer isto
tas funções são salientadas, limita-se a dizer, no entanto, que o Quarto Evange­
apreciação da variada gama de necessi­ lho se interesse apenas pelos efeitos, e
dades humanas que ele veio atender. não pelas causas. No contexto mais am­
Estes títulos não só foram enriqueci­ plo, por exemplo, mantém um belo equi­
dos, como portadores das esperanças de líbrio entre a fé como ponto climático em
Israel há muitos séculos, mas penetra­ 1:19-51 (exemplos: 1: 29,41, 45,49) e a fé
ram paulatinamente na piedade cristã. como um processo crescente em 2:1-4:54
Ao tempo em que o Quarto Evangelho foi (exemplos: 2:224:41, 42, 50-53).
escrito, cada frase passava a ter um Numa arrumação literária, em 1:19-51
significado mais amplo do que poderia é dividido em duas grandes partes: 1:19-
ter tido para os novos discípulos no início 34, em que João dá testemunho, e 1:35-
do ministério de Jesus. As implicações 51, em que os discípulos testemunham.
totais, destas palavras, podem ser perce­ Através do recurso da repetição, em
bidas apenas por uma revisão das suas 1:35-36, estabelece-se uma relação ínti­
raízes na fé de Israel e por uma previsão ma entre as duas partes. Cada uma é
de seus frutos na fé da igreja primitiva. subdividida em duas seções, chegando a
Entendidas assim, elas oferecem, a cada um total de quatro unidades em 1: 19-51,
leitor do Evangelho, uma oportunidade que correspondem à estrutura cronológi­
de fazer sua própria profissão de fé cons­ ca dos quatro dias (v. 19,29,35, 43). Esta
ciente em Cristo. bem elaborada organização do material
A menos que entenda que um longo sugere um possível uso, em algum grupo
processo de evolução foi desenvolvido, no confessional da liturgia cristã antiga (cf.
uso destes títulos, como uma espécie de especialmente o v. 20a).
taquigrafia, o leitor concluiria, equivoca-
1. O Testemunho de João Batista
damente, que os primeiros seguidores de
(1:19-34)
Jesus eram pessoas espiritualmente re­
nascidas e plenamente amadurecidas, Esta seção começa com um título in­
que a sua fé foi sazonada de uma vez, trodutório bem formal (“Este foi o teste­
que sua clara compreensão da natureza munho de João”) e por conclusão tam­
da pessoa de Jesus existia desde o início. bém clara: “Eu mesmo vi e já vos dei
Temos provas suficientes, tiradas do testemunho”). No grego, a simetria da
Evangelho (16:29-31, por exemplo) e dos organização é ainda mais óbvia, porque
Sinópticos (Mar. 8:27-33, por exemplo) as palavras “depoimento” e “testemu­
de que não foi esta a realidade. A pere­ nho” vêm da mesma raiz. Os Sinópticos
grinação, em busca de uma iluminação apresentam João como um precursor do
Messias, como um pregador de arrepen­ negou, fortemente reminiscente de Ma­
dimento, como um mestre de ética e teus 10:32,33. Missionários cristãos, sob
como o batizador de uma nova comuni­ oposição ou mesmo sob perseguição, au­
dade remanescente (Mat. 3:1-12; Mar. feriram coragem deste relato de inabalá­
1:1-8; Luc. 3:1-18). Estas funções, no vel confissão sob pressão.
entanto, ou são totalmente subordinadas Embora João com certeza não negou a
ou são ignoradas, a fim de que seu papel fé, como veremos mais adiante (v. 29-
se concentre exclusivamente como teste­ 34), ele achou necessário o preparo, para
munho de Jesus. sua afirmação positiva de Cristo, por
1) O Testemunho Negativo Sobre Si meio de uma negação tríplice de si mes­
mo, que é progressivamente mais enfáti­
Mesmo (1:19-28)
ca (literalmente: “Eu não sou” ... eu
19 E e s te foi o te s te m u n h o d e Jo ã o , q u an d o não... não!). Ao negar ser O Cristo, Elias
os ju d e u s lh e e n v ia r a m d e J e r u s a lé m s a ­ ou o profeta, João contribuiu enorme­
c e rd o te s e le v ita s p a r a q u e lh e p e rg u n ta s ­
s e m : Q uem és tu ? 20 E le , pois, confessou e mente para a dissociação de sua pessoa
n ão n eg o u : s im , co n fesso u : E u n ão sou o de qualquer figura escatológica esperada
C risto. 21 Ao q u e lhe p e r g u n ta r a m : P o is ao fim do tempo. Muitos judeus ansia­
q u ê? É s tu E lia s ? R esp o n d eu e le : N ão sou. vam não só pelo Cristo, como o filho
É s tu o p ro fe ta ? E re s p o n d e u : N ão . 22 D is­
se ra m -lh e , p o is: Q uem é s? p a r a p o d erm o s
ungido de Davi (Is.9:2-7; 11:1-9), mas
d a r re s p o s ta a o s q u e n o s e n v ia r a m ; que por Elias (Mal. 4:5,6) e pelo profeta
d izes d e ti m e s m o ? 23 R esp o n d e u e le : E u mosaico (Deut. 18:15, 18). Estas duas
sou a voz do q u e c la m a no d e s e r to : E n d i­ figuras veterotestamentárias tinham dei­
r e ita i o c a m in h o do S enh o r, co m o d isse o xado este mundo em situações inusitadas
p ro fe ta Is a ia s . 24 E os q u e tin h a m sido
e n v iad o s e r a m d o s fa ris e u s . 25 E n tã o lh e (II Reis 2:9-12; Deut. 34:5-12) e se espe­
p e rg u n ta ra m : P o r q ue b a tiz a s, pois, se tu rava que retornassem antes ou durante a
n ão é s o C risto , n e m E lia s , n e m o p ro fe ta ? nova era (cf. Mar. 8:28; 9:4).
26 R espo n d eu -lh es J o ã o : E u b a tiz o e m João repudiou qualquer conexão com
á g u a ; no m eio d e vó s e s tá u m a q u e m vós
n ão co n h eceis, 27 a q u e le q u e v e m dep o is
estas três figuras, destes atores principais
de m im , d e q u e m e u n ão sou d ig n o d e d e s a ­ do teatro messiânico. De modo insisten­
t a r a c o rr e ia d a a lp a r c a . 28 E s ta s c o isa s te, ele desviou a atenção de sua pessoa
a c o n te c e ra m e m B e tâ n ia , a lé m do Jo rd ã o (“Quem és?”), não porque as perguntas
onde J o ã o e s ta v a b atiz a n d o . não tivessem importância, mas simples­
Sugere-se uma situação de inusitada mente para que as pessoas atentassem
solenidade, com o anúncio de que uma para a elevada posição indicada por estes
comitiva oficial de autoridades sacerdo­ títulos. Como testemunha, o papel de
tais foi enviada, pela liderança religiosa João não era o de receber (v. 19-28), mas
judaica de Jerusalém, para um lugar o de dar títulos (v. 29-34)!
especial próximo ao rio Jordão (v. 28), Depois de negar as três propostas da
para averiguar a identidade de João (v. delegação judaica (v. 19-21), João apro­
19). É como se eles viessem intimar este veitou suas insistentes perguntas (v. 22 e
depoimento (v. 19, 22, 24, 25) como o 25) para fazer três distinções acerca do
primeiro testemunho do grande sofri­ seu ministério. (1) João mesmo não era o
mento pelo qual Jesus passaria em seu “Verbo” do Senhor, mas apenas uma voz
ministério (cf. 3: 1, 2; 5:19-47; 7:14-52; ou porta voz das Escrituras (Is. 40:3),
8:12-20; 9:13-34; 10:19-39; 11:45-53; convocando o povo para preparar uma
12:44-50), e como base para a acusação estrada reta para a chegada de Deus. (2)
formal que determinaria sua crucificação Ademais, ele batizava somente com
(18: 19-19:16). A introdução à resposta água, que não passava, obviamente, de
de João, no verso 20, é prefaciada por um rito exterior e antecipador, como
uma terceira fórmula Ele confessou e nSo uma espécie de purificação, que os sacer­
dotes e levitas usavam nos cultos do teológicos do Velho Testamento como
Templo. (3) Finalmente, ele não era dig­ aplicados ao ministério de Jesus pela
no, sequer, do trabalho próprio de um reflexão cristã antiga.
escravo, de desatar a correia da alparca, No judaísmo, o cordeiro ou um animal
do Messias oculto, quando ele aparecesse semelhante, como a cabra — era: (1) o
em glória. principal culto sacrificial na oferta Quei­
2) O Testemunho Positivo Sobre Jesus mada diária (Ex. 29:3-42) e em muitas
(1:29-34) ocasiões especiais (Núm. 28,29; Lev.
1-7); (2) a vítima que carregava os peca­
29 No d ia se g u in te Jo ã o v iu a J e s u s , que dos do povo no Dia da Expiação (Núm.
vin h a p a r a e le, e d is s e : E is o C o rd eiro de 29:7-11; Lev. 16:20-22); (3) ritualmente
D eus, q u e ti r a o p e cad o do m u n d o . 30 E s te é morto, assado e, então, comido na cele­
a q u e le d e q u e m e u d is s e : D epois de m im
v e m u m v a rã o q u e p a sso u a d ia n te d e m im ,
bração pascoal (Êx. 12:1-11); (4) o sím-
p o rq u e a n te s d e m im e le j á e x is tia . 31 E u bolo do silencioso Servo sofredor, que
n ão o c o n h e c ia ; m a s , p a r a q ue e le fo sse carregava as ofensas do povo e o pecado
m a n ife sta d o a Is r a e l, é q u e v im , b atiza n d o de muitos (Is. 53); (5) o carneiro apoca­
e m á g u a . 32 E J o ã o d eu o te ste m u n h o
d izendo: Vi o E s p írito d e s c e r do c é u com o
líptico, que conduziria vitoriosamente o
p o m b a , e re p o u s a r n e le . 33 E u n ão o c o n h e ­ rebanho de Deus (Enoque 90:38; Testa­
c ia , m a s o q u e m e en v io u a b a tiz a r e m á g u a , mento de José 19:8).
e sse m e d is s e : A quele so b re q u e m v ire s Uma visão diver^ificada_do cordeiro
d e s c e r o E sp írito , e so b re e le p e rm a n e c e r,
e sse é o q ue b a tiz a no E s p írito S anto. 34 E u estava bem presente em todas as três
m e sm o v i e j á v o s dei te s te m u n h o d e que grandes tradições subjacentes ao ministé­
e s te é o F ilh o d e D eus. rio de João: a cúltica, a profética e a
apocalíptica.
João não era negativo acerca de si
mesmo, por causa de um senso exagera­ Em todas estas variações de uso judai­
do de modéstia, mas por causa de ter co, entretanto, é importante observar
algo mais importante a dizer sobre Jesus. que nenhuma delas dá o antecedente
As negativas do primeiro dia, no versos prçciso de um cordeiro (amnos) que tira
19-28, sao agora equilibradas pelas afir­ o pecado do mundo. Jesus cumpriu mui-*"
tas das funções espirituais simbolizadas .
mações do segundo dia nos versos 29-34.
[
O forte sentido de uma dramática revela­ pelo cordeiro no Velho Testamento, em-J
ção nova é evidenciada pela ausência de bora a todas transcendesse. Ele era o J
qualquer referência geográfica local (em ) Servo que sofria como um cordeiro (At.
contraste com o v. 28) e pelo uso repetido \ 8:32-35), o verdadeiro sacrifício da Pás-
de termos para uma revelação visível: i coa (I Cor. 5:7), a oferta sem mácula (I
João viu Jesus vinSo, e gritou: Eis aí. Ele i Ped. 1:19) e o líder morto, mas vencedor
batizava com água, através do que Jesus ^(A poc. 5:6,12; 7:14,17; 17:14; 22;1,3).
poderia ser revelado a Israel. Ele viu Não podemos determinar agora quantas
(literalmente, “notou” ou “observou”) o destas visões foram reunidas em tomo do
Espírito descer como Deus prometera. conceito no pensamento do próprio João.
Por último, a base para todo o testemu­ Possivelmente, o evangelista pretendia
nho de João residia sobre sua solene elevar a alusão pascoal ao centro de sua
insistência: Eu vi (v. 34). reflexão (cf. 19:36 e Êx. 12:46). O leitor!
O conteúdo desta visão foi resumido cristão instruído que considera o Velho
numa série de afirmações positivas, que Testamento e celebra a Ceia do Senhor é
equilibraram as negativas dos versos 19- herdeiro de todos os múltiplos significa­
28. A primeira delas, o Cordeiro de dos que pertencem a este rico símbolo. I
Deus, que tira o pecado do mundo (v. A segunda confissão de João (v. 30)
29), ilustrou a fusão de vários temas era reminiscência de um dito já lembrado
no prólogo (v. 15). Embora o judaísmo 2. O Testemunho dos Primeiros Discí­
aceitasse sem problemas que qualquer pulos (1:35-51)
homem que viesse após um líder religioso
tornava-se seu subordinado, João insistiu Esta seção desenvolve, em três seg­
que entre seus seguidores estava um que mentos, o tema central de um testemu­
lhe era, como sempre fora, superior, nho, que penetra todo o trecho (1:19-51).
antes dele, no tempo e em dignidade. Primeiro, nos versos 35-37, o testemunho
Consciente de seu próprio papel limita­ de João, dado anteriomente no verso 29,
do, como testemunha, João estava tam­ é cuidadosamente repetido, com a transi­
bém convencido de que Deus enviara ção fundamental para uma nova série de
alguém maior, antes que ele ou outra confissões, que se seguem. Segundo, nos
pessoa soubesse de quem se tratava. versos 34-49, um grupo de discípulos
A terceira e mais importante confissão ultrapassa o trabalho preparatório do
(v. 31-33) centralizava-se no relaciona­ Batista, ao expressar sua aliança sob a
mento de Jesus com o Espírito, pois só o base de uma ligação pessoal com Jesus.
Espírito poderia revelar o Messias oculto Finalmente, nos versos 50 e 51, o próprio
já presente. Apesar de sua vocação profé­ Jesus profere o testemunho maior, acerca
tica, João não o conhecia, nem podia do futuro com ele, reservados aos seus
com o seu batismo simplesmente com novos seguidores.
água fazer com que Jesus fosse revelado a Desse modo, esta unidade se divide em
Israel (v. 31). Qualquer ritual externo, duas partes iguais (v. 35-42; 43-51), que
mesmo de origem divina, é de valor se constituem na realidade de ciclos
limitado sem a ação concomitante do paralelos, que descrevem como dois
Espírito. João, todavia, preferiu a pro­ pares de discípulos mencionados, junto
messa de que um dia veria a carne e o com uma pessoa cujo nome não é men­
espírito permanentemente unidos e nessa cionado, vêm a Jesus. Esta seqüência é
esperança ele batizou fielmente com tremendamente semelhante a Marcos 1:
água, até que o Espírito descesse de forma 16-20, onde primeiro Simão e André,
tão real como uma pomba, a voar e depois Tiago e João, foram chamados
repousar sobre Jesus. Este repousar do para seguir a Jesus. Estas apresentações
Espírito (cf. 3:34) significou que aquele estão na raia do método inalterado de
que tinha vindo batizaria (ministraria) Jesus em fazer adeptos e mostrar, de
não com água, mas com o Espírito San­ maneira a mais simples possível, os com­
to. O dom do Espírito Santo era a marca ponentes básicos de um compromisso
distintiva da nova dispens^ção, a ser cristão. É como se a narrativa dissesse:
inaugurada por Jesus (cf. 3:5-8; 3:34; 4: em várias situações, foi esta a forma pela
23,24; 6:63; 7:37-39). qual Jesus se tomou Senhor dos homens.
A confissão final, de que Jesus era o 1) André e o Outro Discípulo (1:35-
Filho de Deus, pode significar não outra 42)
grande afirmação de João, mas apenas
seu testemunho sobre a voz celestial ouvi­ 35 No d ia se g u in te J o ã o e s ta v a o u tr a v ez
da no batismo de Jesus, que autenticava a li, co m d o is d o s se u s d isc íp u lo s 36 e , o lh a n ­
do p a r a J e s u s , que p a s s a v a , d is s e : E is o
este como o “Filho amado” (cf. Mat.
C ord eiro d e D e u s; 37 a q u e le s d o is d is c íp u ­
3:17; Mar. 1: 11; Luc. 3:22). Uma im­ los o u v iram -n o d iz e r isto , e s e g u ira m a
portante variante textual substitui o Fi­ Je s u s . 38 V oltando-se J e s u s e v endo q u e o
lho por “o Eleito” (ou o Escolhido), se g u ia m , p e rg u n to u -lh e s: Q ue b u sc a is? D is­
talvez como um antigo esforço por tornar se ra m -lh e e le s : R a b i (q u e , tra d u z id o , q u e r
d iz e r M e s tre ) o n d e p o u sa s ? 39 R espondeu-
mais explícita a relação de Jesus com o lh e s : V inde, e v e re is. F o ra m , p o is, e v ir a m
Servo na descida do Espírito, no seu o nde p o u s a v a ; e p a s s a r a m o d ia c o m e le ;
batismo (Is. 42:1). e r a c e r c a d e h o ra d é c im a . 40 A n d ré, irm ã o
de S im ão P e d ro , e r a u m dos d o is que o u v i­ seqüência do seu encontro com Jesus,
ra m Jo ã o f a la r , e qu e s e g u ira m a Je s u s . uma testemunha. Ele encontrou imedia­
41 E le a c h o u p rim e iro a se u ir m ã o S im ão,
e d isse-lh e: H av em o s a c h a d o o M essia s
tamente o seu irmão carnal, porque já
(q u e, tra d u z id o , q u e r d iz e r C ris to ). 42 E o havia encontrado seu líder espiritual
levou a J e s u s . J e s u s , fix an d o n e le o o lh a r, (Messias é a palavra hebraica, e Cristo, a
d is s e : T u és S im ão, filho de J o ã o ; tu s e r á s palavra grega equivalente, para referir
c h a rh a d o C eias (q u e q u e r d iz e r P e d r o ) . alguém designado, por unção, para uma
Depois de ter dirigido um testemunho missão especial). A palavra-chave acha­
geral ao seu povo, Israel, João oferece o do (v. 41, 43, 45) evidencia uma singular
mesmo testemunho, dirigido agora espe­ experiência, em que todos os esforços
cificamente aos seus discípulos. É raro despendidos em descobertas humanas
alguém demonstrar uma convicção segu­ são associados ao reconhecimento da dá­
ra às massas e logo abrir mão voluntaria­ diva completa, que fora colocada “lá”
mente de seus adeptos. João, entretanto, por Deus, para ser descoberta.
não titubeou em desmantelar o seu movi­ André tinha já aprendido, com João
mento, em franca expansão, que lhe dera Batista (v. 36 e 37), que dar testemunho
fama e seguidores (cf. 3:22-30). Foi uma de Cristo jamais era tarefa completa,
marca de eficácia (de João como teste­ enquanto o ouvinte, além de ser teste­
munha, o fato de que dois discípulos seus munha, não houver sido conduzido à
ao ouvirem ele falar seguiram a Jesus. realidade viva descrita por seu testemu­
Logo estes atribuíram a este os muitos nho. Assim, ele não só compartilhou sua
títulos e grande honra que João recusara descoberta com Simão, mas também o
para si (cf. v. 20 e 41). levou a Jesus. Possivelmente, não foi
Note-se o cuidadoso equilíbrio entre a fácil, para este obstinado pescador, acei­
iniciativa divina e humana, no encontro tar o fato espetacular de que seu menos
de Jesus com seus dois primeiros discípu­ agressivo irmão, André, havia encontra­
los. Do lado humano, dois discípulos de do a suprema esperança dos séculos.
João agiram com decisão, depois de ouvi­ Além do mais, entusiasmos messiânicos
rem o seu testemunho e seguiram a Jesus, equivocados aconteciam com freqüência
num esforço por descobrir onde ele, um na Palestina.
Mestre itinerante, habitualmente ficava. Não obstante, quando Simão concor­
Ao mesmo tempo, o impulso inicial que dou em vir e ver por si mesmo, Jesus não
receberam de João (v. 37) radicava-se, o elogiou por sua resposta, mas, antes,
em última instância, na revelação de olhou para ele com um olhar penetrante
Deus a ele (v. 33), representando, assim e lhe deu um novo sentido de identidade,
um sinal divino. Ademais, Jesus respon­ na troca do seu nome. Antes ele se
deu à sua pergunta com um convite, definia em termos do passado, como o
Vinde e vereis, que lhes soou tão cativan­ filho de João. Agora iria compreender
te que aceitaram de imediato, embora já sua personalidade em termos do futuro:
fosse tarde (a décima hora situa-se por Tu serás chamado Cefas. Esta palavra
volta das 16 horas). aramaica, traduzida para Pedro do gre­
Quando a corrente viva das testemu­ go, não era um nome próprio muito
nhas começou a crescer, o mesmo equilí­ usado, mas um apelo forte que anuncia­
brio entre a iniciativa divina e a humana va Simão como um discípulo que se
se manteve de forma cuidadosa. A pri­ tornaria um “homem-rocha” (cf. Mat.
meira coisa que André fez foi comparti­ 16:18).
lhar, com seu irmão Simão, o grande Novamente, aqui, a reciprocidade da
“eureka” do evangelismo cristão: Have­ graça e da fé apresenta-se com clareza.
mos achado! Este discípulo protótipo de­ Simão veio a Jesus como conseqüência da
cidiu tomar-se voluntariamente, em con­ iniciativa de André. Jesus, por seu lado,
respondeu com a dádiva inesperada de também no âmago da chamada ao com­
uma nova identidade, para alguém que promisso, nos Evangelhos” Sinópticos
procurava tão ansiosamente por ele. Esta (exemplÔTMar. 1:17; 2:14; 8:34; 10:21)^
reciprocidade de tratamento, no encon­ Ela define discipulado em termos mais
tro divino-humano, caracteriza todo ver­ relacionais do que intelectuais, emocio-
dadeiro evangelismo. jiais ou funcionais. Não foram oferecP
dos a Filipe uma idéia para refletir, uma
2) Filipe e Natanel (1:43-51) palavra de ânimo para experimentar
ou uma tarefa para executar, mas uma
43 No d ia se g u in te , J e s u s re so lv e u p a r t ir
p a r a a G aliléia, e, a c h a n d o a F ilip e disse- pessoa a quem obedecer. Em lugar da lei
lh e : S eg ue-m e. 44 O ra , F ilip e e r a d e B et- das Escrituras Sagradas ou do ritual
sa id a , c id a d e de A n d ré e d e P e d ro . 45 F ilip e do Templo santo, Jesus ousou identifi­
ach o u a N a ta n a e l, e d isse-lh e : A c a b a m o s de car-se como a fonte da orientação para
a c h a r a q u e le de q u e m e s c r e v e ra m M o isés,
n a lei, e os p ro f e ta s : J e s u s d e N a z a ré , filho
Deus. Além do que, seus convites toma­
de J o s é . 46 P e rg u n to u -lh e N a ta n a e l: P o d e vam o futuro em conta. Seguir implica
h a v e r c o isa b o a v in d a de N a z a ré ? D isse-lhe em uma peregrinação livre e dinâmica,
F ilip e : V em e v ê . 47 J e s u s , v en d o N a ta n a e l não numa posição fechada e estática.
a p ro x im a r-se d e le , d isse a se u re s p e ito : O cristianismo não é um lugar para
E is u m v e rd a d e iro is ra e lita , e m q u em n ão
h á dolol 48 P erg u n to u -lh e N a ta n a e l: D onde permanecer, mas uma estrada para se
m e co n h eces? R espondeu-lh e J e s u s : A ntes caminhar num belo companheirismo
que F ilip e te c h a m a s s e , e u te vi, q u an d o com o “Líder” da vida (cf. At. 3:15;
e s ta v a s d eb aix o d a fig u e ira . 49 R espondeu- Heb. 12:2).
lhe N a ta n a e l: R a b i, tu é s o F ilh o d e D eu s, tu
é s R ei d e I s ra e l. 50 Ao q u e lh e d isse J e s u s :
A relação com Jesus, entretanto, não
P o rq u e te d is se : V i-te d eb aix o d a fig u e ira , tira uma pessoa do mundo, mas a envia
c rê s ? c o is a s m a io re s do q u e e s ta s v e rá s . com a responsabilidade de testemunhar
5 1E a c re s c e n to u : E m v e rd a d e , e m v e rd a d e aos outros. Assim, Filipe logo achou
vos digo q u e v e re is o cé u a b e rto , e os a n jo s a Natanael, um judeu das proximida­
d e D eu s subin do e d escen d o so b re o F ilh o do
h o m em . des de Caná da Galiléia (21:2), conhe­
cido de nós apenas no Quarto Evangelho
Ao deixar o cenário da Judéia, onde e que compartilhava, com ele, da fé de
João batizava (1:28), Jesus decidiu viajar um grupo de discípulos em formação.
pelo norte, para a Galiléia, um território Filipe diria: Nós o havemos encontrado,
amplamente pagão, sobre a~"penFería dà ' porque Jesus achara primeiro Filipe.
Palestina judaica (o nome Galiléia sieni- O conteúdo do depoimento que identi­
fica literalmente “círculo dos gentios” ficou Jesus como aquele de quem escre­
òu “distrito de estrangeirõs^TTOTêncon- veram Moisés, na lei, e os profetas pode
trou Filipe, um judeu de nome grego e ser uma alusão específica ao profeta
procedente de Betsaida, cujo berço esta­ mosaico descrito em Deuteronômio
va numa cidade fortemente helenizada, 18:15-18 (cf. Deut. 34:10), embora seja
sobre a margem norte do M ar da Gali­ mais comum apenas apresentar Jesus
léia. Talvez Jesus tivesse sido levado a como o cumprimento de todo o Velho
Betsaida (literalmente, “casa do pesca­ Testamento.
dor”), por ser a cidade de André e Pedro. A identificação da esperança bíblica
De qualquer modo, encontraria lá cida­ preferida com um homem Jesus, conhe­
dãos cosmopolitas, capazes de fazer a cido apenas como o filho de José, da
mediação entre os mundos judaico e o obscura vila de Nazaré, inspirou Nata­
grego (cf. 12:20-22). nael para a réplica incrédula: Pode haver
A chamada de Filipe, como registrado coisa boa vmda de Nazaré? Uma vez que
aqui, foi reduzida ao seu elemento mais a rivalidade entre as cidades era prover­
essencial: Segue-me. Esta frase consta bialmente forte, Natanael pode ter reve-
lado institivamente o desprezo de Caná uma referência possivelmente ridicula-
pela vizinha Nazaré. Mais provavelmen­ rizadora (cf. 6:42; 8:19,41), mas com
te, porém, reagiu como um estudioso o Filho de Deus, um título relacionado,
sério das Escrituras, que sabia que ne­ no Velho Testamento, com o Rei de
nhum filho de José de Nazaré, fora ante­ Israel (Sal. 2:7). Para Natanael, Jesus
cipado nas promessas das Escrituras (cf. tornou-se o grande mestre (Rabbi), com
7:41,52). De qualquer modo, a resposta quem estudaria as Escrituras debaixo da
de Filipe possibilitou uma resposta di­ figueira, e o Messias real, que inaugura­
reta, sem o preconceito prejudicial ou o ria uma nova era de paraíso, em que a
literalismo bíblico: Vem e vê. “árvore do conhecimento” floresceria.
A estratégia de Jesus mostrou-se mais A confissão feita por Jesus foi ainda
interessante do que a de Filipe. Tão logo mais supreendente do que a exaltada
viu Natanael aproximar-se dele, ele o exclamação de Natanael. Agora que o
elogiou, este que era exatamente aquele mestre estava certo da adesão total dos
que desprezara suas origens: Eis um seus discípulos, poderia conduzí-los para
verdadeiro israelita, em quem não há além dos fundamentos judaicos, sobre o
dolo! Esta imagem do modelo do judeu qual a sua fé primeiro sè baseara. Pois na
piodoso confrontou Natanael com o mais realidade, ele não veio apenas para
profundo sentido de sua identidade, com cumprir o Velho Testamento, conforme
o estilo de vida que tão insistentemente interpretado pelo pensamento judaico
buscava igualar. Não é de admirar-se, contemporâneo, mas para realizar coisas
então, que, diante de revelação tão fan­ maiores do que estas.
tástica, de seus próprios anseios, tenha Aqui, como em Cesaréia de Filipe
exclamado: Donde me conheces? (cf. (Mar. 8:29,31), Jesus se opôs a uma in­
2:25) terpretação tipicamente judaica, de sua
A chave desta claravidência era algo missão, compreendida em termos de um
que Natanael desejava muito. Jesus pôde messianismo político, que substituirá o
identificá-lo como a verdadeira incorpo­ conceito mais espiritual do Filho do
ração da religião veterotestamentária, homem, desenvolvido na última parte do
porque o viu debaixo da figueira. Esta Velho Testamento. Mais ainda, ele rela­
referência, seja estendida num sentido cionou este título com a conhecida his­
literal ou simbólico, tratava das condi­ tória do sonho de Jacó, em Betei, em
ções espiritualmente ideais para o estudo que, por uma escada que tocava os céus,
da lei de Deus (Miq. 4:4; Zac. 3:10). os aitfos de Deus subiam e desciam (Gên.
Jesus atribuiu um significado extremo a 28:12). Uma diferença decisiva, no en­
um estudo sincero das Escrituras por tanto, está na afirmação de que o Filho
aqueles que buscavam com sinceridade do homem era a própria escada. Jesus
o reino messiânico da paz (cf. 5:39,46). se apresentou como o canal pessoal da
Jesus tinha compreendido e atingido revelação entre Deus e o homem.
de modo tão perfeito os profundos an­ Para os discípulos, o ponto crucial
seios de lealdade de vida de Natanael, desta apresentação estava na promessa,
que a dúvida neste, deu lugar à fé confes­ duas vezes repetida, vereis, mais tarde
sada assim: Rabi, tu és o Filho de Deus, reforçada pela solene fórmula introdu­
tu és Rei de Israel. As origens terrenas tória, Em verdade, em verdade. Não se
foram esquecidas, como se Jesus estivesse tratava de uma “volta a Betei” , experi­
num contexto inteiramente novo. Foi ele, ência na qual todos os verdadeiros isra­
então, visto não como procedente de elitas, como Natanael, eram convidados
Nazaré, mas como alguém de quem es­ a sonhar os sonhos dos patriarcas anti­
creveram Moisés, na lei, e os profetas. gos. Ao contrário, a afirmação era que
Não era mais visto como o filho de José, sua peregrinação futura de discipulado,
que fora apenas um sonho para Jacó, se quia da burocracia judaica, enquanto os
transformaria em realidade visível para Sinópticos apresentam-no num cenário
eles. Não era mais necessário esperar mais provinciano e rural, envolvido com
muito. Como indica o versículo seguinte os líderes locais da religiosidade judaica
(2:1), somente três dias depois eles co­ popular.
meçaram a perceber que os céus tinham- Em sua sequência literária, João,
se aberto permanentemente e foram capítulos 2 a 12, parece ter surgido de
unidos à terra na pessoa de Jesus. Esta "um núeleõ de histórias de milagres reu­
idéia de Jesus, como o elo aberto entre nidas nnmrf “fonte de. sinak” Pelo me­
céus e terra, como aquele que tornou nos é o que sugere a enf ática enumeração
realidade os sonhos do passado, domina dos sinais em 2:11 e 4íS4, como também
o resto do Evangelho, particularmente as insistentes referências a milagres em
o “livro dos sinais” . Desse modo, 1:51 1:50,51 e em 20:30,31 (cf. 12:37), prin­
serve, na realidade, como um texto para cipalmente se esses versículos original­
tudo que se seguirá nos capítulos 2 a 12. mente prefaciaram e concluíram tal
fonte. Muito embora João, capítulos 2
Primeira Parte: O Livro dos Sinais a 12 incluísse menos relatos de milagres
2:1-12:50 do que qualquer registro sinóptico, eles
são apresentados numa forma literária e
O Evangelho de João se divide em duas teológica elaborada não vista em ne­
grandes partes, capítulos 2 a 12 e 13 a 20, nhuma parte dos outros Evangelhos.
servindo o capítulo 1 como introdução Muitos comentaristas acham que os
e o 21 como conclusão. Esta estrutura sinais, nos capítulos 2 a 12, se tornaram
literária corresponde ao duplo movi­ mais comoventes por terem sido redu­
mento teológico do Evangelho, que des­ zidos a sete, número que, na mentali­
creve a “ descida” e a “subida” do Logos dade bíblica, geralmente significa pleni­
encarnado, numa “parábola de reden­ tude. Podemos, então, apresentar os sete
ção” entre os céus e a terra. A primeira sinais: a transformação de água em vinho
parte ocupa-se do mistério público de (2:1-11), a cura do filho do oficial (4:
Jesus ao velho Israel, enquanto, a segun­ 46-54), a cura do homem paralítico
da, trata fundamentalmente de seu mi­ (5:1-9), a multiplicação dos pães (6:1-
nistério particular ao novo Israel (cf. 15), a caminhada sobre o mar (6:16-21),
o sumário, em 1:11,12). a devolução da vista a um homem cego
João, capítulos 2 a 12, diferentemente de nascença (9:1-7) e a ressurreição de
dos Sinópticos, centraliza as atividades Lázaro (11:1-44).
de Jesus no sul de Jerusalém, e não no No entanto, a palavra sinal (sémeion)
norte de Cafarnaum. A conseqüência não é referida em dois desses episódios
disso é o aumento das diferenças entre (5:1-9; 6:16-21), ao passo que o plural
os dois relatos, o que é melhor entendido sinais (semeia) é usado em vários outros
se aceitar-se que João trabalhou, basi­ acontecimentos (2:23; 3:2; 6:2; 6:26;
camente, a partir de fontes da Judéia, ao 7:31; 9:16; 11:47; 12:37). Assim, de duas
passo que os Sinópticos usaram, em sua uma: ou o número exato de sinais não
maioria, material proveniente da Gali- teve qualquer importância ou estes sete
léia. sinais foram desenvolvidos de uma fonte
Os dois enfoques não se completam mais antiga e mais simples, que se referia
nem se contradizem propositalmente, genericamente a muitos sinais.
mas seguem linhas bem independentes. O conteúdo de João, capítulos 2 a 12,
*■-= - ' '• ~ I | ir*
João, capítulos 2 a 12, por exemplo, indica_a recusa iudaica do Messias, em
coloca Jesus num cenário mais cosmo­ três estágios sucessivos, jr r tfliêíforyãs
polita e urbano, em luta contra a hierar­ capítulos f T T i n S E m a bol recepti­
vidade que teve como portador dos Do ponto de vista da forma, 2:1-4:54
poderes da nova era (2:11,23; 3:2,26; é uma das seções mais cuidadosamente
4:l,45,53)(j5èjxn§^ nos capítulos 5 a 10. organizadas do Evangelho. Ela começa
a entusiástica, embora superficial acei- (2:1) e termina (4:54) propositadamente
taçao, muda para um tom de opinião na Galiléia, o que pode evidenciar o
conflitante ^e_de_Jiostilidade profun da conhecimento do enfoque sinóptico. Os
(5:16,18,43; 6:41,52,66; 7:1,12,13,19, relatos de abertura e conclusão em Caná
20,25,30-32,43,44,48; 8:13,37,59; 9:16, servem como grampos que permitem à
22; 10:19,21,31,39). (finalmente^ nos seção inteira formar uma unidade lite­
capítulos 11 e 12, o ritmo da. apologética rária. Entre eles estão quatro ' outros
se acelera rapidamente, até que uma incidentes, localizados em Jerusalém,
decisão irrevogável é tomada, para des­ Judéia e Samária. A rápida sucessão de
truir Jesus, e se completa a ruptura entre seis narrativas é prevista para dar um
ele eT srael (11:8.16.50.53.54.57: 12: impacto ainda maior, na intenção de
7,24,33,37,42,48). Em nenhum lugar do confrontar o leitor com uma ilustração
Novo Testamento se analisa de modo tão abrangente da era agora manifesta. Em
profundo como aqui a dinâmica da de­ todos os casos, o dramático relato da
cisão e a ironia da rejeição. Embora de obra redentora de Jesus é alternado com
perspectiva diferente, o problema aqui uma palavra interpretativa, pelo evan­
é o mesmo que angustiou Paulo, de gelista, que procura dar, ao leitor, uma
acordo com Romanos 9 a 11: Por^queji oportunidade de pausa para reflexão
religiãoAg.goloça* à£vezes,_comp o maior (cf. 2:11,12; 2:21-25; 3:16-21; 3:31-36;
obstáculojpara a fé em Cristo?^ 4:43-45; 4:54).
O propósito de 2:1-4:54, na estrutura
I. A Chegada do Revelador do Evangelho, pode ser compreendido
(2:1-4:54) com base em sua relação com a seção
preparatória que a antecede (1:19-51).
Todos os Sinópticos começam com Lá, a pessoa de Jesus foi elucidada pela
uma elevada introdução teológica, se­ atribuição, a ele, de dez títulos muito
guida de uma seção geral, sobre o pode­ comuns na evolução do Velho Testa­
roso início do ministério público de Jesus mento e na devoção dos primeiros cris­
(cf. Mat. 4:23-9:34; Mar. 1:14-45; Luc. tãos. Aqui, a obra de Jesus é resumida
4:16-44). Todos concordam em que o em seis narrativas altamente simbólicas,
começo na Galiléia foi bem sucedido, que relembram a forma como ofereceu,
embora não tenha estado ausente um ao judaísmo, as profundas realidades
tom de incompreensão. O Evangelho de espirituais, antecipadas por sua velha
João levou este modelo de apresentação a religião. Um sentido de plenitude per-
um clímax, ao seguir, sua majestosa vade toda a seção.
introdução (1:1-51), com um claro relato É muito interessante, porém, que estes
(2:1-4:54) da nova era anunciada por sinais da consumação da esperança de
Jesus. Esta última seção serve como um Israel não vieram de forma catastrófica,
comentário vivo a 3:17. A oferta inicial como muitos judeus supunham que
de Deus, ao homem, é a salvação, e não viriam, mas lhes abriram os olhos da fé.
a condenação. A primeira palavra do Em todas as seis partes desta seção, a
Evangelho é sempre graça, e não juízo. A fé é apontada como ponto crucial da
rejeição de Jesus, mostrada nos capítulos resposta humana à atividade salvadora
5 a 12, foi essencialmente uma conse­ de Jesus (cf. 1:7,12).
qüência da resistência humana à oferta Em Caná, os discípulos não se alegra­
de uma nova maneira de viver, apresen­ ram com a nova porção de vinho, mas
tada nos capítulos 2 a 4. “creram nele” , que isto fizera (2:11).
A purificação do Templo só teve razão de ram, depois de vários momentos, a uma
ser, para eles, depois da ressurreição, fé profunda (4:15,19,29,39,42). Final­
quando “creram na Escritura, e na mente, os últimos três níveis de fé são
palavra que Jesus havia dito” (2:22). identificados na história do oficial de
Nicodemos foi desafiado a crer nas Cafarnaum (4:48,50,53).
“coisas celestiais” (3:12), isto é, a ter Isto não quer dizer, entretanto, que a
fé naquele que “desceu do céu, o Filho fé seja sempre incompleta, uma tenta­
do homem” (3:13), pois somente aquele tiva feita na intenção de mostrar que a
que “nele crê tem a vida eterna” (3:15; verificação de que a relatividade da exis­
v. 16,18). João Batista insistiu que seus tência humana jamais poderá ser esta­
seguidores transferissem sua lealdade belecida. Antes, como 1:35-51 clara­
para Jesus, e este apelo foi reafirmado mente evidencia, a fé pode surgir como
pela declaração de que “aquele que crê uma convicção absoluta, mesmo quando
no Filho” já se livrou da ira de Deus estiver longe da maturidade. Assim como
(3:36). Jesus segou uma generosa co­ o verdadeiro casamento envolve a pro­
lheita humana quando “muitos sama- messa de votos irrevogáveis, por duas
ritanos... creram nele” , quer pelo tes­ pessoas cujo crescimento em direção a
temunho de uma mulher ou de sua uma entrega mútua e amadurecida já
própria palavra (4:39-42). Como um começou, o discipulado se baseia na fé
oficial “creu na palavra que Jesus lhe entendida como obediência total e como
dissera” (4:50), seu filho foi salvo da franqueza completa. Ê por isso que a
morte, gerando grande fé (4:53). ênfase sobre a fé, como um início deci­
Esta singular concentração sobre fé no sivo, em João, capítulo 1, deve ser sem­
clímax de cada unidade mostra a impor­ pre equilibrada com a ênfase sobre a fé,
tância da fé para a salvação e seu caráter como uma peregrinação interminável,
essencial de abertura obediente para os em João capítulos 2 a 4.
poderes da nova era, agora manifestada
no ministério de Jesus. 1. A Nova Alegria (2:1-12)
Mais do que isso, esta fé é descrita
sempre, em João mais pela forma verbal A referência a “Três dias” (2:1), no
(pisteuein) do que pelo substantivo início desta passagem, faz a ligação com
(pistis), nunca usado. Isto significa que a seção anterior. Lá, Jesus tinha reunido
o ato de crer é visto fundamentalmente um grupo de seguidores, que confessa­
como uma resposta mais ativa do que ram crer que a esperança messiânica de
uma atitude imutável. É isto que explica Israel se cumpria nele (1:36,41,45,49).
por que a fé é freqüentemente apresen­ Dificilmente compreenderiam eles, no
tada com um processo, em João, capí­ entanto que este processo começaria em
tulos 2 a 4. apenas “ três dias” , uma expressão bí­
Segundo a resposta da fé em Caná blica usada para indicar um curto perío­
(2:11), os discípulos só passaram a com­ do de tempo (ex. Os. 6:2). Logo depois
preender o significado da purificação do de Jesus ter garantido, aos discípulos,
Templo depois de um longo processo de que veriam “coisas maiores” (1:50),
reflexão e de estudo bíblico (2:17,22). este apocalipse, ou visão dos “céus aber­
Nicodemos foi convidado a passar da fé tos” , começou a ser entendido (cf. Mar.
nas coisas terrenas para a fé nas coisas 14:62).
celestiais (3:12). João Batista procurou Estamos diante de um primeiro mo­
diminuir a dedicação para consigo mes­ mento do uso criativo da expressão “três
mo e aumentar a dedicação para com dias” , para sugerir a rapidez com que
Jesus (3:22,23,26,30; 4:1). A mulher Jesus, parecia, que estabeleceria a nova
samaritana e seus compatriotas chega­ era (cf. 2:19; Mar. 8:31). Esta forma de
expectação iminente esteve presente em implícito. Não podemos determinar, por
todo o seu ministério. exemplo, se foi uma discreta sugestão de
que o tempo chegara ou, já que esta
1) O Primeiro Sinal: Ãgua Transforma­ narrativa ocupa uma posição, em João,
da em Vinho (2:1-11) semelhante à da tentação, nos Sinópti­
1 T rê s d ia s d epois, houve u m c a sa m e n to cos, se pode ter sido um impaciente
e m C a n á d a G a liléia, e e s ta v a a li a m ã e de esforço maternal de encorajar seu filho
J e s u s ; 2 e foi ta m b é m co n v id ad o J e s u s , co m a exercitar seus notáveis poderes. O
se u s d iscípulo s, p a r a o c a sa m e n to . 3 E ,
ten d o a c a b a d o o vinho, a m ã e d e J e s u s lhe
ponto importante é a compreensão, por
d is s e : E le s n ã o te m vinho . 4 R esp o n deu -lh e parte de Jesus, que ele e sua mãe pensa­
J e s u s : M u lh er, q u e te n h o e u co n tig o ? A inda vam de maneiras completamente dife­
n ão é c h e g a d a a m in h a h o ra . 5 D isse e n tã o rentes. Isto é indicado por todas as três
s u a m ã e a o s s e r v e n te s : F a z e i tu d o q u a n to partes de sua resposta.
e le vos d is s e r. 6 O ra, e s ta v a m a li p o sta s
se is ta lh a s de p e d ra , p a r a a s p u rific a ç õ e s (1) Ao dirigir-se a ela como mulher,
dos ju d e u s , e e m c a d a u m a c a b ia m d u a s ou ele não estava sendo grosseiro ou indi­
tr ê s m e tre ta s . 7 O rdenou-lh es J e s u s : E n c h e i ferente. O termo poderia significar uma
d e á g u a e s s a s ta lh a s . E e n c h e ra m -n a s a té resposta dura, como em 19:26. Antes, ele
e m c im a . 8 E n tã o lh e s d is s e : T ira i a g o ra , e
estava definindo formalmente seu rela­
le v a i a o m e s tre -s a la . E e le s o fiz e ra m .
9 Q uando o m e s tre - s a la p ro v o u a á g u a to r ­ cionamento, mais que na incrível per­
n a d a vinho, n ã o sa b e n d o d o n d e e r a , se b e m gunta sinóptica: “Quem é minha mãe?”
que o s a b ia m os s e rv e n te s q u e tin h a m tira d o (cf. Mar. 3:33). O uso de mulher, por um
a á g u a , ch a m o u o m e s tre -s a la a o noivo 10 filho, para se referir à sua mãe não tinha
e lhe d is s e : T odo h o m e m põe p rim e iro o
vinho b o m e , q u a n d o j á te m b eb id o b e m ,
precedentes no judaísmo. Em certo sen­
e n tã o o in f e r io r ; m a s tu g u a rd a s te a té a g o ra tido, ela teria que perdê-lo como filho,
o b o m vinho. 11 A ssim d e u J e s u s início a o s para encontrá-lo como Salvador.
se u s sin a is e m C a n á d a G a liléia, e m a n i­ (2) A expressão idiomática, que tenho
festo u a su a g ló ria ; e os se u s discíp u lo s
c r e r a m n ele.
eu contigo? não era um tratamento hostil
(cf. Juí. 11:12; I Reis. 17:18; Mar. 1:24;
A cerimônia festiva de casamento era Mat. 8:29), mas servia como uma de­
uma das ocasiões mais importantes e claração eficiente de independência,
alegres da vida da família judaica. Como como uma clara alusão de que ela não
os casamentos eram geralmente contra­ deveria reivindicar autoridade sobre ele.
tados com bastante antecedência, a mi­ Sua mãe não devia compreender o que se
núscula vila de Caná da Galiléia deve ter seguiu meramente como um esforço
antecipado ansiosamente esta celebra­ obediente de um filho em fazer a vontade
ção. Sem dúvida alguma, um grande dela.
número de amigos e parentes foi convi­ (3) Este surpreendente desinteresse foi
dado, inclusive a mãe de Jesus, da vizi­ motivado pelo fato de que sua mãe se
nha Nazaré. Como os festejos continuas­ preocupava com o estoque de vinho,
sem, ela percebeu a seriedade de um enquanto Jesus estava absorvido no seu
possível transtorno, quando as reservas destino vocacional, chamada, aqui, de a
do selecionadíssimo vinho começaram hora que não havia chegado (cf. 7:30;
a escassear. Dirigindo-se ao seu filho, 8:20; 12:23,27; 17:1). O que fizesse em
que também fora convidado e se fazia Caná deveria ter relação — como parte
acompanhar dos seus discípulos, ela integral — com o ministério que teria
pediu indiretamente a sua ajuda, ao seu clímax na cruz.
dizer-lhe que as talhas tinham-se esva­ Ã luz deste impasse entre mãe e filho,
ziado (v. 3). por que Jesus acabou por superar logo
Não há qualquer indicação sobre o pro­ sua repulsa e concordar em resolver o
pósito ou o espírito deste seu- pedido problema das reservas de vinho? Este
comportamento aparentemente incoe­ tirassem a água e a levassem ao mestre-
rente faz parte de um significativo mode­ sala. Que esta água devia ser tirada de
lo, sempre recorrente no Evangelho. um poço, e não das talhas de pedras,
Em 7:1-10, por exemplo, os irmãos de parece evidenciado por três razões, pelo
Jesus sugeriram-lhe que fosse a Jerusa­ menos: (1) a água originariamente co­
lém; ele recusou a proposta, mas depois locada nas talhas possivelmente acabara
foi. Novamente, em João 11:1-7, as irmãs por ter sido usada antes da hora, pelos
de Lázaro procuraram por Jesus; de convidados; (2) o verbo “tirar” (antleõ)
início, ele não atendeu, mas logo depois significa, geralmente, “tirar de um
insistiu em fazer a viagem. poço” , e é usado nesta acepção, neste
Estes não foram momentos de hesita­ Evangelho (cf. 4:7,15).8
ção da parte de Jesus, mas reflexos de Nesta linha, o simbolismo, indicado por
sua tríplice disposição: (1) não ser diri­ estas estranhas instruções, era coerente e
gido por pressões humanas, mesmo revelador ao mesmo tempo. As talhas de
quando fundadas em necessidades ver­ pedra representavam o sistema cerimo­
dadeiras; (2) mas, antes, relacionar seus nial judaico; o fato de serem seis pode
problemas à sua compreensão da von­ também indicar a insuficiência da velha
tade de Deus, e (3), ao mesmo tempo, ordem. Jesus, entretanto, não ignorava
tratar desses assuntos num nível mais esta herança, mas, antes, realizou-a
profundo do que poderiam imaginar (i. é: ao seguirem suas instruções, os
aqueles que estivessem com problemas. servos encheram as talhas até em cima).
Jesus não se mantinha indiferente diante Então, ao servir-se do poço, como uma
das indagações, mesmo as mais mun­ sétima e derradeira fonte, ele deu aos
danas ou mesquinhas. Ao contrário, servos, a oportunidade de prestarem uma
estava interessado em descobrir formas decisiva contribuição à festa. Esta não
criativas, pelas quais respondesse, a era água estagnada das talhas de pedra,
essas indicações, num contexto de re­ mas água viva, tirada de uma fonte
denção. abundante e corrente (cf. 4:14; 7:38,
Neste sentido, Jesus viu, no estoque de Jer. 2:13). Segundo esta interpretação,
vinho, uma oportunidade segura para Jesus teria querido mostrar, aos seus
ensinar, aos seus discípulos, uma ver­ discípulos, que estava preocupado com a
dade fundamental acerca de seu minis­ religião judaica, de outro modo, por que
tério. Com a cooperação graciosa de sua encher as seis talhas de pedra? (Note-se o
mãe, ele começou por instruir os servos paralelo dos doze cestos cheios, em
a encherem, com água, seis talhas de 6:13). Ao mesmo tempo, procurou indi­
pedra, tradicionalmente usadas, pelos car que podia ir além do sistema de
judeus, para banhos cerimoniais, a fim então, que previa a purificação através
de se purificarem de qualquer profa­ de práticas rituais.
nação pagã. Encher estes recipientes A lição final, para os discípulos, teve
até em cima deve ser entendido de forma lugar a seguir. O mestre-sala provou a
mais simbólica que prática, pois este não água e descobriu que ela se transformara
era costume então, já que os ritos judai­ em vinho. Sem nada saber a respeito dos
cos de purificação requeriam a imersão atos de Jesus, ele chamou o noivo de
da parte inferior de ambos es braços na imediato e, ao mesmo tempo que o re­
água (o sentido aparente de Marcos
8 A idéia de que a água tom ada vinho foi retirada do
7:3,4). poço, e não dos jarros, foi popularizada por B.F.
Embora os discípulos já tivessem fica­ Westcott, em The Gospel According to St. John.
do intrigados com procedimento tão (London, James Clark & Co., 1958, reimpressão da
edição de 1880), p. 37 e 38. Contestaram*na eruditos
estranho, seu assombro aumentou quan­ de renome, como C.K. Barreti, em The Gospel Accor-
do Jesus ordenou, aos servos, para que ding to St. John (London, S.P.C.K., 1955), p.160.
preendia, parabenizou-o por deixar o água em vinho foi absolutamente sin­
melhor para o fim. A partir daí, a desa­ gular. As diferenças fundamentais entre
nimada festa recebeu uma nova vida, o cristianismo e as religiões de mistério
como conseqüência da transformação estavam no próprio Jesus e na qualidade
operada por Jesus. da fé que ele despertou.
Mais importante que a mudança de O verdadeiro contexto para se com­
espírito, na festa de casamento, foi, na preender o simbolismo vinho-casamento
verdade, a mudança da fé por parte dos da história de Caná vem do Velho Testa­
discípulos. Eles entenderam que esta mento e do ministério de Jesus. Três
nova alegria, que começava a jorrar em temas dessas fontes se misturaram nesta
Caná, era apenas um sinal da glória narrativa de alto sentido teológico.
(significado divino) do próprio Jesus. (1) O vinho estava intimamente ligado
Assim, a resposta realmente valiosa que à alegria, tanto física como espiritual. Na
deram não foi o desfrutar do dom, mas criação, era uma dádiva de Deus para
o crer no doador. Para eles, Jesus era alegrar o coração (Gên. 27:28; Sal. 104:
muito mais que “a vida da festa’’. No gesto
15; Ecl. 9:7). Quando a terra era devas­
simbólico de Jesus, eles viram que um
tada e o vinhedo destruído, a alegria tra­
começo decisivo ou um novo princípio zida pelo vinho tornava-se uma espe­
tivera lugar, pelo que a alegria escato- rança futura (Os. 14:7; Jer. 31:12; Zac.
lógica da era messiânica se manifestava. 10:6,7). Na nova era, esperava-se que o
Observe-se que o incidente se concen­ Senhor fizesse uma festa de vinho, em
tra totalmente sobre o operador do mi­ sua montanha santa (Is. 25:6). Por isso,
lagre, e não no milagre propriamente. Jesus relacionou o reino com um ban­
O texto afirma, de modo simples, que quete ou uma festa de casamento (Mat.
a água se tornara vinho, mas não há 8:11; 22:1-10; 1-13; 26:29) e seus segui­
informação sobre como isto aconteceu. dores com os amigos do noivo (Mar.
Jesus também não comentou a forma da 2:19; cf. João 3:29). Para tristeza de cada
operação do milagre. O mestre de ceri­ estraga-festa religiosa, ele celebrava
mônias e o noivo nada compreenderam. abertamente a alegria da salvação de
O milagre em si ficou à margem do Deus com coletores de impostos e peca­
palco, fora dos refletores. Até os servos dores (Mat. 11:19). Ele derramou vinho
sabiam apenas de onde tinham tirado novo (Mar. 2:22) e ao mesmo tempo era
a água. Ao contrário da maioria das sua fonte (João 15:1). Em Caná, os dis­
histórias de milagres, não houve um cípulos viram que, quando Cristo inter­
reconhecimento público de que uma veio, os homens foram “surpreendidos
poderosa operação ocorrera. O relato pela alegria” (C.S. Lewis).
não interessa pelos métodos usados, para
transformar a água em vinho, mas (2) Relacionado com a ênfase sobre o
apenas pelos efeitos dessa mudança na vinho como alegria, estava o tema pró­
fé dos discípulos.9 ximo da abundância. Os profetas em
particular anteviram não só o “envio de
A modéstia com que é tratado o mila­
vinho” como uma dádiva divina (Joel
gre contrapõe-se claramente à história do
2:19), mas a sua profusa presença (Joel
culto a Dionísio (Baco), em que eram
2:24), quando as próprias montanhas
comuns os mais extravagantes anúncios
de produção sobrenatural de vinho. No “destilarão vinho doce” (Joel 3:18; Am.
mundo antigo, o comportamento de 9:13,14). Uma expressão pouco comum
informar apenas que Cristo transformou deste tema aparece em II Baruque 29:5,6
onde, no tempo vindouro, quando tudo
9 C.H. Dodd, Historical Tradition in the Fourth Gospel se consumar” (v. 3), e “o Messias come­
Cambridge, University Press, 1963), p. 223*228. çar a ser revelado” (v. 3), “a terra tam­
bém produzirá o seu fruto em dez mi­ 2) Â Visita a Cafarnaum (2:12)
lhares e em cada videira haverá mil
12 D epois d isso d e sc e u a C a fa rn a u m , e le,
ramos, e todo ramo produzirá mil cachos su a m ã e , se u s irm ã o s , e se u s d isc íp u lo s; e
e cada cacho produzirá mil uvas, e cada f ic a ra m a li n ã o m u ito s d ia s.
uva produzirá cor de vinho” (cor = 120
galões). Em Caná, o fato de os servos Esta breve notícia histórica estabelece
terem voltado ao poço, depois de já terem um claro contraste com a elaborada nar­
retirado água suficiente para encher seis rativa teológica anterior. Esta referência
talhas, com a capacidade de 80 a 120 mundana serve, entretanto, para recor­
litros cada (v. 6), mostra que o novo dar, ao leitor, que aquele que manifesta
vinho de Jesus é retirado de uma fonte sua glória através de obras poderosas
que jamais se esgota. (v. 11) não era uma aparição celestial,
mas um homem terreno, com mãe, ir­
(3) Ã luz destas ênfases sobre a alegria
mãos e discípulos, e que vivia em lugares
abundante, é de se estranhar que o vinho
determinados, como Cafarnaum. No
fosse também associado ao sofrimento
exato momento em que o caráter sobre­
e à morte. Não somente sua cor sugere
natural de Jesus parecia se evidenciar,
sangue, mas sua produção envolve o
o evangelista estava preocupado em dar
esmagamento do cacho de uva no lagar.
uma atenção igual à sua historicidade.
Beber os resíduos amargos do vinho do
Vários problemas surgiram desde o iní­
sofrimento era uma forma de castigo
cio, devido a esta transição editorial; os
divino (Sal. 60:3; 75:8). Jeremias reuniu
vários esforços para resolvê-los ficaram
esta imagem ao conceito próximo de
refletidos nos manuscritos mais antigos
copo (Jer. 49:12; cf. Is. 51:17,22), para
dar à admirável expressão “copo de disponíveis.
Primeiro, foram estes apontados aqui
vinho da ira” (25:15), um quadro vivo da
como “seus irmãos” (hoi adelphoi)
vingança de Deus relacionado ao poema
carnais, por terem a mesma mãe? (A
do lagar (Is. 63:1-6).
palavra seus é omitida de vários manus­
Jesus compreendeu as conseqüências critos e é de leitura difícil) A posição
explosivas de ofertar vinho novo num católica romana, da perpétua virgindade
sistema religioso que era frágil como o de Maria, exige a pressuposição de que
velho odre de vinho (Mar. 2:22). As­ eram filhos de um casamento anterior de
sim como João Batista fora tirado de José ou que eram primos de Jesus por
seus discípulos, Jesus passaria pelo mes­ parte de um irmão de José ou uma irmã
mo destino, e a alegria de seus convi­ de Maria. Embora a doutrina da virgin­
dados teria um fim abrupto (Mar. 2:20). dade perpétua de Maria tenha surgido
Em Caná, com receio de que sua mãe cedo, na história da Igreja, não há evi­
supusesse equivocamente, que a nova era dência para tal afirmação em o Novo
da alegria messiânica sobreviria sem Testamento. O quadro uniforme, nos
dificuldades, Jesus não transformou o Evangelhos, é que Jesus teve quatro
vinho até ser lembrado por ela de que irmãos carnais (Mar. 6:3), que são ge­
sua hora tinha chegado, a hora quándo o ralmente mencionados junto com sua
copo seria seu “sangue... derramado por mãe Maria (Mar. 3:31) e coerentemente
muitos” , até a morte (Mar. 14:24). A apresentados como não tendo crido nele
alegria que irrompeu em Caná teve curta durante seu ministério terreno. (João
duração, já que era mais a antecipação 7:5).
da alegria duradoura, que Jesus e seus Segundo, quem permaneceu em Ca-
discípulos conheceriam apenas quando famaum por não poucos dias? O “eles”
bebessem do “vinho no reino de Deus” da tradução da Imprensa Bíblica Brasi­
(Mar. 14:25). leira traduz uma leitura que inclui mãe,
irmãos e discípulos com Jesus, em sua mou o novo vinho da alegria messiânica,
breve jornada. Outros textos rezam que enquanto em Jerusalém ele desafiou o
apenas “ele” permaneceu, implicando velho odre de vinho de um tradiciona-
que Jesus saiu logo para Jerusalém lismo frágil. Ê irônico que na pequena
(2:13), mas que o grupo inteiro não foi Caná, na periferia do judaísmo Jesus
com ele. A confusão surge inicialmente tenha encontrado uma resposta obedi­
de uma comparação com a evidência ente, de servos humildes, enquanto, na
sinóptica em três pontos: (1) Jesus mon­ Cidade Santa, não conseguiu ser ouvido
tou seu quartel-general em Cafarnaum, pela alta liderança religiosa. Como resul­
para um longo ministério galileu, (2) sem tado, a alegria que nascera de uma sim­
sua mãe e seus irmãos, (3) depois de João ples celebração de casamento não pene­
Batista ter sido preso (Mat. 4:12,13; trou no pátio do culto. A seqüência,
Mar. 1:14,21,29; 2:1; Luc. 4:23,31). porém, tem sentido: alegria foi a pri­
Segundo João, entretanto, (1) ele nunca meira palavra do evangelho, demons­
fez de Cafarnaum a sede de seu trabalho, trando mais uma infinita misericórdia do
mas visitou-a uma única vez, (2) com sua que uma vingança severa no julgamento
mãe e seus irmãos, (3) antes de João que se seguiu.
Batista ser preso (cf. 3:22-24). No contexto maior, o lugar dado por
Duas importantes conclusões podem João à purificação do Templo, no início
ser tiradas dos dados. Primeiro, o Quarto do ministério público de Jesus, bem
Evangelho é amplamente independente antes da sua entrada triunfal (12:12-19),
dos Sinópticos, nos materiais sinópticos estabeleceu um claro confronto com a
usados para apresentar o ministério de apresentação sinóptica, onde está perto
Jesus. Depois, como apenas uma peque­ do fim do ministério público, após a
na porção do material relevante seria entrada triunfal (Mat. 21:1-13; Marc.
usada (20:30; 21:25), a estrutura do 11:1-10; Luc. 19:28-46). A hipótese tra­
Quarto Evangelho é basicamente tópica dicional de duas purificações parece im­
e teológica, e não cronológica e geográ­ provável para tão crucial evento, em cujo
fica. Isto significa que 2:12 pode pre­ caso a simples solução de aceitar ambas
servar um pouco de informação histó­ as datas fica excluída. Não devemos tam­
rica, independente do fato de que a bém optar por uma das datas, uma vez
família de Jesus estivesse intimamente que, ao organizarem seus materiais, nem
ligada ao seu ministério, antes de um João nem Sinópticos nutriam qualquer
período de desilusão que se iniciava preocupação cronológica.
(cf. 7:5; Marc. 3:21,31). Ao mesmo Desse modo, a purificação pode ter
tempo, este versículo fixa o tempo da sido colocada em lugares diferentes, na
permanência de Jesus em Cafarnaum narrativa evangélica, segundo estas duas
como se localizando apenas na primeira perspectivas, pela mesma razão, isto é,
fase do seu ministério. de sublinhar sua importância funda­
mental. Os Sinópticos colocam o inci­
2. O Novo Culto (2:13-25)
dente ao final, porque decidiram con­
Uma das imagens mais dramáticas e centrar todo o ministério de Jesus na
significativas desta seção é sua localiza­ semana climática final, e este era obvia­
ção na estrutura geral do plano do livro. mente o único contexto em que a ativi­
No contexto imediato, o ligamento de dade no Templo aconteceu. Ao proceder
purificação do Templo com a transfor­ assim, expressaram a convicção de que
mação da água em vinho equilibra admi­ todo o ministério de Jesus se encami­
ravelmente os temas dialéticos da alegria nhava para esta prova decisiva final,
e do juízo. Eis um comentário revelador que, por sua vez, precipitou a cadeia
de Marcos 2:22. Em Caná, Jesus derra­ de eventos relacionados com a cruz. Do
mesmo modo, João colocou este mesmo tu a c a s a m e d e v o ra r á . 18 P r o te s ta r a m , pois,
evento no início, devido à preocupação os ju d e u s , p e rg u n ta n d o -lh e : Q ue s in a l de
a u to rid a d e nos m o s tra s , u m a v ez q u e fa z e s
que sempre temos de dissociar o fim do isto ? 19 R esp o n d eu -lh es J e s u s : D e rrib a i
princípio. No que segue Jesus irá várias e ste s a n tu á rio , e e m tr ê s d ia s o le v a n ta re i.
vezes a Jerusalém — a maior parte do seu 20 D iss e ra m , p o is, os ju d e u s : E m q u a re n ta e
ministério terá lugar aí — e o fim con­ se is a n o s foi ed ific a d o e s te s a n tu á rio , e tu
o le v a n ta rá s e m tr ê s d ia s ? 21 M a s e le fa la v a
dutor de toda a controvérsia desenvol­ do s a n tu á rio do se u co rp o . 22 Q uando, pois,
vida a partir daí será sempre conhecido re s s u rg iu d e n tre os m o rto s, os se u s d is c í­
do leitor, desde este episódio. pulos se le m b r a r a m d e q u e d is s e ra isto , e
Enquanto a história de Caná aponta c re r a m n a E s c r itu r a , e n a p a la v r a que
para a cruz, através da imagem do vinho J e s u s h a v ia dito.
e da referência à “hora não chegada” , a Jesus aproveitava as grandes oportu­
purificação antecipa explicitamente o nidades históricas para confrontar Israel
tempo quando os inimigos de Jesus o com seu destino religioso. A Páscoa era a
“devorarão” (v. 17) e “destruirão” (v. maior celebração pública dos judeus, que
19). Isto leva a transformar a narrativa tinha lugar uma vez por ano na prima­
do Evangelho numa longa narrativa da vera, levando multidões de peregrinos
paixão. De uma perspectiva, Jesus pare­ devotos a Jerusalém. Numa estação em
ce estar constantemente em dificuldade que a sensibilidade espiritual alcançava
(veja o comentário sobre 1:19-28), en­ seus momentos mais elevados, entretanto
quanto, de outro lado, é o judaísmo que Jesus encontrou nos recintos exteriores
está em julgamento; isto é: Jesus está do templo, os comerciantes de animais
“purificando” (testando ou peneirando) sacrificados, que estavam vendendo bois,
o velho Israel, para que o novo Israel ovelhas e pombos, bem como os cambis­
pudesse emergir. Marcos indica o mes­ tas, que mediante uma taxa, trocavam a
mo ponto, ao principiar seu Evangelho moeda romana, com sua odiada imagem
com um ciclo de controvérsias (2:1-3:6), de César, por uma moeda tíria, com a
que termina com referência explícita à qual a taxa do Templo poderia ser paga.
paixão (3:6). O que todos os Evangelhos Esta atmosfera “comercial” , com seu
estão procurando mostrar é a certeza de abuso da piedade, em busca de lucro,
que Jesus não morreu por um acidente era tão incompatível com o fervor esca-
sem razão, mas que todo o seu ministério tológico de Jesus que ele fez um chicote
foi uma luta entre a vida e a morte, em de cordas... lançou-os todos para fora do
que seu compromisso, diante dos gran­ templo.
des problemas, acabou por selar seu A imagem de Jesus com um azour-
destino nas mãos daqueles que sabiam rague em suas mãos é uma das figuras
muito bem o que ele e eles estavam mais provocantes e perturbadoras dos
fazendo. Evangelhos. Os críticos têm distorcido
o episódio, dizendo que Jesus perdeu
1) A Purificação do Templo (2:13-22)
o equilíbrio, apelou para a força bruta,
13 E s ta n d o p ró x im o a p á s c o a d o s ju d e u s , perturbou o culto publico e por cima
J e s u s su b iu a J e r u s a lé m . 14 E a ch o u no contradisse os mais elementares princí­
te m p lo o s q u e v e n d ia m bois, o v e lh a s e p o m ­
b a s , e ta m b é m os c a m b is ta s q li se n ta d o s;
pios por que se bateu. Para responder
15 e , te n d o feito u m a z o rra g u e d e c o rd a s , a estas acusações infundadas, precisa­
lan ço u to d o s fo ra do te m p lo , b e m co m o a s mos esclarecer três pontos do relato.
o v elh as e o s b o is ; e esp alh o u o d in h e iro dos Primeiro, o chicote de cordas não tem
c a m b is ta s , e v iro u -lh es a s m e s a s ; 16 e d isse a crueldade do chicote de couro, como o
a o s qu e v e n d ia m a s p o m b a s ; T ira i d a q u i
e s ta s c o is a s ; n ã o fa ç a is d a c a s a d e m e u que hoje conhecemos. Como não era
P a i c a s a d e negócio. 17 L e m b r a r a m e n tã o os permitido, aos fiéis, levar varas ou armas
se u s d iscíp u lo s d e q u e e s t á e s c r ito : O zelo d a aos recintos do templo, o chicote deve
ter sido improvisado às pressas, mate­ com o culto foram expulsos, para que ele
riais disponíveis, nas adjacências, isto pudesse ter redescoberto o seu verda­
é, de talos usados no culto (algo seme­ deiro propósito, o de cultivar um zelo
lhante às palmas bentas atuais de nossos real pelo próprio Deus.
Domingos de Ramos) ou para alimento A palavra traduzida por devorará re­
ou cama dos animais. 10 feria-se não apenas à intensidade do zelo
Segundo, o texto grego bem repre­ sagrado interno, mas também a hosti­
sentado pela versão da Imprensa Bíblica lidade que este zelo provocaria externa­
Brasileira, em que se afirma: “lançou mente (cf. Sal. 69), pelo que ela pode
todos fora do templo, bem como as ser traduzida por “ destruirá” (confor­
ovelhas e os bois.” Jesus afugentou os me, por exemplo, a Nova Bíblia Inglêsa).
animais com uma vara ponteaguda e Jesus não açoitou simplesmente o Tem­
expulsou os homens com uma palavra plo como seu Senhor (cf. Mal. 3:1; I Ped.
igualmente pungente: “Tirai daqui estas 4:17); antes, estava desejoso de ser açoi­
coisas” . tado e destruído na condição de templo
Por fim, Jesus não interrompeu o vivo, através do qual a- glória de Deus
culto, mas procurou limpar o lugar onde tinha tabernaculado entre os homens
este seria realizado. Como este incidente (cf. v. 19a.).
se deu dentro dos limites do Templo, Sem o auxílio desta perspectiva bíblica
o comércio deve ter sido permitido na (Sal. 69), os judeus não poderiam com-
Corte exterior dos Gentios. Nessa área, prender a purificação, para a qual pe­
reservada para o culto a Deus por outras diam um sinal que legitimasse ato tão
raças, Jesus descobriu que a casa do arrogante. Em resposta, Jesus inverteu a
meu (não nosso) Pai tinha-se transfor­ ordem das coisas, ao dizer-lhes que eles
mado numa casa de comércio (literal­ mesmos destruiriam o Templo, caso se
mente, empório). Assim, num ato cheio recusassem a atentar para sua purifica­
de sentido escatológico, ele repudiou na ção; isto pois, aconteceria se continuas­
base um estabelecimento onde o co­ sem a fazer da casa de Deus um san­
mércio usurpara o lugar do culto e o tuário privilegiado do exclusivismo na­
sacrifício substituíra a misericórdia cionalista, em lugar de um centro aberto
universal. para a evangelização universal. Os ju­
Os discípulos ficaram tão chocados deus tinham acusado Jesus de ameaçar o
com o seu furioso ataque contra o Templo de Jerusalém, ao passo que ele
status quo eclesiástico, que buscaram a insistia em dizer que eram as suas prá­
Bíblia, para uma explicação. A pesquisa ticas que acabariam por levá-lo à ruína.
os capacitou a se recordarem de uma Nem isto, porém, impediria a realiza­
passagem, em Salmos 69:9, onde está ção final dos propósitos de Deus. No
escrito: “Pois o zelo da tua casa me curto espaço de três dias, em uma enig­
devorou” Jesus acabara de desafiar a mática referência à sua obra final de
instituição suprema da vida judaica, com morte e ressurreição (cf. Marc. 8:31),
um entranhado amor pelo verdadeiro Jesus, numa forma inteiramente nova,
propósito do Templo. Ele não pegou o iria colocar no seu devido lugar a reali­
chicote para conquistar, mas para puri­ dade que os judeus estavam querendo
ficar. Aqueles que nada tinham a ver destruir. Através de seu corpo, a Igreja,
iria transformar-se nó centro, em torno
10 A tradução da IBB da phrageilion ek schoinión para do qual todo o culto a Deus deveria ser
“azourrague de cordas” pode confundir o leitor. Phra- prestado. Isto significava que a catás­
gdlion vem do latim flagellum, que se refere a um trofe humana que sobreviria ao Templo
chicote para tanger gado. Scboinión é o diminutivo
de schoinos, que significa “ caniço'* e se refere a qual­ terreno — o que aconteceria em 70 d.C
quer pequena corda de caniços trançados. — não interromperia a continuidade
divina da presença de Deus entre os plo, mesmo que tenham sido colocadas
homens (cf. Marc. 14:58; 15: 29-30). cuidadosamente durante 46 anos!
A passagem termina com uma expli­
Diante de uma resposta enigmática,
cação do processo pelo qual os discípulos
de óbvia profundidade espiritual, os
perceberam o significado maior deste
judeus não encontraram resposta melhor
incrível acontecimento. Em síntese,
do que uma referência ao seu programa
sua fé se firmava numa fusão de “ des­
de construção! Herodes, o Grande, pla­
cobertas” de três fontes: (1) lembra­
nejara uma ambiciosa ampliação do
ram-se do que Jesus dissera quando
centro nacional de culto, entre 20 e 19
ainda vivo;
a.C. Desde então haviam passado 46
(2) voltaram ao Velho Testamento, e
anos (tomando-se a data de 26/27), e
creram na escritura que prepara para
o projeto total continuava inacabado e
não estaria pronto 40 anos depois! Uma esta transformação (exemplos: Am. 5:21-
comparação deste seu esforço monu­ 25; Jer. 7:1-15; Ez. 40-48; Is. 2:2-4;
66:1-4);
mental com o breve e insignificante mi­
(3) beneficiaram-se da interpretação do
nistério de Jesus, colocava uma questão
Espírito Santo, recebido quando ele res­
acerca de um dos últimos temas da reli­
suscitou dentre os mortos (cf. 14:16,17,
gião institucionalizada: poderia um
26; 15:26; 16:13,14. Em certo sentido,
homem que não estivesse imbuído de
toda a teologia cristã se baseia numa
zelo pela casa de Deus fazer em três dias
orientação formada a partir da herança
mais pela verdadeira adoração do que
de Jesus, da Bíblia e do Espírito do
todo o esforço dispendido por toda uma
Senhor ressurrecto.
nação durante 46 anos?
A resposta a esta pergunta teve que 2) A Reação à Purificação (2:23-25)
esperar o veredicto da história, dado pelo 23 O ra , e sta n d o ele e m J e r u s a lé m p e la
evangelista a partir de sua perspectiva fe s ta d a p á sc o a , m u ito s, v en d o os sin a is que
meio século depois (v. 21 e 22). O templo fa zia , c r e r a m no seu n o m e . 24 M a s o p ró p rio
a que Jesus se referia era o seu próprio J e s u s n ã o se c o n fia v a a e le s, p o rq u e os co ­
corpo. Na carne, este corpo seria des­ n h e c ia a to d o s, 25 e n ã o n e c e s s ita v a de que
a lg u é m lh e d e sse te s te m u n h o do h o m em ,
truído pelos adversários judeus, aniqui­ pois e le b e m s a b ia o q u e h a v ia n o h o m e m .
lando eles assim, o verdadeiro templo
onde a glória de Deus residia na terra Esta síntese editorial faz uma eficiente
(1:14). Mas quando ele ressuscitou den­ transição entre o relato da purificação e a
tre os mortos, a Igreja se tornou o corpo história seguinte, de Nicodemos. Ao
de Cristo. Durante os três dias de sua desafiar o santuário supremo, Jesus con­
morte e ressurreição, Jesus transformou clamou o imo do judaísmo a uma reno­
um grupo de discípulos judeus numa vação radical. Como, porém, uma reli­
comunidade universal, que constituia o gião antiga se livraria das estruturas tra­
próprio templo, onde todos os homens dicionais, acumuladas durante um mi­
poderiam cultuar a Deus sem as limita­ lênio de existência nacional? Esta seria a
ções que frustravam os elevados propó­ preocupação central do líder judeu, Ni­
sitos do Templo de Jerusalém (cf. I Cor. codemos, para ir ter com Jesus como
3:16, 17; 6:19,20; II Cor. 6:16; Ef. representante da religião estabelecida.
2:11-22; I Ped. 2:4-10; Heb. 10:19-22). A urgência desta visita foi instigada não
Ao rejeitarem o zelo purificador de Jesus, só pela tática de confrontação usada por
os guardiães do Templo escolheram, ao Jesus, no templo, como também pelo
contrário, um caminho que lhes traria apoio popular que tal protesto lhe trou­
a ruína, por mãos dos romanos, em sua xera: Ora, estando ele em Jerusalém pela
própria geração. Pedras não fazem tem­ festa da páscoa, muitos... creram.
Nicodemos, na realidade, refletiu este boa e, daí, fora do alcance da crítica.
amplo sentimento público em suas pala­ Ao dar valor absoluto à ação de Deus e
vras iniciais. Como muitos creram no seu valor relativo à reaçao do homem, este
nome, ele afirmou que Jesus era digno Evangelho dirige-se contra um disci-
dos títulos de “ Rabi” e “mestre que veio pulado temporário, baseado numa fé
de Deus” (3:2). Ademais, como muitos, instável (exemplo: 2:24; 6:66; 7:6-8).
vendo os sinais que fazia, creram, Nico­ Ao mesmo tempo, encoraja os crentes
demos também justificou os títulos superficiais a procurarem um compro­
dados a Jesus, argumentando que “ nin­ misso mais maduro, centrado no próprio
guém pode fazer estes sinais que tu fazes, Cristo (10: 37, 38; 14: 10-11; 20:29-31).
se Deus não estiver com ele.” (3:2).
3. O Novo Nascimento (3:1-21)
Mas o próprio Jesus não se confiava a
eles, diante de uma fé baseada apenas Esta passagem divide-se em duas par­
em sinais. Ele sabia que seria fácil tor­ tes: um diálogo histórico entre Jesus e
nar-se um herói popular. Outros tinham Nicodemos (v. 1-15) e um monólogo
conseguido a simpatia das multidões teológico do evangelista (v. 16-22). Em­
alegres ao protestarem contra a hierar­ bora seja difícil precisar onde uma parte
quia aristocrática do Templo, mas ele acaba e a outra começa, a Revised Stan­
não se satisfazia com uma fé assim tão dard Version deve estar certa, ao colocar
superficial. Porque conhecia os seus um parágrafo separando os versos 15 e
motivos interiores, Jesus não necessitava 16. Neste ponto, as referências a Jesus
do testemunho do homem, celebrado mudam claramente para o passado e
dentro dos limites de seus entusiasmos para a terceira pessoa, não fazendo mais
externos. Desse modo, não se impres­ nenhuma menção a Nicodemos. Este
sionou nem com as altas credenciais nem arranjo ilustra a característica funda­
com a confissão de Nicodemos; ao con­ mental do Evangelho como uma coleção
trário, respondeu, ao seu cumprimento, de eventos históricos únicos, arrolados
com um imperativo divino, que tocava segundo convicções contemporâneas do
em suas necessidades maiores. Como o autor.
encontro vai ilustrar, Jesus bem sabia Devido à sua natureza, estas duas
o que havia no homem! partes refletem uma tensão criativa entre
A espécie de fé com que muitos crêem a ambigüidade e a grandeza da fé. Na
(v. 23) é entendida como estando entre a situação histórica concreta (v. 1-15),
verdadeira fé, mostrada pelos discípulos Nicodemos ilustra, de modo coerente, a
em Caná (v. 11) e a absoluta falta de fé ambigüidade da resposta judaica oficial
encontrada entre as autoridades do ao ministério de Jesus (cf. o comentário
Templo em Jerusalém (v. 18). Este sobre 2:23-25). Embora incapaz de negar
Evangelho interessa-se por distinguir os a força do impacto exercido por Jesus,
vários níveis de fé e particularmente em sobre o povo, ou a autenticidade de sua
descrever um tipo de fé superficial, des­ motivação, como homem de Deus, Nico­
pertada pelos sinais que não iam além demos resiste em aceitar a radicalidade
do seu simbolismo exterior, e então das exigências de Jesus sobre as insti­
alcançar a substância espiritual interior tuições sagradas do judaísmo e sobre seu
e reconhecer em Jesus a verdadeira reve­ próprio papel como líder dos judeus.
lação de Deus (cf. 4:45,48; 6:26, 36; Dividido entre esta atração por Jesus
7:3-5). (3:2) e suas responsabilidades diante do
A clara preocupação de Jesus com a aparato religioso (cf. 12:42), Nicodemos
qualidade de fé apresentada serve como parecia manifestar uma probabilidade
corretivo à presunção popular de que de fé que vagava entre a coragem e o
qualquer tipo de fé é intrinsicamente medo (cf. 7:50-52; 19:38,39). Por isso,
jamais ficou claro se ele se tornou ou não com o c re r e is , se vos f a l a r d a s c e le stia is?
um cristão. 13 O ra , n in g u é m su b iu a o céu, se n ã o o q u e
d e sc e u do céu , o F ilh o do h o m em . 14 E ,
Na meditação que se segue (v. 16 a 21), com o M o isés le v a n to u a se rp e n te n o d e se rto ,
entretanto, não há lugar para uma fé que a s s im im p o rta q u e o F ilh o do h o m e m s e ja
fique no meio do caminho. A escolha é le v a n ta d o ; 15 p a r a q u e todo a q u e le que
clara: ou se crê e se alcança a vida eterna n ele c rê te n h a a v id a e te rn a .
(v. 16) ou não se crê e se entra na conde­ Em todos os Evangelhos, este diálogo,
nação (v. 18). Os dois parágrafos não se travado entre Jesus e uma pessoa espe­
contradizem, e, sim, refletem, antes, cificada, é o mais bem desenvolvido de
duas perspectivas diferentes. Num dado todos. Como Nicodemos é tão clara­
momento histórico, de uma perspectiva mente identificado, é possível traçar-se
humana, a fé pode parecer vaguear, uma clara imagem de sua personalidade
quando examina as evidências e luta e do propósito de sua visita. Como um
contra as forças inimigas. No retros­ dos principais dos fariseus, pertencia à
pecto da perspectiva divina, comparti­ fraternidade mais profundamente reli­
lhada pela comunidade de fé, porém, a giosa de todo o judaísmo. Como líder dos
decisão tomada é vista como tendo con­ judeus, integrava o supremo organismo
seqüências duradouras. O Quarto Evan­ jurídico permitido pelos romanos, o
gelho é profundamente realista, ao falar Sinédrio, encarregado da liderança espi­
de como os homens são geralmente con­ ritual e moral da nação. Como mestre de
frontados com uma decisão absoluta, Israel, era um teólogo preocupado com
que lhes parece, no entanto, uma situa­ a verdadeira compreensão e ensino da
ção altamente ambígua. revelação dada por Deus.
Como o relato destaca os grupos nos
1) O Diálogo com Nicodemos (3:1-15) quais Nicodemos exercia liderança,
1 O ra , h a v ia e n tr e o s fa ris e u s u m h o m e m conclui-se que ele veio visitar Jesus não
c h a m a d o N icodem os, u m dos p rin c ip a is dos apenas como uma pessoa isolada, mas
ju d e u s . 2 E s te foi te r co m J e s u s , d e n o ite, e como um representante da religião judai­
d isse-lh e: R a b i, sa b e m o s q u e é s M e stre , ca estabelecida. Não teria sentido investi­
vindo d e D e u s; pois n in g u é m p o d e fa z e r gar a vida de um jovem desconhecido e
e ste s sin a is que tu fa z e s, se D eu s n ã o e s tiv e r
co m e le . 3 R esp o n d eu -lh e J e s u s : E m v e r ­ ignorante, que de repente aparecesse
d a d e , e m v e rd a d e te digo q u e , se a lg u é m diante de um mestre popular que atraía
n ão n a s c e r d e novo, n ã o p ode v e r o re in o muitos adeptos (2:23), especialmente de­
d e D eu s 4 P e rg u n to u -lh e N ic o d e m o s: C om o pois de sua dramática intervenção nos
pode u m h o m e m n a s c e r , sen d o v elh o ? P o r ­
v e n tu ra pode to m a r a e n tr a r no v e n tre d e negócios do Templo (2:13-20). O judaís­
su a m ã e , e n a s c e r ? 5 J e s u s re s p o n d e u : E m mo permitia variações nas crenças e prá­
v e rd a d e , e m v e rd a d e te digo q u e, se a lg u é m ticas individuais, mas não perdoaria um
n ão n a s c e r d a á g u a e do E s p írito , n ã o pode movimento popular que parecia ameaçar
e n tr a r no re in o d e D eu s. 6 O q u e é n ascid o
d a c a rn e é c a rn e , e o q u e é n a scid o do
os caros fundamentos da vida religiosa
E s p írito é e sp írito . 7 N ão te a d m ire s d e eu institucional (cf. comentário anterior,
te h a v e r d ito : N e c e ssá rio vos é n a s c e r de em 1:19,24).
novo. 8 O v en to s o p ra onde q u e r, e ou v es Não significa isto, todavia, que Nico­
a s u a v oz; m a s n ã o s a b e s d onde v e m , n e m demos era necessariamente hostil a
p a r a o nde v a i; a s s im é todo a q u e le q u e é
n ascid o do E s p írito . 9 P e rg u n to u -lh e N ico­ Jesus. Há quem sustente que ele veio
d em o s: C om o p ode s e r isto ? 10 R espondeu- numa visita de caráter puramente indi­
lh e J e s u s : T u é s m e s tr e e m Is ra e l, e n ã o vidual, posição reforçada pelo interesse
e n te n d e s e s ta s co isa s? 11 E m v e rd a d e , e m demonstrado por Nicodemos, em outra
v e rd a d e te digo q u e nós dizem o s o q u e s a b e ­
m o s e te s te m u n h a m o s o q u e te m o s v isto ; e circunstância (7:50,51; 19:39). As duas
n ão a c e ita is o nosso te ste m u n h o ! 12 Se vos abordagens não são incompatíveis, uma
fa le i d e c o isas te r r e s tr e s , e n ã o c re d e s , vez que Nicodemos pode ter contribuído
para esta situação, ao manifestar espe­ bulário religioso, sendo usado, em he­
cial simpatia pela causa esposada por braico, grego, latim e em muitas línguas
Jesus. De qualquer modo, Jesus tratou-o modernas, como uma expressão de con­
como uma pessoa isolada e como alguém firmação de uma verdade enunciada na
profundamente envolvido em desin- pregação, na oração ou no louvor. Só
cumbir-se de seu papel de líder. que, enquanto nós colocamos o “amém”
Diante destas situações tão diferentes, ao final de nossas convicções mais pro­
não surpreende ver-se um conflito básico fundas, Jesus o colocou no início de suas
de temperamento entre estes dois ho­ declarações mais graves, indicando,
mens, refletido em duas expressões con­ assim, que o que seria dito era divina­
traditórias, que pervadem toda a nar­ mente legitimado por sua própria auto­
rativa. ridade de porta-voz. Este uso distinto
De um lado, Nicodemos parecia estar deu, à fórmula, uma força equivalente à
preocupado com a arte do possível. Co­ da frase profética encontrada no Velho
meçou por admitir que Jesus podia fazer Testamento: “Assim disse o Senhor.”
sinais, ao que Jesus replicou que o mais Qualquer problema que Nicodemos sus­
importante era determinar se Nicodemos citasse, Jesus atendia com sua plena
podia ver ou não o Reino de Deus. De certeza de que a palavra do Senhor esta­
volta com a Palavra, Nicodemos per­ va sendo revelada através de suas exi­
guntou como poderia um homem atender gências.
à exigência de nascer de novo se não Esta diferença fundamental entre os
poderia entrar outra vez no ventre de sua dois homens é ainda mais esclarecida
mãe. A este dilema, Jesus respondeu que pelo uso que fazem dos pronomes du­
ninguém podia entrar no reino, se não rante o diálogo. A idéia aqui é que Nico­
nascesse divinalmente da água e do demos falou no plural, como represen­
Espírito. A indagação final de Nicode­ tante dos grupos dirigentes de onde
mos caracterizou sua atitude durante viera: “Rabi, nós sabemos.” Contra esta
toda a entrevista: Como pode ser isto? teologia do consenso, elaborada pelos
O verbo grego, traduzido por “pode” líderes do judaísmo, Jesus investiu com
(dunamai), aparece seis vezes, nos versos um potente singular: “Na verdade, na
2 e 9, como uma marca de um realista verdade, (eu) te digo” . Embora desa­
prático e cauteloso, se não cético, em fiasse Nicodemos diretamente (“Eu te
todos os esforços humanos em transfor­ digo”), com verdades que qualquer um
mar a natureza humana nesta vida. pode aplicar a si mesmo (“se alguém não
Por outro lado, ao falar, cheio de nascer”), Jesus ampliou sua fala para
autoridade divina, Jesus estava pouco incluir toda a liderança religiosa judaica.
preocupado com a capacidade humana. Isto fica claro na mudança de sua exi­
Diante das perguntas de Nicodemos, gência do singular para o plural: “Vós
com relação ao que o homem pode fazer, (isto é, todos vós) necessitais nascer de
ele fixou seu discurso no que Deus pode novo.” Como se dirigia a Nicodemos e,
fazer. Todas as três réplicas se iniciaram através dele, a toda a comunidade reli­
pela fórmula solene: Na verdade, na giosa, Jesus incluiu até o testemunho de
verdade, a repetição, em cada caso, ser­ seus próprios discípulos, sem afetar,
vindo para reforçar a afirmação que viria porém, sua autoridade: “Eu vos digo:
a seguir. nós dizemos o que nós sabemos’’.
No original, a palavra (amen) 11 é Se esta reconstrução da situação his­
um dos termos mais vigorosos do voca- tórica está correta, o episódio de Nico-
Jeremias, T he Prayers of Jesus, “ Studies in Biblical
11 P ara maiores detalhes sobre o am en, confira H. Thealogy” , 2d series, 6 (London: SCM Press, Ltd.,
Schlier, em K ittel, TDNT, I, p. 335-338; Joachim 1967), p. 112-115.
demos não se limitou a um encontro veniência para consumo do público. A
entre duas pessoas. Antes, envolveu Jesus hierarquia judaica não podia negar que
como líder de um movimento dinâmico Jesus realizara obras de evidente poder,
de renovação dentro do judaísmo, ins­ provando ao povo que Deus estava com
tando Nicodemos, guardião do aparelho ele, mas não tinha ficado claro, para os
religioso, a introduzir, na vida de Israel, estudiosos, o propósito preciso dos enig­
o poder do Espírito, já em operação no máticos sinais do seu ministério, tão dife­
seu meio. Esta insistente sugestão não rente (cf. Mar. 11: 27, 28; 12:14, 18, 28).
apenas prenunciou a confrontação pos­ Jesus — A descontinuidade entre as
terior da Igreja com a sinagoga, mas declarações de Nicodemos e a resposta
tambéçi antecipou a dinâmica pela qual de Jesus é flagrante. Jesus, por completo,
o povo de Deus seria constantemente não tomou conhecimento dos atributos
chamado ao reavivamento nas diferentes de seu distinto visitante, e, em vez disso,
fases de sua jornada. Para ser mais claro, confrontou-o com a única condição
a passagem é de crucial importância através de que, este, ou qualquer outra
para a questão da salvação individual, pessoa, perceberia o Reino de Deus nos
mas sua aplicação pode ser dirigida tam­ assuntos humanos. Era como se Jesus
bém para a transformação da vida reli­ tomasse a palavra de Nicodemos e a
giosa daqueles que são contados entre os restabelecesse sobre novos fundamentos.
líderes do Israel de Deus. A hora era grave demais para ser gasta
Como diálogo dramático, os versos em cumprimentos. Ele, ou outra pessoa
1-15 se constróem, com cuidado, em que tivesse ido à sua presença, para
tomo de três momentos, todos iniciados conhecer a essência da mensagem de
por Nicodemos e encerrados por Jesus, Jesus e o sentido do seu ministério, sairia
tendo como temas: (1) a exigência divina; com uma convicção simples: Se alguém
(2) a dificuldade humana; e (3) o cami­ não nascer de novo, não pode ver o reino
nho da libertação. de Deus.
Ao utilizar a analogia básica do nasci­
a. O Primeiro Momento (v. 2 e 3)
mento, Jesus lembrou, a Nicodemos, que
Nicodemos — A indicação de que a tudo o que vive se renova. Assim como
ocasião deste encontro se deu à noite a raça humana envelheceria e acabaria,
sugere que: (1) Nicodemos viera discutir se não nascesse criança, as instituições
teologia com Jesus, já que a noite era o religiosas de Israel, como o Templo,
momento, separado pelos homens ocupa­ por exemplo, logo ficariam senis, se
dos, para estudar a Lei, depois que o dia não fosse a dádiva de uma nova vida
de trabalho tivesse terminado; (2) a visita espiritual, proveniente de sua única
de um líder de tanto prestígio a alguém fonte: Deus. Por isso Jesus insistiu tanto
que acabara de purificar o Templo devia que o reino de Deus se destina somente
permanecer em segredo, por causa da àqueles que se fazem como crianças
controvérsia que suscitaria entre o povo; (Mat. 18:3; Mar. 10-15). O fato de maior
(3) ao visitar Jesus, Nicodemos vinha das significado, em tomo de um bebê recém-
trevas espirituais para a luz (cf. 13:30). nascido, é que toda a sua vida está diante
Fiéis a esta missão, as palavras de dele (cf. 1:13).
abertura do velho homem foram um Ao conclamar a uma nova vida, entre­
modelo de diplomacia e cautela, além de tanto, Jesus estava ferindo o orgulho
servirem como cumprimento. Ao admitir espiritual de um bom fariseu, como
que Jesus era um rabi ou mestre vindo de Nicodemos, que firmara sua confiança
Deus, Nicodemos sugeria, de modo religiosa no fato de ser “um hebreu
implícito, que eles discutiam as linhas nascido de hebreus” (Fil. 3:5). João Ba­
gerais de seu ensino, bem como sua con­ tista já desafiara os fariseus, os quais,
diante da catástrofe iminente, deveriam Para um velho, o fato mais)inexorável /
dizer a si mesmos: “Temos por pai a da vida é que o calendário não pode
Abraão” (Mat. 3:9). A iniciação pela retroceder, por mais que se queira.
circuncisão, na “ comunidade de Israel” Há quem ache que Nicodemos foi por
(Ef. 2:12), porém, não era suficiente demais estúpido, ao compreender “de
(cf. 1:11 com 1:13). Diante de um ho­ novo” como “outra vez” e não como “de
mem orgulhoso de sua formação reli­ cima” ; isto, porém, não era possível para
giosa, Jesus insistiu com ele que deveria um líder religioso acostumado a usar a
nascer de outra forma, não “da vontade linguagem simbólica. Outros enten­
do varão, mas de Deus” (1:13). Sem dem que ele tentou ridicularizar Jesus,
menosprezar o valor de uma sólida reduzindo seu ensino ao absurdo; isso,
herança religiosa, Jesus entendia que o no entanto, não encontra respaldo na
orgulho devido a uma genealogia era sinceridade por ele manifestada através
incorreto, que a descendência física não do Evangelho (cf. 7:50,51; 19:38,39).
garantia herança espiritual e que até Muito provavelmente, o procedimento de
mesmo o melhor cordão umbilical jamais Nicodemos era de incredulidade, diante
levaria Israel a Deus (cf. 8:37-44). do desafio de Jesus para ele começar
Da forma mais clara, os fariseus pres­ a viver tudo de novo. Um entusiasmado
sentiam que, no dia do Messias, toda a estrangeiro, com um punhado de discí-
nação seria renovada, pelo que chama­ pülos, poderia desejar novos empreen­
ram esta transformação de “renasci­ dimentos; isto, entretanto, não seria fádl
mento” (cf. paliggenesia, em Mat. 19: para um mestre de Israel, com respon­
28). Jesus porém, entendia que esta rea­ sabilidade diante dos fariseus e do si­
lidade escatológica tornava-se uma rea­ nédrio.
lidade concreta agora, numa pessoa real, Portanto, em seu contexto, a pergunta
e não depois, num tempo universal. de Nicodemos deve ter tido duas apli-
Toda a herança judaica do passado e a cações. Pessoalmente, era a réplica
esperança do futuro deviam ser perce­ ansiosa de um homem cujos hábitos esta­
bidas de modo pessoal, como uma nova vam cristalizados, cujo papel era clara­
possibilidade no presente. Os rabinos mente visível e cujas responsabilidades
geralmente comparavam a conversão de estavam definidas de modo preciso. Seu"
um gentio ao judaísmo como um “novo rproblem a não era a falta de interesse'pôF
nascimento” . Aqui, Jesus concitou j um novo nascimento, mas uma cons- í7 *
Nicodemos a entender que ser israelita \ ciência realista das dificuldades de se)
não era suficiente. O novo e decisivo libertar de anos de envolvimento no |
começo, exigido por Deus, era necessário status quo.
não apenas para os prosélitos pagãos, Profissionalmente, sua resposta pare­
mas também para os mais importantes cia relembrar, ao purificador do templo,"
e eminentes líderes religiosos de Israel. quê a religião de Israel era já velha e
estava comprometida como o peso da
b. O Segundo Momento (v. 4-8) tradição. [alvez Jesus tenha visto coí-
Nicodemos — A locução “de novo” Irupção no santuário, mas isto se formou
durante um milênio e não seria refor­
mado da noite para o dia. Refletindo
mais teológica do que metaforicamente,
cima” . O primeiro seritidíy parecia con~J Nicodemos queria indagar se a ordem
frontar Nicodemos com uma impossi­ escatológica realmente começaria a
bilidade; ele já era velho e nãó podia penetrar na ordem estabelecida, como
alterar o processo da vida, para entrar Jesus achava, ou se a velha primeiro mor­
uma segunda vez no ventre de sua mãe. reria, para depois a nova ter começo.
Jesus — Diante da pergunta de Nico- estas conotações, o que não é possível em
demos, que não era nem idiota nem português. Isto acontece, por exemplo,
irônica, mas relevante e profunda, Jesus em Ezequiel 37:1-14 onde Israel, no exílio
respondeu prontamente, esclarecendo (v. ll), fõTcompãrado a “oisos secos”
que nascer de novo significava nascer da (os espiriTuMffíenTé mortos) qu'e‘poJeiri
água e do Espírito. Quando enviaram “viver” (serem renovados) "quando o
representantes, para investigarem o dos quatro “ventos” vai em sua
ministério de (Joao)(l:19, 24, 25), os direção (v. 9), istoé., quando Deus coloca
fariseus aprenderam que ele batizava o seu “Espírito” dentro deles (v. 14). Ao
“com água” , em prenúncio dAquele que comentar o poder renovador do Espírito
batizaria “com o Espírito Santo” (1:26, Santo, Jesus não estava anunciando uma
31,33; cf. Mar. 1:8). Agora, um fariseu nova doutrina, mas tratando de um
se encontrava — diante de seus próprios problema tão velho quanto o exílio e nos
olhos! — com aquele sobre quem João mesmos moldes indicados pelas Escri­
falara, de modo que a renovação, pre­ turas, que Nicodemos e seus amigos
parada por João através da águá, sé conheciam tão bem.
tornara uma possibilidade presente, por É possível que, neste instante da con­
meio dê Jesus, como portador do Espírito versação, uma leve brisa tenha começado
(d. Ât. 1:5). 12 a soprar, dando-lhe o pretexto sobre o
Uma outra explicação, da pergunta de qual construir sua analopia do sopro/
Nicodemos, se obtém pela diferença fun­ vento/espírito,. Nicodemos. e claro, não
damental entre o domínio terreno da sabia de ondevinha nem para onde ia o
carne e o domínio celestial do espírito. vento, mas estava certo de sua existência
A natureza opera em seu próprio reino. real, porque podia ouvir o seu som. Do
Toda produção da carne (isto é, do ho­ mesmo modo, pode-se experimentar o
mem) é carne, que por sua vez, se desen­ efeito do Espírito sem que se compreenda
volve, envelhece e morre. Ser nascido do a sua origem ou o seu destino. Há uma
Espírito (isto é, de Deus), porém, é viver sõberania espontânea, tanto no domínio
espiritualmente numa esfera que trans­ do espiritual quanto dó físico: o vento
cende a ordem temporal. Nicodemos e soprava onde quer. Só Deus controla este
seus proeminentes amigos não deviam poder vital, pelo qual o povo de Deus não
ficar maravilhados diante deste tríplice fenece nem “dá seu último suspiro” ,
imperativo do novo nascimento pelo mas “respira novamente” e começa a
Espírito, uma vez que esta era uma espe­ viver de modo novo.
rança bem urdida em suas Escrituras
(exemplo: Is. 11:2; 32:15; Joel 2:28,29; c. O Terceiro Momento (v. 9-15)
Ez. 36:25-27). Nicodemos — Fiel ao realismo caute­
Neste momento, o diálogo passa len­ loso, que caracterizou sua participação
tamente da analogia do nascimento para no diálogo desde o início, Nicodemos
a n a l ^ ^ ^ ^ r á m a ^ ^ ^ ^ ^ já que a concluiu com a pergunta inevitável do
maior evidencia "da vida é a capacidade pragmático: Como pode ser isto? Pos­
de respirar. Tanto em hebraico (ruach) sivelmente, este gesto não significava
como em grego (pneuma), a mesma incredulidade, mas uma preocupação
palavra pode significar sopro, vento e verdadeira, pois Jesus tomou sua per­
espírito, permitindo um jogo sutil com gunta como séria. Talvez desejasse ele
uma lista de reformas específicas, que ele
12 Sobre as m uitas interpretações do v. 5, veja Ray e seus companheiros pudessem realizar
Summers, “ Born of W ater and the Spirit” , The Tea- no Templo. Nicodemos dificilmente
cher’s Yoke: Studies in Memory of Henry Trantham,
eds. E. J. V ardanian e J. L. G arret, Jr. (W aco: Baylor questionaria a afirmação de Jesus de que
University Press, 1964), p. 117-128. o Espírito de Deus operava o novo nasci­
mento, mas estava preocupado com a presença divina, a incorporação das
responsabilidade humana (judaica) de coisas celestiais.
sua realização.
Em outras palavras, crer não é o resul­
Jesus — Como mestre de Israel, Nico-
tado da subida do homem de algum
demos devia ser capaz de entender que
modo, ao céus, graças à sua ingenuidade
esta espécie de transformação jamais
espiritual, e de sua descida à terra com a
poderia ser empreendida por homens; o
fé que descobrir lá. Precisamente ao
máximo que estes poderiam fazer era
contrário, o Filho do Homem primeiro
dar testemunho do que Deus tem feito.
vem dos céus, traz Deus ao homem,
Ao mudar para o pronome no plural nós,
tornando para lá depois e levando o
Jesus envolveu seus discípulos, nesse
homem a Deus. Falando de modo figu­
testemunho, convidando, assim, Nico-
rado, o portão, para Deus, é um arco
üemos e seus companheiros (o vós, no
firmado de cima para baixo e ancorado
v. 11, também está no plural) a parti­
na eternidade, e não firmado debaixo
ciparem da vida comum, em que as
para cima e firmado na terra (cf. intro­
forças da nova era já estavam em opera­
dução a 1:1-18).
ção.
Mas, como Deus renovara este grupo Estes movimentos para cima e para
remanescente de discípulos? Como o baixo, do pêndulo divino, caracterizaram
judaísmo não aceitaria seu testemunho, todo o ministério de Jesus (cf. 1:51;
para uma transformação divina, Jesus 17:11,13), mas a descida foi definitiva­
procurou, através de um líder de valor, mente inaugurada com a encarnação e a
Nicodemos, levar este povo (as referên­ subida culminou com a expiação ou
cias a vós, no v. 12, estão no plural) a “elevação” na cruz. Aqui o inverso
crer, falando de coisas terrenas, isto é, divino do esforço humano alcançou seu
discutindo símbolos comuns, como paradoxo final. Os homens tentaram
ventre, água e vento, para ilustrar como subir pelos vôos do êxtase místico ou da
Deus age. Mas, se eles não podiam mes­ especulação apocalíptica, mas o Filho do
mo crer com base no que tinham visto, Homem teve de descer, deixando-se
como poderiam alcançar a realidade das “levantar” numa morte brutal que,
coisas celestiais invisíveis? paradoxalmente, era a sua glória maior.
A única resposta possível era compre­ Novamente, uma coisa terrena servia
ender que o próprio Deus resolvera o como analogia preparatória: a serpente
problema da mudança das coisas terre­ que Moisés levantou no deserto (Núm.
nas para coisas celestiais, ao inventar 21:9). E isto não passava de um símbolo,
o processo e fornecer algo maior que uma que se fez realidade na morte de Jesus.
analogia humana. Em última análise,
ninguém ascendeu aos céus (cf. 1:18), O diálogo termina com uma transição
isto é, o homem não pode alcançar a geral que, ao mesmo tempo, resume o
realidade' divina diretamente sem a ajuda ponto final da passagem e prepara para a
de Ilustrações comuns. Aqueles que meditação que segue. Todo aquele que
crêem mediante o auxífio de coisas ter­ cresce em coisas celestiais, a única forma
renas só conhecem a Deus indiretamente pela qual o novo nascimento pode come­
(anologicamente). Mas agora a verdade çar, deveria crer no Filho do Homem. Ele
última descera dos céus numa forma é o único em quem a analogia terrena
pessoal como o Filho do homem (cf. e a realidade celestial se encontra de
1:51). Ao contrário do vento, Jesus era modo perfeito. Assim, tornar-se seu
mais que uma metáfora sobre Deus. discípulo aqui e agora, num momento da
Embora descesse e assim se tornasse história, é, ao mesmo tempo, ter a vida
uma coisa terrena ele era o centro da eterna de Deus. »
2) O Monólogo do Evangelista (3:16-21) é verdadeiro e então venha para a luz.
Este parágrafo, portanto, se bate pela
16 P o rq u e D eu s a m o u o m u n d o d e ta l
m a n e ira que d eu o seu F ilh o u n ig én ito , p a r a unidade da teologia e da>aim onden}
que todo a q u e le que n ele c rê n ã o p e re ç a , Cristo, ao "representa-lo como a chave“|
m a s te n h a a v id a e te r n a . 17 P o rq u e D eu s tanto para a ação de Deus na conversão ^
enviou o seu F ilh o a o m u n d o , n ã o p a r a que
!
J u lg a s s e o m u n d o , m a s p a r a q u e o m u n d o
fosse salv o p o r e le. 18 Q uem c rê n e le n ã o é
como para a reação do homem em suaj
conduta.
ju lg a d o ; m a s q u e m n ã o c rê , j á e s tá ju lg a d o ; A iniciativa divina é, deste modo,
p o rq u a n to n ão c rê no n o m e do u n ig én ito interpretada pelo modo mais claro e
F ilh o d e D eus. 19 E o ju lg a m e n to é e s te :
a luz veio ao m u n d o , e os h o m en s a m a r a m abrangente do que nos versos 16 a 18.
a n te s a s tr e v a s q ue a luz, p o rq u e a s s u a s Apesar das muitas dificuldades que o
o b ra s e r a m m á s . 20 P o rq u e to d o a q u e le ministério de Jesus representava para o
que faz o m a l a b o rre c e a luz, e n ã o v e m p a r a judaísmo (2: 1543715), sua vida era uma
a luz, p a r a qu e a s s u a s o b ra s n ão s e ja m
re p ro v a d a s . 21 M as q u em p r a tic a a v e rd a d e dádivairresistível, fe ita p o F D e u s em j
v e m p a r a a luz, a fim d e qu e s e ja m a n ife sto j seüTflHõ (dtlT!4T, um ato de graça que ( *
que a s s u a s o b ra s são fe ita s e m D eu s. I visava fortalecer a fé, a fim de que até
1mesmo os líderes religiosos (como Nico-,i
NicodemosNestá agora totalmente fora \ demos, por exemplo) não perecessem.
3e cena, enquanto o escritor leva seus ' O fato de Deus prodigalizar seu amor
leitores a uma reflexão sobre o signifi­ a todo o mundo (Kosmos) que obvia­
cado de uma fé centrada inteiramentejia mente não o amava, ao invés de limitá-lo
pessoa de Jesus (v. 15 — '“nele crê”). ao seu povo escolhido, significava que a
A terminologia d~os versos 16 a 21 é graca eterna, derramada em Cristo, 7
^ac^niHcamen^~Io5ímiãr~sugennflb j a p - — ...................— -—
Tinha agõrã“'iIltrapassado os limites do
que d~êvarigdl¥tã~~mostra~~sua própria antigo concerto com Israel. (O amor
compreensão da grandeza de Cristo. O divino no Velho Testamento, chesed, era
parágrafo em muito se assemelha com o basicamente amor do concerto e não
resumo de um sermão sobre as palavras amor cósmico.) O propósito desse amor
de Jesus registradas em 12:44-50 (outros era que o mundo fosse salvo de seu
fragmentos podem ser' encontrados em perverso artíòr às trevas.ÇjCnsta^ com a
3:31-36). Deste modo, comenta não encarnacão do amor, perdoou e aceitou
apenas o episódio de Nicodemos, mas todos os homens que viessem a ele em
todo o ministério de Jesus como apre­ fé, libertando-os', assim, do temor dõ
sentado no “livro dos sinais” (cap. 2 'juízo (I João 4:17,18) e levando-os a
a 12). cíãmãr com Paulo: “Portanto, nenhuma
O parágrafo se divide em duas partes condenação há” (Rom. 8:1).
cuidadosamente organizadas. Nos versos Embora não fosse o propósito da vinda _
16 a 18, o conteúdo é fortemente cris- de Cristo, o juízo foi a sua conseqüência
tológico, mencionando-se o Filho (obser­ inevitável. IstoTporque a vida humana \
ve-se a designação elaborada do verso ) está desgraçadamente afetada pela re- [
18c: o nome do unigénito de Deus). í cusa dõ~homein de ser amado ü~ãmar.'y
A expressão “nele crê” estabelece a ’ Visto queljCrístõ~)confrontou a humani-
relação com a seção anterior. Tudo dade com a última manifestação do ^
depende da fé naquele que Deus enviou amor de Deus, %_salyagão^ou a condena- ^
pat^sarvaroimundo. Nosvéfsos ção é determjnada agora, por^aqtlele
porém, o Filho é referido apenas em que crê ou não crê. ^Nicodemos aprendera ,
relação com a luz, que possui um caráter > acerca da possibilidade de um nasci- |
fortemente ético, em contraste com as ) mento espiritual, mesmo depois de se já ' f
trevas/mal. Aqui, tudo depende ~3õs i ter nascidoTísicamente. Agora, o leitor ,
feitos dos homens, oü'que'êIeTSça cTque »aprende o anverso: a possibilidade da \
morte espiritual bem antes da mor ter' gelho agora explica sua preeminência
física. O juízo não é distribuído arbi- \ sobre João Batista, em 3:22-36.
trariamentè pór Deus, na vida futura, ( Como aconteceu nos dois capítulos
mas é claramente determinado pelos/ anteriores, as duas partes do capítulo 3
homens na vida presente, com 5 ã s e e m \ mantém um claro equilíbrio teológico.
sua resposta ao unigénito de Deus. J Nos versos 1-21, a ênfase recai sobre o
Os versos 19 a 21 traçam cuidadosa- novo nascimento, isto é, sobre a trans­
mente a dinamica desta decisão crucial. formação exigida para ter início a nova
O tema envolve não a ostentação,, de um vida de discipulado, e sobre a ruptura
código legal ou moral, mas o amor, do desta vida com o passado. Nos versos
coração humano pelas trevas, em lugar 22-36, entretanto, a ênfase reside na
da luz que veio ao mundo. Em vez de um crescente centralidade de Cristo sobre o
desespero total, por parte do homem, já crente, isto é, sobre a mudança gradual
que suas obras são más oferece-se uma de lealdades, do líder terreno, em água,
opção,, apresentada em forma dialética, para o Senhor celestial, com quem é
bem semelhante às descrições dos. “.dois possível desenvolver-se em espírito (cf.
çamiijhosf ’ familiares ao judaísmo e ao 3:5). Em outras palavras, os versos 1-21
Novo Testamento (exemplo: Mat. 7:13- enfocam o novo nascimento, e os versos
27). Em vez de ser cativo de um deter- 22-36, a nova transformação. Ambos
minismo fatalista, cada pessoa pode compõem igualmente a vida cristã, pois a
escolher entre ser (1) alguém que faz o fé verdadeira inclui um momento de
mal e odeia a luz ou alguém que faz o que compromisso irrevogável e um processo
é reto; (2) alguém que não vem para a luz de crescimento contínuo, uma revisão da
ou alguém que vem para a luz; (3) al­ certeza de uma conversão inicial e uma
guém cujas obras são reprovadas ou antevisão do cumprimento de suas ine­
alguém cuja obras são claramente feitas vitáveis implicações.
em Deus. Deus determina a necessidade, Traduzido em termos contemporâ­
as alternativas e as conseqüências da neos, a preocupação dos versos 22-36,
decisão, mas isto apenas reforça a urgên­ em transferir lealdades de João para
cia e a gravidade com que cada homem Cristo, fala de uma das mais urgentes
determina que resposta dará. tarefas a desafiarem a Igreja: a condução
de crentes imaturos para além de um
4. O Novo Mestre (3:22-36) estado de dependência de algum pre­
cursor, de cujo testemunho resultou a fé
Como u Igreja depois dele, Jesus pre­ nAquele que é o objeto de todo teste­
cisava definir seu ministério não apenas munho e o conteúdo da verdadeira fé.
em relação ao judaísmo oficial, mas Deus usa muitos intermediários, geral­
também em relação a João Batista. mente pregadores abençoados, que exer­
Numa primeira instância, o perigo era cem um grande impacto sobre aqueles a
esperar pouco demais, permitindo que o quem batizam. A obra do batizador,
peso da tradição absolutizasse a situação todavia, não termina quando serve de
presente e assim sufocasse os ventos de instrumento humano para um novo nas­
renovação, que começavam a soprar. cimento, pois ele deve, em seguida,
Depois, o perigo era esperar demais, levar o feliz converso para além de um
ensejando que João Batista se tornasse o compreensível, mas indevido orgulho de
agente da nova era, uma vez que fora o herói espiritual recente, isto é, a uma
primeiro a pedir uma reforma radical do dedicação particular e total a Cristo.
aparelho religioso. Depois de definir Nesta passagem, o profeta, com mais
superioridade final de Jesus sobre o direito do que qualquer outro, para rei­
judaísmo farisaico, em 3:1-21, o Evan­ vindicar seus próprios seguidores, deixa
claro por que qualquer forma de com­ João antecedeu Jesus, ao ministrar nessa
petição com Cristo é inadmissível. área(cf. 4:38b).
Duas importantes inferências podem
1) João Batista e Jesus (3:22-24) ser derivadas destes dados. Para come­
çar, parece que no início do seu minis­
22 D epois d isto foi J e s u s co m se u s d is c í­
pulos p a r a a t e r r a d a J u d é ia , o nde se d e ­ tério Jesus esteve mais ligado a João do
m orou com eles e b a tiz a v a . 23 O ra, Jo ã o que informam os Sinópticos. Desta
ta m b é m e s ta v a b a tiz a n d o e m E n o m , p e rto descrição, parece que formava seu pa­
d e S alim , p o rq u e h a v ia a li m u ita s á g u a s ; e o drão de ação a partir de seu predecessor.
povo ia e se b a tiz a v a . 24 P o is Jo ã o a in d a
n ão fo ra la n ç a d o no c á rc e r e .
Talvez João tivesse se mudado da região
popular da Judéia (Mar. 1:5) para a
Este resumo de caráter editorial con­ menos promissora, de Samária, a fim de
tém três itens de informação histórica dar ao seu sucessor uma oportunidade
sobre o ministério de Jesus, ainda novos máxima para estabelecer seu próprio
na narrativa evangélica: (1) Jesus e seus ministério.
discípulos desempenharam um antigo Este Evangelho registra as sobreposi­
ministério na terra da Judéia (isto é: nos ções dos dois ministérios concomitantes,
arredores afastados de Jerusalém). Os a fim de estabelecer de modo mais seguro
Sinópticos falam apenas de um minis­ que os Sinópticos o elo original existente
tério tardio, na Judéia, pouco antes de entre eles. Isto se fazia necessário devido
sua visita a Jerusalém (Mat. 19:1; Mar. ao fato de que o movimento principiado
10:1; cf., porém, Luc. 4:44 e Mat. 23: por João não tinha ainda sido comple­
37). (2) Jesus exerceu um ministério tamente assimilado pelo movimento
público antes de João ter sido preso. Os conduzido por Jesus (cf. Mar. 2:18; At.
Evangelhos principiam com o ministério 19:1-7), trazendo como conseqüência,
de Jesus na Galiléia, “depois que João foi uma divisão que nenhum fundador de­
preso” (Mar. 1:14). (3) Jesus batizava sejava.
adeptos (isto é esclarecido em 4:2, onde Ao mesmo tempo que mostra quão
se informa que Jesus aprovava essa ati­ semelhantes eram aí João e Jesus, este
vidade dos seus discípulos, não sendo o Evangelho nos ajuda a compreender
rito administrado por ele mesmo). Os quão diferentes eles acabaram por se
Sinópticos em lugar algum mencionam tornar. Depois da prisão de João, Jesus
que Jesus batizou ou autorizou alguém a abandonou de imediato o modelo de seu
fazê-lo durante seu ministério público. antecessor, dirigindo-se para uma região
Além do mais, dois outros itens novos onde João jamais atuara, inaugurando
sobre o ministério de João são sinteti­ ali um novo tipo de ministério, em que o
zados aqui: (1) João, ao contrário da batismo em água não acontecia. Talvez
impressão deixada em 1:29-37, conti­ esta mudança deliberada na estratégia
nuou um movimento batismal indepen­ tenha contribuído para a incerteza
dente, mesmo depois que Jesus começou evidenciada na pergunta do encarcerado
a reunir discípulos. Isto fica implícito João a Jesus (Mat. 11:2-6). De qualquer
pela ausência de qualquer menção ao modo, estes versículos nos ajudam a
fato de que as pessoas que vieram a João compreender o sentido da continuidade
foram transferidas para Jesus e pela e da ruptura entre Jesus e João.
referência aos discípulos de João. (2)
João passou a batizar em Enom, perto de 2) A Subordinação de João (3:25-30)
Salim. É questionável a identificação
25 S u rg iu e n tã o u m a c o n ten d a e n tre os
deste lugar onde havia muitas águas, discíp u lo s d e J o ã o e u m ju d e u a c e r c a d a
mas é provável que ficasse em Samária, p u rific a ç ão . 26 E fo ra m te r co m Jo ã o e
ao norte da Judéia, o que significava que d is s e ra m -lh e : R a b i, a q u e le q u e e s ta v a con-
tigo a lé m do J o rd ã o , do q u a l te n s d a d o te s ­ res que ele sempre dissera: Eu não
tem u n h o , eis que e s tá b atiz a n d o , e todos vão
te r com ele. 27 R e sp o n d eu J o ã o : O h o m e m sou o Cristo, mas fui enviado para ir
n ão pode re c e b e r co isa a lg u m a , se n ão lhe adiante dele (cf. 1:15,20,30).
fo r d a d a do c é u . 28 Vós m e s m o s m e so is João depois explicou seu verdadeiro
te s te m u n h a s d e qu e e u d is s e : N ão sou eu o papel, ao comparar-se ao amigo do
C risto, m a s sou en v iad o a d ia n te d e le . 29
A quele q ue te m a n o iv a é o no iv o ; m a s o
recém-casado. Segundo a prática nupcial
a m ig o do noivo, q u e e s tá p re s e n te e o ouve, judaica, este era o padrinho do noivo,
reg o zija-se m u ito co m a voz do noivo. A s­ que levava a noiva ao noivo e depois
sim , p ois, e s te m e u gozo e s tá com p leto . montava guarda sobre a câmara nupcial.
30 £ n e c e ss á rio que ele c re s ç a e q u e eu Embora pudesse ouvir a voz do noivo
d im in u a.
expressando sua alegria pela consuma­
Ao tempo de Jesus, muitos grupos ção de sua união, ele não pensava em
sectários praticavam rituais de purifica­ interferir na intimidade do aconteci­
ção no vale do Jordão, originando uma mento. 13 Na realidade, os códigos do
enorme discussão sobre os méritos destes antigo Oriente Próximo proibiam estri­
gestos, na tentativa de satisfazer às exi­ tamente a entrega da noiva a este “me­
gências bíblicas de purificação. No con­ lhor homem” (cf. Juí. 14:20 — 15:6;
texto deste debate, um judeu não inden- II Cor. 11:2). Por isso, João jamais
tificado deve ter proposto que o rito de aceitaria cortejar a noiva, Israel, em
Jesus era superior ao de João, uma vez lugar de Jesus (cf. Is. 54:5; 62:4,5; Jer.
que ele estava ali batizando, e todos iam 2:2; 3:20; Ez. 16:8). Ao contrário, esta
ter com ele. Este argumento era de difícil espécie de alegria, que só um mestre de
aceitação para os discípulos de João, cerimônias conhecia, já era plena agora,
porque se lembravam que seu mestre devido ao seu-bem sucedido trabalho de
começara sua obra primeiro, que Jesus intermediário. Realizada esta tarefa de
fora até ele, do outro lado do Jordão, e transição, Jesus devia crescer, em influ­
que o testemunho que João deu dele era o ência, enquanto João devia diminuir,
fundamento sobre o qual Jesus fizera como uma luz que brilhou intensamente,
seus primeiros discípulos (cf. 1:35-37). mas que agora começava a se apagar
É impressionante como um argumento (cf. 5:35).
teológico sobre formas religiosas pode
degenerar numa disputa sobre persona­ 3) A Superioridade de Jesus (3:31-36)
lidade!
A disposição de espírito de João, em 31 A quele q u e v e m d e c im a é so b re to d o s ;
a q u e le q u e v e m d a t e r r a é d a t e r r a , e fa la d a
tratar do orgulho ferido de seus segui­ te r r a . A quele q u e v e m do céu é so b re todos.
dores, auxilia-nos na compreensão da 32 A quilo que e le te m v isto e ouvido, isso
natureza da graça. Nenhum dos dois, te s tific a ; e n in g u é m a c e ita o se u te s te m u ­
nem ele nem Jesus, recebeu coisa alguma nho. 33 M a s o q u e a c e ita r o seu te stem u n h o ,
em forma material (seja popularidade, esse c o n firm a q u e D eu s é v e rd a d e iro . 34
P o is a q u e le q u e D eu s enviou fa la a s p a la ­
seguidores ou aprovação teológica), v ra s de D e u s; p o rq u e D eu s n ã o d á o E s p í­
a não ser aquilo que foi dado por Deus, rito p o r m e d id a . 35 O P a i a m a a o F ilh o , e
dos céus. Assim, João se contentava em to d a s a s c o isa s e n tre g o u n a s s u a s m ã o s.
que um pequeno grupo o seguisse e que 36 Q uem c rê no F ilh o te m a v id a e te r n a ;
o q u e, p o ré m , d e so b e d ec e a o F ilh o n ã o v e rá
um número maior seguisse a Jesus, pois
todo crente é uma dádiva divina, a ser
13 Quanto aos detalhes sobre os costumes nupciais implí­
celebrada, e não um troféu humano, a citos, aparentemente, no v. 29, ver J. Jeremias em Kit­
ser ostentado (cf. 6:37,44; 17:6). Em tel, TDNT, IV, p. 1.101; A. Van Selms “The Best Man
lugar de tomar lugar de primazia sobre and Bride — From Sumer to St. John” , Journal of
Near Eastern Studies, 9 (1950), p. 65-75; J.D.M.
Jesus, por tê-lo precedido no tempo, João Derrett, “ Water into Wine", Biblische Zeitschrift,
simplesmente lembrou aos seus seguido­ Neve Folge, 7 (1963), p. 81-83.
a v id a, m a s so b re ele p e rm a n e c e a ir a de Terceira: João nada mais podia fazer
D eus. senão preparar para o juízo iminente;
Do mesmo modo como a relação de Jesus, no entanto era o fundamento sobre
Jesus com o judaísmo (3:1-15) se encer­ o qual o juízo se faria. Atender a João
rou com uma meditação teológica (3:16- significava estar pronto para um novo
21), esta seção sobre a relação de Jesus dia; atender a Jesus, entretanto, signi­
com João Batista (3:22-30) termina com ficava decidir seu destino final: aquele
uma passagem impressionantemente que agora crê já tem a vida eterna,
semelhante (3:31-36) que deve muito à enquanto aquele que não obedece agora
mesma fonte. A transição do verso 30 pa­ já experimenta a ira de Deus (cf. Rom.
ra o verso 31 é tão discreta que o leitor 1:18) sobre sua vida (cf. 3:18). A razão
pode até imaginar que João Batista conti­ por que a escatologia se realiza de modo
nua a falar, embora sejam já evidentes o tão decisivo é que em Jesus a salvação já
estilo e a teologia do Evangelista. Ê como veio. Embora um julgamento final seja
se estivéssemos diante do testemunho que reservado para o futuro (exemplo: 5:25-
João gostaria de dar, caso fosse um cris­ 29), ele não oferecerá quaisquer oportu­
tão contemporâneo da elaboração do nidades ou novidades que já estejam
evangelho. Neste sentido, os versos 31 presentes em Jesus. Apesar de não se
a 36 sintetizam um sermão, em seu texto excluir a possibilidade de novas decisões,
do verso 30, apontando três razões por o veredicto final dos céus fica anteci­
que Jesus devia crescer e João, diminuir. pado, em função da resposta dada a
Primeira: Como aquele que veio do Cristo na terra.
alto Ccf. 1:51; 3:13), Jesus está acima de
tudo, enquanto João, como um homem 5. A Nova Comunidade (4:1-42)
(1:6) da terra, pertence à terra. Como A cena agora muda para Samária,
alguém que só testemunha daquilo que uma região no planalto central da Pales­
viu e ouviu, João estava limitado ao que tina, entre a Judéia e a Galiléia, cujos
Deus lhe revelava na terra, enquanto habitantes eram de particular interesse
Jesus podia testificar diretamente do para este Evangelho e também para
mundo transcendente de onde veio. Nin­ Lucas-Atos. Depois da conquista do
guém recebe testemunho celestial com Reino do Norte pela Assíria, em 722
base numa compreensão terrena, a me­ a.C., a ampla recolonização, por parte
nos que ele se convença e se certifique de israelitas e estrangeiros, resultou em
(ponha seu selo) de que Jesus revelou a casamentos mistos e na infiltração de
verdade de Deus (cf. Mat. 16:17b). influências religiosas pagãs, ambos
Segunda: Para João, como para os intoleráveis para os líderes religiosos
profetas do Velho Testamento, Deus judeus de Jerusalém (II Reis 17). Séculos
concedia seu Espírito sob medida, isto de hostilidade culminaram na construção
é, na hora em que falavam sob inspira­ de um templo rival, pelos samaritanos,
ção divina (Núm. 11:25; I Sam. 10:5-11; no monte Gerizim, destruído por João
Jer. 1:4-10). Jesus, porém, não proferia Hircano em 128 a.C. Ao tempo de Jesus,
as palavras de Deus apenas num momen­ Samária tinha-se transformado num
to, pois não era sob medida que Deus lhe desdenhado gueto, com uma cultura
concedia o Espírito (cf. l'31-34). Na própria, uma religião separada e uma
realidade, tão grande era o amor do Pai teologia estática. 14
para com o Filho que todas as coisas lhe
foram dadas (cf. Mat. 28:18). Em Jesus, 14 Sobre os samaritanos, veja James A. Montgomery
o paradoxo da graça atingiu sua mais The Samaritans (New York: Ktav Publishing House,
1968, reimpressão da edição de 1907); John Macdo­
perfeita expressão: sem nada pedir, tudo nald, The Theology of the Samaritans (Philadelphia:
lhe foi dado. Westminster Press, 1964).
Isto, portanto, significava a existência ficava que ambos estavam com sede. Se
de obstáculos intransponíveis em qual­ admitisse, que tcdas as pessoas, embora
quer tentativa de contato entre o judeu diferentes, tinham as mesmas necessi­
Jesus e uma mulher samaritana. Três dades físicas básicas, a mulher poderia
barreiras maiores são identificadas nesta reconhecer a possibilidade de que todos
narrativa. partilham também das mesmas necessi­
Racial — Mesmo os judeus tolerantes dades espirituais.
para com outras raças eram abertamente (2) Usou a incapacidade de os recursos
preconceituosos para com os samarita- terrenos satisfazerem as necessidades
nos, como descendentes miscigenados físicas como o ponto de partida para
das antigas dez tribos de Israel, cuja apresentar os recursos celestiais na satis­
pureza racial fora corrompida por colo­ fação das necessidades espirituais. A
nos estrangeiros (II Reis 17:24). Nada mulher sabia que o problema da sede
enfurecia mais os judeus do que afirmar física só podia ser resolvido temporaria­
que os seus queridos patriarcas eram mente, pela retirada de um balde de
também ancestrais dos samaritanos. água de um poço profundo. Jesus trouxe
Sexual — Os rabinos detestavam ver novas esperanças, ao dizer que esta limi­
um homem conversando com uma mu­ tação não se aplicava à satisfação da sede
lher em público — mesmo que esta fosse espiritual, porque devia uma quantidade
sua própria esposa: “Aquele que con­ inegostável de água “fluído para a vida
versa muito com uma mulher traz o mal eterna” .
sobre si e negligencia o estudo da lei e, (3) Estendeu o âmbito das preocupa­
por fim, herdará a Geena” (Aboth 1:5). ções religiosas da mulher, ao lhe lembrar
Sentar-se num lugar estranho, numa seu relacionamento pecaminoso com
hora pouco comum, com uma mulher de outros. Em vez de procurar bênçãos
reputação duvidosa apenas complicava o espirituais apenas para si, ela seria pre­
problema para Jesus. Por seu turno, a parada para compartilhá-las com seus
mulher tinha bons motivos para descon­ amigos mais achegados.
fiar dos homens, já que muitos deles se (4) Satisfez sua necessidade de perdão,
descartavam delas como se fossem sapa­ através de um culto baseado numa com­
tos velhos. preensão dinâmica de Deus. O passado
Religiosa — Como Deuteronômio tinha forçado a localização dos atos de
27:4 identificava o monte Ebal (ao lado culto em uns poucos centros geográficos,
do monte Gerizim, perto de Siquém) co­ mas o futuro encontraria um Pai uni­
mo o lugar onde devia ser construído um versal, cultuado em qualquer lugar onde
altar, os samaritanos se aborreceram as pessoas estivessem abertas para o
com a centralização posterior do san­ poder do Espírito divino.
tuário no monte Sião, em Jerusalém. (5) Apontou para si como a incorpo­
Numa certa feita, por exemplo, eles se ração destas realidades espirituais que
vingaram, esparramando ossos humanos oferecia aos outros. Isto explica não só
nos pórticos e no Templo, quando tinha a natureza da “água viva” , como tam­
lugar a Páscoa principal (Josefo, Anti­ bém sua fonte como “a água que eu lhe
guidades, XVIII, 29,30). der” .
Como Jesus poderia superar o ódio e o É instrutivo observar que Jesus tratou
preconceito, acumulado durante séculos com esta heterodoxa mulher samaritana
entre judeus e samaritanos? Cinco ca­ (4:1-26) do mesmo modo como fizera
minhos foram indicados, em sua estra­ com o ortodoxo Nicodemos (3:1-15). Em
tégia evangelística: ambos os casos, ele começou com uma
(1) Ele tocou no ponto da necessidade realidade básica, pela qual a vida física é
física comum. “Dá-me de beber” signi­ sustentada (nascimento/água), que-
rendo, com isto, sugerir, por analogia, as A palavra-chave “nem aqui neste mon­
realidades religiosas correspondentes que te nem em Jerusalém” retoma o elo
renovam a vida espiritual (novo nasci­ essencial entre esta história e o relato de
mento/água viva). Em resposta, as duas Nicodemos. Proibir o monte Gerizim
pessoas logo identificaram a dificuldade aos samaritanos era o mesmo que o
de seu ensino, a partir de uma perspec­ monte Sião aos judeus. Na nova era,
tiva terrena (nascer quando se é velho?/ estes dois centros de cultos seriam “puri­
água quando o poço é profundo?). Sem ficados” de providencialismos estreitos.
se embaraçar, Jesus resolveu o dilema, Os fariseus sofriam de um sentimento de
encaminhando sua analogia para novas superioridade religiosa, pelo que colo­
direções (o vento sopra/a água flui) e caram barreiras para se protegerem dos
explicando que o Espírito de Deus é a outros. Os samaritanos sofriam de um
fonte deste poder dinâmico (3:8; 4:24). sentimento de inferioridade religiosa,
Quando o interlocutor questionava como pelo que erigiram defesas, para se de­
o Espírito prometido, da nova era, pode­ fenderem. Nenhum destes limites per­
ria operar já no presente (3:9:4:25), Jesus maneceria na nova era do Espírito. Nem
ia além da analogia, apresentando-se os judeus nem os samaritanos confina­
como o agente escatológico que começara riam Deus em suas estruturas religiosas,
a realizar o futuro aqui e agora (3:13- do mesmo modo que não podiam con­
15; 4:26). Estes impressionantes para- trolar nem o sopro do vento a céu aberto
lelismos indicam, em ambos os casos, nem a torrente de água que flui de fontes
que o tema central permaneceu o mes­ subterrâneas.
mo: pode a situação religiosa presente 1) Introdução e Cenário (4:1-6)
abrir-se para uma renovação por meio do
1 Q uando, pois, o S en h o r so u b e que os
Espírito operante no ministério de Jesus? fa rise u s tin h a m ouvido d iz e r q u e e le, J e s u s ,
A mudança fundamental que Jesus la z ia e b a tiz a v a m a is d iscíp u lo s do que Jo ã o
propôs, nessa situação particular, está 2 (a in d a que J e s u s m e sm o n ão b a tiz a v a ,
evidenciada na resposta que conseguiu m a s os se u s d isc íp u lo s), 3 d eix o u a J u d é ia ,
e foi o u tr a vez p a r a a G aliléia. 4 E e ra -lh e
da samaritana. De início, a mulher o viu n e c e ss á rio p a s s a r p o r S a m á ria . 5 C hegou,
apenas em termos de sua raça (como pois, a u m a c id a d e d e S a m á r ia , c h a m a d a
“um judeu”), ao passo que agora ela era S ic a r, ju n to d a h e rd a d e q u e J a c ó d e ra a seu
forçada a reconhecê-lo como “um pro­ filho J o s é ; 6 a c h a v a -s e a li o poço de J a c ó .
feta". Continuando o diálogo, ela ousou Je s u s , pois, c a n sa d o d a v ia g e m , sentou-se,
a s s im , ju n to do p o ço ; e r a c e rc a d a h o ra
indagar se ele poderia ser “o Cristo” , se x ta .
mas os aldeões samaritanos que ouviram
seu testemunho passaram logo a confes­ A relação com a seção anterior (3:26-
sar que era realmente “o Salvador do 36) se estabelece pelos versos 1-3, que
mundo” . indicam que Jesus deixou a Judéia, por­
A questão para eles não era se podiam que os fariseus tinham ouvido dizer que
crer, mas em que crer. Os samaritanos ele fazia e batizava mais discípulos do
eram um povo profundamente religioso, que João (cf. 3:26). Diferentemente de
até fanáticos, aos olhos de alguns, mas a João, Jesus não pôs fim e estas insidiosas
conseqüência de sua piedade foi o reco­ comparações, para o que poderia utilizar
lhimento em seu próprio^ isolamento a própria subordinação do precursor
espiritual. Ao lhes oferecer uma fé (cf. 3:28-30); antes, preferiu remover
abrangente num Deus Pai, cujo culto era a aparência de disputa e partiu para
tão universal como seu Espírito, Jesus a Galiléia. Uma vez que agora seus dis­
poderia ser visto, à luz de sua profunda cípulos eram os únicos que administra­
religiosidade, como o Salvador do mun­ vam o batismo dos que vinham ter com
do. Jesus, poderiam ter sucumbido diante de
uma arrogância mesquinha — como co m id a . 9 D isse-lh e e n tã o a m u lh e r sa m a -
aconteceu a alguns seguidores de João r i t a n a : C om o, sen d o tu ju d e u , m e p e d e s de
b e b e r a m im , q u e sou m u lh e r s a m a rita n a ?
(3:25,26) — ficando impossibilitados de (P o rq u e os ju d e u s n ão se c o m u n ic a m com
continuar a trabalhar numa atmosfera os s a m a rita n o s .) 10 R esp o n d eu-lh e J e s u s :
contaminada pela intriga. Se tiv e sse s co nhecido o d o m de D eu s e q u em
Ao levar seus discípulos para o norte, é o que te d iz : D á-m e d e b e b e r, tu lh e te r ia s
pedido e e le te h a v e ria d a d o á g u a v iv a . 11
Jesus teve que passar pela Samária, não D isse-lhe a m u lh e r — S enhor, tu n ã o te n s
como uma necessidade geográfica, mas co m q u e tirá -la , e o poço é fu n d o ; donde
como uma compulsão divina. O pere­ pois, te n s e s s a á g u a v iv a ? 12 É s tu , p o r­
grino judeu típico evitava deliberada­ v e n tu ra , m a io r do q u e o n o sso p a i J a c ó , que
mente essa rota direta, viajando pela n os d e u o poço, do q u a l ta m b é m e le m e sm o
b e b eu , e os se u s filhos, e o se u g a d o ? 13
Transjordânia, ao oriente; Jesus, no R eplicou-lhe J e s u s : Todo o q u e b e b e r d e s ta
entanto, sabia que seus discípulos pre­ á g u a to r n a r á a te r s e d e ; 14 m a s a q u e le
cisavam aprender a testemunhar não que b e b e r d a á g u a q u e e u lh e d e r n u n c a te r á
somente em Jerusalém (2:13-3:21) e em s e d e ; pelo c o n trá rio , a á g u a que eu lh e d e r
toda a Judéia (3:22-36), mas também em se f a r á n ele u m a fo n te d e á g u a que jo r r e
p a r a a v id a e te r n a . 15 D isse-lh e a m u lh e r:
Samária (cf. At. 1:8). S enhor, d á-m e d e ss a á g u a , p a r a q u e n ão
Lugar apropriado para o cenário foi m a is te n h a se d e , n e m v e n h a a q u i tirá -la .
uma cidade de Samária, chamada Sicar,
junto da herdade que Jacó dera a seu A exemplo da conversa com Nicode-
filho José (Gên. 48:22). Não é possível mos (3:1-15), esta parte do encontro é
identificar com segurança essa aldeia, descrita na forma de um diálogo, com
a menos que Sicar (sucher) seja uma cor­ três momentos. No primeiro caso, Nico-
ruptela de Siquém (suchem); porém sua demos tomou a iniciativa, porque tinha
localização geral não é problema, já vindo suscitar uma questão com Jesus;
que, obviamente, ficava próximo ao poço neste caso, todavia, Jesus conduziu a
de Jacó, que até hoje está ao pé dos discussão, já que era o intruso judeu na
montes Ebal e Gerizim, pouco mais de 60 Samária hostil.
quilômetros ao norte de Jerusalém. a. Primeiro Momento (v. 7-9)
A distância, coberta por Jesus a pé,
explica por que estava cansado da via­ Jesus — Reunindo simplicidade com
gem, alcançado o poço no calor do meio- surpresa, Jesus espantou a mulher com o
dia. O tempo judaico ia do nascente ao pedido: Dá-me de beber. Ã primeira
poente, cerca da hora sexta era próxima vista, isto parece uma sugestão mais do
ao meio-dia, uma referência bastante que natural, já que estava com calor,
sugestiva para o drama que logo come­ cansado e com sede, além de tempora­
çaria (cf. o cenário do episódio de Nico- riamente sem a assistência dos seus dis­
demos à noite, em 3:2). No primeiro cípulos, que tinham ido à cidade com­
século, como hoje, as mulheres tinham o prar comida. Pode parecer, a nós, que a
hábito de tirar água no frescor da manhã cortesia habitual ditaria uma resposta
ou da noite, nunca ao meio-dia. Por afirmativa ao pedido de ajuda.
acaso, era a mulher com quem Jesus se A mulher — Nesta circunstância,
encontrou tão abominável que tinha de porém, era inimaginável que um judeu
evitar as multidões que se ajuntavam ao pedisse água a ela, uma mulher de Sa­
redor do poço nas outras ocasiões? mária, pela razão que o Evangelista
parenteticamente explica: Porque os
2) O Oferecimento da Àgua Viva (4:7-15) judeus não se comunicam com os sama­
7 V eio u m a m u lh e r d e S a m á r ia t i r a r á g u a . ritanos. Isto não quer dizer que os judeus
D isse-lhe J e s u s : D á-m e de b e b e r. 8 P o is jamais mantivessem qualquer contato
seu s d iscíp u lo s tin h a m ido à c id a d e c o m p ra r direto com os samaritanos, mas que eles
não partilhavam do mesmo prato com nascimento a alguém que já era velho,
eles, com medo de uma contaminação devido à dificuldade de um retorno ao
ritual (cf. Biblia na Linguagem de Hoje. ventre (3:4), a mulher duvidava da capa­
“Os judeus não usavam os mesmos cidade dele de conseguir água viva do
pratos que os samaritanos usavam”). poço, já que era fundo e ele não tinha
A intenção de Jesus era surpreender, com que tirá-la.
porque os judeus não bebiam de um copo Posteriormente, assim como Nicode­
tocado por lábios samaritanos e Jesus mos permanecera cético quanto à capa­
não tinha vasilhas próprias.15 cidade de Jesus de mudar o status quo
b. Segundo Momento (v. 10-12) religioso existente desde os dias dos pa­
triarcas, a mulher também questionava:
Jesus — De modo peculiar, Jesus res­ És tu, porventura, maior que do nosso
pondeu a este dilema com uma compa­ pai Jacó? O venerável patriarca fora
ração divina: Se tivesses conhecido o dom obrigado a retirar água de uma mina
de Deus (cf. 3:16,27,35). Com tanta fre­ profunda, e durante mais de um milênio
qüência, e aqui também, a natureza do este cuidadoso sistema não fora alterado.
homem é recusar, mas a de Deus é de O comentário acerca de uma fonte tor­
conceder. Se tão-somente a mulher sou­ rencial era um tanto problemático para
besse quem era Jesus (um agente da uma mulher cansada, assim como seu
generosidade celestial, e não da mesqui­ comentário sobre um recém-nascido o
nhez judaica), ela lhe teria pedído, em fora para um homem idoso.
vez de ele pedir-lhe, e ele lhe haveria
dado, em vez de ela recusar-lhe a água c. Terceiro Momento (v. 13-15)
viva ou fluente da fonte inesgotável, e Jesus — Havia necessidade de se re­
não apenas uma pequena porção como a solver as limitações da fonte literal, pois,
que ela podia tirar do poço. quaisquer que fossem os problemas para
A mulher — Como no caso de Nico- alcançar sua profundeza, o mais sério
demos, a mulher de início recusou-se a estava no fato óbvio de que todo o que
explorar o sentido espiritual das palavras beber desta água tornará a ter sede
simbólicas de Jesus, devido às suas difi­ (cf. 6:26,27). A única resposta adequada
culdades ao nível físico ou literal. Sabia era descobrir a água viva que o próprio
ela que o poço de Jacó era alimentado Jesus poderia dar, e todo aquele que dela
por uma fonte subterrânea (pege), enten­ beber nunca terá sede (cf. 6:35) — ou,
dida por ela mesma como a água viva literalmente: “jamais terá sede durante a
a que Jesus se referia, mas esta fonte no (nova) era” . Longe de deixar alguém
fundo de um poço ou mina (phrear) pro­ sedento de novo, esta água, uma vez
funda 16 . Como poderia Jesus tirar água bebida, não se perde, mas se fará nele
viva de lá se não tinha com quê? Do uma fonte permanente. O “novo Jaçg”
mesmo modo como Nicodemos questio­ não escavou seus poços na'têfraTmas no
nou se Jesus providenciaria um novo fundo do coração humano. Adeníàis.
como dinamismo “vivo” , esta realidade
15 Sobre esta interpretação do verso 9, veja David Daube,
espiritual no centro da vida não se acu­
“Jesus and the Samaritan Woman; The Meaning of mula como a áeua numa cisterna, mas
sugchraomai", Journal of Biblical Literature, 69 jorra poder como uma fonte... que jorre
(1950), p. 137-147.
para a vida eterna.
16 A fonte hoje.tem 75 pés de profundidade, mas está
parcialmente preenchida de entulho. Portanto, pode ‘ A mulher ^—Levada da necessidade ao
ter tido, aproximadamente, 100 pés de profundidade desejo, através da curiosidade, a mulher
no tempo de Jesus. Veja D.C. Pellett, "Jacob’s Well" se exprimiu nas mesmas palavras com
JDB, II, p. 787 J. N. Sanders. The Gospel According
to St. John (New York: Harper & Row Publishers, que Jesus principiaria o diálogo: Dá-me
1968), p. 140, fn. 1, e p. 142, fn. 1. dessa água. Quão rapidamente os papéis
I se inverteram! No início, aquele que veio íi o, porém, à satisfação de sua própria
|j do alto falou de coisas terrenas, para que sede e ao término daquela tarefa diária
j aquela que era da terra pudesse crescer I de ir obrigatoriamente ao poço ao meio-
| em suas aspirações e aprendesse a pedir( dia. Como resposta, Jesus fez-lhe uma
Jcoisas celestiais (cf. 3:12,13, 31). O fun­ surpreendente sugestão: Vai chama o teu
damento de seu pedido era superficial sê marido e vem cá. Como não se disse a
nâo egoísta: para que não mais tenha razão deste pedido, há quem suponha
sede, nem venha aqui tirá-la. Por fim, que ele estava tentando vencer o egocen­
porém, ela começou a procurar por algo trismo dela, lembrando-lhe seus compro­
melhor e, o mais importante, aprendeu missos com os outros. Neste sentido,
com a pessoa certa (cf. v. 10). “ “vai e chama teu marido” significa:
3) O Oferecimento de Culto Espiritual “Você não quer que sua família parti­
(4:16-26) cipe da descoberta da água viva?” Ou­
tros, no sentido, entendem que Jesus já
16 D isse-lhe J e s u s : V ai, c h a m a o te u sabia de seus fracassos sexuais e estava
m a rid o e v e m c á . 17 R esp o n d eu a m u lh e r: tentando expor o problema da culpa não
N ão te n h o m a rid o . D isse-lh e J e s u s : D isse ste
b e m : N ão ten h o m a rid o ; 18 p o rq u e cinco resolvida. Neste sentido, sua sugestão
m a rid o s tiv e ste , e o qu e a g o ra te n s n ão é te u acabou por quebrar suas defesas, le­
m a rid o ; isto d is se ste com v e rd a d e . 19 D is­ vando-a à confissão do pecado.
se-lhe a m u lh e r: S en h o r, v ejo q u e é s p ro ­
fe ta . 20 N ossos p a is a d o r a r a m n e s te m o n te ,
A mulher — Confrontada de modo tão
e vós dizeis qu e e m J e r u s a lé m é o lu g a r onde repentino com o desafio que o dom de
se dev e a d o ra r . 21 D isse-lhe J e s u s : M u lh er, Deus punha diante dela, a mulher tentou
c rê-m e, a h o ra v e m , e m q u e n e m n e ste fugir ao problema com uma resposta
m o n te , n e m e m J e r u s a lé m a d o ra re is o evasiva: Não tenho marido. Como vere­
P a i. 22 Vós a d o ra is o q u e n ão c o n h e c e is; nós
a d o ra m o s o qu e c o n h e c e m o s: p o rq u e a sal- mos, num certo sentido, a resposta esta­
v a ç ã o v e m dos ju d e u s . 23 M as a h o ra v e m , va tecnicamente correta, já que fora
e a g o ra é , e m qu e os v e rd a d e iro s a d o r a ­ casada com muitos maridos; isto, porém,
d o re s a d o ra r ã o o P a i e m e sp írito e e m v e r ­ não altera a possibilidade de que estava
d a d e ; p o rq u e o P a i p ro c u ra a ta is q u e a s s im
o' a d o re m . 24 D eu s é E s p ír ito , e é n e c e ss á rio tentando enganar premeditadamente.
que os q ue o a d o ra m o a d o re m e m e sp írito Na sua ética imatura, a verdade foi deter­
e e m v e rd a d e . 25 R eplicou-lhe a m u lh e r: E u minada mais pela exatidão das palavras
sei q u e v e m o M e ssia s (q u e se c h a m a o do que pela integridade do motivo.
C ris to ); q u an d o e le v ie r, h á d e n o s a n u n c ia r
to d a s a s c o isa s. 26 D isse-lhe J e s u s : E u o
sou, e u q u e falo contigo.
b. O Segundo Momento (v. 17b-20)

Diferentemente da entrevista com Jesus — Com fina ironia, Jesus elogiou


Nicodemos, que se limitou a um simples sua resposta com um disseste bem, em
diálogo, sobre um assunto único (3:1- ela afirmar que não tinha marido. Mas,
15), a conversa com a mulher samaritana pudera, ela dissera a verdade, somente
teve duas partes, tratando de dois temas: porque já fora casada com cinco maridos
água (v. 7-15) e culto (v. 16-26). A última e o homem com quem vivia então não era
parte, que funciona, na história da mu­ seu marido. A evasiva da mulher evi­
lher samaritana, como a purificação do denciara a verdade mais profunda de que
Templo (2:13-22), em relação ao relato sua vida doméstica estava em ruínas. Os
sobre Nicodemos, organiza-se na forma rabinos aprovavam um máximo de três
de um diálogo, com três momentos. casamentos, limite que ela já havia
ultrapassado. Em certo sentido, sua his­
a. O Primeiro Momento (v. 16 e 17a)
tória pessoal recapitulava a história
Jesus — No verso 15, a mulher fizera nacional de seu país, uma vez que Sa-
um legítimo pedido de água, limitando- mária fora “descasada” com mais de seis
tribos estrangeiras, cada uma com seu mente _estar destituído do preconceito
próprio deus (II Reis 17:29-34). judeu. Agora, a mulher era convidada a 1
A mulher — Jesus arrancara-lhe tão I superar seus preconceitos samaritanos e /
rapidamente a máscara, que a mulher se a reconhecer que sua salvação viria delej
viu obrigada a reconhecer que ele era um um judeu.
profeta, com um discernimento sobre­ Observe-se o paradoxo criado pelos
natural sobre sua vida (cf. 2:25). Exposto versos 21 e 22. Como Deus se dera a
seu pecado, ela entendeu que sua neces­ conhecer num lugar qualquer (em Israel,
sidade urgente era obter perdão através por exemplo), Deus poderia se dar a
do culto. Resposta sincera ou fruto de conhecer em todos os lugares (muito ^
dissimulação, o fato é que seu interesse longe de Israel, por exemplo). Já que a fé
por um lugar adequado para o culto ' se fundamenta numa história peculiar,
esbarrava na divisão religiosa que, havia registrada na Bíblia, ela não precisa da
muito, separava samaritanos e judeus. unificação produzida por um único san-__
Seus compatriotas adoravam no monte tuário sobre um monte. Significa isto que
Gerizim, próximo, mesmo depois que o o verdadeiro culto é exclusivo na origem,
templo foi destruído por João Hircano; mas abrangente no alcanciT~Uma das
por seu turno, os judeus insistiam que mãis profundas antinomias do pensa­
Jerusalém era o lugar onde os homens mento humano tem suas raízes na tensão
deviam adorar. Desgraçadamente, a entre o particularismo e o universalismo.
hostilidade racial penetrara até mesmo Aqui, as duas tendências são apresen-
no culto a Deus, tendo como conseqüên­ tadas de modo harmonioso, pela certeza
cia santuários segregados, onde nem 1 de que em Jesus o~particularismo his-}
todos eram igualmente bem-vindos. tórico do velho Israel coincide com o
universalismo escatológico do novol
c. O Terceiro Momento (v. 21-25)
Israel.
Jesus — Enquanto a mulher definia os Esta polarização aparece também no
problemas do presente com base nas verso 23, onde a hora da transformação
práticas tradicionais do passado (“Nossos do culto vem no futuro (isto é, a velha
pais adoraram”), Jesus lhe respondia em era, com sua divisão ainda existente) e
termos das promessas do futuro: A hora agora é (isto é, a nova era de unidade já
vem. Na nova era, o culto não serial começou a chegar). Estas duas afirma­
limitado por um geográfico, este monte \ ções, aparentem ente contraditórias,
Í
ou Jerusalém, mas teria um escopo uni-J podem ser verdadeiras no sentido de que
versai (cf. Is. 66:1). a hora decisiva quando o novo dia se
“ Isto não quer dizer que Jesus aprovava inaugurará está vindo (no futuro para a
toda religião, onde quer que fosse. Ele maioria da humanidade) mas já é uma
sabia que muitos povos, inclusive os realidade para os discípulos de Jesus, em
samaritanos, procuravam adorar algo cujo ministério o futuro está presente pro-
que não sabiam bem o que era, enquanto lépticamente. Já que Jesus tornou Deus *
seu próprio povo (1:11) adorava tendo conhecido como Pai universal de toda a
como fundamento a revelação singular raça, é possível qualquer um tornar-se um
de Deus, dada a Israel ao longo da his­ verdadeiro adorador — e isto, não em
tória. Neste sentido, o comentário paren- x função de onde se adora (Gerizim ou
tético é acrescentado, de que a salvação Jerusalém), mas em função de como se
vem dos judeus, uma afirmação clara da adora (em espirito e verdade). Note-se
particularidade de Deus em escolher que as qualificações para a participação
Israel como o agente do seu propósito de na nova era não são determinadas por
redenção. Ao Beber água de um balde raça, sexo ou religião, mas por Deus
samaritano, Jesus mostrou- simFolIcã- mesmo, que é espírito.
Adorar em espírito não significa que eu’ — ele é aquele um que está falando
todos os lugares sagrados e todos os contigo” . Este “sou eu” (egõ eimi) ante­
elementos materiais devem ser abando­ cipa o uso explícito feito depois (como em
nados, mas que o poder criador e vivi­ 8:58, por exemplo) como uma forma
ficante de Deus deve penetrar em todas revelatória, para anunciar a presença do
as formas utilizadas no culto. A mulher Deus eterno no seio da história (cf. Êx.
samaritana devia aprender que não é um 3:14; Is. 43:10).
lugar tradicional, mas o poder trans­
cendente que legitima a adoração. O 4) O Testemunho da Mulher (4:27-30)
acréscimo em verdade indica que esta 27 E n isto v ie r a m os se u s d iscíp u lo s, e se
realidade divina estava sendo revelada de a d m ira v a m d e q u e e stiv e ss e fa lan d o com
modo singular no ministério de Jesus. u m a m u lh e r; to d a v ia , n e n h u m lh e p e rg u n ­
to u : Que é q u e p ro c u ra s ? o u : P o r q u e fa la s
Esta junção característica de espírito com e la ? 28 D eixou, p o is, a m u lh e r o seu
divino universal como verdade histórica c â n ta ro , foi à c id a d e e d isse à q u e le s h o ­
particular é uma síntese teológica de m e n s: 29 V inde v e d e u m h o m e m que m e
grande profundidade (cf. 14:17; 15:26; disse tu d o q u a n to te n h o feito , s e r á e ste ,
16:13). p o rv e n tu ra , o C risto ? 30 S a íra m , pois, d a
cid a d e e v in h a m te r co m ele.
A mulher — Como as conseqüências
destas últimas afirmativas começavam a A essa altura, os discípulos de Jesus,
se delinear, a mulher samaritana admitiu que tinham ido à cidade, que ficava
sua crença num futuro Messias (Cristo), próxima, comprar alimentos (v. 8), en­
que viria para nos anunciar todas as contraram Jesus e a mulher samaritana
coisas (cf. 4:25). Embora possa ter sido conversando animadamente. Isso con­
ela uma última fuga, numa tentativa de trariava de tal modo os escrúpulos reli­
fugir às palavras de Jesus, desviando-se giosos, que eles se admiravam, porém
para especulações escatológicas, esta nenhum deles, diante da seriedade do
declaração deve ter sido, antes, uma seu Mestre, teve a coragem de inter­
resposta semelhante àquela feita por romper. É possível que diante da volta
Nicodemos (3:9). Em outras palavras: súbita deles e da perplexidade impressa
“Como é possível que tudo isto que con­ em seus rostos, a mulher tenha partido
versamos, sobre a adoração no poder do às pressas deixando o cântaro de água.
Espírito de Deus, se realiza antes de Isto porém, pouco importa. Diante do
aparecer o grande personagem que ins­ que Jesus lhe tinha dito, ela deveria
taurará a era messiânica?” voltar logo. Ela não tinha porque se
Em resposta, Jesus encerrou o diálogo atrapalhar com um grande jarro, se ia
com uma surpresa ainda maior: “Eu o correndo para testemunhar (alusão a
sou, eu que falo contigo. Esta auto- 2:6 e ss.?), estando interessada pela
declaração final, pela qual Jesus se iden­ “ água viva” , que trazia em seu coração.
tificou como o mediador da realidade Talvez Jesus tenha usado o cântaro em
escatológica, assemelha-se à resposta sua ausência (v. 11), já que estava livre
dada a Nicodemos (3:13-15). Agora, d o \ do preconceito que proibia os judeus
mesmo modo que não é necessário ficar 1 de usar vasilhas samaritanas (v. 9b).
preso à herança do passado, não é mais Fundamentado no seu breve encontro
necessário também esperar pelas espe­ com Jesus, o testemunho da mulher, na
ranças do futuro, Jesus representa o cidade, foi superficial, apesar de bem-
grande salto, nos propósitos de Deus, dos / intencionado. Seu testemunho inicial não
primeiros patriarcas ao Messias final. É era sobre a pessoa de Jesus, mas sobre
isto que dá a entender a forma grega da a sua clarividência em discenir os segre­
frase. Uma tradução literal, capaz de dos do seu coração (cf. 2:23 e ss.; 3:2).
recuperar a força original, seria: ‘“Sou Ela apenas supunha que ele era mais do
que um homem. Sua pergunta pode ser■^ ^ o sentido profundo de serem enviados
melhor traduzida: “Sera possível que ele à em missão (cf. 17:18; 20:21), os discí-
seja o Cristo?” Assim mesmo, mistu-~c pulos não entenderam a preocupaçao
rando a descoberta com a dúvida, con fundamental de Jesus com as necessi­
clamou os outros a irem ver com os seus ^ dades do povo, a ponto de esquecer a
próprios olhos. Mesmo defeituoso, seu necessidade de comida.
testemunho levou o povo da cidade a Na sua conversa com à mulher sama-
Jesus. Que grande colheita Deus pode
_ o, ritana, Jesus usou a analogia de uma
suscitar de uma semente tão pequena! fonte corrente para mostrar a ilimitada
ãbuhdahci^ 25 ^ 6^ id a £ sg iritiia l. Agora,
5) O Desafio aos Discípulos (4:31-38) ele cham a a atenção dos discípulos para
31 E n tre m e n te s , os se u s d isc íp u lo s J h e ^ , a m etáfora,d a seara, num esforço para
- ^ogaviimj. d izendo: j t a b i , _çome. 32 E le , & lh e s m o s tr a r q u e ~ ã ~ ~ c o m id a e s p ir itu a l
p o r e r i, re s p o n d e u : U m a c o m id a ten h o p a r a I , ^ ' -
c o m e r q ue vós n ão co n h eceis. 33 E n tã o os se
multiplica copiosamentêT
discípulos d iz ia m m is a o s õ íítro s : A caso a l ­ NormaÍmènlér"efa~TíecêsiaHÕ espéíàF
g u ém lhe tro u x e de c o m e r? 34 D isse-lh es durante quatro meses até que chegasse
J e s u s : A m in h a c o m id a é fa z e r a v o n ta d e da- o tempo da colheita. Jesus não se achava
quele qu e m e enviou , e c o m p le ta r a s u a o b ra .
35 N ão dizeis v ó s: A inda h á q u a tro m e s e s
no início do ciclo da colheita espiritual,
a té q u e v e n h a a c e ifa? O ra , e u vos d ig o : mas no seu término. Ãté mesmo seus
L e v a n ta i os vossos olhos, e v ed e os c a m p o s. discípulos levantaram seus olhos —
que j á e stã o b ra n c o s p a r a a c e ifa . 36 <^uem diante da chegada dos samaritanos da
c e ü a j á e s tá re c e b e n d o re c o m p e n sa e a ju n - cidade (v. 30)? — e viram quão brancos
ta n c k rfru to p a r a a v id a e t e r n a ; p a r a q u e o
q ue se m e ia e o qu e c e ifa ju n ta m e n te se (maduros) estavam os campos para a
re g o z ije m . 37 P o rq u e n isto é v e rd a d e iro o ceifa humana (cf. Mat. 9:36-38). Assim
d ita d o : U nj i o . q u e sem .eia, g o g u trfl^ojin e ^ "como a água de Deus flui com a força de
c eifa. 38 E u v o s en v iei a c e ifa r onde n ã o „, uma fonte subterrânea, a comida de
frá tia O ia ste s; o u tro s tr a b a lh a r a m , e v ó s H
e n tr a s te s no se u tra b a lh o .
Deus cresce com a força de uma semente
plantada (cf. Mar. 4:3, 29,32). Aquele
Ao mesmo tempo que a mulher com­ que ceifa dessa comida espiritual é du­
partilhava o que aprendera junto ao poço plamente recompensado com salários e
de Jacó, os discípulos evidenciavam a ^4- frutos, não para uma estação, mas para a
necessidade, que tinham, de descobrir as<Ç vida eterna (cf ov. 14b).
mesmas verdades. A exemplo da mulher, Os discípulos poderiam participar
eles estavam mais preocupados com o dessa colheita sem problemas, devido
sustento físico: Rabi, come. Respon­ a uma divisão de trabalho evidenciada
dendo-lhes, Jesus mostrou que já, havia num proveflnõ populan üm planta e
muito, possuía os recursos interiores que outro colhe.( Eles) não tinham feito o
oferecera à mulher: Uma comida tenho trabalho de plantar. Outros os haviam
para comer que vós não conheceis. precedido," õ m o (7próprioüesus74:7^26),
Não entendo a referência de Jesus ao possivelmente /"João BaüstaJ~(3:23) ou
alimento espiritual, do mesmo modo que ainda uma porçao de profetas do Velho
fizera a mulher, ao ele fazer alusão à JTestamenlQ- a c o m e ç a r p o r ^ foil^ D
bebida espiritual, os discípulos lhe inda­ Chegado o tempo da colheita, os discí-'
garam se alguém (a mulher?) lhe trou­ pulos podiam entrar no trabalho de
xera de comer. Percebendo sua confusão,
wvímv»» preparação de seu novo papel como.
* Vi vvi/viiv*w awu wiiiWDUVj p iv ^ a iu y <

Jesus explicou que sua comida era fazer a (__ceifeiros.


vontade e a obra de Deus (compare com Não quer isso dizer que alguns fazem o
v. 15, onde a mulher quis o sustento trabalho e outros ficam com os méritos,
interior basicamente por razões pes- Na solidariedade do povo de Deus, se-
soais). Como ainda não compreendessem meador e ceifeiro regozyam-se juntos
quando todo o trabalho chega ao fim. conhecimento de sua pessoa. Esta con­
Assim sendo, o privilégio de colher traz fissão não podia, de modo algum, con­
condigo a.urgente responsabilidade de vencer alguém das verdades centrais,
aprçmeitar os esforços de. tantos por tanto reveladas nos versos 7 a 26. Segundo,
Jemjx). Este paradoxo de graça e exigên­ as palavras da mulher mediaram-lhes um
cia está implícito na comissão de Cristo a contato indireto com Jesus, ao passo
j- a d a n tn do s d is c íp u lo s : Eu vos enviei a que o testemunho dele próprio os con­
ceifar onde não trabalhastes. Hoje, mais citou a ouvi-lo por si mesmos, mediante
do que nunca, herdamos gratmfamente o um contato direto. Assim, como o fora
trabalho desenvolvido ao longo dos no caso de João Batista (3:26), muitos
séculos. E um imperativo, para nós, mais creram por causa da palavra dele
porém, que sejamos bons mordomos no e não por causa do relato secundário da
1trabalho em conjunto para uma farta
ceifa.
mulher. Este evangelho foi escrito na
certeza de que a fé, que nasce pelo tes­
temunho dos crentes, encontra sua ex­
6) A Resposta dos Samaritanos (4:39-42) pressão mais legítima na resposta ao
auto-testemunho de Jesus, tornado pes­
39 1D m u ito s s a m a rita n o s d a q u e la cid a d e
c re r a m n ele, p o r c a u s a d a p a la v r a d a m u ­
soal e imediato através do ministério do
lh e r, ' q u e te s tif ic a v a : E le m e d isse tu d o Espírito Santo (cf. 14:26; 15:26,27;
q u an to ten h o feito . 40 In d o , p o is, t e r co m ele 16:13-15).
os s a m a rita n o s , ro g a ra m -lh e q u e fic a sse
com e le s ; e ficou a li dois d ia s. 41 E m u ito s 6. A Nova Vida (4:43-54)
m a is c r e r a m p o r c a u s a d a p a la v r a d e le ;
42 e d iz ia m à m u lh e r: J á n ão é p e la tu a
Com esta passagem, chegamos ao clí­
p a la v r a que n ó s c re m o s ; p o is a g o ra nós max, num ciclo de seis relatos, que ilus­
m e s m o s te m o s ouvido e sa b e m o s q u e e s te é tram a nova era, inaugurada por Jesus
v e rd a d e ira m e n te o S a lv a d o r do m undo. (caps. 2 a 4). Depois de se ver como
Cristo veio para cumprir a velha ordem,
A resposta dos samaritanos eviden­
ao oferecer uma nova alegria (2:1-12),
ciou, de modo dramático, a abundante
ceifa produzida pela obra preparatória nova adoração (2:13-25), novo nasci­
mento (3:1-21), nova liderança (3:22-36)
de Jesus. De início, ele não passara de
e nova comunhão (4:1-42), fica agora
um homem cansado e sedento, sozinho
claro que seu dom maior era o da própria
à beira de um poço (v. 6 e 7), mas agora
vida nova. Isto já fora sugerido na edi­
ele era recebido como o Salvador do
ficação de um templo destruído (2:19),
mundo. De início, foi visto como um
na possibilidade de “nascer de novo”
judeu que não mantinha relações com os
(3:3), na entrada, agora, na “vida eter­
samaritanos (v. 9), mas agora era con­
na” (3:16,36) e na descrição da água viva
vidado a ficar com eles, o que fez por dois
e dos frutos colhidos como sendo “de/
dias. De início, apenas conseguira con­
vencer uma mulher de baixa reputação para a vida eterna” (4:14,36).
Agora, entretanto, estas antecipações
(v. 29), mas agora muitos samaritanos
se fazem mais explícitas, no tríplice re­
da cidade creram nele.
Este resumo visa traçar os estágios por frão: “Teu filho está vivo” (v. 50,51,53).
Como o Quarto Evangelho usa sempre o
que passou a fé entre os samaritanos.
verbo viver (zaõ) e o substantivo vida
Inicialmente, muitos creram em Jesus
(zôé), para se referir à forma da exis­
por causa da palavra da mulher, apesar
tência qualitativamente diferente, de
de apresentar dois defeitos. Primeiro, o
Deus, parece que este milagre de res­
conteúdo do seu testemunho (Ele me
tauração física reflete — como a ressurrei­
disse tudo quanto tenho feito cf. v. 16-
ção de Lázaro (11:25) — o poder de Jesus
19,29) baseava-se mais no reconheci­
conferir a vida espiritual duradoura.
mento do poder de Jesus do que num
Tanto pela sua localização quanto pela versos 43-54, porém, a preocupação recai
sua forma literária, esta unidade visa a sobre a- relevância de Jesus para um in-
primeira grande seção do “livro dos dívuo que poderá morrer sem a vida
sinais” (caps. 2 a 4). A menção da Gali- eterna. De modo claro, o Evangelho se
léia em geral e de Caná em particular é mostra igualmente preocupado em trans­
uma lembrança proposital de 2:1-12, o formar a qualidade de nossa comunhão
que estava interessado o evangelista em externa de uns com os outros e nossa fé
destacar (4:46,54). A estrutura do se­ interior para com Deus. Dividir o evan­
gundo milagre de Caná mantém uma gelho segundo seus aspectos “pessoais”
impressionante semelhança com a do e “sociais” é artificial, uma vez que a
primeiro. Em ambos os casos, uma exi­ obra salvadora de Jesus engloba ambos.
gência inusitada foi feita de Jesus (2:3;
4:47), apenas para compensar sua recusa 1) A Volta àGalüéia (4:43-45)
inicial (2:4; 4;48). A preocupação insis­
'43 P a s s a d o s os d o is d ia s , p a rtiu d a li p a r a
tente do suplicante (2:5; 4:49), entre­ a G a lilé ia . 44 P o rq u e J e s u s m e s m o te s tifi­
tanto, provocou uma pronta intervenção cou q u e u m p ro fe ta n ã o re c e b e h o n ra n a su a
de Jesus, cujas supreendentes instruções p ró p ria p á tr ia . 45 A ssim , p o is, q u e c h eg o u à
foram seguidas sem questionamento G alilé ia, os g a lile u s o re c e b e r a m , p o rq u e
(2:6-8; 4:50). Isto gerou, por sua vez, a tin h a m v isto to d a s a s c o isa s q u e fiz e ra e m
J e r u s a lé m n a o c a siã o d a fe s ta ; p ois ta m ­
descoberta de que uma dramática n.u- b é m e le s tin h a m Ido à fe s ta .
dança acontecera (2:9,10; 4:51-53a),
visto como um sinal indicador de fé Após ministrar em Jerusalém (2:13-
(2:11; 4:54b). Este paralelismo, meti­ 3:21) e na Judéia (3:22-36), Jesus deixou
culosamente urdido, é uma maneira se­ Samária (4:1-42), passados dois dias
mítica de mostrar o início e o fim de um (cf. v. 40) e partiu para a Galiléia, que,
ciclo literário comum. aos olhos de alguns judeus, era como ir
Ao mesmo tempo, como unidade de aos limites exteriores da Terra Santa (cf.
transição, 4:43-54 também prepara para At. 1:8). A própria palavra Galiléia era a
a próxima grande seção do “livro dos abreviação de uma frase hebraica (ga-
sinais” (cf. 5-10). Lá, o tema da vida que lil-ha-goyim), significando o “círculo
emerge aqui será amplamente desenvol­ (isto é, região, distrito) dos gentios (isto
vido e enriquecido (exemplo: 5:21-29; é, pagãos, estrangeiros).” Esta parte
6:26-58). Ademais, o cerne do conflito, norte da Palestina fora submetida pela
antecipado, aqui, pela referência a Jesus força e reincorporada ao território judeu
como um profeta “sem honra em sua havia pouco menos de um século atrás
própria terra” (4:44), será elaborado (103 a.C). Mesmo os judeus que viviam
dentro das compridas sombras de Jeru­ na Galiléia eram vistos, por seus com­
salém. Desse modo, o paradoxo central patriotas da Judéia, como ignorantes da
de João 5-10, segundo o qual Jesus pro­ Lei. Ao voltar a esta cultura, ampla­
vocou a morte ao oferecer a vida, tem um mente secularizada com sua concentra­
prenúncio eficaz em 4:43-54. ção de não-judeus, Jesus estava reali­
Embora esta passagem funcione basi­ zando o papel atribuído a ele, pelos sa-
camente em relação às porções maiores maritanos, de “Salvador do mundo”
que lhe dão sentido (caps. 2-4; 5-10), (v. 42).
vale a pena contemplar a maneira como Ironicamente, Jesus trocou o judaísmo
esta última parte de João 4 harmoniza a pelo paganismo, onde foi muito melhor
primeira parte do capítulo. Nos versos recebido. Em Jerusalém, as respostas
1-42, a ação de Jesus encontra profundas foram diversas e superficiais (2:20, 23-
implicações para os problemas raciais, 25; 3:10); na Judéia, foram mais amplas
sexuais e ecumênicos de seu tempo. Nos e entusiásticas, embora frustradas pela
falsa idéia de competição (3:22,26-30); Luc. 7:1-10). Quando ele soube que Jesus
em Samária, porém, tornaram-se pro­ tinha vindo da Judéia para a Galiléia
fundas, apesar de um começo difícil (um refrão de ênfase muito usado em
(4:39-42). Aqui, entretanto, os galileus o 4:3,43,47,54), veio de Cafarnaum para
receberam bem assim que chegou, com Caná, para interceder pela cura de seu
base no que ele fizera em Jerusalém na filho, que estava à morte. Uma indica­
ocasião da festa. ção desta urgência é evidenciada pela
Os muitos feitos que tinham enfure­ mesma inferência tirada do fato de que
cido ou confundido o judaísmo oficial caminhou os árduos 25-30 quilômetros
lhes trouxeram regozijo aos corações. da viagem, do litoral ao altiplano, num
Este modelo de resposta levou o próprio só dia, desde a manhã (cerca de seis
Jesus a afirmar a profunda veracidade do horas) até a hora sétima (cerca de 13
provérbio, segundo o qual um profeta horas).
não tem honra em sua própria terra à primeira vista, pode parecer cruel,
(cf. Mat. 13:57; Mar. 6:4). No principal por parte de Jesus, ter saudado, tamanho
centro da nação santa, em Jerusalém, os desespero paternal, com uma inesperada
seus não o receberam (cf. 1:11), en­ réplica: Se não virdes sinais e prodígios,
quanto na periférica Galiléia encontrou de modo algum crereis. O vós, no plural,
uma receptividade entre aqueles que não indica que o que Jesus lhe disse visava,
estavam embotados pela tradição de uma basicamente, a multidão ali reunida. Ele
herança altiva (cf. Mat. 4:12-17). desejava saber se o funcionário aflito
viera até ele com preocupações mais
2) A Cura do Filho de um Oficial do Rei profundas do que os insaciáveis desejos,
(4:46-54) daqueles galileus, por feitos espetacula­
res como os que haviam visto em Jeru­
46 F o i, e n tã o , o u tr a vez a G an á d a G ali-
lé ia , onde d a á g u a fiz e ra vinho. O ra , h a v ia salém (v. 45). A suplicante resposta,
u m o ficial do re i, cu jo filho e s ta v a e n fe rm o Senhor, desce, antes que meu filho mor­
e m C a fa rn a u m . 47 Q uando ele so u b e que ra, não deixou dúvida de que o funcio­
J e s u s tin h a vindo d a J u d é ia p a r a a G aliléia, nário queria a Jesus mesmo, e não um
foi te r co m e le, e lhe ro g o u q u e d e sc e sse e
lhe c u ra s s e o filh o ; p o is e s ta v a à m o rte .
espetáculo do qual pudesse participar.
48 E n tã o J e s u s lhe d is s e : Se n ã o v ird e s Seu gesto mostrava, ainda, que ele que­
sin a is e p ro d íg io s, d e m od o a lg u m c re re is . ria Jesus para a cura de seu filho, e não
49 R ogou-lhe o ficial: S en h o r, d e sc e a n te s para a satisfação de seus desejos pes­
q ue m e u filho m o r ra . 50 R esp o n d eu -lh e soais.
J e s u s : V ai, o te u filho v iv e . £ o h o m em c re u
n a p a la v r a q ue J e s u s lh e d is s e ra , e p a rtiu . A resposta de Jesus deve ter desagra­
51 Q uando e le j á ia d escen d o , sa íra m -lh e dado profundamente àqueles que pro­
ao e n c o n tro os se u s se rv o s, e lh e d is s e ra m curavam por sinais e maravilhas, pois
que se u filho v iv ia . 52 P e rg u n to u -lh e s, pois, ele não foi com o oficial, como lhe fora
a qu e h o ra c o m e ç a ra a m e lh o r a r : a o q u e lhe
d is s e ra m : O n te m à h o ra s é tim a a fe b re
solicitado, e nem lhe deu uma prova
o deixou. 53 R eco n h eceu , p o is, o p a i s e r tangível de que cura ocorreria. Antes,
a q u e la h o ra a m e s m a e m q u e J e s u s lh e despachou-o com nada mais do que uma
d is s e ra : O te u filho v iv e ; e c re u e le e to d a promessa: Vai, o teu filho vive. Era
a s u a c a s a . 54 F o i e s ta a se g u n d a v ez que necessário uma fé realmente sólida para
J e s u s , a o v o lta r d a J u d é ia p a r a a G aliléia,
a li o p ero u sin a l. que este pai prestimoso se dispusesse a
voltar para casa firmado apenas em
O exemplo mais marcante desta re­ palavras, mas o homem creu na palavra
cepção favorável, na Galiléia, veio um que Jesus lhe dissera, e partiu. Ele viera
oficial ligado à corte real (basilikos), temeroso de que seu filho morresse, mas
possivelmente um gentio com algum encontrou em Jesus alguém tão profun­
interesse pelo judaísmo (cf. Mat. 8:5-13; damente consciente de seu poder que
ficou seguro de que a vida triunfaria. Jesus recusou, de pronto, substituir um
O oficial imbuiu-se desta convicção e compromisso interior por qualquer
se pôs a caminho de volta. Jesus não prodígio externo, como fundamento para
apenas despertou sua fé, mas, num sen­ um relacionamento duradouro com
tido mais profundo, o levou a ter fé na fé Deus.
de Jesus! Segundo, no verso 50, a fé, vista como
E esta verdade não poderia ser desa­ uma confiança obediente na palavra de
pontada. Impossibilitado de partir antes Jesus, torna-se o fundamento para que al­
da hora sétima (13 horas), só chegou a guém se encha de esperança de que a vida
Cafarnaum à noite, sendo obrigado a triunfará sobre a morte. Em lugar de um
gastar uma longa noite de volta para milagre para criar a fé, uma noção re­
casa. No dia seguinte, saíram-lhe ao jeitada no verso 48, a fé fornece a pers­
encontro os seus servos, com a boa-nova pectiva pela qual o milagre pode ser
de que seu filho vivia. Quando soube compreendido de modo correto. O alto
que, no dia anterior, a febre o deixou oficial não viu sinais e maravilhas, por­
na mesma hora que Jesus lhe dera sua que Jesus operou como um Senhor fisi­
garantia, o oficial creu, bem como toda a camente ausente, que fez o milagre à
sua casa. A concomitância da cura não distância. A falta de técnicas visíveis, ou
foi uma coincidência, mas uma provi­ fórmulas perceptíveis, apontou para
dência confirmatória de que Deus con­ Deus como o último recurso de cura.
firmara aquelas palavras de Jesus, que o
alto oficial trouxera de Caná em espe­ Terceiro, no verso 53, a crença é vista
rança. num sentido absoluto, como a confirma­
^Como o segundo sinal feito por Jesus ção divina, através dos eventos da histó­
na Galiléia, esta história tem como signi­ ria, da confiança de alguém na palavra
ficado uma verdade espiritual que seria de Jesus. Neste último estágio, o milagre
percebida apenas pela fé. De acordo com não é o fundamento da esperança, mas a
a ênfase observada ao longo dos capítulos vindicação de uma esperança já desper­
2,3 e 4, distinguem-se três níveis de fé, tada por Jesus. É loucura basear a con­
nesta história, cada um fornecendo uma fiança na visão de sinais e maravilhas,
compreensão diferente do sentido dos pois a nova era ainda não começou (isto
sinais. é, a morte ainda não foi inteiramente
Primeiro, no verso 48, a crença baseada abolida). Depositar, porém, a confiança
apenas em sinais e maravilhas visíveis é na palavra de Jesus significava fé verda­
sumariamente rejeitada. Os milagres não deira, pois ele era o agente da nova era
podem jamais ser um fundamento ade­ que mediava em prolepse as realidades
quado para a fé. Por exemplo, um inci­ do fim dos tempos.
dente bastante idêntico a este é regis­ Aqueles que encontraram em Cristo a
trado no Talmude Babilónico, em que chave para a realidade última terão sua
o filho do rabino Gamaliel foi curado fé fortalecida pela “ruptura” particular
exatamente no momento em que o rabino que antecipava a vida da era porvir.
Hanina orou por ele e mandou os men­ Os servos viram a cura, mas não com­
sageiros de volta, com a promessa de que preenderam seu profundo significado
a febre passara (Berakoth, 34b). Se a fé (isto é não era para eles um sinal), por­
fosse proporcional à espetacularidade de que não tinham estado diante de Jesus.
atos poderosos, poder-se-ia crer no ra­ O alto oficial, porém, que tinha se fir­
bino Hanina do mesmo modo que no mado na palavra de Jesus, sabia que essa
rabino Jesus! Conhecedor da incons­ cura não se constituíra numa simples
tância das expectações humanas e da coincidência, mas era uma indicação
ambigüidade das humanas percepções, clara que apontava para Jesus como o
Senhor da era porvir, quando a vida seria identifica como o pão da vida (6:35,
eterna e a morte não mais existiria. 41, 48, 51), a luz do mundo (8:12), a por­
ta das ovelhas (10:7,9) e o bom pastor
II. A Resistência ao Revelador (10:11-14).
(5:1-10:42) Como vimos, todos estes predicados
são metáforas básicas, usadas desde o
Nos capítulos 2, 3 e 4, descreve-se, em Velho Testamento, para descrever uma
viva sucessão, seis dons da nova era. realidade espiritual. Ao relacioná-los
Jesus, entretanto, continuava a insistir com egõ eimi, Jesus identificou sua pes­
nos fundamentos, apresentando-se como soa com sua obra. Por exemplo, ele dava
o- doador, em sentido absoluto (2:9; o pão e era o pão; isto é, ele era a dádiva x
4:1-3, 50) ou apenas em sentido parcial e o doador ao mesmo tempo. Reside
(2:19; 3:13-15; 4:26). aqui a convicção central dos capítulos
Como era de esperar, no entanto, 5 a 10: já que Jesus veio para se oferecer
urgia que fossem respondidas as per­ a si mesmo, é impossível uma avaliação
guntas acerca de suas credenciais de final de sua obra fora de uma avaliação
agente do cumprimento divino. Desse de sua pessoa. Jesus insistia que seu ser
modo, o foco, nos capítulos 5 a 10, sai interior e sua missão divina eram inse­
dos dons para o doador, de uma com­ paráveis!
preensão sêxtupla da obra do Messias A sinistra hostilidade dos judeus per-
para uma compreensão de sua pessoa. manece com um dramático contraste em !
Jesus, então, é apresentado como a auto­ relação às afirmações de transcendência |
ridade da vida (5:1-47), o pào da vida feitas por Jesus (cf. 5:16,18; 6:41, 66; 7:1,
(6:1-71), a água da vida (7:1-52), o juiz 19,25,30; 8:37,40,59; 9:16, 29^34; 10:31, j
da vida (8:12-59), a luz da vida (9:1-41) 39). Nesta seção, o conflito não atingiu-^
e o pastor da yida (10:1-42). seu ponto de ruptura, caracterizando-se,
Esta mudança fica evidente no uso, antes, por respostas-tentativas cheias de
cada vez maior, da expressão “eu sou” dúvidas e incertezas, e oscilantes entre a
(egõ eimi). 17 Nos capítulos 2 a 4, a ex­ aceitação e a rejeição (ex. 6:41, 52, 60,61;
pressão é usada apenas uma vez (4:26), 7:12,13, 30-32, 40-44; 9:16; 10:19-21).
numa acepção genérica e antecipatória, Bastante reveladora, nestas passagens,
enquanto em 5 a 10, ela ocorre mais de são a nota dissonante de que muitos
doze vezes, em conexão com as afirma­ “murmuravam” acerca de Jesus (6:41,
ções cristológicas centrais. Muito pouco 43,61; 7:12,32) e o refrão sintetizador:
usada é a forma absoluta sem qualquer “Houve uma dissensão (schisma ou cis­
predicado (6:20; 8:24, 28, 58), pela qual ma) entre o povo por causa dele” (7:43,
Jesus aplicasse a si mesmo uma auto- 9:16; 10:19).
designação divina do Velho Testamento A dinâmica em operação, nessa dis­
com a finalidade de revelar o ser eterno cordância, representava uma mudança
de Deus em sua própria vida eterna (cf. decisiva de Israel diante de duas alterna­
Êx. 3:14, Is. 43:10). Diante deste funda­ tivas irreconciliáveis., colocadas por Jèsus
mento, o uso de “eu sou” como um e pela liderança judaica. O julgamento (J)
predicado nominal acrescenta maior sig­ dado ao Filho (5:22-30) começara a se
nificado. Nos capítulos 5 a 10, Jesus se realizar. A grande apostasia tomava
lugar, não porque algum anticristo apo­
17 Para maiores detalhes sobre egò eimi, veja E. Stauffer calíptico aparecera no tempo da tri- . /
e F. Buechsel, em Kittel, TDNT, II, p. 352-354 e bulação cósmica (cf. I João 2:18-22), mas
399 e 400; Raymond Brown, The Gospel According porque o Cristo encarnado aparecera
to John, “The Anchos Bible” (Garden City: Doubleday
& Co. Inc., 1966), XXIX, p. 533-538; C.H. Dodd, entre seu povo e o convocara para o ca­
Interpretation, p. 93*96. minho que Deus lhe preparara.
Õ caráter dramático deste conflito foi nas? Esta é a questão a que todos estes
ainda mais enfatizado graças à colocação capítulos responderão com as mais pro­
de cada controvérsia no contexto de ura _ fundas respostas do Novo Testamento.
festival religioso judaico.18 O capítulo 5
1. A Autoridade da Vida (5:1-47)
L—se-relaciona com a “festá dos judeus”
não identificada (v. 1), o capítulo 6 com a João 5 serve, de forma admirável,
“Páscoa, a festa dos judeus” (v. 4), os como uma introdução à unidade maior,
capítulos 7 a 9, com a “festa dos judeus, compreendida entre os capítulos 5 a 10.
a dos tabernáculos” (7:2) e o capítulo 10 Não só desenvolve de modo eficaz os
com a “ festa da dedicação” , em Jerusa­ temas paradoxais de conflito e dinamis­
lém (v. 22). Estas celebrações nacionais mo introduzidos na seção anterior (4:43-
perpetuavam a memória das grandes 54), mas seu milagre de abertura (5:l-9a)
épocas de redenção cie Israel no passado __ explica a razão do poder limitado da
é antecipavam suas esperanças mais glo­ água terrena que percorre os capítulos
riosas para o futuro. 2 a 4 (cf. 2:6-8; 3:5; 4:1-3; 4:12-15). Mais
Ao utilizar estes recursos, para destá- 1 do que isso, a discussão básica da auto­
car suas afirmações, Jesus ligou toda a ridade de Jesus, no capítulo 5, prepara
extensão da história sagrada à sua curta o debate sobre a validade do seu mi­
missão. Ademais, ao identificar-se com - nistério que domina os capítulos 5 a 10.
os símbolos fundamentais usados nas, Os princípios cristológicos aqúi enuncia­
liturgias--festivas (exemplo: “Eu sou” dos dão o fundamento sobre como com­
o pão, água, luz), Jesus queria dizer que preender suas reivindicações de ser pão,
era a realidade para a qual o ritual água, juiz, luz e pastor.
apontava. O incrível significado destas Os estudiosos há muito reconhecem
afirmações só pode ser apreciado ple­ que a colocação do capítulo 6 antes do 5
namente quando num ambiente de culto, melhoraria a seqüência topográfica na
onde o simbolismo tem como alvo claro narrativa evangélica. Na atual colocação
indicar diretamente para Deus. Jesus viajou de “Caná da Galiléia” (4:46)
Podemos agora compreender a ques­ “a Jerusalém” (5:1), daí “para o outro
tão central entre Jesus e os judeus em lado do Mar da Galiléia” (6:1) e, “depois
João 5-10. De um lado, Jesus reivindicou disto andava Jesus pela Galiléia” (7:1).
o cumprimento das Escrituras e a ins­ É desnecessário dizer que estamos diante
tauração da nova era. Ele aplicou a si de um itinerário de difícil, conexão!
mesmo os símbolos escriturísticos usados A reorganização proposta relacionaria os
no culto e reservados exclusivamente dois milagres ocorridos nos lados opostos
para Deus. Insistiu em exercer prerro­ do Mar da Galiléia (4:46; 6:1), bem
gativas divinas como o Filho unigénito de como, obviamente, o que é relatado em
seu Pai. De outro lado, os judeus o viam 5:1-47 e 7:15-24.
como alguém que violava a lei do sábado Entretanto, esta solução bem pondera­
(5:18), ignorante dos estudos rabínicos da — e que representa também um es­
(7:15) e cujas origens eram obscuras forço para aproximar o Quarto Evan-
(7:27, 41, 52) ou mesmo questionáveis gèlho um pouco mais dos Sinópticos —
(8:19, 41). Ç).problema crucial posto por esquece a importante consideração de
estas evidências conflitantes era o da . que João 5 fornece os pressupostos cris­
legitimidade. Como poderiam as reivin­ tológicos para Joâoj6, devendo, portan­
dicações de Jesus ser conferidas diante da to, precedê-lo. Certamente, o autor es­
ausência absoluta de credenciais huma­ tava consciente dos problemas das re­
ferências geográficas, mas não as levou
18 Sobre o contexto das festas em João 5-10, veja T.C
Smith, Jesus in the GospeJ of John (NashviUe: Bro- em consideração, já que faziam parte
adman Press, 1959), p. 144-183. integrante dos incidentes que relatava.
Nenhum esforço foi feito para ordenar o e, segundo, porque qualquer texto esco­
texto numa seqüência topográfica, por­ lhido tem o problema da sintaxe ambí­
que a preocupação central estava no bem gua.
urdido desenvolvimento teológico. Os ar- A tradução da RSV (Revised Standard
“ gumentos quanto aos fatos em Jerusa­ Verslon) assume que há um tanque co­
lém, de João 5, podem ter ocorrido cro­ nhecido pelo nome hebraico de Betesda,
nologicamente depois das disputas gali- com cinco alpendres ao seu redor, e que
leanas de João 6; como eram, porém, este tanque devia se localizar próximo à
logicamente, precedentes, foram coloca­ porta das ovelhas. A tradução da NEB
dos antes, a fim de facilitar a peregrina­ (New English Bible), no entanto, afirma
ção do leitor no terreno da fé. que “ovelha” era o nome do volume de
água, e não de um portão próximo (em
1) À Cura de um Homem Paralítico grego, não há uma palavra para portão),
(5:l-9a) consistindo numa construção de “cinco
1 D epois d isso , h a v ia u m a f e s ta dos j u ­ colunatas” , e não no poço que tinha
d e u s; e J e s u s su b iu a J e r u s a lé m . 2 O ra, e m nome hebraico, devendo ainda, ser so­
J e r u s a lé m , p ró x im o à p o rta d a s o v elh as, letrado como “Betesda” , e não como
h á u m ta n q u e , c h a m a d o , e m h e b ra ic o , Be- Betsaida.
te s d a , o q u a l te m cinco a lp e n d re s . 3 N e ste s
ja z ia g ra n d e m u ltid ã o d e e n fe rm o s, cegos,
Entre estas diferenças, a tradução da
m a n c o s e re s s ic a d o s (e s p e ra n d o o m o v im e n ­ NEB deve ser escolhida como a melhor.19
to d a á g u a ) . 4 (P o rq u a n to u m a n jo d e sc ia É provável que na área ao norte do
e m c e rto te m p o a o ta n q u e , e a g ita v a a á g u a ; Templo se localizasse um “Poço das Ove­
e n tã o o p rim e iro q ue a li d e sc ia , dep o is do lhas” , assim folcloricamente chamado
m o v im ento, s a r a v a de q u a lq u e r e n fe rm id a ­
d e q ue tiv e s s e .) 5 A ch av a-se a li u m h o m e m em função da rota da ovelha destinada ao
que, h a v ia tr in ta e oito an o s, e s ta v a e n fe r­ sacrifício no Templo ou da coloração
m o. 6 J e s u s , vendo-o d e ita d o e sa b e n d o q u e vermelha da sua água, sugerida pelo
e s ta v a a s s im h a v ia m u ito tem p o , p e rg u n ­ sangue do animal abatido. A esta bacia
tou-lhe: Q u eres fic a r sã o ? 7 R esp o n d eu -lh e
o e n fe rm o : S en h o r, não ten h o n in g u é m q u e ,
dupla (um lado para homens e o outro
ao s e r a g ita d a a á g u a , m e p o n h a no ta n q u e ; para mulheres), usada talvez, pelos pe­
a s s im , e n q u a n to eu vou, d e sc e o u tro a n te s regrinos do Templo, para suas purifica­
de m im . 8 D isse-lhe J e s u s : L e v a n ta -te , to m a ções rituais, Herodes acrescentou cinco
o te u le ito e a n d a . 9 Im e d ia ta m e n te o h o ­ pórticos, que cercaram os quatro lados e
m e m ficou s ã o ; e, to m an d o o s e u leito , co ­
m eço u a a n d a r. dividiram as duas seções ao meio. Ao
tempo de Jesus, toda esta estrutura deve
Uma festa dos judeus não identificada ter sido o balneário público mais impo­
propiciou a oportunidade para Jesus dei­ nente de Jerusalém.
xar para trás sua popularidade na Gali- Como as águas fossem famosas, por
léia (4:45,54) e ir a Jerusalém como um seus poderes terapêuticos, o poço tinha
profeta “sem honra em sua própria ter­ atraído uma multidão de enfermos, ce­
ra” (4:44). Nos dois lugares, sua palavra gos, mancos e ressicados. Um homem
trouxe vida para vivos e mortos (4:50; achava*se ao lado das colunas ornadas,
5:8); no norte pagão, porém, a cura próximas à margem do poço, que havia
gerou fé, enquanto, "no sul religioso, pro­ trinta e oito anos, estava enfermo — o
vocou perseguição (5:16), e isso durante tempo da peregrinação de Israel no de­
a estação sagrada de uma celebração serto (Deut. 2:14). Com sua sensibilidade
litúrgica!
Ê difícil saber o lugar em Jerusalém 19 A versão NEB, e improvavelmente a RSV, foi prepa­
em que os fatos se deram, primeiro, rada após a importante contribuição de Joachin Jere­
mias, The Rediscovery of Bethesda: John 5:2, “ New
porque os manuscritos antigos mostram Testament Archaeology Monograph” , 1 (Louisville:
inúmeras variações na grafia do verso 2 Southern Baptist Theological Seminary, 1966), p. 9-38.
característica (cf. 2:25), Jesus notou que obediência a esta palavra de um estran­
estava assim havia muito tempo; então geiro (cf. 4:50). Jesus não julgara mal a
procurou despertar sua vontade e lhe ex­ intensidade dos seus anseios. Mesmo à
citar sua esperança com a pergunta: falta de provas tangíveis de que o vigor
“Queres ficar são? A sensação de neces­ que ele agora sentia era adequado e sem
sidade, embora intensa, não é suficiente qualquer presságio favorável das águas
como único impulso para buscar ajuda, que tanto o fascinara, o paralítico deses­
pois a necessidade somada à frustração perançado colocou-se sobre seus pés, to­
pode conduzir facilmente a uma forma mou o seu leito e se foi.
de vida inútil. S6 quando o desespero se /
junta ao desejo é que a pessoa buscai - ^ 2) A Crítica dos Judeus (5:9b-18)
auxilio, independentemente do risco que, ' O ra, a q u e le d ia e r a sá b a d o . 10 P e lo q u e
isso possa envolver. Além disso, a doença" 'd is s e r a m os ju d e u s a o q u e fo ra c u ra d o :
pode ensejar alguém a fugir de sua res­ ; H oje é sá b a d o , e n ão te é lícito c a r r e g a r o
ponsabilidade ou a receber a atenção que leito. 11 E le , p o ré m , lh e s re s p o n d e u : A quele
[ que m e c u ro u , e sse m e s m o m e d is s e : T o m a
de outra maneira não teria. Isto quer c o te u le ito e a n d a . 12 P e rg u n ta ra m -lh e , p o is :
dizer, que nem toda pessoa enferma ;■ q u em é o h o m e m q u e te d is se : T o m a o te u
queira realmente sarar. s- leito e a n d a ? 13 M a s o q u e fo ra c u ra d o
n ã o s a b ia q u e m e r a ; p o rq u e J e s u s se re-
A aflita resposta do inválido sugeriu -• ti r a r a , p o r h a v e r m u lta g e n te n a q u e le lu-
quão facilmente o desespero podia tor­ . g a r. 14 D epois J e s u s o en c o n tro u no te m ­
nar-se em sua segunda natureza. Ele não \ plo, e d isse -lh e : O lha, j á e s tá s c u ra d o :jn ã o
apenas estava sem esperança fisicamen- > " p eq u es m a is, p a r a q u e n ã o te su c e d a c o isa
te, çomo também, parece, era desprovido .,i p io r. 15 R e tiro u -se , e n tã o , o h o m e m , e con-
i to u a o s ju d e u s q u e e r a J e s u s q u e m o c u ra -
de amigos, já que ninguém o ajudara a .j r a . 16 P o r isso o s ju d e u s p e rs e g u ia m a Je -
entrar no tanque quando a repentina ; su s, p o rq u e fa z ia e s ta s c o isa s n o sá b a d o .
agitação das águas convidava a uma res- J 17 M as J e s u s lh e s re s p o n d e u : M eu P a i tr a -
posta imediata. 20 Por isto, embora ar­ , b a lh a a té a g o ra , e e u tra b a lh o ta m b é m .
' 18 P o r isso , p o is, os ju d e u s ainda, m a is p ro-
rastasse seu corpo em direção à água, é c u ra v a m m a tá -lo , p o rq u e n ã o só v io la v a o V
claro que nenhum inválido ou coxo che­ sá b a d o , m a s ta m b é m d iz ia q u e D eu s e r a se u '
garia primeiro. É interessante observar p ró p rio P a i, fazen d o -se ig u a l a D eus.
que nenhum daqueles que receberam a
cura desta forma ficaram ou voltaram Para os judeus, a cura de um coxo
para ajudar os companheiros menos teve um sentido completamente diferen­
afortunados, de cuja sorte, havia pouco, te, porque o dia em que ocorreu foi o
participavam. sábado. Esta observância servia como
uma rememoração semanal do descanso
Apesar de tantos desapontamentos, de Deus no sétimo dia da criação (Êx.
um homem ainda continuava ali, em 20:11) e como uma antecipação ritual do
busca de sua cura. Jesus desafiou esta descanso prometido da era messiânica
centelha de esperança com a ordem: Le­ (cf. Heb. 4:1-10). A palavra hebraica
vanta-te, toma o teu leito e anda (cf. shabbath, significa a cessação da ativi­
Mar. 2:9-12). Enquanto a água próxima dade ou ausência de trabalho. O Mlsh-
dele tinha poderes limitados (cf. 4:7-15), nah proibia 37 tipos de trabalho, o úl­
a verdadeira restauração poderia vir na timo dos quais era “mudar qualquer
coisa de um lugar para outro” (Shabba-
20 Este fenômeno da movimentação das àguas pode ter
sido o efeito causado ou pelo jorro repentino de uma
th, 7:2; cf. Jer. 17:19-27). Como estes
fonte intermitente ou pelo complicado sistema de dre­ regulamentos foram introduzidos, possi­
nagem do duplo tanque. A lendária afirmação, que velmente, durante o período neotesta-
atribui a movimentação das àguas a um anjo foi inter­
calada nos versos 3b-4 em muitos dos manuscritos mentário, não era lícito, ao homem, car­
antigos, mas não faz parte do texto original. regar seu leito no sábado.
Tão preocupados estavam seus acusa­ nhecido e desacreditado, poderia liber­
dores com esta quebra da tradição legal tar homens da restrição destas venerá­
judaica, que não demonstraram qual­ veis leis que tinham caracterizado a vida
quer interesse no motivo do comporta­ judaica durante séculos? Como a socie­
mento do homem ou na felicidade que dade nunca sabe a intenção última de um
lhe sobreviera (cf. Mar. 3:1-6). Obvia­ transgressor da lei, ao se recusar a acei­
mente, intimidado pelas ameaças feitas tar as convenções, o melhor caminho é
pelos lideres religiosos, o homem passou suprimi-lo, antes que o frágil sistema da
logo a responsabilidade dos seus atos ordem pública seja ameaçado de colapso.
para Jesus, testemunhando, assim indi­ Ao responder a este ataque, Jesus não
retamente sobre aquele que o curara. se defendeu, argumentando que não ti­
Depois de 38 anos de desespero, estava nha transgredido nenhuma legislação sa­
despreparado para disputar, com os teó­ bática. Ao contrário, ele voltou ao espí­
logos, sobre os regulamentos sabáticos rito dos Dez Mandamentos, insistindo
que eles mesmos haviam criado (cf. 9:24- que estava fazendo, no sábado, as mes­
34). Era principalmente esta a situação mas coisas que o próprio Deus faria, e,
e ele nem sequer sabia quem o curara por isso, estava guardando o dia melhor
(cf. 9:12,25,36), porque Jesus se retirara que seus adversários! Os teólogos judeus
do meio da multidão excitada que se compreendiam que a atividade criadora
apertava nos pórticos próximos do tan­ de Deus não terminara quando “des­
que (cf. v. 41). cansou” no sétimo dia (Gên. 2:2). Os
Talvez porque o homem estivesse sen­ rabinos ensinavam que as obras da divi­
do acusado de ter violado a lei do sá­ na providência permaneceram inacaba­
bado, Jesus (deliberadamente? cf. 9:35) das (exemplo: chuva, nascimento, mor­
o encontrou e recordou-lhe sua cura: te). Filo concebeu um argumento mais
Olha, já estás curado. Para provar gra­ sutil. Segundo ele, Deus trabalhava en­
tidão, por esta dádiva divina, o homem quanto “descansava” , porque sua obra
recebeu a ordem: não peques mais, isto não o cansara (Sobre os Querubins, 86-
é, ele não deveria permitir que a amarga 90). Afirma ele, ainda, que Deus, tendo
memória de 38 anos continuasse a sepa­ completado a criação das coisas mortais,
rá-lo de Deus. Pior do que permanecer começou, no sétimo dia, a fundar as
numa esteira durante a maior parte de coisas “mais divinas” (Interpretação Ale­
sua vida seria ele ficar espiritualmente górica, I, 5,6). Jesus pode ter feito alusão
deformado, pois Deus não julga a enfer­ a tais noções, ao afirmar: Meu Pai tra­
midade, mas o pecado. Observe-se que balha até agora (isto é, mesmo no sá­
Jesus estava preocupado em saber se a bado).
pessoa era paralítica tanto interna como A característica fundamental desta re­
externamente. O homem, no entanto, futação não estava em alguma nova idéia
parecia mais preocupado com a acusação acerca do sábado, mas em considerar
movida contra ele pelas autoridades re­ suas próprias obras como estando em
ligiosas, pelo que retirou-se, por medo ou coordenação e em continuação às de
por incapacidade de contar aos judeus Deus: e eu trabalho também. Assim, ao
que era Jesus quem o curara. se identificar com Aquele que concedera
Agora que o instigador desta infração o sábado e suas leis, Jesus procurou
sabática fora identificado, os judeus per­ colocar-se além do alcance do sistema
seguiam a Jesus, não por uma simples legal estabelecido. Imediatamente, os ju­
ofensa, mas porque ele repetidamente deus viram, neste argumento, uma pre-
(como o sugere o tempo imperfeito do tenção implícita de ser igual a Deus, uma
verbo grego) fazia estas coisas no sá­ conclusão que pareceu confirmada pela
bado. Como um “jovem rebelde” , desco­ forma com que chamava a Deus de Pai.
Desse modo, ainda mais procuravam Jesus uma posição divina, porque estava
matá-lo, por alguma culpa de blasfêmia. certo de que seria obedecido perfeita­
mente. Jesus não era, de modo algum,
3) As Reivindicações de Jesus (5:19-29)
uma espécie de “segundo Deus” a de­
19 D isse-lhes, pois, J e s u s : E m v e rd a d e , sempenhar um papel independente. Suas
e m v e rd a d e vos digo qu e o F ilh o de si m e s ­ afirmações não contradiziam o monoteís­
m o n a d a pode fazer, sen ão o q u ê v ir o P a i
ía z e r: po rq u e tudo q u an to ele faz, o F iího mo clássico, que havia muito se consti­
o faz ig u a lm e n te . 20 P o rq u e o P a i a m a ao tuía no centro da fé de Israel.
F ilho, e m o stra -lh e tudo o que ele m esm o Para ser específico, duas prerrogativas
fa z; e m a io re s o b ra s do que e s ta s lhe m o s ­ que pertenciam inequivocamente ao Pai
tr a r á , p a r a que vos m a ra v ilh e is . 21 P o is,
a ss im , com o o P a i le v a n ta os m o rto s e lhes
foram delegadas ao Filho: (1) ressuscitar
d á v id a , a s s im ta m b é m o F ilh o d á v id a a os mortos e lhes dar vida; e (2) julgar
q u em ele q u e r. 22 P o rq u e o P a i a n in g u ém todos os homens. Se os judeus realmente
ju lg a , m a s deu ao F ilho todo o ju lg a m e n to , quisessem maravilhas, deviam com­
23 p a r a que todos h o n re m o F ilh o , a ssim preender que Jesus estava fazendo maio­
com o h o n ra m o P a i. Q uem n ã o h o n ra o
F ilho, n ão h o n ra o P a i, que o enviou. 24 E m res obras do que a cura de um paralítico.
v e rd a d e , e m v e rd a d e vos digo que, q u em ^ C o m efeito, ele estava levando adiante,
ouve a m in h a p a la v r a e c rê n a q u e le q u e m e x) ?' em seu meio, as atividades escatológicas
enviou, te m a v id a e te r n a e n ão e n tr a em s \q u e se esperava que Deus realizasse no
juízo, m a s j á p asso u d a m o rte p a r a a v id a.
25 E m v e rd a d e , em v e rd a d e vos digo que
^ fim do mundo! Por esta razão, todos
v em a h o ra , e a g o ra é, em que os m o rto s deviam honrar o Filho, assim como hon­
ouvirão a voz do F ilho de D eus, e os que a ram o Pai, por meio de ouvirem a pa­
o u v irem v iv e rã o . 26 P ois a ss im com o o P a i lavra do Filho, o que significa crer na­
te m a v id a e m si m e sm o , a s s im ta m b é m deu
ao F ilho te r a v id a em si m e s m o ; 27 e deu-
quele que o enviara. Jesus merecia altas
lhe a u to rid a d e p a r a ju lg a r, p o rq u e é o F ilho honrarias, não porque reivindicasse al­
do h o m em . 28 N ão vos a d m ire is disso, p o r­ guma posição superior, mas exatamente
que v em a h o ra em que todos os que e stã o porque fora obediente sem visar qual­
nos sep u lcro s o u v irão a su a voz e s a irã o : quer honra.
29 os q ue tiv e re m feito o b e m , p a r a a res-
jsu rreição d a v id a , e os que tiv e re m p ra ti-
Para os judeus, a coisa mais urgente
jcado o m a l, p a r a a re s s u rre iç ã o do juízo. era entender (observe-se o na verdade, na
S.
verdade) que a hora da ressurreição que
Embora afirmasse estar fazendo a eles sabiam viria no futuro chegara agora
obra sabática de Deus, Jesus não fun­ no ministério de Jesus. Mesmo os espi­
damentou esta identidade de função em ritualmente mortos poderiam ouvir a voz
termos de uma igualdade de posição. Ao do Filho de Deus, e aqueles que a ou­
contrário, como o Filho, ele de si mesmo vissem viveriam, não com a vida física,
nada podia fazer. Esta relação de com­ que logo expira, mas com a vida eterna,
pleta dependência era semelhante a de que o Pai tinha concedido ao Filho. Foi
um filho aprendendo com o pai o ofício o fato de possuir a própria vida de Deus,
da família. Como um artesão habilidoso e não méritos de credenciais humanas,
trabalha em sua profissão, enquanto o que proveu a base para a autoridade,
aprendiz primeiro observa e depois repe­ entregue a Jesus, para exercer o juízo.
te seus feitos, assim também Deus mos­ Por misericórdia, o árbitro do destino
trava a Jesus tudo o que devia fazer, e humano não era uma remota figura cós­
somente o que o Filho “via” o Pai fazer mica, mas o Filho do homem, que co­
ele o fazia igualmente. 21 Deus confiou a nhecia as fragilidades da existência ter­
21 A idéia de que, em 5:19, 20a, Jesus tenha empregado rena.
“ a figura comum de um filho aprendendo o ofício A chegada da escatologia realizada
de seu pai” foi desenvolvido por C.H. Dodd, More
New Testament Studies (Grand Rapids: Wm. B. Eerd- não significava, entretanto, que a esca­
mans, 1968), p. 30-40. tologia futurista fora abandonada por
Jesus. Bem ao contrário, o fim" da his­ te n d es e m vós o a m o r de D eu s. 43 E u vim
tória tornara-se mais significativo, agora em n o m e de m e u P a i, e n ã o m e re c e b e is;
se o u tro v ie r e m seu p ró p rio n o m e, a e sse
que seu sentido se revelara no presente. re c e b e re is. 44 C om o p o d eis c r e r , vós que
Jesus estava pronto para aceitar a espe­ re c e b e is g ló ria u n s dos o u tro s e n ão b u sc a is
rança tradicional do judaísmo, lembran­ a g ló ria que v e m do único Deus'.’ 45 N ão
do, aos seus ouvintes, que não necessi­ p en seis que eu vos h ei de a c u s a r p e ra n te o
tavam de maravilhas, visto que já haviam P a i. H á u m qu e vos a c u s a . M oisés, e m q u em
vós e s p e ra is . 46 P o is se c rê s se is e m M oisés,
aceitado a validade delas. Reconhecia ele c re ríe is e m m im ; p o rq u e de m im ele e s ­
que a hora final estava chegando, quan­ c rev eu . 47 M as, se n ão c re d e s n o s se u s e s ­
do todos nos sepulcros viriam para serem c rito s, com o c re re is n a s m in h a s p a la v a s?
julgados conforme às suas obras, fossem
elas boas ou más (cf. Rom. 2:6-9). A questão central, neste capítulo, é a
< ^onto£ej||rak no entanto, era que esta autoridade divina de Jesus, autoridade
grande ressurreição seria provocada pela esta que, afirmada nos versos l-9a, con­
mesma voz que agora soava aos seus trovertida nos versos 9b-18 e explicada
ouvidos (cf. a palavra ouvir nos v ^ 2 4 ^ 5 nos versos 19-29, é agora reafirmada nos
e 28). Por isso, até mesmo a mais remota versos 30-47.*A necessidade de autenticar
esperança futura exigia uma decisão o ministério de Jesus era dolorosamente
imediata diante de Jesus. E o milagre era óbvia, uma vez que ele não possuía as
que a decisão de fé permitia que a espe­ muitas credenciais visíveis, das quais os
rança começasse a se tornar realidade líderes religiosos do judaísmo estavam
aqui e agora. acostumados a depender. Seu poder não
provinha de herança de família, como
4) A Evidência Para as Reivindicações acontecia com o sacerdócio hereditário,
(5:30-47) - K ^ nem de uma educação sofisticada, como
30 E u não posso de m im m e sm o fa z e r ocorria com os rabinos. Nem apelava ele
coisa a lg u m a ; com o ouço, a s s im ju lg o ; e o para as confirmações das Escrituras
m eu juízo é ju s to , p o rq u e n ão p ro c u ro a como interpretadas pelo peso da tradição
m in h a v o n tad e, m a s a v o n tad e d a q u ele que religiosa, uma vez que violava claramen­
m e enviou. 31 Se eu d e r te ste m u n h o de m im
m esm o , o m eu te ste m u n h o n ão é v e rd a d e i­ te a letra do código por “trabalhar”
ro. 32 O utro é q u e m d á te ste m u n h o d e m im ; no sábado. Que apoio poderia Jesus,
e sei que o te ste m u n h o q ue e le d á d e m im é então, pedir para reforçar suas afirma­
v e rd a d e iro . 33 Vós m a n d a s te s m e n s a g e iro s ções de autoridade?
a Jo ão , e ele deu te ste m u n h o d a v e r d a d e ;
34 eu, p o rém , n ão receb o te ste m u n h o de A resposta a esta questão crucial tinha
h o m em ; m a s digo isto p a r a que se ja is s a l­ dois aspectos, um negativo e outro posi­
vos. 35 E le e r a a lâ m p a d a que a r d ia e a lu ­ tivo. Negativamente, Jesus insistia que
m ia v a ; e vós q u is e ste s a le g ra r-v o s p o r u m nada fazia com base em sua própria
pouco de tem p o com a s u a luz. 36 M as o
te stem u n h o que eu tenho é m a io r do que o de
autoridade. Ele era completamente di­
J o ã o ; po rq u e a s o b ra s que o P a l m e d eu ferente da sucessão de pretendentes mes­
p a r a re a liz a r, a s m e s m a s o b ra s que -faço siânicos de sua época, que escolhiam tí­
dão te ste m u n h o de m im que o P a i m e e n ­ tulos espetaculares e anunciavam infla­
viou. 37 E o P a i qu e m e enviou, ele m e sm o madas afirmações acerca de si mesmos.
te m d ado te ste m u n h o de m im . Vós n u n c a
o u v istes a su a voz, n e m v is te s a su a fo r­
Ele não baseava sua autoridade no auto-
m a ; 38 e a s u a p a la v r a n ã o p e rm a n e c e engrandecimento, porque era motivado
e m v ó s; p o rq u e n ão c re d e s n a q u e le que não por sua própria vontade, mas pela
m e enviou. 39 E x a m in a is a s E s c ritu ra s , vontade dAquele que o enviara. Desse
porque ju lg a is te r n e la s a v id a e te r n a ; e são modo, estava consciente de que seguia o
e la s q ue dão te ste m u n h o d e m im ; 40 m a s
não q u e re is v ir a m im , p a r a te rd e s v id a! mandamento das Escrituras (Deut. 19:
41 E u n ão re c e b o g ló ria d a p a r te dos h o ­ 15), segundo o qual o testemunho não
m en s, 42 m a s b e m vos conheço, que n ão repousa sobre um autotestemunho, mas
deve ser confirmado por outrem. Positi­ poderosas. Estas não eram espetáculos
vamente, este outrem que dava testemu­ impressionantes, para chamar a atenção
nho acerca de Jesus era o próprio Deus. para si mesmas, constituindo-se, antes,
Nisto residia sua última confirmação, em sinais de revelação, a indicar para o
pois não havia dúvida de que o testemu­ sentido da missão para a qual Jesus fora
nho que ele dava era verdadeiro. Tão enviado. Propositalmente, estas muitas
certo estava Jesus da aprovação divina obras não tinham valor em si mesmas
que podia invocar o supremo Legislador, (veja-se a reação à cura do coxo, neste
do universo como sua testemunha prin­ capítulo), mas eram, em resumo, evidên­
cipal de defesa! cias tangíveis, que não podiam ser igno­
Como, porém, poderiam os outros ho­ radas. Talvez o escrúpulo sabático tenha
mens perceberem este testemunho trans­ sido violado; todavia, nunca um deses­
cendental, que sempre estivera presen­ perançado inválido durante 38 anos
te no âmago da consciência de Jesus? pôde, como agora, caminhar sem qual­
Na esperança de que as evidências terre­ quer dificuldade.
nas pudessem ajudar, Jesus indicou três As Escrituras (v. 37-40) — Novamen­
fontes secundárias, não para receber tes­ te, Jesus insiste que a fonte de todo o
temunho de homens, mas porque estas testemunho verdadeiro sobre ele estava
três testemunhas foram dadas todas pelo no Pai, que o enviara. Ao mesmo tempo,
Pai, e assim colocadas diante de Jesus e reconhecia que a voz de Deus nunca fora
de Deus. Á maneira pela qual foram ouvida e sua forma nunca fora vista
introduzidas sugere um debate ou desa­ (cf. 1:18). Como, então, poderia o tes­
fio formal, em que Jesus, o juiz cósmico ^ temunho divino ser recebido na terra?
do verso 22, se defende como um acusado Os próprios judeus tinham respondido
diante do júri formado pelos leitores.__ _ que, embora Deus estivesse além do ou­
João Batista (v. 33-55) — A liderança vir e do ver, sua palavra fora entregue aos
religiosa tinha já ido a João (1:19,24), homens nas Escrituras, onde pudesse ser
que dera testemunho da verdade sobre buscada, para que se achasse a vida
Jesus (cf. 1:19-34; 3:27-30). Como Elias eterna. Ao aceitar esta premissa dos ad­
(cf. Eclesiástico 48:1), ele era uma lâm­ versários, Jesus apresentou o Velho Tes­
pada incandescente e resplendente a ilu­ tamento como a terceira fonte de teste-
minar o destino de Israel na descoberta munho a seu respeito. Ao mesmo tempo,
do Messias. Para ser franco, João erã~ lembrou que a palavra de Deus escrita
apenas um vaso que não poderia pro­ nas Sagradas Escrituras não residia em
jetar luz de si mesmo (cf. 1:8); mesmo seus corações, porque não criam nele,
assim, no entanto, os judeus quiseram que fora enviado pelo autor final das
se alegrar por um pouco, enquanto mi­ Escrituras. Ao citar este tríplice teste­
nistrava com a luz vinda da parte de munho a seu respeito, Jesus mostrou dis­
Deus. João fora uma figura profética posição em aceitar apoio tangível para
popular, que provocara uma grande ex­ suas afirmações transcendentais. Estava
citação escatológica entre o povo. igualmente convencido, ainda, que a for­
As obras poderosas (v. 36) — Acima ça desse apoio provinha exclusivamente
de todo significado de um testemunho de Deus, pelo que exigia, então, uma
preparatório (cf. 3:28), Jesus tinha um abertura para Deus como forma de tor­
testemunho... maior do que o de João, nar válidos estes testemunhos. Todos pu­
vindo de seu ministério de cumpri­ deram ouvir o que Jesus dissera e ler
mento. Apesar da semelhança de João o que estava escrito nas Escrituras, mas
com Elias, não se tem registro de ter isto nada significaria se não houvesse
operado um milagre, enquanto o Pai uma abertura para Deus, o único capaz
concedera a Jesus realizar muitas obras de confirmãrsúa própria verdade.
Ainda hoje temos profetas corajosos, glória pertence somente a Deus. Como os
obras espetaculares e Escrituras inspira­ judeus depositavam sua esperança nesse
das, os quais continuam a apontar para grande profeta, Jesus os acusava de não
além de si, isto é, para Deus, como sua conseguirem crer nesta verdade como
fonte, e, para Cristo, como seu alvo. anunciada tanto em seus escritos como
Os homens não são plenamente conven­ nas palavras de Jesus.
cidos a crer em Jesus por meio de prega­
ções eloqüentes, por feitos misericordio­ 2. O Pão da Vida (6:1-71)
sos ou mesmo através das palavras da
Bíblia. Estas testemunhas não tornam João 6 não é apenas o mais longo
Jesus digno de autoridade, mas antes capítulo do Evangelho, mas constitui,
derivam dele sua própria autoridade. Na seguramente, o mais amplo tratamento
realidade, a afirmação de Jesus deve ser dedicado a um só tema teológico. Por
consubstanciada apenas pelo próprio isso, é surpreendente descobrir que ape­
Deus, quando os homens vêm ao Filho e nas uns poucos itens aparecem, nesta
descobrem que, ao fazê-lo, estão rece­ \ bem elaborada discussão teológica, acer-
bendo o tipo de vida que foi dado a ele ca do pão espiritual. Ao mesmo tempo,
pelo Pai (cf. v. 26). impressiona como estes óbvios aspectos
Jesus encerrou a discussão acusando de analogia se desenvolvem de forma
seus detratores de egoísmo religioso, cul­ sutil e concatenada, tornando esta seção
pa que lhe fora impingida anteriormente a obra-prima da teologia do Novo Testa­
(v. 18). Ele não necessitava de receber mento.
glória de homem, porque estava certo do Diversos fatores contribuem para o
amor de Deus nele (cf. v. 20a), certeza caráter específico deste capítulo. Como,
que eles não possuíam. Ao contrário de desde longa data, era a principal metá­
um pretenso messias, que vinha em seu fora sobre o sustento espiritual no Velho
próprio nome, fazendo alarde do papel Testamento, o pão era objeto comum
que iria desempenhar, Jesus vinha ape- do tratamento homilético, feito pelos ra­
nas em nome do Pai, para apresentar a binos, ao tempo da produção deste Evan­
realidade de Deus por meio de uma vida gelho. Os gregos também tinham refle­
de obediência^ Por ironia, os judeus re­ tido sobre a idéia do alimento celestial,
cebiam um homem que chamasse a aten­ que nutre a vida eterna, o que levou os
ção para si mesmo e rejeitavam aquele apologistas, como Filo, por exemplo, a
que apontava para Deus. refinadas alegorias sobre o maná enviado
E o problema não era de compreen­ por Deus dos céus. A igreja antiga, é cla­
são. Qualquer religioso fanático, moti­ ro, pensou com profundidade no signifi­
vado por seu próprio orgulho, serviria cado do alimento espiritual à luz da im­
facilmente ao orgulho dos outros, resul­ portância dada ao partir do pão, espe­
tando, daí, que todos receberiam glória cialmente na celebração da Ceia do Se­
uns dos outros. Jesus, no entanto, buscou nhor. Neste texto, João ilustra como estas
a glória que vem do único Deus, razão múltiplas manifestações, comuns no pri­
por que nunca se exaltou a si mesmo e meiro século, podiam encontrar uma
nem a seus advogados. Neste texto, ò nova direção, quando aplicadas à pes­
orgulho é identificado claramente como soa e obra de Jesus.
uma barreira, não para a religião como Duas referências, uma no início e a
tal (onde é tão facilmente explorado), outra ao final do capítulo, sugerem an­
mas para a fé naquele que se recusou tecedentes mais precisos na experiência
a usar Deus para atender aos insaciá­ formativa de Jesus e/ou do autor do
veis apetites do ego humano. Os livros dé Evangelho. No verso 4, aprendemos que
Moisés, havia muito, ensinava, que a o discurso sobre o Pão da vida se de­
senvolveu num tempo quando a festa intensas, produzir pão miraculosamente
pascoal se aproximava, enquanto o ver­ e ainda dizer que poderia fazer um maná
so 59 indica que isto se deu na sinagoga ainda maior que Moisés, tinha a delibe­
em Cafarnaum. No primeiro século, os rada intenção de exercer o maior impacto
cultos sinagogais seguiam um modelo possível sobre aqueles que o viam e
comum de leituras das Escrituras, coor­ ouviam.
denadas com as grandes celebrações do Ao se apresentar como doador e dá­
calendário religioso. Durante as festas diva do pão celestial, Jesus fez uma afir­
da Páscoa, liam-se paráfrases (targuns) mação que inevitavelmente mexeu com
tomadas de passagens selecionadas, sua audiência, começando pela periferia
como Josué 5, as quais eram explicadas da multidão e alcançando o centro do
(midrash) pelos rabinos, que se utiliza­ grupo de discípulos. O entusiasmo super­
vam de um rico manancial de material ficial provocado pela alimentação de cin­
homilético (haggadah), desenvolvido du­ co mil logo arrefeceu, apresentando-se
rante muitos anos de repetidos esforços. em seu lugar, perguntas de ceticismo e
João 6 parece seguir estas tradições exe- querelas de sarcasmo. Como Jesus reve­
géticas dos judeus, tanto para explicar lasse progressivamente as implicações
Jesus à luz das Escrituras como para destas afirmações, os respondentes tam­
explicar as Escrituras à luz de Jesus. 22 bém progressivamente “murmuravam” ,
Entre os vários motivos pascoais de “argumentavam com violência” e “se es­
João 6, o dominante é, com certeza, o do candalizavam” .
maná ou pão. Relembrava-se, na Páscoa De início, esta oposição veio do
em especial, o cuidado miraculoso dis­ “povo” , isto é, da multidão em geral;
pensado por Deus ao seu povo, durante o depois, porém, passou da multidão para
êxodo e a peregrinação no deserto. Ob­ os “judeus” , isto é, para a liderança
serve-se Salmos 78:12-54, particular­ religiosa. Logo, o descontentamento che­
mente os versos 24 e 25, como base de gou a “muitos discípulos” , que “volta­
todo este capítulo (cf. Neem. 9:9-15; ram atrás, e não mais o seguiram” . Por
Sabedoria de Salomão, 16:20, 21). Tão fim, mesmo os doze integraram a lista
cheio de significado fora a dádiva do diante da chocante revelação de que um
maná, no deserto, que ele se transfor­ deles era um traidor. Nenhum limite
mou no modelo de pão messiânico, es­ visível protegia os membros de qualquer
perado para a nova era. Como Josué grupo desse perturbador juízo em opera­
5:10-12 afirma que o maná cessara quan­ ção no ministério de Jesus (cf. Mat.
do da primeira Páscoa na Terra Prome­ 7:21-23).
tida, a tradição rabínica concluiu que A forma geral do capítulo, como nar­
ele continua sendo produzido e arma­ rativa (milagre) seguida de discurso (en­
zenado nos céus (cf. Apoc. 2:17), de onde sino) fica logo evidente, fazendo um li­
voltaria, na última Páscoa, por ocasião geiro paralelo com João 5. A estrutura
da vinda do Messias. Ao Jesus, na época precisa do discurso, entretanto, é de di­
do ano em que estas esperanças eram fícil determinação, o que desagrada em
muito os expositores. Nossa presente
22 Q uanto a isto, veja Peder Borgen, Bread from Heaven,
“ Supplements to Novum Testamentum” , Vol. 10 (Lei-
abordagem enfatiza o caráter dialógico
den: E. J. Brill, 1965); Bertil G antner, John 6 and do discurso, entendendo-o como dividido
the Jewish PassoVer, “ C orriectanea Neotestamentica” , em três partes, cada qual introduzida por
N° l7 (L u n d : C .W .K . Gleerup, 1959); B ruceJ. M alina,
The Palestinian Manna Tradition, “ Arbeiten zur Ges-
uma afirmação de Jesus e concluída por
chichte des spàteren Judentum s und des U rchristen- um conflito provocado pela afirmação.
tum s” , N« 7 (Leiden: E.J. Brill, 1968): Waye A. Meeks, Segundo este modelo, o discurso consi­
The Prophet-King: Moses Traditions an d the Johanni-
ne Christology, “Supplements to Novum Testamen­ dera o Pão da vida em relação à sua fonte
tum” , Vol. 14(Leiden: E.J. Brill, 1967). (v. 25-34), à sua natureza (v. 35-51) e à
sua recepção (52-65). Esta discussão se por causa de sua ligação com milagres
relaciona com o milagre da multiplicação de alimentação semelhantes no Velho
(v. 1-15) por um elo que liga as duas Testamento (especialmente II Reis 4:42-
partes geográfica e teologicamente (v. 44) e a celebração da Ceia do Senhor.
16-24). Todo o capítulo se conclui pela Para toda a humanidade, a história re­
recordação de uma crise entre Jesus e corda, de modo clássico, a suficiência de
seus discípulos (v. 66-71), reminiscente Jesus para satisfazer as necessidades hu­
da região de Cesaréia de Filipe, segundo manas, mesmo quando esgotados os re­
os Sinópticos (Mar. 8:27-33). cursos de seus seguidores.
O local deste episódio é de difícil de­
1) A Alimentação dos Cinco Mil (6:1-15) terminação. O outro lado do Mar da
1 D epois disto p a rtiu J e s u s p a r a o o u tro Galiléia possivelmente deve referir-se à
lado do m a r d a G aliléia, ta m b é m c h a m a d o banda oriental (adiante de Cafarnaum,
de T ib e ría d e s. % E segu ia-o u m a g ra n d e na banda ocidental, como em 4:46-54),
m u ltid ão , p o rq u e v ia os sin a is q u e o p e ra v a o que está de acordo com a localização,
so b re os en fe rm o s. 3 Subiu, p o is, J e s u s ao
m o n te e sen to u -se a li com se u s d iscípulos. posta por Lucas, em Betsaida (Luc. 9:10,
4 O ra, a p á sc o a , a fe s ta dos ju d e u s , e s ta v a mas cf. Mar. 6:45). Entretanto, alguns
p ró x im a . 5 E n tã o J e s u s , le v a n ta n d o os olhos manuscritos do verso 1 tomam Tibería­
e vendo que u m a g ra n d e m u ltid ã o v in h a te r des não como um nome alternativo para
com e le , d isse a F ilip e : O nde c o m p r a re ­
m os p ão , p a r a e s te s c o m e re m ? 6 M as d iz ia
mar da Galiléia (não há nenhuma pala­
isto p a r a o e x p e rim e n ta r; p ois e le b e m s a ­ vra para mar em relação a Tiberíades,
b ia o qu e ia fa z e r. 7 R esp o n d eu -lh e F ilip e : no texto grego), mas como uma refe­
D uzentos d e n á rio s de p ão n ão lh e s b a s ta m , rência à cidade desse nome, a sudoeste
p a r a q u e c a d a u m r e c e b a u m pouco. 8 Ao do lago. Esta interpretação parece con­
que lh e d isse u m dos seu s discíp u lo s, A ndré,
irm ã o de S im ão P e d ro : 9 E s tá a q u i u m firmada pelo verso 23, embora o signi­
ra p a z q ue te m cinco p ã e s de c e v a d a e dois ficado deste texto não seja suficiente­
p eix in h o s; m a s q ue é isto p a r a ta n to s? mente claro. Obviamente, os detalhes
10 D isse J e s u s : F a z e i re c lin a r-se o povo. geográficos foram subordinados à men­
O ra, n a q u e le lu g a r h a v ia m u ita re lv a . Re-
c lin a ra m -se aí, p ois, os h o m en s e m n ú m e ro
sagem teológica do milagre.
de q u a se cinco m il. 11 J e s u s , e n tã o , to m o u Onde quer que tenha sido o lugar, está
os p ã e s e , h av en d o d ad o g ra ç a s , re p a rtiu -o s claro que foi próximo ao mar da Gali­
pelos q u e e s ta v a m re c lin a d o s ; e de ig u a l léia, de onde subiu, pois, Jesus ao monte
m odo os p e ix es, q u an to ele s q u e ria m . 12 E , (e não às colinas, como na Revised Stan­
q uando e s ta v a m sa c ia d o s, d isse a o s se u s
d isc íp u lo s: R ecolhei os p ed aç o s q u e so b e ja ­ dard Version) e sentou-se ali com seus
ra m , p a r a que n a d a se p e rc a . 13 R e co lh e ­ discípulos. Sentar-se com discípulos era
ram -n o s, pois, e e n c h e ra m doze c esto s de agir como um rabino, e fazê-lo no monte
p ed aço s dos cinco p ã e s d e c e v a d a , que so ­ era ensinar a revelação de Deus. Nesta
b e ja r a m ao s que h a v ia m com ido. 14 V endo,
pois, a q u e le s h o m en s o sin a l q u e J e s u s o p e ­
passagem, o tempo tinha tanto valor
r a r a , d iz ia m : E s te é v e rd a d e ira m e n te o p r o ­ quanto o lugar, uma vez que a Páscoa,
fe ta q ue h a v ia de v ir a o m u n d o . 15 P e r c e ­ a grande festa religiosa dos judeus, es­
bendo, pois, J e s u s q ue e s ta v a m p re s te s a tava próxima (cf. 2:13). A celebração
v ir e levá-lo à fo rç a p a r a o fa z e re m re i, pascal, observada anualmente na prima­
to rnou a r e tira r-s e p a r a o m o n te , ele so ­
zinho. vera, comemorava a libertação da nação
do Egito e antecipava, assim, os atos
Este é o único milagre de Jesus regis­ semelhantes da salvação divina no fu­
trado em todos os quatro Evangelhos. turo. A colocação de uma enigmática
Tanto os Sinópticos como João concor­ referência a esta festa, no verso 4, pode
dam que ele serviu de marco no minis­ ser uma forma de o autor aludir ao
tério de Jesus na Galiléia. O incidente verso 5, que a multidão, ao vir até ele e
permaneceu importante na igreja antiga, não para Jerusalém, procurava nele o
verdadeiro sacrifício pascoal (cf. 1:29; isto para tantos? O reconhecimento de
19:31a; I Cor. 5:7b). que todos os recursos humanos disponí­
Essa multidão esfomeada deu a Jesus a veis eram absolutamente inúteis serviu de
oportunidade para experimentar os seus fundo para que se compreendesse a ini­
discípulos ou ensinar-lhes uma verdade ciativa soberana de Jesus, que bem sabia
importante sobre as necessidades huma­ o que ia fazer. Diferentemente de seus
nas. À Filipe, que era de Betsaida (1:44) seguidores, Jesus não desesperou diante
e podia conhecer os recursos da região, dos parcos recursos à sua disposição. De­
ele apresentou o característico problema pois de instruir os discípulos para dis­
joanino da fonte onde se podia comprar porem o povo na grama de modo or­
pão suficiente para o povo comer. Sua ganizado (permitindo uma estatística
resposta de que duzentos denários, não aproximada de cinco mil homens), ele
eram suficientes nem para dar um boca­ tomou os pães e, tendo dado graças,
do a cada pessoa revelou logo a grandeza distribuiu-os entre a multidão. Tomar,
da dificuldade em nível terreno (cf. abençoar e, depois, entregar era um
4:11). gesto muito comum no ministério de Je­
Na Palestina, um denário correspon­ sus, com o que ele queria dizer que se os
dia a um dia de trabalho (Mat. 20:2, homens lhe oferecessem tudo quanto ti­
9,10,13). Nesta base, podemos calcular vessem, embora terreno e limitado, ele
duzentos denários como equivalentes aos faria descer a graça celestial, da parte de
vencimentos de quase um ano de traba­ Deus, sobre estas coisas, que, então,
lho de um trabalhador pobre. alcançariam um valor espiritual jamais
O relato não esclarece por que Filipe imaginado. Estes gestos, que também
sugeriu esta quantia. Se era o saldo total caracterizaram a Última Ceia (cf. Mar.
da caixa dos discípulos naquele momen­ 14:22,23), são repetidos perenemente na
to (12:6), sua resposta deve ter sido um Ceia, expressando, assim, mais em atos
lamento frustrado: “Nós não poderíamos do que em palavras, uma verdade central
alimentar esta multidão, mesmo se gas­ do ministério de Jesus.
tássemos todos os nossos recursos dispo­ As ênfases deste relato residem na
níveis!” abundância e na permanência. E todos
Para aumentar o problema, André, comiam quanto queriam. Depois, os pe­
outro discípulo de Betsaida (1:44), logo daços que sobejaram foram cuidadosa­
acrescentou que, entre os muitos que mente recolhidos, para que nada se per­
tinham acabado de chegar, havia um desse (literalmente, “perecesse” , a mes­
rapaz que possuía cinco pães e dois pei­ ma palavra do v. 27). Estes doze cestos,
xes. Enquanto Filipe contava rapida­ cheios com os pedaços que sobejaram,
mente as moedas dos discípulos, André evidenciavam, de modo inequívoco, que
presumivelmente perscrutava a multi­ Jesus tinha ido além de satisfazer àque­
dão, com resultados igualmente desani- les que haviam comido. Em Caná, ele
madores. O tipo de pão (feito de cevada) tivera o cuidado de deixar “cheios” de
encontrado era um alimento muito ba­ água seis amplas talhas, destinadas aos
rato, usado pelos pobres, ao passo que ritos das “purificações dos judeus” (2:6,
peixe salmorado nada mais era que uma 7); aqui, ele deixou doze cestos cheios,
pasta ou geléia para passar ne pão. Uma representando as doze tribos de Israel.
tradição popiilar tem enfatizado a dis­ Nos dois casos “cumpriu” os sistemas
posição de um menino para compartilhar herdados do passado, mas os ultrapas­
seu lanche com Jesus; o relato porém, sara, ao satisfazer as necessidades hu­
faz silêncio acerca desta louvável dispo­ manas.
sição. Em vez disso, a preocupação de Para aqueles homens, ver doze cestos
André era a mesma de Filipe: mas que é cheios de pão parecia um sinal de que o
banquete messiânico estava prestes a o seu Mestre, quando este buscou novo
começar. Por isso, saudaram Jesus como refúgio no monte, para orar “ por si
o profeta que havia de vir ao mundo mesmo” (v. 15; cf. Mar. 6:46). Dispersa
(cf. 4:19; 7:40; 9:17), identificando-o, a multidão desapontada, o atribulado
assim, com o prometido “profeta seme­ grupo se viu no meio da colina, fora
lhante a Moisés” (Deut. 18:15, 18), cujo do lar, temporariamente sem líder, quan­
protótipo dera a Israel o maná no deser­ do a noite se aproximava veloz. Sem
to. A Galiléia era uma estufa de entusias­ saber o que fazer, desceram... ao mar,
mo escatológico, no primeiro século, e entraram num barco e começaram a
não era preciso provocar muito para que remar em direção a Cafarnaum (de onde
surgisse fácil um movimento messiânico tinham vindo? cf. 2:12; 4:46), provavel­
de libertação nacional (Josefo, Antigui­ mente procurando se manter na costa,
dades, XX, 97,98, 167-172). Percebendo na esperança de que logo Jesus fosse ao
que as multidões queriam levá-lo a força seu encontro. Para aumentar seus temo­
(cf. Mat. 11:12), na intenção de o faze­ res, escurecera por completo (cf. 3:2;
rem rei, Jesus recusou esta coroação ter­ 13:30), Jesus ainda não tinha vindo ter
rena e novamente buscou a solidão do com eles e o mar se empolava, porque
monte (cf. Mat. 4:3,4). soprava forte vento.
Depois de enfrentar a tempestade re­
2) A travessia do Mar (6:16-24) pentina durante uns vinte e cinco ou
trinta estádios (cerca de cinco ou sete
16 Ao c a ir d a ta r d e , d e s c e ra m os se u s
discípulos ao m a r ; 17 e, e n tra n d o n u m b a r ­
quilômetros), os discípulos viram a Jesus
co, a tr a v e s s a v a m o m a r e m d ire ç ã o a Ca- andando sobre o mar e aproximando-se
fa m a u m ; e n q u a n to isso, e s c u r e c e ra e J e s u s do barco. Quando os alcançou, eles fi­
a in d a n ã o tin h a vindo te r co m e le s ; 18 a d e ­ caram atemorizados, talvez devido à fú­
m a is, o m a r se e m p o la v a , p o rq u e so p ra v a ria do vento, ou ao aparecimento repen­
fo rte v en to . 19 T endo, p ois, re m a d o u n s v in te
e cinco ou tr in t a e stá d io s, v ir a m a J e s u s tino do vulto na escuridão ou ao fato de
a n d an d o so b re o m a r e a p ro x im a n d o -se do os ter repreendido, por seu comporta­
b a r c o ; e f ic a ra m a te m o riz a d o s. 20 M as ele mento na multiplicação. Pode ser ainda
lh es d is s e : Sou e u ; n ão te m a is . 21 E n tã o e le s que o seu medo tenha sido uma espécie
de b o a m e n te o re c e b e r a m no b a rc o ; e logo
o b a rc o ch eg o u jjJg E K ^ íiara onde ia m . 22 No de temor santo, despertado devido ao
d ia seg u in te.(a m u ltid ã o q u e fic a ra no o u tro caráter sobrenatural de seu aparecimen­
lado do m a r , sab en d ò qu e n ã o h o u v e ra a li to. De qualquer forma, ele satisfez todas
sen ão u m b arq u in h o , e qu e J e s u s n ão em - as suas ansiedades com palavras tranqüi-
b a r c a r a n ele c om se u s d iscíp u lo s, m a s q u e lizadoras: Sou eu (ego eimi); não temais.
irafés tin h a m ido sos . 23 (co n tu d o , o u tro s
B arquinhos h a v ia m ch eg a d o de T ib e ría d e s Alegremente, eles o receberam no barco;
p a r a p e rto do lu g a r onde c o m e ra m o p ão , e logo o barco chegou à terra para onde
h av en d o o S enhor d ad o g r a ç a s ) ; 24 g u an d o , iam. Na presença de Jesus houve uma
pois, v ir a m q u e J e su s n ão e s ta v a a li n e m os paz, entre os discípulos, não experimen­
sê ffilü sc ip u lo s, e n tr a r a m e le s ta m b é m nos
b a rc o s , e fo ra m a C a fa rn a u m , e m b u sc a de
tada durante as longas horas da noite em
Je s u s. —— que ele não estava presente.
Não fica claro se a passagem imediata
Há indícios, nos relatos Sinópticos so­ da fúria do vento para a tranqüilidade da
bre a alimentação (Mar. 6:30-33, 45), margem foi interpretada como um mila­
para se supor que os discípulos tenham gre ou não. A referência parece indicar
encorajado o populacho a ver Jesus como apenas que os discípulos estavam mais
um novo Judas Macabeu, a liderar outra próximos do destino do que tinham ima­
revolta no deserto (I Macabeus 1-4; ginado, depois de serem arrastados pelo
II Macabeus 8-15). Se isto é verdade, vento durante três ou quatro milhas, que
explica-se por que não receberam bem, é a distância aproximada da curva oci­
dental do lago de Tiberíades à Cafar- seu simbolismo se aproximava do contex­
naum. Se este é o caso, o caráter mira­ to pascoal de todo o capítulo (v.4).
culoso do andar sobre o mar fica também O êxodo do Egito envolveria uma tra­
ambíguo, neste relato (embora não o es­ vessia de mar, viabilizada quando o ven­
teja em Marcos 6:45-54 e principalmente to fez com que as águas se levantassem e
em Mateus 14:22-33; Lucas omite o inci­ se partissem (Êx. 14:21-29). Salmos 78
dente). A preposição aqui traduzida relaciona esta passagem através das
como sobre (epi) deve significar melhor águas (v. 13) com a dádiva do maná
“por” ou “junto do” (cf. 21:1), como é (v. 24), à qual João 6 voltará a se referir
usada no verso 16 (ao mar) e no verso 21 em 25-34. Fundamentalmente, esta li­
(à terra). Aceita esta versão, a narrativa bertação pascoal do povo parecia um
significaria que, enquanto os discípulos testemunho da direção pessoal do pró­
se exauriam nos remos, em meio à ven­ prio Deus:
tania, Jesus marchava pela costa, para
“Pelo mar foi teu caminho,
Cafarnaum, onde o viram caminhando
e tuas veredas pelas grandes águas;
ao longo da margem. Chegam alguns
e as tuas pegadas não foram conhe­
até a supor que ele andou por sobre as
cidas.
ondas em direção aos seus discípulos,
Guiaste o teu povo, como a um
mas esta conjectura não encontra respal­
rebanho,
do na evidência do texto.
pela mão de Moisés e de Arão.”
Na interpretação do caráter miraculo­
(Sal. 77:19,20)
so ou não do evento, é importante salien­
tar o modo como João trata todo o pro­ Independente do que a chegada de
blema (v. 16-22). Comparada a Mateus e Jesus a Cafarnaum significou para os
Lucas, a história é contada com brevi­ discípulos, o certo é que foi mistificada
dade e com um mínimo de elaboração por alguns do povo que tinham comido
teológica. Há pouco ou nenhum interesse do pão na multiplicação dos pães no
na ventania como na ameaça aos discí­ outro lado do mar. Entendendo que os
pulos, como também não no poder de discípulos tinham partido sem Jesus, no
Jesus em superar o medo deles. Aqui, a único bote disponível, concluíram que ele
prova da fé, se houve, está não em saber tinha permanecido sozinho no monte du­
se a água suportou os pés humanos (de rante toda a noite. No dia seguinte,
Jesus ou dos discípulos), mas se Jesus é o entretanto, ele não foi encontrado em
grande “eu sou” (“ego eimi”) de Deus. lugar algum e nem seus discípulos vol­
Na realidade, parece que a fé não era o taram a se encontrar com ele. Por acha­
problema real; ela não é mencionada e a rem que ele devia ter ido de algum modo
única resposta dos discípulos foi que a Cafarnaum, aqueles que chegaram per­
“desejaram” (de boa mente, na IBB) to do lugar onde comeram o pão, haven­
trazer Jesus para bordo. O incidente do o Senhor dado graças (observe-se os
não é considerado um “sinal” e nem nos tons eucarísticos nesta descrição de cará­
é dito que tenha provocado qualquer ter jornalístico) .. .entraram eles também
resposta religiosa. Embora nada haja, no nos barcos e foram a Cafarnaum, em
relato joanino, que negue o milagre, este busca de Jesus.
elemento não é tão proeminente aqui
como o é em Mateus e Marcos. 3) A Fonte do Pão da Vida (6:25-34)
Com toda probabilidade, portanto, o
evangelista incluiu a história porque es­ 25 E , ach an d o -o , no o u tro la d o do m a r , ;^
p e rg u n la ra m -Ih è : R a b i, q u a n do ch eg a s te t j L ”,
tava em sua fonte (como também nos aq u j?J!6 R e sp on d eu -\he s J e s ü s : É m v ê rd a - '
Sinópticos), porque explicava como Jesus de, e m v e rd a d e vos digo q u e m e b u sc a is,
atravessou o lago (cf. v. 22-25) e porque não p o rq u e v iste s sfn a is^ j n â s p o r q u e c o -
m e s te s do p ão e vos s a c ia s te s. 27 T ra b a lh a i, mentar uma multidão faminta; no en­
rtão p e ia co m id a que p e re c e , m a s p e la c o ­ tanto, assim procedeu para mostrar que
m id a qu e p e rm a n e c e p a r a a v id a e te r n a , a
q u al o F ilh o do h o m em vos d a r á ; pois n e ste ,
as verdades últimas só podem ser com-
D eus, o P a i, im p rim iu o seu selo. 28 P e rg u n - 7 ^preendidas pela fé. Embora esteja claro
ta ra m -lh e , pois: Que haverrros d e ^ fft^ g r, \ Wque estes ávidos pedintes não tinham
p a ra p ra tic a r m o s asT onras d e D e u s ? 29 Je- ' ultrapassado o nível meramente físico,
sus lh es re sp o n d e u : A o b ra de D eu s e e s ta : Jesus não rechaçou este segundo pedido
Que c re ia is .naauele aue_ele_enviou. 30 P e r- x -\ . ,
j u n ta r a m -lhe, e n tã o : tju e s in a ir p o is , fazes ^ ' de comida, mas O usou como um pretexto
tu , p a r a que o v e ja m o s é ' te c ré ia m o s ? Q ue v v para lhes ensinar a necessidade de uma
o p e ra s tu ? 31 N ossos p a is co m er a m o m a n á satisfação mais duradoura que as ofere­
no d e s e r to, com o e s tá e s c rito : Do céu deu- cidas pelas realidades materiais (cf. 4:31,
lhes p ão a co m er. 32 R espo n d eu -lh es J e s u s :
E m v e rd a d e , e m v e rd a d e vos d ig o : N áo foi 32). O simples fato de que todo alimen­
M oisés qu e vos deu o pão rio céu . m a s m e u to terreno logo perece — até mesmo o
P a i vos d á o v e r d a d g i c o J a J ^ ^ u n í S T b r - pão e o peixe que Jesus tinha oferecido —
tjuiM» pão de D eus é aq u e le que d e sce do céu evidenciava a importância de se buscar
e d á v id a ao m u n d o . 34 D isse ra m -lh e , p o i s y ^ a comida permanece para a vida
S en h o r, da-nos se m p re d e ste p a o . HO
eterna(cf. 4:13,14,31-34).
Quando, por fim, Jesus foi localizado Sob esta linha de raciocínio, tão cen­
no outro lado do mar (uma expressão tral na teologia joanina, encontra-se uma
inadequada, se usada para referir a via­ chave de grande valor para o evangelis-
gem de Tiberíades a Cafarnaum), aque­ mo cristão. Toda pessoa é criada com
les que o procuravam não fizeram qual­ necessidades físicas não satisfeitas. No
quer menção do alimento espiritualmen­ entanto, nada que seja material, por
te simbólico que recentemente tinham mais necessário que seja, pode satisfazer
compartilhado juntos, interessados que completamente o homem, por que é pe­
estavam em satisfazer a sua curiosidade recível; isto é, sendo finito, não é funda­
sobre quando e como ele chegara. Sen­ mental, mas aponta para o seu Criador.
tindo a superficialidade destas pergun­ Apesar dos seus pressupostos religiosos,
tas, Jesus respondeu com uma declara­ a pessoa logo descobre que qualquer
ção solene (Na verdade, na verdade), que coisa tangível — seja alimento, bebida,
penetrou fundo nos seus corações (cf. sexo ou bens — só dá satisfações transitó­
2:25; 3:2,3; 4:16-18). Eles não o pro­ rias. Esta sensação de incompletude, que
curaram porque agora viam o sentido dos todo homem experimenta, como uma
sinais que apontavam para o seu verda­ conseqüência dos seus esforços em busca
deiro significado, mas porque tinham co­ de satisfação nas coisas terrenas, for­
mido todo o pão e estavam com fome nece a base, a partir da qual venha a
de novo. Ele dera-lhes o jantar no dia buscar as coisas celestiais, que oferecem
anterior, e agora, passada a noite, eles satisfação duradoura para a vida.
queriam tomar café! Uma das diferenças fundamentais en­
Esta acusação por parte de Jesus de­ tre a comida que perece e a que perma­
fine, de modo perfeito, duas idéias con­ nece é que uma pessoa deve trabalhar
flitantes sobre o alvo da existência hu­ diariamente por aquela, enquanto esta é
mana: ver ou comer? Para alguns, o o Filho do Homem quem a dá. Jesus re­
homem é basicamente um ser espiritual, cordou, à multidão, que ela andara ape­
que vive por idéias, convicções e valo­ nas cinco ou sete quilômetros até Cafar­
res intangíveis; para outros, é basica­ naum (v. 19); desse modo, o alimento
mente um ser preocupado com a luta que agora buscavam durara apenas qua­
pelo pão durante toda a vida. Jesus mos­ tro horas e logo teriam que se pôr a
tra claramente a sua preocupação com as trabalhar, para conseguir mais. Não se­
necessidades’materiais da vida ao ali- ria melhor procurar pelo Filho do Ho­
mem, sobre quem Deus, o Pai, colocara prescritos por suas tradições religiosas,
seu selo de aprovação, o que atestava eles devem responder com um amor obe­
sua procedência celestial (3:31-36), e diente ao Filho, que traz o selo de ter sido
permitir que ele desse a comida que per­ _enviado por Deus.
manece para a vida eterna? Jesus não apenas redefiniu o sentido
A multidão, entretanto, a exemplo da das relações entre fé e obras, m as^ e
mulher samaritana (4:14,15), estava apresentou como a fonte de toda a susten­
mais interessada em comer pão do que tação espirituaí d^acfoura. Incapaz cTe
em encontrar uma pessoa. Fixados ape­ confumãr fugindo da decisão, a multidão
nas na primeira parte da proposta de perguntou de novo: Que sinal, pois, fazes
Jesus (“Trabalhai não pela comida que tu, para que o vejamos e te creiamos?
perece, mas pela comida que permane­ Se a verdadeira “obra” que deviam fazer
ce”), voltaram a perguntar: Que have­ era aceitar a obra de Deus ao enviar
mos de fazer (literalmente, “ trabalhar” , Jesus, qual seria, então, a obra que Jesus
o mesmo verbo usado no v. 27a), para faria para mostrar que era o agente de
praticarmos as obras de Deus?Qisuj? Deus? De início, poderá parecer inacre­
pretendera fazer um contraste entre os ditável a multidão ter feito uma per­
homens que trabalham por aquilo que _ gunta dessas menos de 24 horas depois
perece e o Filho do Homem, que propicia de ver a alimentação de milhares de pes­
àquilo que permánece. (SêuTòuvmiê ^ no soas. Certamente, este milagre não fora
entaríío, entenderam que ele~estãva fa­ suficiente para convencer os mais céticos.
zendo uma distinção entre o trabalho Na realidade, porém, estavam eles não
do homem para obter pão terreno, que apenas conscientes desse acontecimento
perece, e o trabalho de Deus para con­ recente, mas conscientemente o compa­
seguir o pãõ ceiestíáf,~que“ permanece. ravam com a experiência de seus pais
Como era difícil, para aquele povo, _en- ancestrais, que tinham comido maná no
tender a religião como uma dádiva,.e não deserto, como fruto do ministério de
como uma óbrigàçlo! Moisés.
Sem se perturbar com esta interpreta­ Por ocasião das festas pascoais (v. 4),
ção equivocada, Jesus adaptou seu ar­ era costume, na sinagoga (v. 59), faze­
gumento, para encaixar a resposta da rem um estudo especial das Escrituras
multidão. Eles tinham pedido para pra­ relacionadas com os eventos do Êxodo.
ticarem as obras (plural) de Deus, mas Ao fazê-lo, os judeus encontraram escrita
ele respondera em termos de uma ver­ lá uma referência à afirmação de que
dadeira obra (singular) de Deus, que era do céu deu-lhes pão a comer (não uma
crer naquele que Deus enviara. Esta obra citação formal de um texto qualquer;
de fé não inclui esforços humanos obri­ cf. Êx. 16:4,15; Neem. 9:15; Sal. 78:24,
gatórios, como o imaginava ã multidão, “ 25; 105:40). Aceitando que “este pão dos
"mas uma continua abertura para a obra céus” , mencionado no Velho Testamen­
de Deus, em enviar seu Filho ao mundo. to, era a “comida que permanece” reco­
T"t> ato de crer é a antítese do ativismo mendada por Jesus, e entendendo que
religioso interesseiro, já que envolve a a referência original era feita ao envio do
aceitação da iniciatíva divina, por meio maná, a multidão desafiou Jesus a se
da qual Deus atuou para dar aos homens igualar a Moisés, concedendo-lhes o pão
a salvação em Cristo. Esta compreensão miraculoso não apenas durante um dia
da graça, por meio da fé, torna os ho­ — como antes acontecera — mas todos
mens, ao contrário do que se poderia os dias.
supor, muito mais responsáveis: agora, Se ele fornecesse alimento matinal­
em vez de tentar satisfazer suas ansie­ mente, não precisariam continuara “tra­
dades com um conjunto de regulamentos balhar pela comida que perece” , mas
“creriam nele” como um novo Moisés, n en h u m d e to d o s a q u e le s que m e deu, m a s
com base nesta “obra” que realizara. que e u o re s s u s c ite no ú ltim o d ia . 40 P o r ­
q u an to e s t ^ é j i v o n f c i d e d® j n e u P a i: Que
Como resposta, Jesus prontamente se todo a q u ê íè que v ê o F ilh o e c rê n e le , te n h a a
serviu do texto que tinham citado da vida e te r n a ; e e u o re s s u s c ita re i no ú ltim o
Bíblia, desafiando sua exegese em dois d ia. 41 M u rm u ra v a m , p o is, d ele os .judeus,
pontos capitais: (1) O “ele” não deveria p o rq u e d is s e ra : E u sou o .paQ~qjTO d esc e u
ser interpretado como uma referência a Wó c e u ; 42 e , p e rg u n ta v a m : ^ | o 3Ej 5ÍÍê 3 Í ^
d e ^ d ieT cu.io p a i e m ãe^ conhe-
Moisés, mas a Deus, e que está eviden­
ciada pelo contexto do Velho Testamento .çeu ? 43 R esp o n d eu -lh es J e s u s : N ão m u r m u ­
(exemplo: Êx. 16:15). Por definição, so­ re is e n tr e vós. 44 N in g u é m pode v ir a m im ,
mente no céu se encontraria a fonte do se o P a i q u e m e e n v io u n ã o o tr o u x e r; e e u o
re s s u s c ita re i no ú ltim o d ia . 45 E s tá è sc rito
pão celestial. (2) O verbo dar deveria ser nos p ro f e ta s : E s e rã o todos e n sin a d o s p o r
compreendido como presente e não como D eus. P o rta n to , todo a q u e le que do P a i o u ­
passado, uma mudança de tempo ba­ viu e a p re n d e u v e m a m im . 46 N ão que
seada numa compreensão diferente das a lg u é m te n h a v isto o P a i, sen ão aq u e le que é
vogais a serem pronunciadas com as con­ vindo d e D e u s ; só ele te m v isto o P a i. 47 E m
v e rd a d e , e m v e rd a d e vos d ig o : A quele qi*e
soantes do hebraico original. Assim, não c rê te m a v id a e te r n a . 48 E u so u o p ão d a
deviam compreender o texto como signi­ v id a. 49 V ossos p a is c o m e ra m o m a n á no
ficando que Moisés deu, mas que meu d e se rto , e m o r re ra m . 50 E s te é o p ão que
Pai... dá o verdadeiro pão em questão. ofesce do cé u . p a r a q u e o q u ç dele c o m e r nao
m o rra . 51 E u sou o p ão d a vida, q u e d e sce u
Este esclarecimento exegético, que vai tfo céu ; se a lg u é m cóm 'er d e s te ’p ã o , v iv e r á
além do tipo da exegese homilética ju ­ ç a r a s e m p re ; e o j ã o qu e e u d a re i p e la v id a
daica (midrash), permitiu que Jesus aca­ do m u n d o é a m in h a c a rn e .
basse por definir o pão de Deus à base de
sua fonte, como aquele que desce do céu, A identificação inicial do pão de Deus
e em função de sua origem, aquele que (v. 33) é ambígua, porque a palavra
dá vida ao mundo. Moisés não era a traduzida por “aquele” (ho) pode referir-
fonte final deste pão porque, diferente­ se a um pão (que é masculino em grego)
mente do Filho do Homem, não provi­ ou a uma pessoa. No último caso, a frase
nha do céu. Nesse caso, o uso que fi­ ficaria assim: “O pão de Deus é ele quem
zeram das Escrituras era equivocado, (melhor do que aquele que) desce dos
porque não se fundamentava na única céus” . Depois de ter levado a multidão
suficiência de Deus como o doador de para além de sua avidez por pão físico,
todo bem e de toda dádiva perfeita. Con­ Jesus agora explica a natureza pessoal do
vencida a enxergar esta realidade espiri­ verdadeiro sustento espiritual, com esta
tual, a multidão exclamou, ainda no declaração inequívoca: Eu sou o pão da
mesmo espírito um tanto egoísta da mu­ vida. Seu papel crucial, como doador e
lher samaritana (4:15): Senhor, dá-nos dádiva ao mesmo tempo, fora antecipado
sempre desse pão. nos versos 27 e 29, mas aqui ele alcança o
nível mais elevado através do solene eu
4) A Natureza do Pão da Vida (6:35-51)
sou (egõ eimi), fórmula que identificava
35 D eclaro u -lh es J e s u s : E u sou o p ão d a Jesus com a natureza de Deus. Os judeus
v id a ; a q u e le q u e v e m a m im , d e m odo comparavam a sabedoria de Deus, obti­
a lg u m t e r á fo m e, e q u em c rê e m m im ja -
I m a is t e r á sed e. 36 M as com o j á vos d isse, da pelo estudo da Lei, com o pão (exem­
I vós m e te n d e s v isto , e, contu d o , n ã o c re d e s . plo: Prov. 9:5), mas Jesus se colocou
37 Todo o que o P a i m e d á v ir á a m im ; e acima dessas realidades, apresentando-
o que v e m a m im d e m a n e ira n e n h u m a oa se como aquele que alimenta e satisfaz
la n ç a re i tora'. 38 P o rq u e eu d e sci do céu , n ão
^>ara lá z e r a m in h a v o n tad e , m a s a v o n tad e plenamente as necessidades do homem.
d aq u ele qu e m e enviou. 39 E a von ta d e do, Como ele primeiro desceu de Deus,
que m e enviou é e s ta : Q ue eu n ã o p e rc a toda pessoa que vem a ele tem satisfei­
tas as necessidades básicas da vida em liberdade humana no contexto da so­
toda a plenitude. Estes dois temas (Jesus berania divina. Todos aqueles que vie­
“descer dos céus” , aos homens, em mis- ram eram dons de seu Pai (cf. 17:6), isto
sâo e os crentes “virem a ele” em fé) é, vieram porque Deus lhes mostrara a
são centrais, neste capítulo e em todo o autenticidade do seu Filho (v. 27; cf.
Evangelho. O conceito de “ descer dos 5:30-47).
céus” expressa uma escatologia mais no Mesmo assim, por mais sem esperan­
sentido espacial do que temporal, bem ças que fossem, vistos de uma perspec­
próximo da frase-chave da Oração do Pai tiva humana, Jesus não queria lançar
Nosso (“assim na terra como nos céus” fora nenhum deles (cf. Mat. 8:12; 22:13),
— Mat. 6:10). A noção de “vir a Jesus” pois não viera fazer a sua própria vonta­
indica que a resposta humana à inicia­ de, mas a vontade dAquele que o envia­
tiva divina envolve não apenas um pe­ ra. O espírito do Getsêmane caracterizou
queno serviço a ser feito (v. 27), mas um todo o seu ministério, e não apenas um
companheirismo vital, a ser cultivado. episódio próximo do fim (cf. Mar. 14:
Neste ponto, o povo recebeu o desafio 36). Aqueles que se entregavam a Jesus
de alcançar um terceiro e mais elevado descobriam que ele estava totalmente
nível, em sua compreensão acerca do seguro de não perder ninguém que lhe
pão. (1) De início, queriam pão físico, fora dado (isto é, de não permitir que
a exemplo do que receberam na travessia ninguém perecesse; cf. os v. 12 e 27),
do mar (v. 26), com a diferença de que, mas de os ressuscitar no último dia (cf.
como o velho maná, devia ser dado todos 5:19-29).
os dias (v. 34). (2) Convencida de que
todo pão perece, até mesmo o maná diá­ Esta seção, nos versos 36-40, que re­
rio, a multidão pediu o suprimento sem sume muito do argumento do capítulo 5,
fim, do “verdadeiro pão” , que o Pai começa com uma referência àqueles que
envia dos céus. (3) Mas agora Jesus ex­ tinham visto (heõrakate) e mesmo assim
plica que ninguém precisa do Pão da vida não creram, mas termina com uma men­
“sempre” (isto é, sempre, novamente e, ção de todo aquele que vê (theõrõn) o
repetidas vezes), porque aquele que come Filho e crê nele. Vale sublinhar a forma
dessa espécie de pão jamais terá fome. como o “ver” é relacionado tanto à fé
Assim, como o êxodo envolvera tanto o quanto à incredulidade. De um lado,
“pão quando tiveram fome” como a qualquer um poderia (amigos e inimigos)
“água quando tiveram sede” (Neem. ver a vida terrena de Jesus. Mesmo em
9:15), Jesus acrescentou que, aqueles que relação aos sinais maravilhosos, não ha­
o aceitassem jamais teriam sede (cf. 4:13, via argumento maior do que o que esta­
14). Diferentemente de Moisés, o que va acontecendo. Deus não tem favoritos
Jesus faz pelos homens, ele o faz de uma e nem revela sua verdade apenas aos
vez para todas (cf. Heb. 7:27; 9:12; videntes apocalípticos ou aos visionários
10 : 10 ). místicos. A encarnação era tangível e,
Apesar desta última oferta, porém, por conseguinte, acessível à experiência
muitos da multidão, que haviam cami­ sensorial, cresse a pessoa ou não.
nhado vários quilômetros, em busca de Por outro lado, os homens atribuem
mais pão, não aceitaram a inesperada significado àquilo que vêem à luz da sua
dádiva de uma festa espiritual. Mesmo visão do mundo. Alguns viram a Jesus
depois de terem visto tanto sua vida apenas superficialmente, através dos
irrepreensível como seu poder para ofere­ óculos da tradição, a partir do que ele se
cer o pão sobrenatural, eles não creram. chocava frontalmente com as conven­
Esta recusa, no entanto, não frustrou ções. Outros, entretanto, vendo o mesmo
totalmente Jesus, porque ele entendia a fenômeno, enxergaram a glória visível,
graças aos olhos da fé. De forma equili­ Os versos 47-51 servem como uma
brada, este 'Evangelho afirma que os conclusão sintética dos ensinos principais
homens são levados a crer à base do que sobre a natureza do Pão da vida nos
vêem e que são capazes de ver por que versos 35-51 e como uma transição an-
creram (exemplo: cf. 14:7-11; 20:24-29). tecipadora da discussão sobre a recepção
O homem não é apenas um ser terreno do Pão da vida, nos versos 52-65. A fór­
limitado a percepções sensoriais (empi­ mula solene, Em verdade, em verdade,
rismo) e muito menos um ser espiritual identificou como uma revelação divina as
pendente das percepções da fé (gnosti- descobertas seguintes, esclarecidas nesta
cismo). Ao contrário, no evento da re­ altura do diálogo: (1) A vida eterna não
velação encontram-se a visão e a intros­ perecível é sustentada não por aquele que
pecção, a carne e o espírito, o mundo come, mas por aquele que crê. (2) Jesus
visível da criação e o mundo invisível da mesmo é o pão, de que a fé se apropria,
redenção. para se ter vida. (3) Como tal, Jesus é
Os judeus, entretanto, entendiam que superior ao maná que os pais judeus
a revelação divina exigia um modo mais receberam no deserto, já que comeram
fantástico de revelação do que uma vida e depois morreram (isto é, não apenas
solitária, de origens humildes, pelo que fisicamente, mas também espiritualmen­
murmuravam, como os israelitas tinham te, porque não conseguiram herdar as
murmurado contra Moisés no deserto. promessas de Deus), enquanto todo
Na realidade, não era este homem, que aquele que comesse de Jesus não morre­
dizia ter descido dos céus, um cidadão ria (isto é, ele podia morrer fisicamente,
local, chamado Jesus, o filho de José, mas nunca espiritualmente).
cujo pai e mãe eram conhecidos de al­ A referência à comida, nos versos 49
guns galileus reunidos na sinagoga de e 50, encabeça a introdução de um novo
Cafamaum (cf. Mar. 6:3)? Esperava-se tema no verso 51, o de receber o pão vivo,
que o livramento de Deus chegasse na visto como uma pessoa histórica, e não
forma de um rei davídico, em carrua­ como um pão literal. Agora, pela pri­
gem real, ou como o Filho do Homem meira vez somos informados de que o pão
sobre nuvens de glória. Como o poderiam que Jesus daria para a vida do mundo era
aceitar como tendo descido dos céus, sua carne. As implicações teológicas des­
quando todos sabiam que crescera na ta estranha afirmação são elaboradas na
obscura vila de Nazaré? seção seguinte.
Ao rejeitar este esforço de avaliar uma
vida através de suas origens terrenas 5) O Recebimento do Pão da Vida
(cf. 1:13; 3:1-7), Jesus apontou para (6:52-65)
Deus, como a fonte derradeira, que o 52 D isp u ta v a m , pois, os ju d e u s e n tre si,
enviara à terra e que agora traz cada um dizendo: C om o pode e s te d arjn o g a . su a
c a rn e a c o m e r? 53 D isse-lh es J e s u s : E m
que vem a ele (cf. Jer. 31:3). Embora" v e rd a d e , e m v e rd a d e v o s d ig o : Se n ã o c o ­
Deus fosse a raiz primeira, atrás de tudo m e rd e s a c a rn e do F ilh o do h o m em , e n ão
o que acontecia no ministério de Jesus, b e b e rd e s o seu sa n g u e , n ã o te r e is v id a e m
esta iniciativa soberana não substituiJ vós m e sm o s. 54 Q uem co m e a m in h a c a rn e
mas sustenta a liberdade humana. Exa­ e b eb e o m e u sa n g u e te m a v id a e te r n a ; e
e u o re s s u s c ita re i no ú ltim o d iá . 55 P õ rq ú e a
tamente porque o Pai “atrai” e “ensi­ m in n a c á f n ê v e rd a d e ira m e n te é co m id a , e o
na” (cf. Is. 54:13), foi dada ao homem a m e u sa n g u e v e rd a d e iF a m e n te é b e b id a .
oportunidade de “ouvir” e “aprender” . 58 Q uem co m e a m in h a c a rn e e b e b e o m e u
Neste processo, Jesus serviria como o san g u e p e rm a n e c e e m m im e e u n e le . 57 A s* '- r
s im co m o o P a i, q u e v iv e , m e enviQU, e e u v i­
único mediador, porque só ele vira o Pai vo p elo P a i, a s s im , q u e m d e m im ’se alim en-'*]
(cf. 5:19,20), embora fosse um homem Y ta , ta m b é m v iv e r á p o r m im . 58 E s te é o p ão
visto pelos outros na terra (v. 40). ®"que d e sc e u do c é u ; n ã o é com o o c a so d e vos-
sos p a is , q ue co m er a m o m a n a e m o r r e r a m ; é, e se o pão deve ser comido devido à
q uem co m e r e s te p ão v iv e rá p a r a se m p re . sua natureza, segue-se que se devia co­
59 E s ta s coisas falou J e s u s q u an d o e n sin a v a
n a sin a g o g a e m C a fa m a u m . 60 M u ito s, p o is,
mer o próprio Jesus. Este propósito per­
dos seu s discípulos, ouvindo isto , d is s e ra m : vade os versos 52-59, onde quem come
D uro e e ste d is c u rso ; q u em o pode o u v ir? a minha carne e bebe o meu sangue
fflV IasT saB éndò J è s u s é m si m esm o que é outra forma de dizer aquele que de
m u rm u ra v a m disto os seu s d iscíp u lo s, d is ­ mim se alimenta. A identidade do doa­
se-lhes: Isto v^s e sc a n d a liz a ? 62 Q ue se ria ,
pois, se v ísseis su fiir^ o F ilh o d o h o m e m p a r a dor com a dádiva significa que não se
onde p rim e iro e s ta v a ? 63 O esp írito é o que pode tomar nada de Jesus sem tomar o
vivifica, a c a rn e p a r a n a d a a p ro v e ita ; a s próprio Jesus.
p a la v ra s que eu vos tenho dito são e sp írito Isto, porém, não explica por completo
e sao vida?64 M as h á a lg u n s de vós que não>
c re e m . P ò is J e s u s sa b ià , d esd e o p rin cíp io ,
o uso de fraseologia aparentemente tão
q uem e r a m os que c ria m , e q u em e r a gue o repulsiva, como “comer a carne” e “be­
h a v ia de e n tr e g a r . 65 È co n tin u o u : P o r isso ber o sangue” . No pensamento hebraico,
vos d isse que n in g u ém pode v ir a m im , se a carne e o sangue permaneciam como
pelo P a i não fo r concedido.
a corporalidade física e terrena de um
A primeira menção feita por Jesus de indivíduo ou da humanidade em geral
que daria aos homens a sua carne para (cf. Mat. 16:17, onde “carne e sangue”
ser comida provocou imediata e violenta significam o homem na terra em contras­
controvérsia, passando os judeus a dispu- te a Deus nos céus). Ào apontar dire­
tar(literál mente: “lutar”) entre si sobre tamente para sua carne e sangue, Jesus
esta terminologia repugnante, que lhes insistia que o sustento da vida que ofé7
parecia ser uma sugestão de canibalismo. recia aos homens era comunicado, não
Em resposta, Jesus nada fez para mitigar por algum pensamento atemporal ou es­
a angústia deles, mas aumentou a ofen­ pírito intangível, sem qualquer relação
sa, ao exigir que não somente deviam com esta vida particular, mas p o rsu a
comer a carne do Filho do homem como existência encarnada, como uma realida­
também beber o seu sangue. Não é ne­ de histórica concreta, a viver no meio
cessário dizer que beber sangue humano deles. Por mais incrível que possa ter
era algo absolutamente impensável para parecido, a afirmação feita é de que
aqueles cuja religião mantinha venerá­ trouxe toda a sua vida do Pai, que vive,
veis escrúpulos contra a ingestão de san­ pelo que aquele que o “come” se ali-
gue de animais (cf. Gên. 9:4; Lev. 3:17; )/ jmenta dele, jiiía existência temporal era
17:10-14; Deut. 12:23). Apesar da con­ o único elo a mediar a vida eterna de
tundência da linguagem, a expressão foi Deus e o homem.
repetida várias vezes, como uma condi­ Aceitar a humanidade de Jesus como
ção exclusiva para se ter vida eterna, o lugar da vida divina na terra não signi­
para se encontrar o pão e a bebida ficava, entretanto, que era limitado à
verdadeiros e para “permanência” mú­ carne. Tão duro quanto crer que o pão
tua do crente e de Jesus. dos céus tomara uma forma tão inferior
Embora desconcertasse os judeus, esta de vida, seria ver subir o Filho do ho­
nova direção no desenvolvimento da ana­ mem para onde primeiro estava e assim
logia do pão foi preparada com todo o compreender que Jesus sempre fora e
cuidado e como uma exigência de duas sempre seria o mediador do mundo su­
afirmações anteriores, já antecipadas perior. A carne em si mesma para nada
nesta revelação. Nos versos 25-34, Jesus aproveita; no entanto, a carne de Jesus
sustenta que é o doador do verdadeiro era crucial, porque interpenetrada pelo
pão do Deus dos céus, enquanto, nos espírito que vivifica. Suas palavras não se
versos 35-51, afirma que é o próprio pão limitavam apenas às experiências senso-
da vida. Se, pois, Jesus dá o pão que ele riais das expressões terrenas, mas eram
os veículos do espírito e da vida, que lhe , fundamento teológico para uma com­
pertenciam desde o reino celestial (cf. ; preensão adequada da Ceia, ao indicar
3:6). Jesus como ‘^sacramental” , isto é, como
Paradoxalmente, todavia, dá-se desta­ meio material da graça espiritual. Num
que a duas afirmativas aparentemente ■ sentido ontológico, ele é o único em
contraditórias, nos dois parágrafos da quem o invisível se fez visível, o celes­
seção. Nos versos 52-59, a ênfase recai tial se tornou terreno e o infinito se trans­
sobre a imprescindibilidade de se apro- I formou em finito. Somente quando os
priar da carne e do sangue de Jesus como crentes comem a sua carne e bebem o seu
a única manifestação tangível da vida sangue é que participam da vida de
eterna vivida na terra e assim oferecida Deus.________ _ /
aos homens. Nos versos 60-65, entretan­ Não significa isto que os elementos
to, a ênfase é colocada sobre a impres­ usados na Ceia do Senhor devam ser
cindibilidade de se apropriar do espírito interpretados como símbolos no mesmo
e da vida desse reino celestial onde Jesus nível em que uma bandeira ou um anel
antes estivera e para onde voltaria nova- servem como símbolos, uma vez que, na
^jnente. Ambas as perspectivas se harmo- ) história subjacente a estas representa­
nizam, devido à convicção de que, em i ções, não há uma perfeita encarnação
Jesus, carne e espírito, forma e conteúdo, das realidades para as quais apontam.
I mundo inferior e mundo superior, fun- Como o comer do pão eucarístico deve
dem-se de modo perfeito. Como já o de- ser acompanhado pelo espírito que vivi­
clarara o prólogo (1:14), o Verbo eterno, fica e pelas palavras que Jesus tem dito,
que existia com Deus antes de qualquer um tal ato fundado na fé deve alimentar
coisa ser feita, tornou-se carne e sangue um relacionamento pessoal com ele, o
terrenos sem deixar de ser espírito e vida único Pão da vida.
celestiais. Independentemente ou não de ter sido
Esta convicção central dá a perspecti­ destinado originalmente à questão da
va para se responder à questão freqüen­ Ceia do Senhor, o fato é que João 6
temente debatida, se os versos 51b-58 contém um dos mais explícitos avisos, no
também se referem à ^ e ia do Senhor. Novo Testamento, de que serão. v.ãs. nos--
Esta celebração não ê mencionada espêf-“ sas^ observações, se não estão em real
cificamente nem neste capítulo nem em comunhão com o Cristo encarnadoTlLÕ ”
qualquer outro lugar do Quarto Evange­ mesmo tempo, a convicção- expressa
lho. Por conseguinte, é válida a afirma" ] aqui, de que “o Verbo se fez carne”
j~ção de que os ensinos de João 6 não) e se ofereceu a si mesmo para ser comido,
j contém uma relevância direta para a traz a garantia de que Deus está dese­
Lcompreensão da Ceia do Senhor. Todã^- joso de se identificar com o tangível,
via, seria estranho se uma observância criando, assim, uma oportunidade para
tão importante, na vida da igreja antiga, que se encontre através desta identifi­
fosse ignorada por completo num Evan­ cação a plenitude da sua presença.
gelho tão preocupado com as raízes do A seção termina por antecipar a crise
movimento cristão no ministério de Je­ da rejeição descrita nos versos 66-71._
sus. Daí, seria inevitável que um discur­ r Assim como alguém pode recusar comer j
so como este, sobre o pão, fosse rela­ 1fisicamente o pão, pode também esco- i
cionado ao “partir do pão", embora não jlher não crer no Pão da vida. Muito
fosse esta sua aplicação original. Jembora soubesse, desde o princípio,
1 Uma forma de interprelaí ó silenciei / quem eram os que não criam, e quem era
de João 6 sobre a Ceia é supor que sua j o que o havia de entregar, Jesus não
preocupação básica não era registrar a ; _jprocurou impor a fé. Certo de que só
instituição do ritual, mas estabelecer o; Deus triunfaria sobre a dúvida e a ne-
gação, contentou-se em receber aqueles o motivo da paixão se explicava, pela
que o Pai lhes tinha concedido (cf. v. 37 e menção de Judas como aquele que o
44). Nenhuma experiência é mais dolo­ haveria de entregar. A partir daí, o mi­
rosa que ã rejeição, particularmente’ nistério de Jesus esteve sempre sob a
quando se esta tentando apenas ser útil. pressão do perigo da morte, de ordem
Jesus enfrèntou esta frustração, na crén-’ externa (5:18a) e interna (v. 70 e 71).
ça de que, se fosse fiel para com Aquele O significado teológico da seqüência
que o enviara, ser-lhe-iam dados aqueles desta seção evidenciou-se mais sólido
seguidores que estavam dispostos a ex­ pela conjugação de três ênfases, que não
perimentar o poder de Deus. se apresentam intimamente relacionadas
nas narrativas dos Sinópticos:
6) A Colocação dos Doze à Prova Primeiro, a confissão de Pedro foi rela­
(6:66-71) cionada ao relato da alimentação dos
cinco mil, como em Lucas 9:10-22. (Em
66 P o r c a u s a d isto m u ito s dos se u s d is c í­
pulos v o lta ra m p a r a t r á s e n ão a n d a v a m Mateus 16:13-23 e Marcos 8:27-33, a
m a is co m ele. 67 P e rg u n to u e n tã o J e s u s conexão não é direta, mas os relatos da
a o s d o z e : Q u ereis vós ta m b é m re tira r-v o s ? confissão estão intimamente ligados a
68 R espondeu-lhe S im ão P e d ro : S enhor, uma discussão teológica da alimentação
p a r a q u em ire m o s nós? T u te n s a s p a la v r a s
d a v id a e te r n a . 69 E nós j á te m o s c rid o e
em Mateus 16:5-12 e Marcos 8:14-21.)
b em sa b e m o s qu e tu é s o S an to d e D eu s. A confissão dos discípulos, através de
70 R esp o n d eu -lh es J e s u s : N ão vos esc o lh i a Pedro, seu porta-voz, ilustra as verdades
vós os doze? C ontudo u m d e vós é d iab o . centrais do milagre de Jesus e o discurso
71 R e fe ria -se a J u d a s , filho d e S im ão Isc a -
r io te s ; p o rq u e e r a ele o que o h a v ia d e e n tr e ­
explicativo que se seguiu. Eles não que­
g a r, sendo u m dos doze. riam se retirar, como o fizeram as multi­
dões, mas se apegavam a ele pela fé,
Através deste capítulo, a crucialidade como aquele que tinha palavras da vida
da decisão vem se esboçando, até al­ etema. Se o leitor ainda continua con­
cançar seu clímax, neste último parágra­ fuso sobre o que significa “comer” a
fo. De modo positivo, aquilo que come­ carne e “beber” o sangue de Jesus, basta
çou como um elogio superficial (v. 14 e que estude esta confissão, como paradig­
15) terminou com duas sinceras confis­ ma da verdadeira resposta.
sões: Tu tens as palavras da vida eterna Segundo, a confissão de Pedro foi ime­
e Tu és o Santo de Deus (cf. Mar. 1:24). diatamente seguida por uma confissão
De modo negativo, aquilo que começou de Jesus, quando anunciou sua paixão
como um argumento teológico (v. 41,52 iminente, como consta em todos os Si­
e 60) terminou numa rejeição pessoal, nópticos (Mat. 16:24-28; Mar. 8:34-9:1;
quando muitos dos seus discípulos vol­ Luc. 9:23-27). Apesar de toda a leal
taram para trás e não andavam mais com dedicação dos crentes, estes não seriam
ele. João 6 abre-se com cinco mil apai­ capazes de evitar que fosse traído para a
xonados guerreiros (v. 15) e se fecha com morte. A fé que tinham não os levaria
doze atribulados discípulos, um dos a uma era de felicidade e paz, mas ao
quais era um traidor! conflito e à tensão, dos quais não pode­
Jesus compreendeu logo que os ho­ riam fugir. Diante da confissão de que
mens diferiam tão drasticamente em suas nós (os doze) já temos crido e bem sabe­
atitudes para com ele, que acabaria por mos, Jesus informou que um deles era
sofrer no fogo cruzado das reações em diabo. A melhor confissão possível não
conflito. Embora tenha sido insinuado tomava invulnerável a Satanás nem se­
nas referências à entrega de sua carne quer o círculo íntimo dos discípulos!
para a vida do mundo (v. 51) e à ascen­ Terceiro, a traição por Judas fora reve­
são do Filho do homem (v. 62), só agora lada pouco depois da oferta, por parte de
Jesus, de sua carne e de seu sangue, do tentador (cf. Luc. 22:31,32; Mar.
como comida e bebida (v. 52-57). Em to­ 16:7; João 13:26-30; 17:12). As respostas
dos os Sinópticos, o pecado de Judas foi opostas, dos dois homens, a uma mesma
revelado na Última Ceia, quando Jesus pregação mostram que o livre-arbítrio
ofereceu o pão e o cálice como seu cor­ humano era um fator capital também na
po a ser comido e seu sangue a ser luta cósmica entre Cristo e o anticristo.
bebido (Mat. 26:20-29; Mar. 14:17-25; e
3. A Ãgua da Vida (7:1-52)
especialmente Luc. 22:14-23). Cear com
outra pessoa era visto pela hospitalidade João 7 e 8 constituem a seção central
oriental, como uma experiência íntima, na unidade maior de João 5 a 10. Di­
de fraternidade, que criava um vínculo ferentemente dos demais capítulos, con­
mesmo entre os inimigos. O fato de Judas sistem de pequenos blocos de material,
trair aquele que comia com ele e se dava organizado livremente, sem qualquer
a si mesmo como alimento apenas au­ longa narrativa sobre as obras de Jesus
mentou a ignomínia de seu gesto infame. ou qualquer discurso contínuo que se
Com sua traição, o filho de Simão Is- concentrasse no seu ensino sobre um
cariotes quebrou a solidariedade entre os único tema. Maior atenção recebem as
doze e rejeitou a oferta de Jesus de o várias respostas dadas por Jesus, quando
alimentar com o pão dos céus. a natureza de sua pessoa e missão ficou
Apesar da grandiloqüência de sua impressionantemente clara. O conteúdo
traição, é desagradável ler que Jesus cha­ destes dois capítulos interligados asseme-
mou Judas de diabo. A partir da afir­ lha-se aos resumos de vigorosos debates,
mação de que Jesus sabia de sua traição em que as objeções judaicas a Jesus
“desde o princípio” (v. 64), alguns su­ foram convincentemente apresentadas e
põem que Judas é apresentado, neste também convincentemente respondidas.
Evangelho, como um desesperado fan­ Em conformidade com a tendência
toche nas mãos de Satã, fadado a servir manifesta através de João 5 a 10, ace­
como um agente do mal cósmico contra lera-se o processo de polarização (cf. 7:1,
a sua vontade (cf. 13:2,27; 17:12). Para 7,19,20,25,32,44), em que três grupos
fins de esclarecimento, é necessário fazer aos poucos aparecem: (1) seus irmãos
uma comparação desta passagem com (v. 1-9), que não podiam acreditar em
sua contraparte sinóptica, exatamente no sua glória pública; (2) as multidões
ponto onde são evidentes as diferenças. (v. 10-44), que não estavam seguras de
Em Cesaréia de Filipe, Jesus identificou suas credenciais teológicas (v. 45-52); e
Pedro como “ Satanás” (Mar. 8:33), en­ (3) a liderança religiosa (v. 45-52), que
quanto aqui descreve Judas como “dia­ temia que sua popularidade desviasse o
bo” . povo. Em cada geração, o cristianismo
Ao final do ministério na Galiléia, pode ser minado por sutis pressões fami­
depois de uma confissão momentânea de liares, pela pusilanimidade das massas
fé, por parte dos doze, dois dos seus inconstantes e pelo orgulho do “esta­
membros são apontados como emissários blishment” religioso, ou seja, da religião
do demônio. Embora no início ambos institucionalizada.
estivessem sob esta execrável condena­ A base religiosa, para João 7-9, está na
ção, o final de suas vidas não poderia ser Festa dos Tabernáculos, a mais popular
mais diferente: Pedro tornou-se o após­ (Josefo, Antiguidades, VIII, 100) das três
tolo principal e Judas suicidou-se tragica­ festas judaicas nacionais que requeriam
mente. Jesus acusou francamente dois de a peregrinação ao Templo (Êx. 23:14-17;
seus líderes escolhidos de sucumbirem Deut. 16:16). O nome dado a esta cele­
à tentação satânica, embora lhe fosse bração indica sua dupla formação como
absolutamente possível quebrar o poder festa agrícola outonal de colheita (Êx.
23:16) e como comemoração religiosa da po rq u e os ju d e u s p ro c u r a v a m m a tá -lo . 2
caminhada no deserto (Lev. 23:39-43). O ra, e s ta v a p ró x im a a fe s ta d o s ju d e u s , a
dos ta b e rn á c u lo s . 3 D isse ra m -lh e , e n tã o ,
O termo “tabernáculo” (barraca) sugere se u s ir m ã o s : R e tira -te d a q u i e v a i p a r a a
os pavilhões cobertos de palha, construí­ Ju d é ia , p a r a q u e ta m b é m o s te u s d iscíp u lo s
dos nos pomares, durante a estação da v e ja m a s o b ra s q u e fa z e s . 4 P o rq u e n in g u é m
ceifa, para darem abrigo àqueles que vi­ faz co isa a lg u m a e m o cu lto , q u an d o p ro c u ra
giavam a colheita durante a noite. Re­ s e r conhecido. J á q u e faz e s e s ta s c o isa s,
m a n ife sta -te a o m u n d o . 5 P o is n e m se u s
monta também às tendas com que Israel irm ã o s c r ia m n e le . 6 D isse-lh es, e n tã o J e ­
migrou do Egito para a terra prometida. su s : A inda n ão é c h eg ad o o m e u te m p o ; m a s
Era observada no mês de Tishri (que o vosso te m p o se m p re e s tá p re s e n te .
corresponde mais ou menos ao nosso 7 O m u n d o n ã o vos pode o d ia r; m a s e le m e
odeia a m im , p o rq u a n to d ele te stifico q u e a s
outubro), durante sete dias (Deut. 16:13- su a s o b ra s sã o m á s . 8 Subi v ó s a f e s ta ; eu
15; Ez. 45:25). Mais tarde, este período não subo a in d a a e s ta fe s ta , p o rq u e a in d a
foi ampliado pelo acréscimo de um oitavo não é c h eg ad o o m e u te m p o . 9 £ h av en d o -
dia, guardado como um sábado, com lh es d ito isto , ficou n a G aliléia . 10 M as q u a n ­
uma assembléia solene (Lev. 23:33-36; do se u s irm ã o s j á tin h a m subido à fe s ta ,
e n tã o su b iu e le ta m b é m , n ã o p u b lic a m e n te ,
Núm. 29:35; II Crôn. 7:9; Neem. 8:18). m a s com o e m se c re to . 11 O ra , os ju d e u s o
O primeiro dia da festa, 15 de Tishri, p ro c u ra v a m n a fe s ta , e p e rg u n ta v a m : O nde
coincidia com o equinócio outonal (Jose- e s tá e le ? 12 E e r a g ra n d e a m u rjn u ra ç ã o
pho, Antiguidades, III, 244), assinalan­ a re sp e ito d ele e n tr e a s m u ltid õ e s. D iziam
a lg u n s : E le é b o m . M a s o u tro s d iz ia m : N ão,
do, assim, o começo do inverno, quando a n te s e n g a n a o povo. 13 T o d a v ia , n in g u é m
a chuva era necessária para preparar a fa la v a d e le a b e rta m e n te , p o r m ed o d o s j u ­
terra para o novo ciclo da colheita. deus.
A libação matinal, um dos três ritos
principais observados diariamente du­ Embora Jesus tivesse afastado muitos
rante a festa dos Tabernáculos, forneceu galileus (6:41,52,60,66), a maior oposi­
a base para João 7 (cf. Mishnah, Sukkah ção veio da parte dos judeus concentra­
4:9). Uma procissão de sacerdotes levava dos na Judéia, onde se faziam esforços
um jarro de ouro, cheio de água do para matá-lo (5:18). Para aumentar a
tanque de Siloé, até o Templo, onde tristeza de uma situação que se deterio­
eram saudados pelo som das trombetas rava rapidamente, os irmãos de Jesus
(shofar) e pelas aclamações (hallel) dos mostraram-se insensíveis às hostilidades
fiéis peregrinos. A água era colocada de que era vítima. Sabedores da apaixo­
numa bacia de prata, sobre o altar, como nada reputação que ele gozava desde seu
símbolo da oração pela chuva (Zac. 14: ministério anterior na Judéia (2:23; 3:26;
16-19) e em lembrança pela dádiva da 4:1,45), o desafiaram a usar a popular
água oferecida por Deus a Israel no Festa dos Tabernáculos, que estava pró­
deserto (Êx. 17:1-7; Núm. 20:2-13; I xima, para que seus discípulos vissem
Cor. 10:1-4). Foi neste contexto altamen­ o que ele fazia, como a recente alimenta­
te carregado que Jesus disse: “ Se alguém ção de cinco mil pessoas. A lógica deles
tem sede, venha a mim e beba” (7:37), era bem evidente. Certos de que Jesus
oferecendo-se ele, assim, como a resposta pretendia ser conhecido publicamente
às necessidades fundamentais de Israel, como líder religioso, eles o encorajaram
como apresentadas pela natureza e pela a se manifestar no centro religioso do
história. mundo, ao invés de operar na obscuri­
dade da Galiléia.
1) A Chegada de Jesus a Jerusalém Apesar de os irmãos parecerem pron­
(7:1-13) tos para reconhecer que Jesus estava
1 D epois d isto a n d a v a J e s u s p e la O ali- realizando obras espetaculares, com fins
lé ia ; p o is n ã o q u e ria a n d a r p e la J u d é ia , publicitários, o evangelista estava certo
de que eles não criam nele (cf. 3:21,31). peregrinos em viagem à festa em Jerusa­
Na realidade, seus familiares terrenos lém (cf. 12:12-19). Por pouco não fora
mais achegados escarneciam dele, por agarrado pela multidão excitada da Ga­
retomar uma causa perdida e recuperar liléia (6:15) e não queria passar por uma
suas perdas na Galiléia (6:66), ao manter situação semelhante agora, durante a
consigo aqueles que tinham sido feitos festa dos Tabernáculos.
discípulos seus durante a primeira via­ A firme determinação de Jesus de dar
gem à Judéia (3:22,26; 4:1). A família cada passo certo e de acordo com um
podia estar interessada em apoiar seu espírito correto contrastava flagrante­
movimento tão logo ele triunfasse, espe­ mente com a indecisão daqueles que
rando sinceramente que isso ocorresse, esperavam sua chegada a Jerusalém. Os
mas estava despreparada para se com­ judeus perguntavam onde podia estar,
prometer com Jesus independentemente enquanto o povo mantinha, na surdina,
do resultado. um debate sobre se ele era um homem
Ao perceber que esta exigência de seus bom ou se enganava o povo, cuja indeci­
irmãos — bem semelhante a uma solici­ são para falar abertamente de Jesus por
tação de sua mãe (2:3) — não era moti­ medo dos judeus contrasta com a indis­
vada por uma compreensão real de sua posição de Jesus em operar “abertamen­
missão, Jesus respondeu que o momento te” de modo a chamar a atenção mais
oportuno, para sua manifestação a Is­ para si do que para Deus.
rael, era determinado pelo tempo de
Deus, e não por eles (cf. 2:4b). Pedro 2) O Conflito Sobre a Autoridade de
tinha tentado dissuadi-lo da cruz (Mar. Jesus (7:14-24)
8:31-33), enquanto, agora, seus irmãos 14 E s ta n d o , p o is, a f e s ta j á e m m e io , s u ­
lhe ofereciam a lisonja das multidões em b iu J e s u s a o tem p lo e co m eç o u a e n s in a r.
festa, em vez dos turvos caminhos de 15 E n tã o os ju d e u s se a d m ira v a m , d iz e n d o :
Judas (6:71). Jesus sabia, porém, que Como s a b e e s te le tra s , s e m te r estu d a d o ?
1 6 R esp o n d eu -lh es J e s u s : A m in h a d o u trin a
jamais poderia servir como um funcioná­ n ão é m in h a , m a s d a q u e le que m e enviou.
rio popular em celebrações litúrgicas, 17 Se a lg u é m q u is e r fa z e r a v o n ta d e de
uma vez que sua tarefa era testificar ao D eus, h á d e s a b e r se a d o u trin a é d e le , ou
mundo que as. obras deste eram más se e u falo p o r m im m e sm o . 18 Q u em fa la p o r
si m e sm o b u s c a a s u a p ró p r ia g ló ria ; m a s
(cf. 3:19-21). Ele não confundiria a luz
o que b u s c a a g ló ria d a q u e le q u e o enviou,
de ribalta dos homens com o holofote de esse é v e rd a d e iro , e n ã o h á n ele in ju stiç a .
Deus. Então, contrariando seus irmãos, 19 N ão vos d e u M oisés a lei? no e n ta n to ,
recusou “caminhar junto com a multi­ n e n h u m d e v ó s c u m p re a lei. P o r q u e p ro ­
dão” para a festa, e ficou na Galiléia. c u ra is m a ta r- m e ? 20 R esp o n d e u a m u lti­
d ã o : T e n s d em ô n io ; q u e m p ro c u ra m a ta r-
Poucos dias após, no entanto, depois te ? 21 R ep lico u -lh es J e s u s : U m a só o b ra
que seus irmãos... tinham subido à fes­ fiz, e todos vos a d m ira is p o r c a u s a d isto .
ta, Jesus então subiu a Jerusalém, não 22 M oisés vos o rd en o u a circ u n c isã o (não
publicamente, ou “abertamente” como que fo sse de M oisés, m a s dos p a is ) , e no
sá b a d o c irc u n c id a is u m h o m e m . 23 O ra , se
queriam, mas em secreto (cf. 10:24). u m h o m e m re c e b e a c irc u n c isã o no sá b a d o ,
Como acontecera com sua mãe em Caná, p a r a q u e a le i d e M oisés n ão s e ja v io la d a ,
ele se recusou a ser pressionado por uma com o vos in d ig n a is c o n tra m im , p o rq u e no
exigência humana, mesmo por sua famí­ sá b a d o to m e i u m h o m e m in te ira m e n te sã o ?
lia, agindo, porém, em seguida, indepen­ 24 N ão ju lg u e is p e la a p a rê n c ia , m a s ju lg a i
seg u n d o o re to ju ízo .
dentemente, para se manter em conso­
nância com sua missão divina (cf. o co­ Surpreendendo, ao mesmo tempo, às
mentário sobre 2:3,4). Ao nível prático, multidões, que há muito esperavam por
Jesus deve ter evitado o entusiasmo po­ ele, e aos seus irmãos, que não manifes­
lítico, que geralmente se apossava dos tavam tanta expectativa, Jesus apareceu
repentinamente no templo (cf. M al. 3:1), uma ordenação propriamente, acusa­
ao estar a festa já em sua metade, isto é, vam-no de falar por si mesmo. Esta
no terceiro ou quarto dia. Quando se pôs acusação pressupunha que ele buscava
a ensinar, os judeus se admiravam de sua a sua própria glória, quando seu único
sabedoria, já que sabiam que nunca ti­ propósito era buscar a glória daquele que
nha estudado. Isto não implica que Jesus o enviou. A completa ausência de orgu­
fosse analfabeto, mas que nunca rece­ lho interesseiro bastava para convencer
bera instrução teológica formal, minis­ seus acusadores de que era um homem
trada por um rabino credenciado. A acu­ de verdadeira integridade e no qual não
sação era séria, uma vez que apenas por havia injustiça. A humildade evidente é
esta educação os mestres públicos se sempre uma credencial importante, a
apropriavam dos eventos do passado e confirmar o verdadeiro servo de Deus.
mantinham a continuidade de uma tra­ Terceiro, Jesus citou o cumprimento
dição religiosa normativa. do propósito bíblico. Um dos maiores
Em resposta, Jesus insistiu que a au­ orgulhos dos judeus era que Moisés tinha
diência de credenciais rabínicas não sig­ dado a lei. Entretanto, a unidade divina
nificava que era um religioso interesseiro entre oferta e exigência significava que
e “independente” , que dizia o que lhe a lei não era algo para ser admirada
conviesse. Ao contrário, sua doutrina como uma propriedade privada, mas
não era sua, mas pertencia a Deus, que o algo para se observar (literalmente, “fa­
enviara. Como troco, Jesus apenas estava zer”) cotidianamente. Isto, obviamente,
dizendo que estudara na maior acade­ eles não faziam, uma vez que a tentativa
mia rabínica existente! O peso de suas de matar Jesus era uma violação da proi­
palavras não advinha de sua conformi­ bição, colocada no centro da lei, do
dade com um passado respeitável, mas homicídio (Êx. 20:13). A incrédula im­
de sua fidelidade à uma fonte transcen­ precação Tens demônio; quem procura
dental. Como sua doutrina provinha do matar-te? pode ter sido proferida por
alto, era mais abalizada do que toda a peregrinos galileus, desinformados dos
sabedoria acumulada através dos sé­ planos sinistros do conhecimento de to­
culos. dos em Jerusalém (v. 25; cf. 5:18). Pode
Embora ápoiasse seu ensino em quais­ ter sido também o protesto de uma mul­
quer credenciais rabínicas, Jesus citou tidão que não estava disposta a cometer
três tipos de evidências para consubstan­ qualquer violência física contra Jesus,
ciar sua posição (v. 17-23): Primeiro, ci­ mas cuja hostilidade interior ele identi­
tou o apoio de uma consciência obediente ficava como sendo homicida em suas
(v. 17). Se seus ouvintes fossem além de intenções (cf. Mat. 5:21,22).
considerações superficiais e interiormen­ Ao contrário da falta de interesse do
te fizessem a vontade de Deus, ficariam povo pelo espírito da lei, Jesus ilustra
sabendo se a doutrina em questão era de como tinha cumprido sua intenção mais
Deus ou se Jesus falava por si mesmo. profunda. Como registrado em 5:2-9a,
Até mesmo na tentativa de viver fora dos Jesus fez (o mesmo verbo como “cum­
ensinos de Jesus, os homens acabariam prir” do v. 19) uma só obra, ao curar um
por descobrir a coincidência destes com paralítico, o que ainda os impressionava
seus profundos desejos de fazer a vontade (cf. v. 31). Eles podiam, agora com­
de Deus, a qual os capacitaria para a parar seu milagre com o ato da circunci­
realização de suas aspirações religiosas são, prescrito por Moisés na lei. (Entre
mais elevadas, podendo perceber as ver­ parêntesis, o autor explica que este rito
dadeiras intenções de Jesus como mestre. não se originara em Moisés propriamen­
Segundo, Jesus citou o testemunho de te, isto é, não estava no Decálogo, mas
um ministério abnegado. Por lhe faltar viera dos pais, como Abraão, de acordo
com Gên. 17:9-14.) Embora se devesse e n a d a lhe d izem . S e rá q u e a s a u to rid a d e s
realizar a circuncisão ao oitavo dia (Lev. re a lm e n te o te n h a m reco n h ecid o com o o
C risto ? 27 E n tre ta n to , sa b e m o s d o n d e e ste
12:3), as crianças nascidas no sábado é ; m a s , q u an d o v ie r o C risto , n in g u é m s a b e ­
deveriam ser circuncidadas no próprio r á d onde e le é. 28 J e s u s , pois, le v a n to u a
sábado, para que a lei de Moisés não voz no te m p lo e e n sin a v a , d iz e n d o : S im , vós
fosse violada. Se este gesto simbólico, m e co n h eceis, e sa b e is donde s o u ; contudo,
com conseqüências apenas sobre parte eu n ão v im d e m im m e sm o , m a s a q u e le que
m e en viou é v e rd a d e iro , o q u a l vós n ão c o ­
do corpo, era permitido no sábado, por n h eceis. 29 M as eu o conheço, p o rq u e dele
que — num argumento do geral para o venho, e e le m e enviou. 30 P ro c u ra v a m ,
particular — estavam indignados com Je­ pois, p re n d ê -lo ; m a s n in g u ém lh e d eito u a s
sus por ter tornado um homem inteira­ in ão s, p o rq u e a in d a n ão e r a c h e g a d a a su a
h o ra. 31 C ontudo, m u ito s d a m u ltid ã o c r e ­
mente são no sábado? Como Mofatt bela­ ra m n ele, e d iz ia m : S e rá que o C risto , q u a n ­
mente parafraseia: “Estais enfurecidos do v ie r, f a r á m a is sin a is do q u e e ste te m
comigo por ter curado, e não cortado, o feito?
corpo inteiro de um homem no sábado?”
Apesar de se basearem em princípios Diferentemente da festiva multidão do
judeus, seus argumentos evidentemente verso 20, alguns dos de Jerusalém sabiam
ultrapassavam a prática judaica, tanto que Jesus era o homem que as autori­
no espírito quanto no alcance. Os rabi­ dades religiosas procuravam matar (cf.
nos permitiam trabalho religioso no sába­ 5:18). Embora ele estivesse falando aber­
do, inclusive a circuncisão, com base na tamente no Templo, que se constituía du­
regra de que as exceções se justificam rante a festa dos Tabernáculos no mais
quando uma vida está em perigo. Ao eficiente forum de todo o judaísmo, isto
contrário, para curar um homem que não quer dizer que as autoridades real­
estava inválido durante 38 anos, Jesus mente sabiam que ele fosse o Cristo
poderia ter esperado mais um dia e assim (a pergunta retórica do verso 26 tem uma
evitar o sábado. Mas ele não estava in­ resposta negativa). Mesmo a população
teressado em passar por cima destes dis­ inculta podia arrolar razões convincentes
positivos porque uma pessoa poderia para não aceitar suas pretensões. Como
morrer. Antes recebeu bem a oportuni­ o Cristo deveria aparecer repentina e
dade de cumprir seu plano redentor, sobrenaturalmente, ninguém saberia de
para que um homem pudesse viver (cf. onde viria (cf. Mal. 3:1; II Esd. 7:26-28;
Mar. 3:1-6). 13:32), ao passo que eles sabiam que ele
O princípio geral compreendido na viera da baixa Galiléia (cf. os v. 41 e 42).
visão de Jesus é resumido no climático Na antiga Palestina, que não conhecia
verso 24: Não julgueis pela aparência, o uso de nomes de família, o homem era
mas julgai segundo o reto juízo (cf. Mat. geralmente identificado basicamente por
7:1-5). Em vez de se fundamentar em sua localidade ou nascimento, daí a afir­
padrões superficiais, para medir a au­ mação, “Jesus de Nazaré, o filho de
tenticidade religiosa, os homens deve­ José” (1:45). Por pensarem que sabiam
riam avaliar tanto o mestre como seus de “onde” era Jesus, achavam que co­
ensinos, em função daquelas normas que nheciam a sua identidade. Depois de
ficassem sob a superfície, mais como su­ enfrentar a acusação de que seus pais
bstância e menos como aparência. eram conhecidos (6:42), Jesus ouve, ago­
ra, a acusação de que provinha de uma
3) O Conflito Sobre a Procedência de obscura aldeia e de uma região sem
Jesus(7:25-31) significado na profecia messiânica, de­
25 D iziam e n tã o a lg u n s dos d e J e r u s a ­ talhes fundamentais aos olhos dos habi­
lé m : N ão é e s te o qu e p ro c u ra m m a ta r ? tantes da mais famosa cidade religiosa do
28 E e is q u e e le e s tá falan d o a b e rta m e n te , mundo. Em ambos os casos, a questão
era acerca das origens, um tema prefe­ pois, J e s u s : A inda u m pouco d e te m p o esto u
rido da teologia joanina. convosco, e dep o is vou p a r a a q u e le q u e m e
enviou. 34 Vós m e b u s c a re is , e n ã o a c h a ­
Em resposta, Jesus propôs, indireta­ re is ; e o nde e u esto u , v ó s n ão p o d eis v ir.
mente e com fina ironia, duas questões 35 D iss e ra m , p o is, os ju d e u s u n s a o s o u tr o s :
inter-relacionadas: Sim, vós me conhe­ P a r a o nde i r á e le, q u e n ã o o a c h a re m o s ?
ceis, e sabeis donde sou. Ao nível terre­ Ir á , p o rv e n tu ra , à D isp e rsã o e n tr e os g r e ­
gos, e e n s in a rá os g re g o s? 36 Q ue p a la v r a é
no, cada parte poderia ser respondida e s ta q u e d is s e : B u sc a r-m e-eis, e n ã o m e
afirmativamente; num sentido mais pro­ a c h a re is ; e : O nde eu e sto u , vós n ã o p o d eis
fundo, porém, elas exigiriam uma res­ v ir?
posta negativa. Ao contrário das conhe­
cidas pressuposições, Jesus não se via em Depois que os fariseus ouviram falar
termos de hereditariedade (parentesco) da impaciência da multidão para silen­
e/ou ambiente (local), porque sua vida ciar Jesus, formaram uma aliança com
não era vivida conforme seus próprios os principais sacerdotes e, a seguir, man­
desígnios, mas em função de um impe­ daram guardas para o prenderem. Os
rativo transcendental. A despeito desta fariseus eram os líderes da religiosidade
pretensão judaica básica de conhecer popular centralizada nas sinagogas, en­
Deus numa forma que os pagãos não quanto os principais sacerdotes perten­
conheciam, Jesus ousou desafiá-los (den­ ciam às famílias aristocráticas dos sa-
tro do Templo!) com a afirmação de que duceus, que extraíam sua força do con­
não conheciam aquele que o enviara e trole sobre o Templo de Jerusalém. Jun­
que ignoravam por completo o centro tos, os dois grupos dividiam o poder
real de sua verdadeira existência. Ao con­ no Sinédrio; com isto, podiam providen­
trário, Jesus podia dizer que conhecia a ciar, sem dificuldades, a prisão, mesmo
Deus num relacionamento pessoal de de uma figura provocante e popular
missão (Eu vim/Ele enviou). como Jesus (cf. 11:47,53,57). Normal­
Quando a discussão passou da obra de mente, os fariseus mais piedosos tinham
Jesus para sua pessoa, a reação dos ju­ pouco a ver com os principais sacerdotes
deus tornou-se mais agressiva. Golpea­ mundanos, mas nesta circunstância es­
dos duplamente pela acusação de que tavam unidos pela oposição a alguém que
não conheciam verdadeiramente a Deus parecia ameaçar todo o fundamento da
e pela afirmação de que só Jesus o co­ religião institucionalizada.
nhecia, os cidadãos resolveram não espe­ Diante de inimigos tão formidáveis,
rar mais pelas autoridades para agir e, Jesus começou a falar de sua vida terre­
depois de decidirem atuar por si mesmos, na como próxima do fim: Ainda um
procuravam prendê-lo. Todavia, porque pouco de tempo estou convosco (cf. 16:
ainda não era chegada a sua hora, quan­ 16-24), e depois vou para aquele que me
do todas as perguntas seriam respondi­ enviou. A conseqüência natural de ser
das e sua morte seria vista em seu ver­ enviado seria voltar; numa expressão es­
dadeiro sentido, revelou-se inútil o em­ pacial, o descer à terra implicava em as­
preendimento da turba, talvez porque cender aos céus. O “de onde” e “para
muitos da multidão tinham crido nele, onde” de Jesus permanecem como os
por causa dos sinais que tinha feito. dois aspectos essenciais para uma com­
preensão da cristologia joanina.
4) O Conflito Sobre o Destino de Jesus Nesse momento dramático, quando o
(7:32-36) grupo de captores vinha ao seu encalço
e alguns da multidão dividida o pro­
32 O s fa ris e u s o u v ira m a m u ltid ã o m u r ­
m u r a r e s ta s c o isas a re s p e ito d e le : e os curavam por curiosidade e outros se ma­
p rin c ip a is sa c e rd o te s e os fa ris e u s m a n d a ­ nifestavam em fé, dúvida ou deboche,
ra m g u a rd a s p a r a o p re n d e re m . 33 D isse, Jesus respondeu com uma declaração
enigmática: Vós me buscareis, e não me nos três compreensões da passagem são
achareis; e onde eu estou, vós não podeis possíveis:
vir. À primeira vista, parecia bem óbvio ( Primeiro,yíesu^ pode ser identificado
que ele poderia ser encontrado facilmen­ como a fonte da água viva, através da
te. Ademais, não era ele, naquele mo­ seguinte paráfrase: ‘,‘Se alguém tem sede,
mento, a pessoa mais conhecida da ci­ deixem-no vir a mim; em outras pala­
dade? Então, os judeus se admiraram em vras, deixem aquele que crê em mim
voz alta sobre onde ele poderia ir, que beber (da minha água). Isto estaria de
não poderiam encontrá-lo. Como os Ta­ acordo com a escritura que diz: ‘Do seu
bernáculos eram o festival da peregrina­ (isto é, de Jesus) coração fluirão rios de
ção por excelência, a que muitos judeus água viva.’” Esta interpretação encontra
da Dispersão compareciam, sugeriu-se a respaldo em 4:10,14a, onde Jesus se ofe­
possibilidade de que Jesus tentasse fugir rece para dar água viva; em 7:39, onde
para as regiões dalém da Palestina. água = ao Espírito que Jesus oferecerá
Como fora apresentado como um mestre posteriormente (20:22); em 19:34, onde a
falso em Israel, os judeus logo concluí­ água fluiu do lado perfurado de Jesus; e
ram que Jesus tinha que fugir para os de Apocalipse 22:1, onde “o rio da água
gregos e ver se poderia ensinar lá. da vida” fluía “do trono de Deus e do
Ao dizer isto, os judeus, com certeza, Cordeiro” (Jesus).
não conseguiram ultrapassar os limites Ç Segundo^ o crente torna-se a fonte de
de tempo e espaço, fracassando por com­ água viva, a julgar pela seguinte para-
pleto na compreensão de que ele ia ao frase: “ Se alguém tem sede, deixem-no
Pai, com quem sempre estivera (note-se vir a mim e beber. Aquele que isto faz
o uso pouco comum de eu estou no por crer em mim é vivamente descrito nas
v. 36). Assim, ironicamente, estavam escrituras que dizem: ‘Do seu (isto é. do
mais próximos da verdade do que ima­ crente) coração fluirão rios de água
ginavam (cf. 11:49-52), pois ao ascender viva!” Apoiam esta interpretação os me­
aos céus, Jesus inaugurou a obra missio­ lhores e mais conhecidos comentários e
nária cristã, que ultrapassou o judaísmo traduções, apesar da pouca corrobora^.
da Palestina e da Diáspora e alcançou _ção escriturística. Em 4:14b, Jesus falou
outras nações do mundo helenístico. de uma fonte de água dentro do coração
do crente (cf. Is. 58:11), mas esta refe­
5) O Oferecimento da Ãgua da Vida rência não torna explícito se esta fonte
(7:37-39) servirá de sustento para outros.
ÇTêrceircÇ) é possível e bastante prová­
37 O ra , no ú ltim o d ia , o g ra n d e d ia d a vel que a citação bíblica do Velho Testa­
fe s ta , J e s u s pôs-se e m pé e c la m o u , d iz e n d o :
Se a lg u é m te m sed e, v e n h a a m im e b e b a . mento foi livremente relacionada ao pro­
38 Q uem c rê e m m im , com o diz a E s c r itu r a , nunciamento anterior de Jesus, ou con­
do seu in te rio r c o rre rã o rio s d e á g u a v iv a . temporaneamente por Jesus ou posterior­
39 O ra, isto e le d isse a re s p e ito do E sp írito mente pelo evangelista (note-se que o
que h a v ia m de re c e b e r os q u e n e le c re s s e m ;
pois o E s p írito a in d a n ão fo ra d ad o , p o rq u e
verso 39 é evidentemente uma adição
Je s u s a in d a n ão tinha, sido g lo rificad o . explicativa, feita pelo evangelista). Como
suplementar ao dito de Jesus, dos versos
Chegado o último dia... da festa dos 37b e 38a, e não como sua parte integral,
Tabernáculos, Jesus resolveu usar este a expressão anterior a seu interior deve­
simbolismo dramático para se apresen­ ria ser determinada primariamente pelo
tar como a água da vida. Neste ponto, contexto original desta citação no Velho
um sério problema de pontuação com­ Testamento e só secundariamente pelo
plica amterpretaçao das palavras usadas contexto próprio de João. Nesta visão, a
para assegurar esta realidade. Pelo me­ fonte da água viva não deve ser tomada
nem como Jesus nem como o crente, mas do Templo de Jerusalém, para irrigar o
como o próprio Deus, como ficará mais deserto circunvizinho (Ez. 47:1-12; Joel
claro do estudo, que faremos a seguir, 3:18; Zac. 14:18); o Espirito será derra­
do contexto histórico da citação bíblica. mado como água numa terra sedenta
Para recompor: o centro da proclama­ (Is. 44:3; Joel 2:28).
ção de Jesus era, possivelmente, um dís­ Em nenhum destes versos se afirma
tico hebraico de paralelismo poético, que que a água correrá, como rios, do inte­
pode ser traduzido literalmente assim: rior (koilia, literalmente, ventre) de al­
“Se alguém tem sede, deixem-no vir a guém. Todavia, esta expressão é uma re­
ferência, do idioma semítico, ao centro
mim,
das emoções e, assim, equivalente a dizer
e deixem beber aquele que crê em que a água virá do mterior de ujna
mim.” jjessoa^ Todas estas passagens menciona­
Este convite deveria ser entendido, no das deixam claramente implícito que o
entanto, não como uma proposta de um próprio Deus é a fonte última das “cor-
ato isolado, sóbre sua própria autorida- rentes do deserto” . Como Criador, ele (
dê7mas como o cumprimento da promes­ derrama água sobre a terra seca, en- I
sa bíblica de que Deus providenciaria
rios de água viva, para que seu povo deles
Í quanto, como Redentor, ele derrama 1
suas bênçãos sobre o verdadeiro Israel/
se servisse, e em abundância. Os que (Is. 44:3). Isto significa que Jesus estava
cultuavam na festa dos Tabernáculos, se apresentando para funcionar do mes-l
que sempre celebrava a aadíva divina da mo modo que Deus quando se oferecem
chuva, na natureza, para suas colheitas no Templo como aquele do qual os cren-J
e comemoravam a dádivajiivina da água, ( tes poderiam beber.
na história, para os peregrinõsclõêxõdõ, Fiel a estes princípios de interpreta­
eram agora chamados para olharem não ção (cf. 2:22; 12:16), o evangelista es­
para os céus e nem para uma rocha, mas tava interessado em apresentar esta rei­
en para a pessoa de Jesus, como o mediador vindicação crucial, não somente em re­
destes recursos divinos, que poderiam lação a Jesus e às Escrituras, mas tam­
satisfazer sua própria sede espiritual. bém à vida da igreja. Desse modo, expli­
A interpretação desta passagem torna- ca que esta metáfora de água viva era
se uni pouco complicada não apenas pelo realmente uma forma de falar a respeito
problema da pontuação, mas pela dni- do Espírito, que haviam de receber os
culdade de identificar as escrituras, isto que nele cressem. Para ser claro, o Espí­
é, o texto citado no verso 38b. Do mesmo rito ainda não fora dado como uma reali­
modo que ocorrera com o texto sobre o dade separada, enquanto Jesus estava
“pão_ dos céus” , de 6:31, a expressão com seus seguidores na carne, pois, du­
exata do seu interior correrão rios de rante esse período, a experiência deles
água viva não se encontra no Velho Tes­ com o Espírito era inseparável de sua
tamento, mas parece ser um resumo de experiência com Jesus (cf. 1:33; 3:5,13,
outras passagens semelhantes, especial- 31,34). Depois, porém, que Jesus fosse
mente nos profetas, que usam sede (isto glorificado na ressurreição e ascendesse
é, seca, aridez, infertilidade) e água (isto ao Pai no céu, o Espirito seria dado aos
é, chuva, nascente, fonte) como metáfo­ crentes de uma forma bem distinta, em
ras dos desejos e das necessidades hu­ sua experiência com a presença encarna­
manas (exemplo: Is. 12:3; 43:18-21; da de Jesus na terra (cf. 14:25,26; 16:7).
55:1; 58:11). Três temas particulares são 1 Ao lerem este Evangelho, os cristãos“
recorrentes: água fluiu da rocha, nõ de­ deveriam entender que teriam em suas
serto, para os peregrinos do êxodo (Sal. vidas, habitadas pelo Espírito Santo, a
78:15,16; 105:41; Is. 48:21); água fluirá água viva de que Jesus falara e, assim,
confirmar, em sua própria experiência, a 10:19). Alguns deles queriam prendê-lo,
verdade desta afirmação. especialmente os ierosolimitas influen­
ciados pela oposição oficial a Jesus (cf.
6) A Reação do Povo (7:40-44) v. 25 e 30), mas ninguém lhe pôs as
mãos, principalmente porque suas obras
40 E n tã o , a lg u n s d e n tre o povo, ouvindo poderosas (v. 21 e 31) e sua impressio­
e s ta s p a la v r a s , d iz ia m : V e rd a d e ira m e n te
e ste é o p ro fe ta . 41 O u tro s d iz ia m : E s te é o
nante autoridade (v. 46) tinham conse­
C risto ; m a s o u tro s re p lic a v a m : V em , pois, guido apoio entre os peregrinos pre­
o C risto d a G a liléia? 42 N ão diz a E s c r itu r a sentes à festa. Parece que o povo se po­
que o C risto v e m d a d e sc e n d ê n c ia de D av i, larizara em dois grupos. Num extremo
e de B elém , a a ld e ia donde e r a D av i? 43 A s­ estavam aqueles que, de tão comprome­
sim , houve u m a d issen são e n tr e o povo p o r
c a u sa d ele. 44 A lguns d ele s q u e ria m p r e n ­ tidos com um conjunto de esperanças
dê-lo; m a s n in g u ém lhe pôs a s m ã o s. messiânicas herdadas da tradição, não
tinham a abertura necessária para per­
Ao se apresentar como a água da vida, ceberem a singularidade de Jesus como
Jesus falara de modo simples e direto um ato de Deus no presente. No outro
(“venha a mim... crê em mim”), sem extremo, estavam aqueles que, muito
lançar mão de títulos capazes de im­ abertos para uma demonstração espeta­
pressionar e chamar a atenção para si cular de poder da parte dos últimos líde­
mesmo. A teologia judaica de então, res religiosos, ficaram apenas no entu­
entretanto, estava repleta de teorias com­ siasmo repentino, por lhes faltar uma
plexas e mirabolantes sobre a identidade formação teológica.
e as credenciais do Messias. Apesar da
relutância de Jesus em ceder a estas 7) A Reação dos Líderes (7:45-52)
especulações, o povo logo começou a 45 Os g u a rd a s , pois, fo ra m te r co m os
medir suas palavras à luz de pressupostos p rin c ip a is dos sa c e rd o te s e fa rise u s , e e ste s
próprios. Tão preocupados estavam em lh es p e rg u n ta ra m : P o r que n ão o tro u x e s ­
analisar a água oferecida que não ti­ te s? 46 R e sp o n d e ra m os g u a rd a s : N u n ca
veram tempo para dela tomarem! h o m em a lg u m falo u a s s im com o e ste h o ­
m e m . 47 R e p lic a ra m -lh e , pois os fa ris e u s :
Partindo, talvez, de Moisés, que fez T a m b é m vós fo ste s e n g a n a d o s? 48 C reu nele
jorrar água, ao bater numa rocha no p o rv e n tu ra a lg u m a d a s a u to rid a d e s , ou a l­
deserto, alguns pensaram que Jesus de­ guém d e n tre os fa rise u s ? 49 M as e s ta m u lti­
veria ser verdadeiramente o prometido dão, q u e n ão sa b e a lei, é m a ld ita . 50 Nico-
dem os, u m d e les, que a n te s fo ra te r com
profeta de Deuteronômio 18:15-18, ao Je s u s, p e rg u n to u -lh e s: 51 A n o ssa lei, p o r­
passo que outros já podiam identificá- v e n tu ra , ju lg a u m h o m e m se m p rim e iro
lo como o Cristo (Messias). Este vere­ ouvi-lo e te r c o n h ecim en to do q u e ele faz?
dicto final, no entanto, chocava-se com 52 R e sp o n d eram -lh e e le s : É s tu ta m b é m d a
a informação de que Jesus era da Gali­ G aliléia? E x a m in a e v ê q u e d a G a lilé ia não
su rg e p ro fe ta .
léia (cf. 6:42; 7:27,52), enquanto diz
a Escritura que o Cristo viria da des­ A multidão não foi o único grupo a se
cendência de Davi (exemplo: II Sam. recusar a prender Jesus (v. 44). No co­
7:12,13; Sal. 89:3,4; Jer. 23:5) e de Be­ meço da festa, os principais dos sacer­
lém, a aldeia donde era Davi (cf. Miq. dotes e fariseus tinham enviado guardas,
5:2; Mat. 2:4,6). 23 para darem cabo a esta importante ta­
Como geralmente acontece, o resul­ refa (v. 32); eles voltaram, no entanto,
tado deste debate teológico era uma dis­ para dizer que tinham falhado em sua
sensão entre o povo, sobre Jesus (cf. 9:16; missão. Quando indagados, com exaspe­
ração por que não haviam trazido Jesus,
23 Sobre os temas profeta e Cristo, aqui e na tradição estes policiais armados admitiram que
judaica, veja-se Meeks, p. 32-61. foram paralisados pelo poder de suas
palavras. Nunca tinham ouvido homem seu comportamento violava a lei, por
algum falar com tanta autoridade, isto julgarem Jesus sem primeiro ouvi-lo e ter
é, como rabino, profeta e Messias ao conhecimento do que ele faz. Ao invés de
mesmo tempo! Embora soubessem que responderem a este protesto legítimo, os
ele não tinha credenciais que o reco­ fariseus voltaram-se, para seu colega,
mendassem, não podiam negar o im­ com uma censura: És tu também da
pacto de seus ensinos. Galiléia? — como se provir de uma certa
Incentivados por este testemunho não região fosse razão para se apoiar a Jesus
desejado de suas próprias forças, os fari­ (cf. o comentário sobre o v. 27). Embora
seus acusaram a guarda do Templo de muitos profetas fossem da Galiléia no
ser enganada juntamente com o povo passado (como Jonas; cf. II Reis 14:25),
(cf. v. 12). Esta acusação reflete o motivo Nicodemos se recordava de que um exa­
básico da oposição da liderança religiosa me das Escrituras não revelaria qualquer
a Jesus. Eles não só toleravam suas afir­ passagem que predissesse que o grande
mações pessoais como também estavam profeta escatológico (v. 40) viria da Ga­
profundamente preocupados com o fas­ liléia. Ê impressionante como se pode
cínio que exercia entre as massas. Como ignorar as verdades absolutas de Deus
membros do sinédrio, eles eram respon­ por causa de uma abordagem literalista
sabilizados, pelos romanos, por todos os da Bíblia.
movimentos messiânicos que ameaças­
sem romper a paz. Era melhor silenciar 4. O Juiz da Vida (8:12-59)
um agitador do que perder todos os seus
privilégios, duramente conseguidos, di­ Os capítulos 7 e 8 estão intimamente li­
ante de Roma (cf. 11:47-50). gados em sua formação histórica, em sua
A fim de reprimir o conformismo para forma literária e em seu conteúdo teológi­
com a situação vigente, o grupo domi­ co, numa unidade que parece mais evi­
nante estava determinado a aparentar dente quando se tira a interpolação de 7:
unidade: Creu nele porventura alguma 53-8:11. Ambas as seções se situam no
das autoridades ou alguém dentre os Templo de Jerusalém (7:14,28; 8:20, 59)
fariseus? É impressionante como a pres­ durante a festa dos Tabernáculos (7:2,
são de um grupo pode coibir a decisão 37; cf. “então... tomou” , de 8:12). Os
pessoal (cf. 12:42,43). Ademais, quan­ dois capítulos são, na realidade, um ma­
do esse grupo ocupa lugares de grande terial polêmico organizado de seções bre­
responsabilidade, é-lhe ainda mais difícil ves, que dão, ao leitor, uma impressão
abrir-se para uma mudança radical (cf. de que está participando de um vivo
3:1-15). Parece comum que a elite des­ debate entre Jesus e os judeus. João 7
denhe as classes populares e ache que começa e João 8 termina com referências
nada de importante começa entre elas. ao segredo messiânico, motivo que os
No caso dos fariseus, uma aristocracia mantém juntos na mesma dimensão te­
(ou meritocracia) fundada na educação mática.
levou-os a considerar a multidão como A festa dos Tabernáculos constava não
populaça maldita, que não conhecia a somente do ritual da oferta de água,
lei, pelo que seu apoio a Jesus era in­ como vista no capítulo 7, mas também da
digno. cerimônia das luzes, as quais deram o
Mas um dos seus membros, Nicode- pano-de-fundo para o capítulo 8 (Mish-
mos, conhecera a Jesus de perto (3:1-15) nah, Sukkah, 5:2-4). Na primeira noite
e não estava suficientemente convencido do festival, e talvez posteriormente, os
desta recusa de julgar o caso em seus grandes castiçais de ouro postados na
próprios méritos. Aos orgulhosos de seus Corte das Mulheres eram acesos, atean­
conhecimentos da lei, ele lembrou que do-se fogo nos pavios de pano em quatro
tigelas de ouro colocadas sob cada um Israel a um novo êxodo, de natureza
deles. Tão feérica era a luz, que se espiritual (cf. v. 32-36), declarando-se
dizia que todos os pátios de Jerusalém então maior que a rocha, da qual jorrou
estavam iluminados. No Templo, ho­ água, e que a coluna de fogo, da qual
mens piedosos cantavam, dançavam e proveio luz no deserto. O tempo se en­
agitavam tições de fogo, num deslum­ carregara de transformar o símbolo em
brante espetáculo de cor e beleza. Acon­ realidade no culto. Jesus não apenas se
tecendo no equinócio outonal, o signifi­ tornou o verdadeiro templo (cf. 2:19-22),
cado agrícola deste ritual era uma sú­ mas se ofereceu como o cumprimento
plica para que os meses do escuro inver­ destes sacratíssimos festivais e das Es­
no fossem seguidos de sol para a colhei­ crituras que eles procuravam dramati­
ta na primavera (cf. Zac. 14:6-8, onde zar.
luz e água estão intimamente ligados às O tema inicial da luz é usado para
estações). Historicamente, o drama co­ descrever um processo dinâmico de sele­
memorava a direção de Deus, ao con­ ção, proveniente do ministério de Jesus.
duzir Israel através do deserto com uma Ironicamente, como os judeus tinham
coluna de fogo à noite (Êx. 13:21). optado por um consenso negativo, em
Neste contexto, Jesus se identificou sua interpretação de Jesus (v. 13,22,41,
como “a luz do mundo” (v. 12), o que faz 48,52,53), tomado como um perigo para
um paralelo com sua proclamação an­ o seu alto padrão de vida (v. 20,37,40,
terior como água da vida (7:37). Servin­ 59), seus inimigos se condenaram a si
do-se destas analogias fundamentalmen­ mesmos, devido à sua cegueira diante da
te agrícolas, ele apresentou-se como tão Luz do mundo.
indispensável ao desenvolvimento do es­ Na demonstração desta cegueira, João
pírito humano como a chuva e o sol são 8 não tem rival no próprio Evangelho
para o cultivo das plantas terrenas. Além nem nos demais. Os judeus acusaram
do mais, ele se ofereceu para conduzir Jesus de egoísmo (v. 13), de tendências

Texto e Comentário (7:53-8:11) alguma marca especial (um asterisco, por exemplo) ou em
lugares diferentes (como depois de João 21:24 ou Lucas
53 E cada um foi para sua casa. 1 Mas Jesus foi para o 21:38, por exemplo). Embora totalmente desconhecida no
Monte das Oliveiras. 2 Pela manhã cedo voltou ao templo e Oriente durante o primeiro milênio de nossa era, a passa­
todo o povo vinha ter com ele; e Jesus, sentando-se, o gem aparece primeiro na tradição textual ocidental ou
ensinava. 3 Então os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma latina e é reconhecida pela maioria dos manuscritos gregos
mulher apanhada em adultério; e pondo-a no meio, 4 dis­ medievais tardios. Destas duas fontes, entretanto, a
seram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagran­ passagem entrou na Vulgata e na versão do Rei James
te adultério. 5 Ora, Moisés nos ordena na lei que as tais (King James Version), a partir das quais espalhou-se por
sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? 6 Isto diziam toda a cristandade.
eles, tentando-o, para terem de que o acusar. Jesus, A evidência interna confirma o veredicto da evidência
porém, inclinando-se, começou a escrever no chão com externa de que este trecho não integrava originalmente o
o dedo. 7 Mas, como insistissem em perguntar-lhe, ergueu- Quarto Evangelho. O estilo da estória é mais lucano do que
se e disse-lhes: Aquele que dentre vós que está sem pecado joanino. O ambiente coaduna-se muito bem com as descri­
seja o primeiro que lhe atire uma pedra. 8 E, tornando a ções sinópticas das últimas semanas de Jesus em Jerusa­
ínclinar-se, escrevia na terra. 9 Quando ouviram isto foram lém (compare-se as vivas semelhanças entre João 8:1,2 e
saindo um a um, a começar pelos mais velhos, até os Lucas 21:37,38). E possível que o relato tenha sido enxer­
últimos; ficou só Jesus, e a mulher ali em pé. 10 Então, tado aí por ter ocorrido no Templo (8:2; cf. 7:14,28;
erguendo-se Jesus e não vendo ninguém senão a mulher, 8:20,59) e por ilustrar a forma como Jesus a ninguém
perguntou-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusado­ julgava(8:15).
res? Ninguém te condenou? 11 Respondeu ela: Ninguém, Nào há razão para se duvidar da autenticidade substan­
Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu te condeno; vai-te, e não cial da história. Embora provavelmente não tenha sido
peques mais. intencionalmente parte de nenhum dos quatro Evangelhos
canônicos, a igreja antiga encontrou nele um valor tão
Esta passagem aparece entre colchetes na versão da IBB significativo que o incluiu em vários pontos do relato, para
porque as evidências disponíveis demonstram conclusiva­ garantir sua sobrevivência. Ao estudar o Evangelho de
mente que foi uma interpolação posterior ao Evangelho João, no entanto, o leitor deve ir direto de 7:52 para 8:12,
de João. A maioria dos melhores manuscritos gregos omite não permitindo que esta inserção obscureça a íntima
toda esta seção; os poucos que a incluem, fazem-no com relação entre estes dois capítulos.
suicidas (v. 22), de ser bastardo (v. 19 e enviou. 17 O ra , n a v o ss a lei e s tá e sc rito que
41) e de insanidade (v. 48 e 52). Jesus, o te ste m u n h o d e dois h o m en s é v e rd a d e iro .
18 Sou e u qu e dou te s te m u n h o d e m im m e s ­
por seu turno, os acusou de não conhe­ m o, e o P a i, q u e m e en vio u , ta m b é m d á
cerem a Deus (v. 19), de morrerem em te ste m u n h o de m im . 19 P e rg u n ta v a m -lh e ,
seus pecados (v. 21) e — como filhos do p o is: O nde e s tá teu p a i? J e s u s re sp o n d e u :
Diabo — de serem assassinos e menti­ N ão m e co n h eceis a m im , n e m a m e u P a i ;
rosos (v. 37,40,44). Embora este estilo se vós m e c o n h ec ê sse is a m im , ta m b é m
co n h e c eríe is a m e u P a i. 20 E s s a s p a la v r a s
polêmico não apareça apenas neste p ro fe riu J e s u s no lu g a r do te so u ro , q u an d o
Evangelho (cf. Mat. 23:15), é aqui que e n sin a v a no te m p lo ; e n in g u ém o p re n d e u ,
encontra um lugar de destaque, porque po rq u e a in d a n ã o e r a c h e g a d a a s u a h o ra .
João 8 foi escrito quando o conflito entre
a sinagoga e a igreja estava em seu auge. Num momento não especificado, du­
Num tempo quando o cristianismo come­ rante a festa dos Tabernáculos, Jesus
çava a delinear sua independência e o voltou a desafiar seus ouvintes no Tem­
judaismo lutava para sobreviver, não era plo com uma afirmação semelhante à de
difícil relembrar e exprimir, na forma 7:37, ao anunciar: Eu sou (egõ eimi)
mais extremada possível, estas rupturas, a luz do mundo (cf. 9:5; 12:46). Contra
que tinham produzido a indelével sepa­ o panorama da rejeição, por parte dos
ração entre Jesus e seus contemporâneos. líderes de Israel (7:45-52), Jesus provoca­
Devido ao caráter compilativo do ma­ doramente insistiu que quem me segue
terial, é difícil determinar a forma ori­ (cf. 1:43), em vez de seguir autoridades
ginal interna. Visto como um todo, 8:12- judaicas, não andará nas trevas espiri­
59 é uma sucessão de cinco cenários, nos tuais destas mesmas autoridades (como
quais cada uma das controvérsias é res­ está bem claro em 7:52), mas terá a luz
pondida por uma ou mais frases provoca­ da vida (cf. 1:4,5).
tivas por parte de Jesus. O tema unifi­ Ao debaterem estas primeiras palavras
cador é o juízo. Depois de um pará­ (Eu sou), os fariseus viram nelas não
grafo de abertura, sobre a autoridade e uma velada reivindicação de divindade,
validade de Jesus para julgar (v. 12-20), mas uma expressão de egoísmo pessoal:
o roteiro passa a considerar a urgência Tu dás testemunho de ti mesmo. Em res­
(v. 21-30), os efeitos (v. 31-38) e os posta, Jesus argumentou que mesmo que
padrões (v. 39-47) de seu juízo. A seção o fizesse — certamente não numa feição
termina, então, com a afirmação de que egocêntrica (cf. 5:30,31) — seu testemu­
o juízo de Jesus é uma questão de vida ou nho era definitivamente verdadeiro, por­
morte, devido ao seu relacionamento sin­ que, diferentemente deles, ele sabia de
gular com Deus (v. 48-59). onde tinha vindo e para onde ia (dois
temas melhor explicados em 7:25-36).
1) As Credenciais do Juiz (8:12-20) A maioria dos homens faz juízos indig­
12 E n tã o J e s u s to rn o u a fa la r-lh e s, d ize n ­ nos porque, como criaturas do presente,
do: E u sou a luz do m u n d o ; q u e m m e seg u e, não podem reconstruir o passado e nem
de m odo a lg u m a n d a r á e m tr e v a s , m a s t e r á antecipar o futuro. Por conseguinte, jul­
a luz d a v id a. 13 D lsse ra m -lh e , pois, os f a r i­ gam segundo a carne, isto é, à luz do que
seu s: T u d á s te ste m u n h o d e ti m e s m o ; o
te u te ste m u n h o n ão é v e rd a d e iro . 14 R e s ­
podem ver a nível terreno, em dado
pondeu-lhes J e s u s : A inda que eh dou te s te ­ momento (cf. 7:24). Ao contrário, Jesus
m unho de m im m e sm o , o m e u te ste m u n h o é a tudo avaliava num contexto eterno,
v e rd a d e iro ; p o rq u e se i donde v im , e p a r a reunindo visão do passado com visão do
onde v o u ; m a s vós n ão sa b e is d onde venho, futuro, para alcançar uma compreensão
n em p a r a onde vou. 15 Vós ju lg a is segundo
a c a rn e ; e u a n in g u é m ju lg o . 16 E , m e sm o que transcendia o tangível e o transitório.
que eu ju lg u e, o m e u ju ízo é v e rd a d e iro ; Como luz do mundo, Jesus não era
porque n ão sou e u só, m a s e u e o P a i que m e apenas uma testemunha verdadeira (cf.
1:6-8), mas também um juiz verdadeiro. (cf. 8:41). Mais gravemente, eles inter­
Nos versos 15b e 16a, duas afirmações pretaram equivocadamente uma referên­
aparentemente contraditórias dão a cha­ cia a seu Pai celestial, porque não o
ve para o caráter dialético de seu papel: conheciam verdadeiramente. Este equí­
A ninguém julgo... mesmo que eu jul­ voco se baseava numa incapacidade de
gue. Por um lado, Jesus não veio para compreender a Jesus espiritualmente,
julgar (cf. 3:17; 12:47) no sentido con- pois conhecê-lo era conhecer seu Pai
denatório de avaliar segundo a carne, também. Aos olhos dos judeus, esta afir­
isto é, pelas aparências (cf. 7:24). Por mação parecia uma inominável blasfê­
outro lado, Jesus veio para julgar (cf. mia, digna de morte, mas ninguém o
5:22; 9:39) no sentido de confrontar os prendeu, porque ainda não era chegada
homens com uma decisão de vida e mor­ a sua hora.
te. Este juízo não nasce de nenhum es­
forço para estabelecer sua própria supe­ 2) A Crucialidade do Seu Juízo (8:21-30)
rioridade, mas de uma completa identi­
dade de função com Deus: porque não 21 D isse-lh es, pois, J e s u s o u tra v e z : E u
sou eu só (que julgo), mas eu e o Pai que m e r e tir o ; b u s c a r -m e-eis, e m o r re re is no
vosso p e c a d o . P a r a onde eu vou, vós não
me enviou. podeis ir. 22 E n tã o d izia m os ju d e u s : S e rá
A atividade coordenada de Jesus e que ele v a i su ic id a r-se , pois d iz : P a r a onde
Deus também contribuiu para resolver a eu vou, vós n ã o p o deis ir ? 23 D isse-lh es e le :
intenção da lei judaica que prescrevia Vós so is d e b a ix o , e u sou d e c im a ; vós sois
d este m u n d o , eu não sou d e ste m u n d o .
que o testemunho de pelo menos dois 24 P o r isso vos d isse q u e m o rre re is e m
homens bastava para estabelecer que era vossos p e c a d o s ; p o rq u e , se n ão c re r d e s que
verdadeiro, em casos criminais (cf. Núm. eu sou, m o rre re is e m vossos p eca d o s.
35:30; Deut. 17:6; 19:15). Nesse sentido, 25 P e rg u n ta v a m -lh e e n tã o : Q uem é s tu ?
Jesus mesmo deu um testemunho veraz R espondeu-lhes J e s u s : E x a ta m e n te o que
venho dizendo que sou. 26 M u itas c o isas
(v. 13 e 14), enquanto seu Pai dava o tenho que d iz e r e ju lg a r a c e rc a de v ó s ; m a s
outro. Ao nível da fé, este argumento era aq u e le q u e m e e n v io u é v e rd a d e iro ; e o que
completamente convincente, porque não dele ouvi, isso falo a o m u n d o . 27 E le s não
poderia haver testemunhos mais dignos p e rc e b e ra m q u e lh es f a la v a do P a i. 28 P r o s ­
seguiu, pois, J e s u s : Q uando tiv e rd e s le v a n ­
do que estes vindos de Deus e de seu tad o o F ilh o do h o m e m , e n tã o c o n h e ce re is
único Filho. Ao nível do procedimento que eu sou, e q u e n a d a fa ço de m im m e s m o ;
legal judaico, entretanto, este raciocínio m a s com o o P a i m e enviou, a s s im falo.
parecia amplamente suspeito, porque a 29 E a q u e le q u e m e en v io u e s tá c o m ig o ; n ão
lei geralmente estipulava duas ou três m e te m d eix ad o só ; p o rq u e faço se m p re o
que é do se u a g ra d o . 30 F a la n d o e le e s ta s
testemunhas além do acusado. Como Je­ co isas, m u ito s c r e r a m nele.
sus, o acusado, era a única testemunha
que os judeus podiam ver, isto signifi­ Nos debates do Templo, introduz-se
cava que ele não tinha realmente teste­ uma nota de urgência com a retomada do
munho nenhum a seu favor. tema da partida desenvolvido em 7:32-36
Em casos raros, porém, os rabinos e com a definição de suas dramáticas
permitiam que a evidência fosse estabe­ conseqüências para os ouvintes de Jesus.
lecida pela pessoa em questão, mais al­ Logo ele se iria, conforme disse eu me
guma outra testemunha: por isso, os retiro, ao voltar para os céus, e eles o
judeus perguntaram: Onde está teu pai? buscariam em vão, porque não conhe­
para ver se Jesus conseguia o apoio su­ ciam o Pai. Como alguém de cima (isto é,
plementar. Embora os galileus dissessem não deste mundo), ele iria para onde
conhecer seu pai terreno, José (6:42), os aqueles que eram de baixo (isto é, deste
ierosolimitas ou ignoravam sua família mundo) não poderiam ir (cf. 3:6,31;
ou suspeitavam de sua filiação legítima 6:63). Na primeira vez que este tema foi
introduzido, os judeus entenderam mal a Eu sou, que representava Deus de modo
Jesus ao acharem que iria “à Diáspora tão completo, que nada fazia de si mes­
entre os gregos” (7:35), enquanto aqui mo, mas falava apenas aquilo que o Pai
pensaram que iria mais além, cometendo lhe ensinava (cf. 7:16). Independente­
suicídio. mente da resposta, Aquele que o enviara
Esta hipótese representava uma trá­ jamais o deixaria só, pois Jesus só fazia o
gica distorção dos esforços de Jesus para que era do seu agrado. Impulsionado
alertar seus adversários de que o tempo por esta pública profissão de fé em Deus,
era curto para se aceitar sua oferta de muitos foram levados a crer em Jesus.
salvação. Se eles forçassem sua partida
deste mundo, levantando-o numa cruz 3) As Conseqüências de Seu Juízo
(cf. v. 28), morreriam em seu pecado (8:31-38)
de rejeitarem de modo definitivo a re­
denção que ele oferecia (cf. Mar. 3:28, 31 D izia, p o is, J e s u s a o s ju d e u s q u e n e le
29). Esta morte espiritual era inevitável c r e r a m : Se vós p e rm a n e c e rd e s n a m in h a
se recusassem aceitar aquele que dava p a la v r a , v e rd a d e ira m e n te sois m e u s d is c í­
água “viva” (7:38) e era a luz da “vida” p u lo s; 32 e c o n h e c e re is a v e rd a d e , e a v e r ­
d a d e vos lib e r ta r á . 33 R e sp o n d e ra m -lh e : So­
(8:12). Sua única esperança seria crer m o s d e sc e n d ê n c ia de A b ra ã o , e n u n c a fom os
que ele era o “Eu sou” divino, o único e sc ra v o s d e n in g u é m ; com o d izes tu : S e­
em quem o ser eterno do Deus da vida se re is liv re s? 34 R ep lico u -lh es J e s u s : E m v e r ­
manifestou entre os homens. d a d e , e m v e rd a d e vos digo q u e todo a q u e le
Mais uma vez, por outra equivoca- que c o m ete p e c a d o é e sc ra v o do p e ca d o .
35 O ra , o e s c ra v o n ã o fic a p a r a s e m p re n a
díssima interpretação, os judeus, deixa­ c a s a ; o filho fic a p a r a s e m p re . 36 Se, p o is, o
ram de reconhecê-lo neste uso absoluto F ilh o v o s lib e rta r, v e rd a d e ira m e n te se re is
de ego eimi, a fórmula veterotestamen- liv re s. 37 B e m se i q u e sois d e sc e n d ê n c ia de
tária para uma teofania do Deus pessoal A b ra ã o ; co n tu d o , p ro c u ra is m a ta r-m e , p o r­
que a m in h a p a la v r a n ã o e n c o n tra lu g a r e m
(cf. Êx. 3:14; Is. 41:4; 48:12). Ouvindo vós. 38 E u falo do q u e vi ju n to d e m e u P a i ; e
Jesus dizer simplesmente “Eu sou” e vós fa z e is o q u e ta m b é m o u v istes d e vosso
supondo que ele acrescentaria algum p ai.
predicado como “a luz do mundo” (como
no v. 12), eles responderam: Quem és tu? As palavras iniciais deste parágrafo
(ou “Tu és quem?”). Não havia forma de representam um problema, porque os
Jesus responder a esta estupidez senão judeus, que aqui são apresentados como
repetir o que vinha dizendo desde o tendo crido em Jesus, logo seriam cha­
início. Devido à resposta negativa dos mados de filhos do Diabo, que estavam
judeus, muito poderia ele dizer sobre a procurando matá-lo (v. 43 e 44). Três
natureza do seu julgamento; no entanto, fatores podem ajudar a explicar esta
ele preferia silenciar, para deixar tais transformação na narrativa.
questões nas mãos dAquele verdadeiro Primeiro, o autor altera ligeira, mas
que o enviara (cf. v. 50) e porque sua significativamente, o conteúdo dos ver­
missão era anunciar, ao mundo, o que sos 30 e 31; no verso 30, muitos creram
tinha ouvido do Pai, e não o que apren­ “nele” (eis auton) e no verso 31, os ju ­
dera de seus inimigos. deus nele (auto) creram. Infelizmente,
Embora Jesus continuasse a exaltar a esta alteração não se registra nas tra­
Deus, sabia que a “hora” logo chegaria duções. Como esta distinção é geralmen­
quando, como Filho do Homem, ascen­ te plena de sentido por todo o Evange­
deria ao lugar de onde viera, ao ser lho, o autor pode estar sugerindo qug_os
levantado na cruz. Nessa suprema hora judeui do verso 31 tinham dado crédltoã
da revelação, certamente alguns de seus certas doutrinas intelectuais sobre Jesus,
ouvintes saberiam que ele era o grande mas não experimentaram uma forma su­
perior de fé, que abrigasse uma confian­ deste versículo como um bem teórico, a
ça pessoal nele7~ promessa não é feita de que a educação
Segundo, o próprio Jesus aceitou a fé resulta em libertação da escravidão es­
do verso 31 como condicional. Estes piritual. Relutantes em admitir até mes­
crentes seriam verdadeiramente seus dis­ mo o evento da necessidade desta liber­
cípulos somente se permanecessem em tação, que demonstra que sua crença
sua palavra. Obviamente, muitos discí­ envolvia uma perspectiva diferente de­
pulos nominais não chegaram a isso (6: les mesmos, os judeus responderam que,
66). Jesus percebeu logo a superficiali­ como herdeiros espirituais de Abraão,
dade da fé e não alimentou grandes jamais tinham sido escravos de ninguém.
ilusões em relação a ela (cf. comentário Num sentido político, é claro que tinham
sobre 2:23-25). Se um do círculo menor sido escravizados muitas vezes, e assim
dos doze era um diabo (6:70), imagine- por Roma, nessa época, mas nunca ti­
se no instável grupo de seguidores em nham sucumbido às divindades estra­
Jerusalém! nhas de seus captores.
Terceiro, os eventos da igreja ao tem­ Para vencer esta objeção, Jesus cunhou
po quando este Evangelho foi escrito o ensino sobre o cativeiro e a liberdade
confirmaram a possibilidade de que os em relação aos conceitos de escravidão
“crentes” voltaram a ser filhos do Diabo. e filiação. Como o mal não é uma vio­
Em I João, o autor enfrentou a necessi­ lação de regra abstrata, mas submissão
dade de providenciar testes para distin­ a um tirano pessoal (v. 44), todo aquele
guir a verdadeira fé da falsa. Dentro que comete pecado é escravo do pecado
I da igreja havia aqueles que continuavam (cf. 6:12-18; Gál. 4:3,8,9; 5:1). Esta es­
a pecar (I João 3:8; cf. João 8:21,24) cravidão tomava impossível cumprir a
\e eram mais “filhos do Diabo” do que condição básica do discipulado, se per­
y“filhos de Deus” (I João 3:10; cf. João manecerdes na minha palavra, porque
/8:38,41,42,44). Alguns membros “odia­ o escravo não fica para sempre na casa; o
vam” seus irmãos cristãos e eram tão filho fica para sempre. Por fim, duas
“assassinos” espirituais quanto Caim, circunstâncias podem ter sugerido a in­
“que era do Maligno e matou a seu clusão da pequena parábola do escravo e
irmão” (I João 3:11-13; cf. João 8:44). do filho, no verso 35, para ilustrar a
Estes paralelos demonstram que a situa­ importância de permanecer na casa para
ção que Jesus enfrentou era mais o ar­ sempre.
quétipo histórico do que o conflito in­ Primeira, uma narrativa sobre Abraão
terno, que caracteriza o povo de Deus em no Velho Testamento relata como Is­
todas as gerações. 24 mael, seu filho escravo com Agar, foi
Consciente de que a precária posição expulso, enquanto Isaque, seu filho livre
espiritual destes judeus que nele creram com Sara, obteve seu direito para sempre
se assemelhava à de Israel durante sua (Gên. 21:9-14; cf. a abordagem, de Pau­
peregrinação no deserto, Jesus lhes ofe­ lo, desta tipologia, em Gál. 4:21-31).
receu a possibilidade da verdadeira liber­ Aqueles que se jactavam de serem da
tação da escravidão. Se eles permaneces­ descendência de Abraão teriam que per­
sem em seus ensinos, poderiam conhecer guntar se eram filhos do tipo de Ismael
a verdade de Deus, que não é um con­ ou do tipo de Isaque! Nesse caso, a
junto de idéias soltas, mas um poder diferença não seria determinada pelo
dinâmico que pode tornar livres os ho­ fato de sua mãe ser Agar ou Sara, mas se
mens. Contrariamente ao uso freqüente estavam prontos para permitir que o
24 Sobre o ambiente desta seção mais ampla nas lutas
Filho os tomasse verdadeiramente livres,
judaizantes da igreja primitiva, veja C.H. Dodd, More para habitarem na casa do Pai. Segunda,
New Testament Studies. p. 41-57. o autor pode ter tido conhecimento de
uma situação paralela na igreja primi­ não podeis o u v ir a m in h a p a la v r a . 44 Vós
tiva, em que alguns “saíram dentre nós” , U*ndes p o r p a i o D iabo, e q u e re is s a tis fa z e r
os d esejo s de vosso p a i ; ele é h o m ic id a d e s ­
isto é, deixando a comunidade cristã. de o p rin cíp io , e n u n ca se firm o u n a v e r d a ­
“Se fossem dos nossos, teriam permane­ de, p o rq u e nele n ão h á v e rd a d e ; q u an d o ele
cido conosco” , mas sua partida da casa p ro fere m e n tira , fa la do que lh e é p ró p rio ;
de Deus evidenciava que não eram “dos p orque é m e n tiro so , e p a i d a m e n tira . 45
nossos” (I João 2:19). M as p o rq u e eu digo a v e rd a d e , não m e c r e ­
des. 46 Q uem d e n tre vós m e co n v en ce de
No caso de seus contemporâneos ju ­ p ecad o ? Se digo a v e rd a d e , p o r que n ão m e
deus, Jesus concordou logo que eles eram c re d e s? 47 Q uem é de D eus ouve a s p a la v r a s
descendência de Abraão num sentido de D eu s; p o r isso vós n ão a s ouvis, p o rq u e
físico, mas a reação que tiveram diante não sois de D eus.
dele demonstrava que Abraão não era Diante das alternativas pessoais entre
seu pai num sentido espiritual.25 No cativeiro ou liberdade, escravidão ou fi­
pensamento judeu, o maior dos patriar­ liação, os judeus se agarravam vigorosa­
cas era venerado como um modelo de mente a este sentimento de solidariedade
justiça (Gên. 18:19; 26:5; Eclesiástico nacional, que lhes dava um senso maior
44:19), enquanto seus descendentes ago­ de orgulho e privilégio (cf. Mat. 3:7-10).
ra procuravam matar Jesus. Em vida, A sugestão implícita, de que sua pater­
Abraão recebeu de bom grado o Senhor, nidade poderia ser outra, foi respondida
quando ele veio visitá-lo em forma hu­ com uma frase resoluta: Nosso pai é
mana (Gên. 18:1-15), mas agora a pala­ Abraão. A isso, Jesus simplesmente re­
vra de alguém que falava apenas daqui­ petiu o argumento negativo do verso 37,
lo que tinha visto com Deus não encon­ de que não via nenhuma dignidade es­
trava lugar na progénie de Abraão. A piritual entre o que Abraão fez e o de­
teologia do Velho Testamento apresen­ sejo destes de matá-lo, bem como o ar­
tava Abraão como aquele através de gumento positivo do verso 38, de que eles
quem Israel seria uma bênção mundial faziam as obras de seu pai. As leis da
(Gên. 12:1-3; 18:18; 22:17,18), mas ago­ hereditariedade valem tanto no campo
ra sua raça estava na iminência de apa­ espiritual quanto no físico: “Tal pai,
gar a “luz do mundo” (v. 12). É claro tal filho.”
que eles faziam o que tinham ouvido de Temerosos de que um judeu irmão
um pai que não era nem Abraão e nem o atacasse sua teologia abraâmica (cf.
Pai de Jesus. Mat. 8:11,12; Luc. 16:19-31), os pole­
mistas responderam com dois argumen­
4) O Critério do Seu Juízo (8:39-47) tos deles próprios. Negativamente, re­
39 R esp o n d e ra m -lh e : N osso P a i é A b ra ­ cusavam que fossem nascidos de pros­
ão. D isse-lhes J e s u s : Se sois filhos de A b ra ­ tituição. Esta afirmação pode ser seme­
ão, fazei a s o b ra s de A b raão . 40 M as a g o ra lhante à do verso 33, de que eles não
p ro c u ra is m a ta r-m e , a m im que vos fa le i a tinham sido apóstatas no sentido profé­
v erd a d e que de D eus o u v i; isso A b raão não
fez. 41 Vós fazeis a s o b ra s de vosso p ai. tico de adultério espiritual (exemplo:
R e p licaram -lh e e le s: N ós não so m o s n a s c i­ Os. 1:2; 2:4,13; 4:15), ou uma discreta
dos de p ro s titu iç ã o ; te m o s u m P a i, q u e é difamação do próprio nascimento de Je­
D eus. 42 R espondeu-lhes J e s u s : Se D eus sus como ilegítimo (cf. v. 19). Positiva­
fosse o vosso P a i, vós m e a m a ríe is , p o rq u e
eu sa í e v im de D e u s ; pois não v im de m im
mente, resolveram colocar o debate aci­
m esm o, m a s ele m e enviou. 43 P o r que não ma de antecedentes humanos, ao iden­
co m p reen d eis a m in h a lin g u a g e m ? é p o rq u e tificarem seu Pai espiritual não com
Abraão, mas com Deus.
2 5 A d ife r e n ç a e n tre v e r d a d e ir o s e fa lso s d e s c e n d e n te s Em lugar de rebater as horríveis im­
d e A b r a ã o e ra s u s te n ta d a ta m b é m n a tr a d iç ã o rabí-
n i c a ; c f . Mishnah, Aboth 5 : 1 9 . e Midrash Rabbah. plicações da afirmação sobre prostitui­
sob re G ê n e sis 2 1:12 . ção, Jesus aproveitou a oportunidade
para esclarecer seu verdadeiro relacio­ boneco nas mãos de Satã. O problema
namento com Deus. Mais importante está mais com a incapacidade de se com­
que as circunstâncias de seu nascimento preender as formas de pensamento do
terreno era o fato de que saíra e viera primeiro século do que com este tipo
de Deus e não de si mesmo, mas como de teologia faustiana.(*>Jesus não con­
um na missão divina — Tão insepará­ cluiu que certos homens estavam fada­
veis eram enviador e enviado que, se dos a viver vidas más, porque fossem
Deus fosse realmente o Pai dos judeus — escravos do Diabo; bem ao contrário,
um pressuposto absolutamente falso — concluiu que, por sua conduta atual,
eles amariam seu Filho também. Mas, um esses homens poderiam tornar-se bone­
relacionamento tão íntimo quanto este cos por vontade própria. Que este cati­
estava além de sua capacidade de com­ veiro era voluntário e deveria ser rompido
preender. Eles não podiam compreender pela fé verdadeira em Jesus era o ponto
0 que Jesus dissera, porque não supor­ central de todo o seu apelo (v. 31,32,
tavam ouvii a palavra (logos, no grego) 36,46).
divina que estava sendo transmitida pe­ Na realidade, atrás de todas estas gra­
las palavras proferidas (lalia, no grego) ves acusações, está o merecido reconhe­
por Jesus. Embora estivessem prontos cimento de que os próprios homens são a
para obedecer ao que seu “pai” dissesse única causa de seus próprios problemas.
(v. 38b), ficavam surdos diante da men­ A questão não é simplesmente quem é
sagem do Pai celestial, comunicada atra­ um homem, mas de quem é (isto é, de
vés de Jesus. Deus ou do Diabo, v. 47). Jesus admitiu
A razão para esta dicotomia absoluta que os homens poderiam ser fustigados
foi logo explicada pela identificação de por forças estranhas às suas existências:
seu (deles) pai como o Diabo, a cujos o escravizante poder da tradição religio­
desejos queriam satisfazer. Diferente­ sa, do orgulho nacional e do preconceito
mente de Jesus, que “desde o início” racial. Quando Jesus marchava para a
fora a fonte da vida divina (v. 24 e 25), hora do conflito maior, cada vez mais o
este último adversário era homicida des­ mal — não algum pequeno grupo de
de o princípio, pois ele trouxera a morte homens desarvorados — se transformava
ao Jardim do Éden (Gên. 3:1-19) e le­ em seu principal inimigo (12:31-33;
vara Caim a matar seu irmão Abel (cf. 16:33). As boas-novas desta repulsiva e
1 João 3:8,12,15). Embora Jesus ofere­ escura passagem é que Jesus morreu para
cesse aos homens a verdade da salvação quebrar o poder do mal cósmico sobre as
(v. 32), que ele mesmo comunicava, no vidas individuais. O homem que se vê
Diabo não havia verdade, uma vez que como a causa única de seus problemas
ele, por natureza, era um mentiroso e pai geralmente supõe que sozinho pode re­
da mentira. solvê-los, ao passo que o homem que
Estava aí, então, a razão maior, por­ descobre que é um filho do Diabo está
que mesmo aqueles que criam em Jesus melhor preparado para descobrir em Je­
como um homem de inacreditável de­ sus aquele que pode quebrar este poder
sempenho espiritual (v. 31) não creram terrível (cf. o comentário sobre 6:70,71).
na verdade de Deus, quando ele a apli­
cou a suas vidas: só quem é de Deus ouve 5) A Identidade do Juiz (8:48-59)
as palavras de Deus, e eles não eram de 48 R esp o n d e ra m -lh e os ju d e u s : N ão d iz e ­
Deus, mas de seu pai, o Diabo. m os co m ra z ã o que é s s a m a rita n o , e que
Numa primeira leitura, esta linha de
raciocínio atribuída a Jesus parece ofen­ (*) Por “teologia faustiana” o autor se refere, reportan­
do-se a um personagem (Fausto) criado por Goethe
der sensivelmente aqueles que se re­ e que fez um pacto com o Diabo, a uma visào dua-
cusam a condenar um homem a mero lística do mundo. — N.T.
te n s dem ô n io ? 49 J e s u s re s p o n d e u : E u não seria o juiz do que era verdade (cf.
tenho d e m ô n io ; a n te s ho n ro a m e u P a i, e vós v. 26)/*)
m e d e so n ra is. SO E u n ã o b u sco a m in h a
g ló ria ; h á q u e m a b u sq u e , e ju lg u e . 51 E m Buscando recuperar a alternativa po­
v e rd a d e , e m v e rd a d e vos digo q u e, se a l­ sitiva implícita em sua afirmação inicial
g u ém g u a r d a r a m in h a p a la v r a , n u n c a v e rá
a m o rte . 52 D isse ra m -lh e os ju d e u s : A g o ra de ser “a luz da vida” , Jesus agora re­
sab em o s q u e te n s dem ônio . A b ra ã o m o rre u , sume a questão; Se alguém guardar a
e ta m b é m os p r o f e ta s ; e tu d iz e s : Se a lg u é m minha palavra, nunca verá a morte. Para
g u a rd a r a m in h a p a la v r a , n u n c a p ro v a r á a os judeus, porém, este convite apenas
m o rte ! 53 P o rv e n tu ra , és tu m a io r do que
nosso p a i A b raão , q ue m o rre u ? T a m b é m os
confirmava que Jesus tinha um demônio.
p ro fe ta s m o r r e r a m ; q u e m p re te n d e s tu s e r? Já que mesmo os melhores de Israel, de
51 R esp o n d eu -lh es J e s u s : Se e u m e g lo rifi­ Abraão aos profetas, tinham morrido,
c a r a m im m e sm o , a m in h a g ló ria n ã o é por tér Satã, o “homicida” , introduzido
n a d a ; q u e m m e g lo rific a é m e u P a i, do q u a l a morte no mundo desde o princípio”
vós d izeis q u e é o vosso D e u s ; 55 e vós n ã o o
c o n h eceis; m a s e u o conh eço ; e , se d is se r (um argumento suscitado pelo próprio
que n ão o conheço, s e r e i m e n tiro so com o Jesus, no v. 44!), a oferta de Jesus de
v ó s; m a s eu o conheço, e g u a rd o a s u a p a la ­ uma espécie de imunidade mágica dian­
v ra . 56 A b raão , vosso p a i, ex u lto u p o r v e r o te da morte era uma prova de que estava
m eu d ia ; viu-o, e a le g ro u -se . 57 D isse ra m -
lhe, p ois, os ju d e u s : A inda n ão te n s c in q ü e n ­
de acordo com o Diabo (cf. a mesma
ta an o s, e v is te A b ra ã o ? 58 R esp o n d eu -lh es linha de raciocínio de Marcos 3:22). Do
Je s u s : E m v e rd a d e , e m v e rd a d e vos digo contrário, ele seria maior do que Abraão
que a n te s qu e A b ra ã o e x is tisse , e u sou. (cf. 4:12) ...e os profetas — uma con­
59 E n tã o p e g a ra m e m p e d ra s p a r a lh e a t i ­ clusão absolutamente inaceitável!
r a r e m ; m a s J e s u s ocultou-se, e sa iu do te m ­
plo. Nesse momento (v. 51-53), duas gran­
des questões dividiram Jesus e os ju ­
Outra vez, Jesus esclarece que a li­ deus. Primeira, estes se recusavam ter­
nhagem espiritual de seus adversários minantemente a considerar existencial-
não provinha de Abraão ou de Deus, mente a morte, isto é, como um proble­
mas do Diabo. Em resposta, eles o acusa­ ma espiritual, de natureza pessoal, ven­
ram de ser samaritano e possesso de do-a apenas como uma mudança física,
demônio. Em João 4, Jesus ignorara sé­ que põe fim à vida do homem. Como
culos de preconceito, ao definir a fé como todo mundo, Jesus certamente sabia que
não fundada numa identidade racial (cf. Abraão e os profetas tinham morrido e
4:9,21-23,42). Aqui, pode ter sido fus­ que cada geração continuaria a morrer,
tigado por esta abertura. Aos olhos dos mas estava preocupado em ajudar os
judeus, os samaritanos eram uma raça homens a descobrir realidades que so­
degenerada e de ascendência ilegítima brevivessem à dissolução do corpo. Além
(cf. 8:41) por se casarem com pagãos. do que, Jesus mostrou o caminho certo
Para um povo supersticioso entre os para que se tomasse a morte como um
quais predominava a magia (cf. At. 8:9- problema existencial, ao fazer da obe­
24), seria fácil concluir que se fosse como diência presente (isto é, “guardar sua
um samaritano, Jesus deveria ter um palavra”) o fundamento da esperança
demônio (cf. 7:20). Queriam significar futura. Jesus se via como digno de glória
com isto que Jesus, e não eles, tinha por eterna não porque tivesse alguma visão
pai o Diabo. Evitando envolver-se numa mística do além, mas porque “honrava o
interminável guerra de palavras, Jesus Pai” desde agora.
simplesmente negou a acusação, resta­
beleceu o propósito e o espírito de sua (*) Na versão utilizada pelo autor (a Revised Standard
Version), o verso 50 tem a seguinte redação: Ora, eu
vida centrada em Deus, pelo qual vivia e não basco a minha própria glória; há Aquele que a
deixou a questão nas mãos dAquele que busca e d e será o juiz. — N. do T.
Em resposta à pergunta central do saiu do templo, cujos proprietários “não
capítulo, Quem és tu?, Jesus prontamen­ o receberam” (cf. 1:11).
te recapitulou seus argumentos princi­
pais: diferentemente dos outros, vivia 5. A Luz da Vida (9:1-41)
longe da glória pessoal, conhecia real­ João 9 é um interlúdio dramático em
mente a Deus e guardava a palavra da meio às complexas controvérsias dos ca­
verdade. Depois, para reafirmar a pro­ pítulos 5 a 10. A simplicidade da narra­
messa de que aqueles que guardassem tiva se evidencia por estruturar-se em
sua palavra — assim como ele guarda­ tomo de um milagre contado com eco­
va a do Pai — nunca provariam a morte. nomia de palavras (v. 6 e 7) e de uma
Jesus voltou a discutir Abraão, de uma frase sintetizadora de seu significado es­
forma que também trouxe mais luzes piritual (v. 39). A beleza do relato, que
sobre sua própria identidade. Ao insisti­ poderia ser colocado em qualquer lugar
rem que Abraão morreu, os judeus ne­ do Evangelho, serve para alternar os
gligenciaram duplamente sua própria temas da luz e das trevas, bem como para
teologia, que ensinava que o patriarca retratar a dialética de um juízo já em
transcendera a morte. Para começar, operação.
mesmo durante sua curta vida terrena, Como uma ilustração dos temas cen­
a Abraão foi permitido ver pela fé o dia trais de João 5-10, este capítulo está
do Messias e, assim, antecipar a consu­ intimamente relacionado com o seu con­
mação final das promessas a ele feitas texto maior, apresentando muitos para­
(cf. Gên. 2:15-18, como interpretado em lelos entre a cura do paralítico em 5:2-9a
Gál. 3:16; II Esdras 3:14; Rom. 4:16-21; e a controvérsia resultante, sobre traba­
Heb. 11:8-19). Ademais, Abraão sobre­ lhar no sábado, em 5:5b-18. Cegueira
viveu a morte ao viver com Deus no e paralisia se ligam naturalmente (cf. Is.
paraíso (Mat. 8:11; Mar. 12:26,27; Luc. 35:5,6), uma vez que a visão é necessária
16:22,23), de onde viu a encarnação do para que se caminhe (veja 8:12: “Quem
Cristo e alegrou-se. me segue, de modo algum andará em
trevas, mas terá a luz da vida”). Ade­
Contentando-se com dimensões ape­ mais, temos, em 9:1-41, um brilhante
nas literalistas, os judeus diminuíram comentário da afirmação feita em 8:12,
sua grande visão espiritual a termos ma­ pois aqui Jesus, a luz do mundo, brilha
temáticos, calculando que Jesus não po­ na vida de um mendigo cego, enquanto
dia ter mais de cinqüenta anos (isto é, ele demonstra aos fariseus o que significa
era ainda um jovem). Por conseguinte, andar em trevas. Por fim, o fato de que
era absurdo dizer que vira Abraão, que curou um homem “expulso” pelos judeus
vivera havia muitos séculos. Por sua vez, (v. 34), mas “encontrado” por Jesus
Jesus desafiou seus ouvintes com outra (v. 35), prepara o tema do bom pastor,
afirmação: Antes que Abraão existisse, em João 10, onde Jesus “conduz para
eu sou. O contraste entre os verbos exis­ fora” os seus (10:3,4) e os protege contra
tisse (ginomai, no grego) e sou (eimi, no os falsos líderes (10:1,5,8,12,13).
grego) significava que antes de Abraão Central, na discussão de João 9, é o
mesmo vir a ser, por geração humana, tema da luz triunfando sobre as trevas
Jesus já existia eternamente, por ter a (basicamente, um sermão sobre 1:5).
mesma natureza com Deus (cf. 1:1). Tão Faz-se um bom uso da analogia entre
blasfema pareceu esta afirmativa aos ju ­ visão física e visão espiritual, paralelismo
deus, que pegaram em pedras para lhe encontrado no Velho Testamento (por
atirarem, sem qualquer chance de um exemplo: em Is. 29:18; 32:3; 35:5; 42:
julgamento formal. Diante disso “a luz 6,7) e nos Evangelhos Sinópticos (par­
do mundo” se escondeu (cf. Mar. 4:22) e ticularmente em Marcos 8, em que a res-
tauração paulatina da vista a um cego de 23); que ela foi operada por um agente
Betsaida, nos versos 22-26, serve de pa­ missionário sem credenciais, de quem
ralelo para a abertura dos “olhos da fé” não dependia a perpetuação da tradição
dos discípulos, nos versos 27-30). Aqui, mosaica (v. 24-34). Ao contário do que
o dom da visão a um cego de nascença pretendiam, a ação farisaica não forçou o
propiciou-lhe uma iluminação progressi­ cego à sujeição, antes fortaleceu nele
va, de forma a “ver” (v. 39b) o signifi­ uma defesa daquele que o curou, a qual
cado de Jesus em vários estágios: pri­ tomou-se melhor concatenada, perspicaz
meiro como “homem” (v. 11), depois e desenvolvida. O resultado final foi que
como “profeta” (v. 17), a seguir como ao milagre da visão física se acrescentou
vindo “de Deus” (v. 33), finalmente um milagre ainda maior, de visão espiri­
como “Filho do homem” (v. 35) e mesmo tual,. enquanto os fariseus receberam o
como “ Senhor” (v. 38). triste diagnóstico de cegueira espiritual e
De um lado, assim como a luz física de culpa (v. 35-41).
tem nas trevas a sua contraparte, a pe­
regrinação deste mendigo curado até a 1) Visão Para um Mendigo Cego de Nas­
visão espiritual apenas expôs a profunda cença (9:1-12)
cegueira de seus detratores, que se con­
sideravam os “iluminados” líderes reli­ 1 E , p a ss a n d o J e s u s , v iu u m h o m e m cego
de n a sc e n ç a . 2 P e rg u n ta ra m -lh e os se u s d is ­
giosos do judaísmo (v. 39c). No começo, cíp u lo s: R a b i, q u e m p eco u , e s te ou se u s
eles pareciam preparados para aceitar a p a is, p a r a q u e n a sc e s se ceg o ? 3 R e sp o n d eu
validade da cura (v. 15), mas diante das J e s u s : N e m e le p eco u n e m seu s p a is ; m a s
implicações teológicas que se vislumbra­ foi p a r a q ue n e le se m a n ife s te m a s o b ra s de
D eus. 4 Im p o rta q u e fa ç a m o s a s o b ra s d a ­
vam (v. 16a), passaram a duvidar de sua quele q u e m e enviou, e n q u a n to é d ia ; v e m a
validade (v. 18) e a impugnar aquele que n oite, q u an d o n in g u é m p o d e tr a b a lh a r . 5 E n ­
a operara (v. 16a; 24b). Aquilo que prin­ q u an to e sto u n o m u n d o , sou a luz do m u n d o .
cipiou como uma discordância aberta 6 D ito isto , c u sp iu no ch ão e com a s a liv a fez
(v. 16) logo se transformou numa desa­ lodo, e u n to u co m o lodo os olhos do cego,
7 e d isse-lh e: V ai, la v a -te no ta n q u e d e Siloé
provação doutrinária (v. 24), que termi­ (que sig n ific a E n v ia d o ). E ele foi, lav o u -se,
nou numa tentativa para forçar alguns a e voltou vendo. 8 E n tã o , os vizinhos e a q u e ­
negarem sua fé (v. 34). le s q u e a n te s o tin h a m v isto , q u an d o m e n ­
A estrutura de João 9, ao contrário dos digo, p e r g u n ta v a m : N ão é e s te o m e s m o que
dois capítulos anteriores, é de fácil aná­ se se n ta v a a m e n d ig a r? 9 U ns d iz ia m : É e le.
E o u tr o s : N ão é , m a s se p a re c e co m ele. E le
lise. 26 Depois que o milagre da visão d izia: Sou e u . 10 P e rg u n ta ra m -lh e , p o is:
física foi operado e confirmado (v. 1-12), Como se te a b r ir a m os olhos? 11 R e sp o n d eu
seu significado foi debatido na forma e le : O h o m e m q u e se c h a m a J e s u s fez o
de um “inquérito judicial” (v. 13-34), lodo, u n to u -m e os olhos, e d isse-m e : V ai a
Siloé e la v a -te . F u i, p o is, la v e i-m e , e fiq u ei
pontificando, de um lado, os fariseus vendo. 12 E p e rg u n ta ra m -lh e : O nde e s tá
como querelantes em nome da religião ele? R esp o n d e u : N ão sei.
institucionalizada e, de outro, o homem
cego como acusado de ter sido mudado _ Já que o capítulo 8 terminou com uma
pelo poder de Jesus. Três problemas prin- 'referência à partida de Jesus do Templo,
cipais foram identificados no interrogató­ 9:1 pode significar que, ao fazê-lo, pas­
rio: que a cura violara a lei, por ter sido sou por um dos portões onde os miserá­
realizada no sábado (v. 13-17); que ela veis costumavam esmolar (cf. At. 3:2).
encorajava a fé pessoal em Jesus, o que Em semelhante ambiente religioso, o en­
provocaria a expulsão da sinagoga (v. 18- contro com um homem cego de nascen­
ça seria logo aproveitado pelos discípu­
26 Sobre a estrutura e contexto de Joào 9, veja J. Louis
Martyn, History and Theology in the Fourth Gospel. los para pedir ao seu Rabi uma palavra
New York, Harper & Row, 1968, p. 3-41. sobre o perene problema do mal. No caso
de deficiências congênitas, a explicação pode trabalhar (cf. 3:19; 11:9,10; 12:35,
básica de que o pecado é a causa do 36; 13:30). O temerário acontecimento 1
sofrimento era usada pelos rabinos numa não impedia a ação, mas celebrava a

natal foi praticado pelo feto ou a iniqüi-


[
das seguintes formas: ou o pecado pré-*] urgência de Jesus em trabalhar enquanto/
estivesse no mundo. O milagre que sep
da.de dos pais estava sendo visitada “nos seguiu ilustrou a iminência da chegada
filhos até a terceira e quarta geração’’] das trevas e o cumprimento de sua de­
J Ê x . 20:5). A forma da pergunta dos claração, em 8:12, de ser “a luz do
discípulos refletia esta dupla possibilida­ mundo” . *
de: Quem pecou, este ou seus pais, para Tipicamente, os processos utilizados
que nascesse cego? Hoje podemos dizer para a outorga da visão ao cego era de
que a tragédia humana é fundamental­ úm” símbolismo muito .sugestivo. O uso
mente uma questão de^êspõiiwabilídãdê
—— — * ^ . ^ " 1 I H.BI) I de cuspe representava uma substância
~ ^

individual ou herançãTHo passado. totalmente derivada do interior de Jesus,


^"Em sua resposta, Jesus não se circuns­ numa dádiva espontânea de si mesmo, ao
creveu aos limites do dilema dos discí­ mesmo tempo em que sua mistura com
pulos: Nem ele pecou nem seus pais; mas aJeira^ para fazer lodo, rememorava a
foi para que nele se manifestem as obras criação original do homem (Gên. 2:7).
de Deus (cf. Luc. 13:1-5). Os discípulos Untar com. ungüentcutão primitivo os
se interessaram pela tragédjã^nã~nviSn- olhosdoTíomem e mandá-lo ir, tateando,
ção de encontrar alguém para responsa- para se lavar no tanque de Siloé era
bilizar.(Jesuá) por sua vez, estava preo­ um meio para testar a sua fé — do
cupado com o que poderia fazer para mesmo modo como (Êííseih desafiara o
mudar a situação. Òs .discípulos estavam leproso ^Naamã) para se Sanhar no rio
interessados nas~causas humanas, desde Jordão (II Reis 5:9-14). Mesmo o nome
seus primórdios. (Jesu^, por seu turno, do tanque, que, numa derivação, etimo-
estava interessado nos resultados divinos, logicamente significava o Enviado, pare-
até seu possível fim. Para os discípulos,
um homem cego era um ponto de inter­ hca^uma_yeg qug_ cego estava sendo
rogação, um objeto de mera especulação. enviado até la por alguénTque era um
Para(JesusJ)era uma oportunidade, uma èrmãdcT deTJeusT^Ã^orajòsãníiíciãTíva ^
pessoa necessitando de compaixão. í'dêTéius7~ãssociãda à obediência pronta 1
~ Não quer isto dizer, entretanto, que [ do cego, teve a cura como conseqüência:
Jesus alimentasse qualquer ilusão com ele voltou vendo.
respeito às dificuldades de superação da Tão inesperada e decisiva foi a trans­
miséria humana. Sua abordagem teoló­ formação que os vizinhos e aqueles que
gica à teodicéia denotava um imperativo antes o tinham visto, quando mendigo,
positivo e um aviso negativo. Primeiro, acharam difícil aceitar o que acontecera.
num uso pouco comum de pronomes Para alguns, o homem parecia ser ele
singulares e plurais, desafiou os discípu­ mesmo, mas, para outros, era alguém
los a compartilharem de seus gestos: Im­ parecido com ele — numa mistura sim­
porta que façamos as obras daquele que bólica do cristão convertido que perma-
me enviou (cf. 3:11, para um uso seme­ nece o mesmo, mas se transforma como
lhante de eu/nós = Jesus/discípulos), que numa pessoa~3iferente. Quando o
uma tarefa messiânica possível, porque homem curado confessou que ele era
estava no novo dia..do -livramento de realmente aquele conhecido como um
Deus. Lembrando-se, porém, de que ha­ mendigo cego, foi necessário que sua
via pouco tinham procurado apedrejá-lo cura fosse explicada. Ao relatar, com
(8:59), introduziu uma predição melan­ detalhes, o que ocorrera, ele foi capaz de
cólica: Vem a noite, quando ninguém identificar a Jesus pelo nome (em con-
traste com 5:13), mas não sabia nada a de deliberadamente não guardar o sá­
seu respeito, ignorando até mesmo onde bado (cf. Deut. 13:1-5)? Criou-se uma
poderia ser encontrado (cf. v. 35 e 36). dissensão entre eles, acontecendo que
uns insistiam que a estrutura social do
2) O Problema da Violação do Sábado judaísmo devia ser sustentada pela con­
(9;13-17) formidade à lei, ao passo que outros
reconheciam que uma necessidade indi­
13 L e v a ra m a o s fa ris e u s o que fo ra cego. vidual fora satisfeita, mesmo que por
14 O ra, e r a sá b a d o o d ia e m q u e J e s u s fez processos não recomendáveis. Incapazes
o lodo e lhe a b riu os olhos. 13 E n tã o os de aceitar qualquer destas posições, os
fa rise u s ta m b é m se p u s e ra m a p e rg u n ta r- fariseus partiram em direção do homem
lhe com o re c e b e r a v is ta . R esp o n d eu -lh es
e le : P ô s-m e lodo so b re os olhos, lav ei-m e, curado, em busca de uma opinião sobre
e v ejo. 16 P o r isso a lg u n s dos fa ris e u s d i­ Jesus. Pressionado a dar alguma expli­
z iam : E s te h o m e m n ão é de D e u s; p ois n ão cação sobre sua experiência, o acusado
g u a rd a o sá b a d o . D iziam o u tro s : C om o pode acabou por admitir que aquele que o
u m h o m e m p e c a d o r fa z e r ta is sin a is? E h a ­
v ia d isse n sã o e n tr e e les. 17 T o rn a ra m , pois,
curara devia ser um profeta (a exemplo
a p e rg u n ta r ao ce g o : Q ue dizes tu a re sp e ito de Eliseu, que curara Naamã, ao mandá-
dele, v isto q ue te a b riu os olhos? E e le r e s ­ lo lavar-se). No Quarto Evangelho, “pro­
pondeu : É p ro fe ta . feta” nunca é o mais elevado título dado
a Jesus pela fé (4:19; 16:14; 7:40), assim
Tão logo o mendigo cego passou a ver, sabendo o leitor que mais estava para vir.
os fariseus, que nada tinham feito por
ele, começaram a colocar areia teológica 3) O Problema da Expulsão da Sinagoga
sobre seus olhos recentemente abertos. (9:18-23)
Assim que o homem voltou a narrar sua
cura, ficou evidente que Jesus violara a
lei em dois pontos, ao curar num sábado 18 O s ju d e u s , p o ré m , n ã o a c r e d ita r a m
que e le tiv e sse sido cego e rec e b id o a v is ta ,
(cf. o comentário sobre 5:1-18): ele o fez en q u a n to n ã o c h a m a ra m os p a is do que fo ra
quando nenhuma emergência ameaçava cu ra d o , 19 e lh e s p e rg u n ta ra m : É e s te o
a vida humana, pelo que poderia esperar vosso filho, qu e dizeis te r n asc id o ceg o ?
um pouco mais; e, além do mais, “mis­ Como, po is, vê a g o ra ? 20 R e sp o n d e ra m se u s
turou” pó com cuspe, para fazer lodo, p a is : S ab em o s qu e e ste é o nosso filho, e que
n a sc e u ce g o ; 21 m a s com o a g o ra v ê, n ão
uma espécie de trabalho proibido no dia sa b e m o s; ou q u e m lh e a b riu os olhos, nós
do descanso (Mishnah, Sabbath 7:2). não s a b e m o s ; p e rg u n ta i a e le m e s m o ; te m
Jesus respondera a um caso patético id a d e , e le f a l a r á p o r si m e sm o . 22 Isso d is ­
de necessidade humana na primeira s e ra m se u s p a is , p o rq u e te m ia m os ju d e u s ,
p o rq u a n to j á tin h a m e s te s co m b in ad o q u e,
oportunidade, dentro de um senso de ur­ se a lg u é m co n fe ssa sse s e r J e s u s o C risto ,
gência, determinada pela proximidade fosse e x p u lso d a sin a g o g a . 23 P o r isso é que
das trevas, “quando ninguém pode tra­ seu s p a is d is s e ra m : T e m id a d e , p erg u n ta i-
balhar” . Longe de ver tal atividade como lho a ele m e sm o .
uma violação da verdadeira intenção do
sábado, argumentava que o dia que sim­ O estágio primitivo da medicina prati­
bolizava o descanso messiânico era a cada no primeiro século, somado à es­
melhor ocasião para se levar a cabo a pantosa credibilidade das massas, capa-
restauração divina da criação (cf. 5: citava-a a investigar cuidadosamente
16-18). quaisquer pretensões de cura miraculo­
Numa perspectiva judaica, os fariseus sa, especialmente a concessão da vista a
se viram diante de um dilema: se Jesus alguém que fora cego. Como se dizia que
era suficientemente bom para fazei tais si­ o mendigo tinha nascido cego, seus pais,
nais, como poderia ser tão mau, ao ponto obviamente, eram aqueles que deveriam
confirmar a identidade e explicar a trans­ 4) O Problema de um Taumaturgo De­
formação de seu filho. sacreditado (9:24-34)
Repentinamente empurrados para o
centro de um interrogatório oficial, os 24 E n tã o c h a m a ra m p e la se g u n d a v ez o
pais ficaram tão apavorados que acaba­ h o m em q u e fo ra cego, e lh e d is s e ra m : D á
ram reprimindo a alegria que tinha sido g ló ria a D eu s; nós sa b e m o s que e sse h o m e m
o grande acontecimento que inesperada­ é p e c a d o r. 25 R e sp o n d eu e le : Se é p e c a d o r,
não s e i ; u m a c o isa s e i: e u e r a cego, e a g o ra
mente sobreviera à família. Ademais, vejo. 26 P e rg u n ta ra m -lh e , p o is: Q ue foi que
durante anos tiveram que suportar a sus­ te fez? C om o te a b riu os olhos? 27 R e sp o n ­
peita ou mesmo a acusação de que seu d eu-lh es: J á vo-lo d isse , e n ã o a te n d e s te s ;
filho nascera cego por causa de pecado p a r a q u e o q u e re is to r n a r a o u v ir? A caso
ta m b é m vós q u e re is to rn a r-v o s d iscípulos
deles (v. 2)! No entanto, agora, uma d ele? 28 E n tã o o In ju ria ra m , e d is s e ra m :
inaudita mudança — embora para me­ D iscípulo d ele é s tu ; n ó s, p o ré m , som os
lhor — coloca-os numa embaraçosa si­ discípulos d e M o isés. 29 S ab em o s que D eus
tuação dentro da sinagoga. Assim, mes­ falou a M o isés; m a s q u a n to a e ste , n ão
mo depois de serem obrigados a admitir sab em o s d onde é. 30 R esp o n d eu -lh es o h o ­
m e m : N isto, p o is, e s tá a m a r a v ilh a ; não
que era seu filho, que tinha nascido cego, sa b e is d onde e le é, e e n tre ta n to , ele m e
os dois se recusaram a tecer alguma a b riu os o lh o s; 31 sa b e m o s q u e D eu s n ão
consideração sobre a cura ou sobre aque­ ouve a p e c a d o re s ; m a s , se a lg u é m fo r te ­
le que a realizara. Como tinha idade, isto m e n te a D eu s, e fiz e r a s u a v o n ta d e , a e sse
ele ouve. 32 D esd e o p rin c íp io do m u n d o
é, era velho o suficiente para prestar um n u n c a se ouviu q u e a lg u é m a b ris s e os olhos
testemunho com valor legal, ele podia a u m cego d e n a s c e n ç a . 33 Se e s te n ão fosse
falar por si mesmo. de D eu s, n a d a p o d e ria fa z e r. 34 R e p lic a ra m -
Os pais tinham voluntariamente omi­ lh e e le s : T u n a s c e s te to d o e m p e c a d o s, e
tido uma informação por temerem o po­ ven s nos e n s in a r a nó s? E e x p u lsa ra m -n o .
der dos mais importantes judeus fariseus
em expulsar da sinagoga todo aquele que Por fim, incapazes de questionar o
confessasse que Jesus era o Cristo (o fato da cura, os judeus tentaram inter­
Messias dos judeus). A ameaça do os- pretá-la segundo sua ótica teológica, exi­
tracismo da principal instituição da vida gindo do homem que jurasse ser Jesus
comunitária judaica era uma perturba­ um pecador. A expressão Dá glória a
dora possibilidade por ocasião do perío­ Deus (cf. Jos. 7:19) era mais forte do que
do neotestamentário, época em que o a frase “Deus é testemunha” , usada nos
perigo de uma extinção racial e religiosa tribunais (cf. “Prometa a Deus que vai
fez da cooperação leal a mais essencial dizer a verdade” — BLH). Depois de
das virtudes. A situação tornou-se tão abandonarem os debates do verso 16,
crítica depois da destruição do Templo, os fariseus agora propunham uma frente
em 70 d.C., que o sinédrio (Beth Din) mais sólida (Nós sabemos), representan­
instituiu procedimentos formais para a do a liderança religiosa da nação, num
excomunnão de iudeus cristãos como he- formidável consenso fundamentado num
réticos (minim). Esta funesta ruptura domínio sobre um mendigo analfabeto.
entre olüdaísm o e o cristianismo preo­ Para um cego que agora podia ver, um"
cupava tánfo“o quarto evangelista, que pouco de experiência pessoal vale muito
este procurou contornar o problema, re­ na teologia rabínica. Fora-lhe permitido
lacionando-o aos primeiros conflitos de receber a cura antes de se lhe éxigir
Jesus e seus seguidores com os fariseus que cresse em certas coisas; diante disso,
(cf. 12:42; 16:2).27 élüõrm ulou sua fé pela reflexão a partir
}dos fatos, ao invés de torcer os* fatos,
27 Sobre estas questões, veja Smith, p. 22-36, e Martyn, . para encaixá-los nalguma crença da tra­
p. 17-41,148-150. dição.
Momentaneamente desafiados por nascidos em pecado, sem qualquer visão
essa poderosa resposta, os judeus tenta­ (física ou espiritual, e deu-lhes a luz.
ram retomar a discussão, reapresentando
os fatos do caso, apenas como uma for­ 5) O Paradoxo do Juízo (9:35-41)
ma de castigo por não terem prestado
atenção quando anteriormente os acon­ 35 Soube J e s u s q u e o h a v ia m e x p u lsa d o ;
tecimentos lhes foram narrados (v. 15). e , ach an d o-o , p e rg u n to u -lh e : C rê s tu no F i­
lho do h o m e m ? 36 R esp o n d eu e le : Q uem é,
Mais cruel foi o irônico escárnio: Para S enhor, p a r a q u e n ele c re ia ? 37 D isse-lhe
que o quereis tomar a ouvir? Acaso J e s u s : J á o v is te , e é ele q u e m fa la contigo.
também vós quereis tornar-vos discípulos 38 D isse o h o m e m : C reio, S enhor! e o a d o ­
dele? Golpeados por esta possante con­ rou. 39 P ro s se g u iu e n tã o J e s u s : E u v im a
e ste m u n d o p a r a juízo, a fim d e q u e os q u e
tra-ofensiva, os judeus voltaram a decli­ não v ê e m v e ja m , e os q u e v ê e m se to rn e m
nar sua confiança nos pais e na tradição: cegos. 40 A lguns fa ris e u s que a li e s ta v a m
Nós... somos discípulos de Moisés, isto com e le , ouvindo isso , p e rg u n ta ra m -lh e :
é, eram fiéis intérpretes da lei mosaica. P o rv e n tu ra so m o s nós ta m b é m ceg o s?
41 R esp o nd eu -lh es J e s u s : Se fó sseis cegos,
Uma preimssOüntfáméntãl das Éscritu- n ão te ríe is p e c a d o , m a s com o a g o ra d iz e is :
ras era que Deus falara a Moisés, ao N ós v e m o s, p e rm a n e c e o vosso p ecad o .
passo que a origem e a fonte de inspira­
ção de Jesus eram completamente des­ O homem curado por Jesus, ao ter
conhecidas (cf. 7:27,41,52; 8:19,41). A satisfeita a sua mais premente necessida­
questão não estava apenas em que Jesus de, parece ter perdido tudo em conse­
era obscuro herege. Ao contrário, estava qüência. Desapareceu sua vocação como
conduzindo o povo ao erro, ao levar mendigo profissional, uma vez que o seu
alguém como este homem cego a ser papel, na sociedade, se fundamentava na
seu discípulo. _ cegueira (v. 8). Seus vizinhos estavam
V Para um ex-cego, o fato de Jesus ter confusos (v. 9), seus pais, intimidados
aberto seus olhos contrastava com a in­ (v. 22) e os líderes, exasperados (v. 34).
capacidade dos judeus em determinar Agora, que finalmente via, não tinha
donde era Jesus. Como um milagre sem para onde ir. Não era bem-vindo ao tra­
precedentes desde o princípio do mundo balho, ao lar ou à igreja (sinagoga) —
(isto é, não há registro semelhante no tudo por causa de um homem a quem
Velho Testamento), esta maravilhosa nunca vira e nem sabia onde encontrar
operação só poderia ter sido realizada (v. 12)!
por Deus. Como,_porém, Deus só ouve Conhecedor de sua situação, Jesus no­
&s~temenfes que fazem a sua~võntadê^ vamente tomou a iniciativa e procurou
Jisu sp o d e ria v irde j ç ^ T ^ n ã o jr a ü ip | (cf. 5:14) o homem cujos olhos tinha
pecador, como supunham. Dando a vol- aberto, ao qual poderia oferecer também
‘-Ta^sõèré "sius^adverSanoT e usando a a visão espiritual. Como era do seu feitio,
teologia deles contra eles mesmos, o começou com uma pergunta (cf. 5:6) em
mendigo provocou o último insulto, o de torno da questão central: Teria este so­
tentar ensinar aos seus mestres oficiais! litário e marginalizado judeu aceito o
Enfurecidos com esta afronta e incapa­ veredicto dos juizes do povo, que tinham
zes de responder à lógica deste argumen­ citado uma severa sentença sobre sua
to, eles simplesmente o condenaram vida (obrigado a retratar-se e retomar à
conuTum depravado incorrigível (cf. v. 2) sinagoga?) ou teria sido capaz de crer no
e o expulsaram do seu meio (cf. v. 22). Filho do homem, destinado por Deus
Uma vez mais, aqueles que se orgulha-v como juiz cósmico e árbitro da vida
vam de seu nascimento físico e religioso/ etema? Quando o homem perguntou
prestavam um irônico tributo a Jesus, > quem seria essa figura sobrenatural, Je­
que prazeirosamente aceitou homens sus surpreendeu-o com o anúncio de que
o futuro seria experimentado agora por tão duro para com seus seguidores judeus
ele em sua vida: Tu o viste agora e é ele como Isaías fora, ao lembrar que um
quem fala contigo (cf. 4:26). Em respos­ descuidado ministério da palavra serve
ta, o homem deixou seus acusadores mais para fechar o olho que não vê (ob­
judeus, para confiar naquele em quem serve-se o uso de Is. 6:10 em João 12:37-
não havia nenhuma condenação: Creio, 40).
Senhor! Tendo descoberto quão perigoso O ministério de Jesus — Antes de ter
é poder ver o mundo como ele é, agora escrito o Evangelho, o evangelista me­
ele sabia quão grande é a redenção ao se, ditou ainda mais sobre a inexcusável
ver Jesus como ele é. _! conclusão de que a liderança do judaís­
__ A narrativa termina com um comentá­ mo, capaz de perceber melhor o signi­
rio incisivo de Jesus sobre o significado ficado de Jesus, era aquela que o rejei­
do que acontecera. A polarização suge­ tava. Ironicamente, uma missão de mi­
rida por este milagre de misericórdia sericórdia, que oferecia um novo perdão,
refletiu um processo de juízo, inerente uma nova liberdade e uma nova pleni­
em toda a missão para a qual ele veio tude, era vista como uma provocação,
a este mundo. O homem cego represen­ que levava alguns judeus à “cega” de­
tava aqueles que não vêem e que foram fesa das tradições estabelecidas. Era im­
capacitados a ver, ao passo que os fari­ possível compreender o ministério de Je­
seus representavam aqueles que vêem sus sem uma explicação do porquê de ter
e que foram tornados cegos (cf. um pa­ acabado numa cruz (cf. 1:11).
ralelo parabólico a esta grande inversão,
emM at. 25:31-46). A igreja primitiva — Por fim, à época
Ao ouvirem a parte referente a eles, da elaboração do Evangelho, os gentios,
nesta questão, dita por Jesus, alguns que por nascimento eram “cegos” à re­
fariseus desafiaram sua interpretação, velação de Deus, tinham aceito a luz em
indagando retoricamente: “Estás dizen­ Cristo de modo mais pronto do que os
do que nós também somos cegos?” . A judeus, a maioria dos quais tinha decidi­
resposta de Jesus foi, de algum modo, do desprezar o convite cristão. Em certo
mais contundente que sua acusação ini­ sentido, os gentios convertidos recapitu­
cial: “ Se fosseis cegos!” Ademais, se lavam a peregrinação espiritual do ho­
eles simplesmente sentissem a necessida­ mem nascido cego (note-se a ênfase nos
de de luz — coisa que obviamente não v. 1,2,19,20,32-34), enquanto os judeus
ocorreu, — uma ajuda lhes poderia ser não-convertidos se espelhavam nos bem-
prestada. Mas transformar sua cegueira nascidos fariseus dos dias de Jesus, os
em visão tornava-os responsáveis: Per­ quais deliberadamente perderam seus
manece o vosso pecado (Mar. 3:28-30). privilégios espirituais. João 9, como tam­
Este processo de juízo trazido por Je­ bém Romanos 9, são uma tentativa de
sus e que transformava aqueles que po­ esclarecer, o ministério da recusa de Is­
diam “ver” em “cegos” (v. 39) pode ser rael em aceitar seu Messias.
melhor compreendido através de três Se não compreendido corretamente,
perspectivas: este juízo de Jesus, pelo qual aqueles
O Velho Testamento — Os profetas, “que vêem se tornam cegos” , poderia ser
em particular, estavam profundamente relacionado ao tema dos “filhos do Dia­
conscientes de que os próprios esforços bo” , de 8:31-59, para apoiar uma teolo­
de Deus, de impor uma exigência ao seu gia de determinismo fatalista, que vê a
povo, com freqüência permitiam a rejei­ obra de Cristo como algo arbitrário ou
ção desse desafio. Embora a intenção da até mesmo como fruto de algum capri­
ação divina fosse de redenção, seu efeito cho. Antes que qualquer distorção dessa
podia tornar-se judicial. Jesus não era tente o leitor, somos presenteados, em 9:
1-41, por um modelo claro da maneira Tabernáculos (II Macabeus 1:9,18; 10:5,
em que Jesus realmente operava. 6). Por exemplo, usava-se tanto lume nos
Longe de condenar o cego a permane-) castiçais (veja II Macabeus 1:18-36) que
/ cer nessa condição, Jesus tomou a inicia- a Dedicação recebeu o nome popular de
S tiva de iluminar, tanto física quanto es- ( “festival das luzes” (Josefo, Antiguida­
) piritualmente, uma desesperada vítima/ des, XII, 319,325), uma designação que
que não podia escapar das trevas espi- j liga o contexto histórico de João 10 ao
1 rituais por seu próprio esforço, mas que ’ tema de Jesus como a “luz do mundo”
estava pronta para receber a luz (cf. de João 8 e 9.
v 1:12). Na verdade, outros penetraram \ Como os Tabernáculos, a festa da De­
' mais fundo nas trevas, estribados na luz dicação também se destinava a homena­
) que equivocadamente julgavam possuir. gear a verdadeira residência de Deus com
Do início ao fim, o mendigo confessou seu povo, neste caso, pela repetição da
desconhecer Jesus (v. 12,25,36), e assim ( purificaçãõe da rededicação do Templo,
poderia aprender sobre o seu verdadeiro i realizadas por Judas Macabeus em 164
significado, enquanto os fariseus, embo- v a.C., logo depois de sua profanação pelos
/ ra convictos de que conheciam Jesus/ sírios, sob Antíoco Epifânio (I Macabeus
(vTT&724,29), não sentiram qualquer n e - . 4:36-61; II Macabeus 10:1-9). Os termos
, cessidade de aprender. empregados para esta renovação de culto
(hebraico: Hanukkah; grego: Egkainia)
6. O Pastor da Vida (10:1-42)
foram usados também para descrever a
A ausência de uma ruptura maior, no consagração do tabernáculo por Moisés
início do capítulo, demonstra sua íntima (Núm. 7:1-11), do primeiro Templo por
relação com a seção anterior (a passa­ Salomão (I Reis 8:62-64) e do segundo
gem para outro cenário so acontece a Templo pelos exilados ao terem voltado
partir do v. 22). A exclusão de um pre-~ (Esd. 7:16-18), além de evocarem os es­
rte n so discípulo de Jesus da sinagoga , forços de cada geração para preparar um
(9:34) possibilitou uma discussão sobre o lugar para a pura devoção a Deus.
aprisco, no qual alguém seria recebido Em face desta experiência, Jesus iden­
(10:3,4,9,27) e protegido (10:11-15,25, tificou-se, no clímax do capítulo (v. 36),
28,29) contra os falsos líderes do rebanho^ como “aquele a quem o Pai santificou”
de Deus (10:1,5,8,26). Uma referência (hagiazõ, um sinônimo de egkainizõ,
explícita, em 10:21, ao milagre registra­ usado em Núm. 7:1, na versão dos LXX),
do em 9:6.7. sugere que a cura do ho­ ou seja, aquele que veio da parte de Deus
mem cego perm-aneren mmn nm fator para ser, ao mesmo tempo, o altar ima­
nas discussões de Jesus com seus adver­ culado e o sacrifício puro (v. 11). Sua
sários. morte seria provocada por aqueles líderes
Üínã~ outra relação com o contexto religiosos falsos, cujo propósito era “ma­
maior é indicada pela colocação de João tar” (v. 10, thuõ, literalmente, abater um
10 na “festa da Dedicação” (v. 22). sacrifício). Na mesma ocasião, quando os
Conforme o modelo apresentado nos ca­ judeus celebravam a purificação do seu
pítulos 5 a 10, segundo o qual cada Tèmplo, depois da corrupção produzida
unidade vinha relacionada com uma ce­ por falsos sumo sacerdotes, como Jáson e
lebração religiosa judaica, João 7 e 8 Menelau, que traíram sua função, ao
acontece durante a Festa dos Taberná­ contribuírem com a profanação síria,
culos (7:2,14,37; 8:12,59), enquanto Jesus se apresentava para levar o povo de
João 9 ocorre ao mesmo tempo ou um Deus, embora ao preço da morte, a cum­
pouco depois (9:1,5). Embora a Dedica­ prir as sublimes intenções da festa.
ção caísse três meses depois, era cele­ O emprego de imagens pastoris, em
brada de uma forma semelhante aos João 10, pode ter sido influenciado pela
prática de usar textos do Velho Testa­ ele guiava suas ovelhas a um bom pasto
mento em torno do tema ovelhas e pas­ (v. 3,9,10,28a), garantindo, assim, a vi­
tores, como leituras sinagogais no pri­ talidade da Igreja, enquanto seus pre-
meiro sábado anterior à festa da Dedi­ decessores vinham apenas para furtar,
cação. A principal passagem profética roubar, matar e destruir (v. 1,8,10).
era Ezequiel 34, um trecho difícil para se Quanto ao aspecto formal. João 10 se
compreender as noções básicas do capí­ divide e duas partes principais, por um
tulo 10 de João.28 novo princípio no verso 22. Contudo,
Aí, Deus é apresentado como o bom todo o capítulo constitui-se numa uni­
pastor (v. 11-16; cf. Sal. 23:1; 80:1; Is. dade literária livre, sustentada pelos mo­
40:11; Jer. 23:3; 31:10) e Israel como a tivos subjacentes, ligados à festa da De-
ovelha do seu pasto (v. 25-31; cf. Sal. dicação e às imagens pastoris, explícitas
74:1;79:13;95:7;100:3). Como os pasto­ em ambas as pãrtes (como, por exemplo,
res (governantes) infiéis de Israel tinham a reelaboração dos v. 3-5 nos v. 26 e 27).
traído o rebanho, Deus os julgaria se­
veramente, por sua negligência (v. 2-10; 1) O Simbolismo das Ovelhas e do Pas­
cf. Jer. 10:21; 12:10; 23:1,2; Zac. 11:15- tor (lOsl-6)
17), bem como separaria as ovelhas ver­
dadeiras das falsas (v. 17-22). Em lugar 1 E m v e rd a d e , e m v e rd a d e vos d ig o :
q u em n ã o e n tr a p e la p o rta no a p ris c o d a s
do tormento provocado pelos falsos pas­ o v elh as, m a s so b e p o r o u tr a p a r te , e ss e é
tores e falsas ovelhas, Deus prometeu la d rã o e s a lte a d o r. 2 M as o que e n tr a p e la
que enviaria, ao rebanho, um pastor p o rta é o p a s to r d a s o v e lh a s. 3 A e s te o
messiânico, seu servo Davi (v. 23,24; p o rte iro a b r e ; e a s o v e lh a s o u v em a s u a
v o z ; e e le c h a m a p elo n o m e a s su a s o v elh as,
cf. Jer. 23:4-6); aliás, esta restauração da e a s conduz p a r a fo ra . 4 D epois d e co n d uzir
monarquia davídica é o único tema de p a r a fo ra to d a s a s q u e lh e p e rte n c e m , v a i
Ezequiel 34 não desenvolvido em João a d ia n te d e la s , e a s o v e lh a s o se g u e m , p o r ­
10. A argumentação principal de Eze­ que co n h e c em a s u a v o z ; 5 m a s d e m odo
quiel 34 e sua contraparte neotestamen- a lg u m se g u irã o o e stra n h o , a n te s fu g irã o
dele, p o rq u e n ã o co n h e c e m a voz dos e s t r a ­
tária é a mesma: o cuidado do rebanho n hos. 6 J e s u s p ro p ô s-lh es e s ta p a rá b o la ,
exige a recolocação de uma linha divi­ m a s e le s n ã o e n te n d e ra m o q u e e r a qu e lh e s
sória entre os falsos pastores e o verda­ dizia.
deiro pastor e servo enviado por Deus.
A forma como os judeus trataram o
Três características do ministério de
cego curado na narrativa anterior levou
Jesus forneceram os critérios para sua
Jesus à dupla certeza (Em verdade, em
proposta de colocar os fariseus como sub-
verdade) de que o p o v o de Deus estava
pastores de PeuTem Israel:(Primeira) ele
sendo atormentado por líderes religiosos
reunia suas ovelhas num so^Tebanho
falsos, comparados aqui com ladrões e
(v. 3,4,14-16, 27), garantindo, assim, a
salteadores. Estes termos podem referir-
unidade da Igreja, enquanto seus adver­
se aos ffãríseus^que tinham tentado tirar
sários permitiam que o povo de Deus se
tudo o(T mendigo curado por Jesus (cf.
dispersasse (v. 5,12). (Segunda^) ele guar­
Mat. 23:13), inclusive a recepção dele
dava suas ovelhas da délfrüíção (v. 7,8,
por parte de seus pais, a legitimidade do
11-15,28b-29), garantindo, assim, a se­
milagre que lhe ocorrera e sua comu­
gurança da Igreja, enquanto seus oposi­
nhão com a sinagoga. Podem também
tores fugiam quando o rebanho era asso-
referir-se, de um modo geral, aos(sadu-
lado pelos inimigos (v. 12,13) .^Terceira?)
•"cêus'? Autoridades sacerdotãÍs)que con­
trolavam a organização do Templo, què
28 Veja Aileen Guilding, The Fourth Gospel and Jewlsh
Worahlp (Oxford: Clarendon, 1960), p. 127-142; tam­ Jesus chamou de “covil de salteadores”
bém Smith, p. 166-174. (Mar. 11:17), porque eles privavam os
não-iudeus de uma oportunidade ieual que se refere a uma ampla variedade de
no culto a Deus. Ainda, uma vez que expressões proverbiais ou figuradas. Ou­
Judas fora chamado de “ladrão” (12:6) tros usos de paroimia no Quarto Evan­
e Barrabás, de “salteador” (18:40) — a gelho (16:25,29) sugerem uma conota­
exemplo dos dois bandidos com os quais ção principal de discurso enigmático,
Jesus foi crucificado (Mar. 15:27) — é semelhante às parábolas sinópticas mais
possível que estes termos se refiram aos elaboradas, que traem seu cunho mani­
zelotes, que recorreram ao logro e à vio­ festamente alegórico (exemplo, Mar. 12:
lência por motivos religiosos. Mais pro­ 1-9).
vavelmente, porém, a acusação tratava
de condenar quaisquer métodos que ex­ 2) Jesus e o Rebanho de Deus (10:7-18)
plorassem em vez de servir às ovelhas.
Em contraste com todos aaueles aue 7 T o rn o u , p o ls .( j e ã u ã ) a d iz e r-lh e s: E m
se aproximavam indevidamente do reba- v e rd a d e , é m v e rd a d e v o s d ig o : e u so u a
nEõ, o verdã9êiro pastor é aquele que. p o rta d a s o v e lh a s. 8 T odos q u a n to s v ie ra m
ajTtes d e m lm ^ & o la d rõ e s e sa lte a d o r e s ;
entra pelapõrta. isto é. ele é franco e m a s a s o v e lh as n ã o os o u v ira m .'!) E u so u a
direto (cf. 18:19-21, e observe especial­ r p o r ta ; se a lg u é m e n tr a r p o r m l m ,'ü r a ^ ã J ~
mente a~forma pela qual Jesus se con- v o ; e n tr a r á e s a ir á , e a c h a r á p a s ta g e n s ..
^ trapunha ao “salteador” de Marcos 14: *'10 O la d rã o n ã o v e m se n ã o p a r a ro u b a r,
, 48,49). Em vez de subir por outra parte, m a ta r e d e s tr u ir ; e u vim p a r a q u e te n h a m
v id a , e a te n h a m e m a b u n d â n c ia . l l E t i s o u o
: ele deseja identificar-se e ser admitido b o m p a s to r : o b o m p a s to r d á s u ã v íd a
£ pelo porteiro, isto é, seus propósitos são "pelas o v e lh a s. 12 M a s o q u e é m e r c e n á rio, e
claros, podendo ser entendidos por to- n ão p ü t õ r , d e q u e m n ã o sao a s óvêlH as.
I v. dos. Sua relação com as ovelhas é de um vendo v ir o lobo, d e ix a a s ovelhas, e fo g e;
^ conhecimento recíproco: de um lado, e o lobo a s a r r e b a ta e d is p e rs a . 13 O ra , o
m e rc e n á rio foge p o rq u e é m e rc e n á rio , e n ão
& èlãs podem ouvir (reconhecer) sua voz e, se im p o rfa c o m a s o v e lh a s. 14 E u so u o .b o m
de outro, ele pode chamá-las pelo nome .PM torj co n h eço a s m in h a s o v e lh a s, e^êlãs
j2 (cf. 11:43; 20:16). Em vez de expulsá- m e co n h ec e m , 15 a s s im com o o P a i m e
las, em benefício proprio (como os judeus conhece e e u co nheço o P a i; e dou a m in h a
v id a p e la s o v elh a s. 16 T enho a in d a o u tra s
fizeram em 9:34), ele as conduz para fora o v elh as, q u e n ã o sã o d e s te a p ris c o ; a e s s a s
e vai adiante delas, como um líder digno, ta m b é m m e im p o rta co n d u zir, e e la s ouvi-
ao qual todas podiam seguir. As ovelhas r ã o a m in h a v o z ; e h a v e r á u m r e b a n h o è u m
são abençoadas não apenas com um ou- p a sto r. 17 P o r isto o P a i m e a m a r p ó rq ü è dou
vido receptivo para ouvir a sua voz, mas a m in h a v id a n a r a a r e to m a r . 18 N in g u ém
m a ti r a d« m im , m a s e u d e m im m e sm o ã
com um a-” defesa divina” diante da voz dou; te n h o p o d e r p a r a a d a r e te n h o p o d e r
dos estranhos, de quem deveriam fugir. p a r a re to m á -la . E s te m a n d a m e n to re c e b i de
Estas afirmações, plenas de simbolis­ m e u P a i.
mo, dos versos 1-5, são consideradas
uma parábola, como as dos Sinópticos A mente hebraica gostava de tomar
(cf. Mar. 4:13), à qual os ouvintes de_ uma imagem familiar, tirada~d'a vidà
Jesus não entenderam. Apesar de per- comum, e meditar sobre as muitas for­
fceberem claramente o que era dito sobre mas pelas quais se assemelhava às rea­
ás ovelhas, não puderam apreender o que lidades do campo espiritual. Diante da
lera dito sobre eles mesmos. Curiosameií inesperada falta de compreensão, por
reT o termo empregado aqui (paroimia, parte dos seus ouvintes, tomou Jesus à
figura) não aparece nenhuma vez nos cena pastoril, pintada nos versos 1-5,
Sinópticos, enquanto o termo para eles e começou a fazer paralelos com a si­
familiar (parabole, parábola) nunca apa­ tuação religiosa em que ele se encontra­
rece em João. Os dois, no entanto, se va. Dois, aspectos principais podem ser
relacionam ao termo hebraico mashal, destacados para consideração:
a. Eu Sou a Porta (v. 7-10) 12:10; 23:1,2; Zac. ll:15-17).{Jesu§Jdo
O simbolismo da porta, introduzido na mesmo modo que em João 9 quando
pequena parábola referente às ovelhas foi tão severo com os descrentes quanto
Isaías, aqui foi tão duro na condenação
(v. l-3a), era altamente sugestivo, devido u
ao seu amplo uso no Velho Testamento Í ) do ministério mal exercido quanto Eze-
(exemplo: Gên. 28:17; Sal. 78:23), na quiel. Todos que contavam com o bem-
literatura apocalíptica judaica (exemplo: S estar espiritual dos outros deveriam su­
Testamento dê Eêvi 5: í; cT^Ãpoc. 4:1), portar a sóbria verdade de que “daquele
no mundo helénico (exemplo: mitologias 0 a quem muito é dado, muito se lhe re­
gnósticas) e nos ensinos de Jesus (exem- quererá” (Luc. 12:48).
plo: Mat. 7:13,14; cf. João 1:51; Apoç_ b. Eu Sou o Bom Pastor (v. 11-18)
3:7,8). Faz-se aqui duas aplicações nas
Em face da mudança repentina de
quais a função de Jesus f associada não simbolismo. neste poTitor alguns comen-
ao pastor, mas ao portão e seu guarda.
taristas sentem-se obrigados a explicar o
_ ^o.vgrsç^S, Jesus regula o acesso dos modo como (ffêsus) podia ser uma porta
pastore|^às!Ovgl^SrênqüãStoriõ e um pastor, diante do fato de que na
regula o acesso das ovelhas ao aprisco e Palestina antiga o pastor geralmente dor­
ãÕlfastoT^EnTõütras palavras. Cristov mia à porta do curral. para regular o
sozinho controla o ministério e a_mem- tráfico de entrada e saída. Estas expli­
Jã Igreja. Enquanto qs dirigen- cações não são, entretanto, necessárias,
íÕTsrãêTrecebiam suas creden- -» uma vez que temos aqui uma série de
_---------------------------------------------
ciais através da nérança (sacerdotes, reis)yV reflexões sobre a vida pastoral, na qual
e pela ordenação humana (rabinos), os , vários aspectos da imagem slo escolhidos
Hdejes _do^ngxQ lsrael_sã° admitidos ao em função da luz que trazem sobre a
serviço apenas por Cristo. Semelhante- obra de Jesus. Em outras palavras, _a
mente, enquanto se conseguia entrar no C realidade que se descreve era maior que"a
T

velho Israel por meio da circuncisão, sa­ sua, analogia , terrena. Os homens são
crifício e fidelidade à Lei, pode-se entrar mais do que ovelhas e Jesus era miais qp
no novo Israel somente por mim, isto que pãsTõr, pelò que o seu ministério não
é, atra^Í~^ãjre~ggssoal em^Crisjo. Ao TvalidaHõpor seguir a prática pastoral,
Jesus prometer que todos quantos acei­ mas, antes, a ilustração se aplica naque-
tassem-no seriam salvos, afirmou reali­ \les pontos que se encaixam em sua vida.
zar a obra suprema de Deus. Tal salva-
_______ Isto fica bem claro na(prímeirã~Ipficã-
ção não é uma possessão estática, mas ■ çg.ó) do símbolo do bom pastor a Jesus,
uma peregrinação dinâmica: entrara e Jõm o~ íq ^ Q u è^ T a vidã j^ías^ovelhas.
sairá e encontrará pastagem de vida, que É fato que proteger um rebanho inclefe-
ele providenciará de modo abundante. so, num campo aberto, pode envolver um
Entretanto, são tão grandes as bên­ extremo perigo, devido aos animais fero-
çãos que sobrevêm ao rebanho^messiâ^ zês~(cf.TSam. 17:34,35).TS"demais, como'"
nico, por meio de lésúsT'que parece cruel Hfpequena parábola do mercenário e do
Apouco caridoso contrastar todos os lí­ lobo deixa claro, um proprietário cuiol
deres religiosos que vieram antes dele capital esteja em risco cuidará para que \
como ladrões e salteadores, cujo único um empregado que só tem a perder o I
propósito era roubar, matar e destruir. sãlãrio dõ dia não o prejudique, fugindo. |
Esta acusação deve ser compreendida em i Ó paralelo pastoral daí decorrente é rele-
seu contexto bíblico, devendo ser com­ vante^T Sm S^oli^ a v a ^a sua. vidaJLdis-
parado com as denuncias, igualmente posição” , arriscando-se no perigo (exem­
duras, sobre os falsos líderes do velho plo: 11:7-16), enquanto o profissional da
Israel (exemplo: Ez. 34:2-10; Jer. 10:21; religião demonstrava pouca preocupação
para com o homem comum, já assolado Esta exposição conclui pela ênfase com
pelas devoradoras forças"do mal (cf. que sua imagem mais forte, a morte do
Mat. 10:16; At. 20:29; I Ped. 5:8). pastor, é posta~nõ rela^nàm enl:o"êntre
Neste ponto, porém, a analogia se Jêsus~e seu Pai. Embora um pastor ter­
quebra, porque nenhum pastor prontifi- reno jjudesse acidentalmente perder sua j ',
cava-se para morrer por seu rêbânHo vida numa emergência. Jesus decidiu dar ^
como Jesus o fizera pelos homens. Ao a sua vida deliberadamentè7Lõng£de ser
proteger o rebanho do perigo, a preo- ‘ãtacàdõ repéntinamente por algum ini-
cupação básica era evitar que~as ovelhas imgo~morteÍ7~^nía^eÍe^poder para dar
fossem tosquiadas e/ou mortas. Jesus sua própria vida, desde que quisesse.
não levava os homens a uma boa pas- Sobretudo, diferentemente de qualquer
tagem, para engordâ-los para o abate, pastor humano. ^fesuTTãmbém tinha o
mas para que pudessem ter vida, e vida poder para retomar sua víáã~.~Elé não
em abundância. perderia sua vida por estar desesperado,
Esta imagem de um jjastorjKicri%ial mas por ser obediente, certô~dê~qüe Deui
(dou a minha vida aparece quatro ve­ honraria esta obediência na vitória de
zes nos v. 11-18), não vem nem da prá­ jsua ressurreição. Paradoxalmente, en- J
tica palestinense nem da formação ve- tão, seu sacrifício de autodoação era vo^j
terotestamentária. mas é uma contribui­ luntário (de mim mesmo) e ao mesmo j
ção original de Jesus, para uma com­ tempo um mandamento que receSefãj3e
preensão do papel do bom pastor, para o seu Pai. Jesus encontrava ümãT perfeita |
qual não há uma analogia completa com Jiberdade ao ceder à soberania de Deus. J
o campo da agropecuária.
A /Segunda aplicação) do modelo do 3) A Separação Entre Ovelhas Verda­
bom pastor reside no conhecimento re­ deiras e Falsas (10:19-21)
cíproco entre o pastor e as ovelhas, asso­ 10 P o r c a u s a d e s s a s p a la v r a s , h o u v e o u ­
ciado, aqui, ao vinculo íntimo entre Jesus t r a d isse n sã o e n tr e os ju d e u s . 20 E m u ito s
e seu Pai. Muito embora(Jesus mesipo se d eles d iz ia m : T e m dem ônio, e p e rd e u o
considerasse integrante do aprisco do ju ­ ju ízo ; p o r q u e o e s c u ta is ? 21 D iz ia m o u tro s:
daísmo (cf. v. 3 e 4), este era apenas o E s s a s p a la v r a s n ã o sã o d e q u e m e s tá e n d e ­
m o n in h a d o ; p o d e p o rv e n tu ra u m dem ônio
início do cumprimento de uma esperança a b r ir o s olhos a o s ceg o s?
futura, de que um dia o disperso reba­
nho de Deus seria unido. Diferentemente Ezequiel 34 reconhecera que o reba­
da expressão veterotestamentária desta nho seria ameaçado não apenas por ini­
esperança (exemplo: Ez. 34:23,24; Miq. migos externos e por falsos pastores in­
2:12; Jer. 23:3) contudo, Jesus romperia ternos, mas também pelas más ovelhas:
os limites do judaísmo até outras ove­ “com o lado e com o ombro dais empur­
lhas, que não eram deste aprisco, e con- rões, e com as vossas pontas escomeais
duzi-las-ia também no mesmo rebanho, todas as fracas, até que as espalhais para
criado por ele como único pastor (cf. fora” (v. 21; cf. outra expressão, neste
11:52). Já que esta unificação futura mesmo sentido, em Mat. 7:13-23). No
(haverá) aconteceria como decorrência arrisco onde Jesus trabalhava, houve
de sua morte (v. 15b; cf. 12:20-32), ob­ uma dissensão entre os judeus, de um
viamente seus seguidores deveriam levá- lado estando aqueles que insistiam na
la a efeito pela terra. Sua missão aos acusação de possessão demoníaca (cf.
gentios, entretanto, era vista como uma 7:20; 8:48,52) e, de outro, aqueles que se
obrã tlo próprio Jesus (me importa con­ lembravam que ele abrira os olhos ao
duzir), que tinha encontrado outras ove- cego(cf. 9:16).
Ihas fora deste aprisco, tanto en^Samária ) Ê impressionante rever aqui aquelas
(4:1-42) como na(GaïïïeH^4:43-54). respostas estereotipadas que nada mais
fazem do que perpetuar as primeiras Ao falar, Jesus respondeu que já lhes
reações diante de Jesus. Independente­ declarara sua identidade e missão através
mente do que ele ensinava, os debates das obras messiânicas que fazia em nome
eram ferozes, tendo de um lado aqueles de seu Pai (cf. 5:36), mas eles não cre­
que se escandalizavam com sua intimi­ ram (cf. 5:16;7:3-5;9:16,24). Já que ti­
dade com Deus e, de outro, aqueles que nham interpretado equivocadamente es­
ficavam impressionados com suas opera­ tas obras de misericórdia, mais dificil­
ções de poder. Nenhuma das facções mente ainda interpretariam afirmações
parecia se preocupar com pungente an­ explícitas — principalmente porque o
tecipação de sua paixão, nunca anuncia­ conceito em torno do Cristo, no pensa-
da de modo tão explícito quanto agora. mento judaico, não incluía a noção de
Nenhuma parecia pronta para reavaliar sofrimento e morte, central no pensa- .
a liderança religiosa do judaísmo e in­ mento de Jesus Cv. 11-18). O problema
dagar se ela estava realmente protegendo crucial nesta falha de comunicação esta-
o povo de Deus contra seus inimigos va na falta de compromisso: eles não
mortais. Como se vê, era muito fácil fugir criam porque n$o pertenciam, isto é, não
às questões reais, limitando os debates à eram ovelhas de Jesus.
repetição de fórmulas gastas. Para contrastar, Jesüs descreveu cui­
dadosamente o que significa ser suas
4) A Obra do Bom Pastor (10:22-30) ovelhas, e, ao fazê-lo, ofereceu um re­
22 C e le b ra v a -se , e n tã o , e m J e r u s a lé m a
sumo de suas obras em nome do Pai.
fe s ta d a d e d ic a ç ã o . E e r a in v e rn o . 23 A n d a ­ Na dinâmica do discipulado, quatro ele­
v a J e s u s p a ss e a n d o no tem p lo , n o p ó rtico de mentos foram identificados: (1) As ove­
S alom ão. 24 R o d e a ra m -n o , pois, os ju d e u s e lhas ouvem a voz do pastor; isto é, estão
lhe p e rg u n ta v a m : A té q u a n d o n o s d e ix a r á s abertos à mensagem do evangelho.
p erp lex o s? Se tu é s o C risto , dize-no-lo a b e r ­
ta m e n te . 25 R espo n d eu -lh es J e s u s : J á vo-lo (2) Por estarem desejosas de ouvir, sa­
d isse, e n ão cre d e s . A s o b ra s que e u faç o e m bem que Jesus as “conhece” ; isto é, ele é
n om e de m e u P a i, e s s a s d ão te ste m u n h o sensível às suas necessidades individuais.
d e m im . 26 M a s vós n ão c re d e s , p o rq u e n ão (3) Convictas de que ele cuida e pode
sois d a s m in h a s o v elh as. 27 A s m in h a s o v e ­
lh a s o u v em a m in h a voz, e eu a s conheço,
ajudar, seguem-no num relacionamento
e e la s m e se g u e m ; 28 e u lh e s dou a v id a pessoal de confiança. (4) Nesta peregri­
e te rn a , e ja m a is p e re c e r ã o ; e n in g u é m a s nação, ele “dá” a vida eterna, que ne­
a r r é b e ta r á d a m in h a m ã o . 29 M eu P a i, q u e nhum inimigo pode destruir (cf. Luc.
m a s d eu , é m a io r do q u e to d o s; e n in g u ém 12:32). Observe-se o belo equilíbrio al­
pode a rr e b a tá - la s d a m ã o d e m e u P a i.
S0 E u e o P a i so m o s u m . , cançado aqui, entre a iniciativa humana
e a divina: as ovelhas ouvem, ouvem e
A revelação da completa dedicação de seguem, enquanto o pastor “conhece” e
Jesus à vontade do Pai serviu de con­ “dá” . Nós ouvimos, ele fala; nós pergun­
texto próprio para o anúncio de que tamos, ele sabe; nós seguimos, ele con­
a festa judaica da dedicação se celebrava duz; nós recebemos, ele dá.
em Jerusalém. O frio do inverno (de­ Como Jesus trabalhava como represen­
zembro) levou Jesus a procurar abrigo tante de Deus, seu rebanho goza conti­
no pórtico de Salomão, onde os judeus, nuamente da proteção divina, diante dos
também de corações frios, o rodearam. líderes falsos, que querem arrebatá-lo
Tomando seu discurso simbólico sobre o (como em 9:24-34). Entre o rebanho e
bom pastor como uma mensagem velada todos os seus inimigos permanece o des­
ou misteriosa, para deixá-los perplexos temido Pastor, como fortaleza de segu­
(em suspense), exigiram de Jesus que fa­ rança. Estar em sua mão é também
lasse abertamente se era o Cristo (cf. estar na mão do Pai, porque os dois são
Luc. 22:67). um. A unidade aqui afirmada não é uni-
dade metafísica de ser nem uma unidade los, nesse nível, com um argumento ad
mística de emoção e nem mesmo uma hominem dé suas (deles) próprias Escri­
unidade moral de vontade. Antes, neste turas. Na lei (VT) estava escrito... Eu
contexto, a referência é uma unidade disse: Vós sois deuses (cf. Sal. 82:6).
harmônica de poder e interesse, da qual Visto que, conforme os seus opositores
os seguidores de Jesus podem depender, insistiam, a Escritura não pode ser anu­
para se salvar da destruição por parte dos lada (isto ê, cada palavra deve permane­
seus inimigos (cf. Mat. 16:18). Observe- cer), isto tornava necessário que se to­
se o equilíbrio teológico refletido nesta masse em consideração o fato de que o
simples frase. Deus e Jesus s3o (plural) próprio Deus chamou, em Salmos 82,
duas pessoas, sem serem idênticas, uma os homens de deuses, possivelmente por­
vez que são um (singular) e, por isto, que eles eram juizes, a quem a palavra
inseparáveis. de Deus foi dirigida, para ser usada por
eles na administração da justiça. Se as­
5) A Personalidade do Bom Pastor sim era, por que seria Jesus culpado de
(10:31-39) blasfêmia, uma vez que tinha se referido
31 Os ju d e u s p e g a ra m e n tã o o u tr a ve* e m a si mesmo não como um desses “deu­
p e d ra s , p a r a o a p e d r e ja r . 32 D isse-lh es J e ­ ses” , mas apenas como o Filho de Deus?
sus : M u ita s o b ra s b o as d a p a r te d e m e u P a i Acima de tudo, ele não era um juiz
vos ten h o m o s tra d o ; p o r q u a l d e s ta s o b ra s injusto, semelhante àqueles homens cha­
id es a p e d re ja r-m e ? 33 R e sp o n d e ra m -lh e os
ju d e u s : N ão é p o r n e n h u m a o b ra b o a que
mados de deuses no Salmo (cf. 82:2),
v am o s a p e d re ja r-te , m a s p o r b la s fê m ia ; e mas era aquele a quem o Pai santificou, e
p o rq u e, sendo tu h o m em , te fa z e s D eu s. enviou ao mundo.
34 T ornou-lhes J e s u s : N ão e s tá e sc rito n a Aprofundando seu sentido, esta pe­
v o ssa l e i : E u d is s e : Vós sois d e u se s ? 35 Se a quena peça de exegese rabínica (ativida­
lei ch a m o u d e u se s à q u e le s a q u e m a p a la v r a
d e D eus foi d irig id a (e a E s c r itu r a n ã o pode de para a qual os judeus, em 7:15, acha­
s e r a n u la d a ), 36 à q u e le a q u e m o P a i s a n ­ vam que Jesus não estava apto!) deixa
tificou, e enviou a o m u n d o , d izeis v ó s: B la s ­ implícito o argumento a fortiori, segundo
fe m a s; p o rq u e e u d is se : Sou filho d e D eu s? o qual, se a divindade podia ser atri­
37 Se n ã o faço a s o b ra s d e m e u P a i, n ã o m e
a c re d ite is . 38 M as, se a s faço , e m b o ra n ã o buída àqueles que foram os recipientes
m e c re ia is a m im , c re d e n a s o b ra s ; p a r a da palavra no Velho Testamento, quanto
que e n te n d a is e sa ib a is q u e o P a i e s tá e m mais apropriada era para aquele que
m im e e u no P a i. 39 O u tra vez, p o is, p r o ­ sempre fora a Palavra (1:1). Deste modo,
c u ra v a m p re n d ê -lo ; m a s e le lh e s e sc a p o u
d a s m ã o s.
se os judeus regozijavam-se por perpe­
tuarem um festival religioso em homena­
Outra vez (cf. 8:59) como reação à sua gem à dedicação do seu Templo, pelo
afirmação de ser “um” com Deus, os guerreiro Judas Macabeu, por que não
judeus pegaram em pedras para apedre­ estavam prontos para honrar ainda mais
jar Jesus, culpado, segundo eles, de blas­ uma vida “dedicada” (hagiazõ) pelo pró­
fêmia (Lev. 24:16). Recusando-se a com­ prio Deus?
preendê-lo à luz de suas muitas boas Para ser mais preciso, numa espécie de
obras, cuja fonte estava apenas no Pai, argumento ad hominem, a defesa de
tomaram suas palavras, registradas no Jesus visava mostrar aos judeus a loucura
verso 30, fora do contexto, e as interpre­ de tomar suas palavras fora de seu cená­
taram literalmente, concluindo que ele, rio próprio, que não fosse em relação às
sendo homem, tentava fazer-se Deus. suas obras. Quem quer que examine o
Se os judeus estavam interessados ape­ contexto de Salmos 82, logo verá que as
nas no significado superficial das pala­ palavras ali não querem dizer realmente
vras, sem considerar o seu significado que os homens são “ deuses” (cf. v.7).
mais profundo, Jesus podia confrontá- Do mesmo modo, quem quer que visse
todo o ministério de Jesus, veria que ele tima palavra é enfática: ali, além do
não era um homem tentando fazer-se Jordão, e não em Jerusalém, Jesus en­
Deus — ou qualquer coisa parecida. Ao controu a fé simples (cf. 3:26), entre
contrário, ele era Deus feito homem e aqueles que tinham sido preparados por
enviado para realizar suas obras. Se seus João Batista (cf. 1:6-8, 19-34; 3:25-30;5:
adversários não podiam, de princípio, 33-35). Diferentemente de Jesus, João
entender seu relacionamento com o Pai, não operara qualquer milagre (não fez
podiam pelo menos crer nas obras (cf. sinal algum), mas o que dissera sobre
v. 25) do Pai que ele operava, e, deste Jesus tinha poder porque era verdadeiro.
modo, começar a conhecer (gnóte) e pro­ (Note-se o paralelo com 4:39-42, em que
gressivamente compreender (ginõskéte) os samaritanos confirmaram um teste­
a mútua existência do Pai e do Filho. munho secundário sobre Jesus, por uma
Mas, lamentavelmente, não havia qual­ experiência direta com ele.)
quer desejo neste sentido, nem mesmo O fato de Jesus ter escapado das unhas
para dar o primeiro passo e crer naquilo de seus inimigos (v. 39) significava que
que seus olhos viam; por isso, Jesus se viu qualquer decisão de voltar às tensões de
forçado a escapar das suas mios (con­ Jerusalém era algo absolutamente pro­
fronte os v. 38 e 39!) para não ser preso. duto de sua vontade. Nenhuma tentação
poderia ser mais forte do que permanecer
6) A Retirada Para Além do Jordão onde era aceito — afinal de contas, não é
(10:40-42) melhor trabalhar onde há mais chance
de sucesso? Os dois capítulos seguintes
40 E re tiro u -se d e novo p a r a a lé m do J o r ­
dão, p a r a o lu g a r onde Jo ã o b a tiz a v a no demonstrarão que Jesus deixou o santuá­
p rin c íp io ; e a li ficou. 41 M uitos fo ra m te r rio da região rural, para “ dar sua vida”
com e le , e d iz ia m : Jo ã o , n a v e rd a d e , não aos que eram seus na cidade.
fez sin a l a lg u m , m a s tu d o q u a n to d isse d e ste
h o m em e r a v e rd a d e iro . 42 E m u ito s a li c r e ­
ra m n ele. III. A Rejeição do Revelador
Estes versos assinalam a conclusão não (11:1-12:50)
só deste capítulo, mas de João 5 a 10.
Agora que a capacidade de resistência O “livro dos sinais” (cap. 2-12) mostra
dos judeus tinha chegado ao fim, Jesus a estirpe do Redentor, que “veio para o
retirou-se de Jerusalém para o leste além que era seu, e os seus não o receberam”
do Jordão, para o lugar (Betânia?) onde (1:11). Depois de uma recepção inicial
João batizava no princípio (cf. 1:28; (cap. 2-4) e de uma resistência crescente
3:26). Como tinha em mente alcançar os (cap. 5-10), seu ministério público alcan­
judeus de Jerusalém por fim, Jesus ficou çava agora o terceiro e último estágio, de
naTransjordânia, possivelmente durante franca rejeição (cap. 11 e 12). Esta uni­
os meses de inverno, entre a festa da dade funciona como o clímax da primei­
Dedicação, em dezembro (10:22), e o ra metade do Evangelho e como a prepa­
princípio da estação da Páscoa, em mar­ ração para o “livro da paixão” , na se­
ço (11:54,55). Talvez, ele procurasse gunda metade. Desse modo, representa o
compensar o seu retumbante fracasso ao interregno literário em que toda a trama
buscar alcançar os seus, revolvendo sua do livro se estrutura.
peregrinação espiritual ao lugar onde Pelo menos três elementos refletem a
começara com tanto sucesso (3:26). função destes capítulos como conclusão a
Ironicamente, a obstinada increduli­ João 2-12. Primeiro, o momento histó­
dade encontrada por Jesus na Cidade rico é contrastado com a Páscoa judaica
Santa contrastava com os muitos que (11:55;12:1), do mesmo modo como
foram ter com ele e creram nele. A úl­ ocorrera no final das duas unidades an-
tenores (cf. 2:13;6:4). Este triplo ciclo realidades, aparentemente contraditó­
pascoal não serve para indicar a extensão rias: (1) de uma perspectiva histórica, os
do ministério público de Jesus, valendo, homens levaram Jesus a morrer tragica­
porém, como um artifício literário, para mente, devido à forma como viveu para
dar unidade e simetria ao arranjo do Deus; (2) de uma perspectiva eterna,
material contido em João 2-12. Ademais, Deus levou Jesus a morrer triunfalmente,
a crescente oposição judaica, na forma devido à forma como morreu para os
de tentativas espontâneas para eliminar homens. O leitor é convidado a se apro­
Jesus (ex.: 5:18;7:25,32;8:59;10:31,39), priar deste paradoxo pela fé e a perce­
desemboca aqui numa decisão mais for­ ber, em sua própria experiência, que,
mal, por parte do conselho formado para se historicamente o crente é chamado
matar Jesus (11:53). Por fim, o contra- a morrer por um viver verdadeiro, eter­
tema de Jesus como “vida” , já antecipa­ namente é chamado para viver por um
do no prólogo (1:4), ilustrado em João morrer verdadeiro.
2-4 (especialmente 4:46-54) a explicado Paralelo a este paradoxo da vida-atra-
em João 5-10 (particularmente 5:19-29), vés-da-morte, dos capítulos 11 e 12, é o
recebe, aqui, uma expressão definitiva, paradoxo relacionado à aceitação-atra-
nas palavras e nos atos manifestos por vés-da-rejeição. De um lado, muitos ju ­
Jesus na ressurreição de Lázaro (11: deus recusaram-se a crer, mesmo diante
1-44). da ressurreição de um morto (11:45-54).
Estes mesmos três elementos de João A traição de Judas representava um pro­
1-12 também introduzem, de modo efi­ testo aberto (12:4-6). Jesus comparava
caz, o leitor nos capítulos restantes do sua vida a uma simples semente plantada
Evangelho, em 13-20. A celebração da no solo (12:24). Por fim, “escondeu-se
Páscoa (11:55; 12:1) dá categorias nor­ deles” (12:36) e enfrentou sozinho as
mativas, a partir da história de Israel, trevas da rejeição (12:39-43). Por outro
pelas quais se pode compreender a morte lado, sua morte reunia os dispersos filhos
de Jesus (13:1) ocorrendo ao mesmo tem­ de Deus (11:52). A ressurreição de Lá­
po que os cordeiros sacrificiais eram aba­ zaro não somente provocou a condena­
tidos no Templo no dia da preparação ção de Jesus, mas levou o “mundo in­
para a Páscoa (19:14,31; cf. I Cor. 5:7). teiro” a ir após ele (12:19), inclusive os
Novamente, a determinação do sinédrio, gregos (12:20,21). A semente que mor­
em destruir Jesus (11:53), assinala o fim resse, resultaria em “muito fruto” (12:
de sua “provação pública” nos capítulos 24). A cruz da vergonha atrairia “ todos”
anteriores (cf. o comentário sobre 1:19- a Jesus (12:32). Em poucas palavras, a
28) e termina com a sua partida para rejeição por parte de Israel propiciaria
o Pai (cap. 13-17), ao ser crucificado a oportunidade para a aceitação por par­
(cap. 18 e 19). De modo sublime, a res­ te dos gentios (cf. Rom. 11:11-32). Deus
surreição de Lázaro antecipa a ressurrei­ reduziu seu povo a um remanescente não
ção de Jesus (cap. 20 e 21), com o que o para que sua causa fracassasse, mas para
Evangelho se completa. Até aqui, a que os poucos pudessem ser muitos. É
“hora” de Jesus ascender, através da cru­ por isso que, enquanto aumentava a es­
cificação e da ressurreição, não havia perança pela inclusão de outras nações
chegado (2:4;7:30;8:20), mas agora esta­ crescia também o desapontamento dian­
va se aproximando (12:23,27). te da auto-exclusão dos judeus.
Como João 11 e 12 é ao mesmo tempo
1. Jesus, a Ressurreição e a Vida
uma síntese da vida de Jesus e uma an­
(11:1-54)
tecipação de sua morte, a perspectiva
teológica desta parte é altamente para­ A ressurreição de Lázaro, longe de ser
doxal. Uma vez mais, afirmam-se duas um incidente isolado, tem íntima rela­
ção com ocorrências semelhantes, rela­ contém retratos fiéis de pessoas conheci­
tadas no período bíblico. 29 Na maioria das a partir de outras fontes (compare,
destes relatos, entretanto, aquele que por exemplo, os v. 1,2,5,20,28,29,32 e
curava não se envolvia pessoalmente nas 12:1-3 com Luc 10:38-42), bem como
tragédias, mas funcionava, de certo nomes de lugares específicos (v. 1 e 18),
modo, como um canal passivo, do poder além de oferecer numerosos testemunhos
divino, na concessão da vida à pessoa, (v. 45,46; cf. 12:1,2,17). De modo ine­
geralmente estrangeira, desse modo, quívoco, entendia o autor este registro
nada ou pouco resultava de sua atuação não apenas como de verdades eternas,
pessoal. Ao contrário, João 11 enfatiza mas de natureza histórica, que culmina­
a profunda preocupação de Jesus pelo vam com a morte de Jesus (veja-se as co­
seu querido amigo Lázaro (v. 3,5,11,36), nexões entre os v. 1-44 e os v. 45-54).
como seu próprio destino estava em jogo A narrativa de Lázaro não é nem mais
na cura (vf. 33,35,38,45-53) e as impli­ nem menos teológica e histórica do que
cações do milagre para uma compreen­ outras histórias miraculosas do Quarto
são de sua natureza e missão (v. 4,15, Evangelho.
25-27). Mas se o Evangelho pretende nos levar
Um estudo comparativo entre João 11 à compreensão de que Lázaro saiu lite­
e seus paralelos bíblicos e extrabíblicos ralmente da tumba, por que dar ênfase
sugere que, na ressurreição de Lázaro, a à reação negativa a tal acontecimento
originalidade de Jesus reside não no que (v. 45-54)? Tão difícil quanto imaginar
ele fez, mas no significado que lhe deu que Lázaro venceu a morte seria conce­
(v. 25). O milagre realmente é pouco ber que alguém que presenciasse tal
referido (v. 43 e 44), acabando tão acontecimento não sucumbisse diante de
abruptamente quanto começou. De fato, tanta maravilha. Assim, o registro afir­
apesar da total ausência de estilização ou ma explicitamente que o milagre dividiu
sensacionalismo, têm alguns sugerido as testemunhas entre crentes e incrédulos
que a história de Lázaro é uma narrativa (v. 45 e 46). De imediato, os inimigos de
não-histórica, criada a partir da Parábo­ Jesus tramaram sua morte, não apesar
la do Rico e de Lázaro, de Lucas 16:19- do que ele fez, mas por ter feito (v. 47 e
31, ou da imaginação teológica do evan­ 48). Muitos, hoje, tem problemas por
gelista. estarem certos de que Lázaro não saiu da
tumba, mas muitos que estiveram lá ti­
Pode-se garantir que o Evangelho de
veram problemas por estarem certos de
João contém histórias simbólicas como
que ele saiu!
a “parábola” (10:6) das ovelhas e do
Pelo menos quatro fatores explicam
pastor de 10:1-5. Esse relato não precisa
como um evento tão incrível deixou os
ser uma descrição literal de algum even­
homens livres para a fé ou para a incre­
to histórico para que as verdades espi­
dulidade: (1) Foi apenas uma volta tem­
rituais de 10:7-18 sejam reais, mas 11:1-
porária à existência terrena, uma vez que
44 é de outra natureza. Por exemplo,
Lázaro morreu outra vez. (2) Foi um
29 Note-se as referências no Velho Testamento (I Reis acontecimento isolado, que afetou so­
17:17-24; II Reis 4:18-37; 13:20-21), na literatura ra- mente um homem, já que ninguém mais
bínica (Midrash Rabbah sobre Levitico, X, 4; Abodah
Zarah 10 e Megülah 7 no Talmude Babilónico), saiu das tumbas naquele dia. (3) Foi a
nos escritos helenísticos (Filostrato, Vida de Apolônio, volta de alguém recentemente morto e
IV, 45; Luciano, Phüopseudes, 25; Plínio, História
Natural, VII, 37), nos Evangelhos Sinópticos Mar.
não de alguém morto havia vários meses
5:22-43; Luc. 7:11-17; cf. Mat. 11:5) e na história da ou anos. (4) Levou à retomada de uma
igreja primitiva (At. 9:36-43;20:9-12). Para maiores forma anterior de vida, porque nada fora
detalhes, veja H. van der Loos, The Miracles of Jesus,
“Supplements to Novum Testamentum” (Leiden, E. J. mudado para criar um novo céu ou uma
Brill, 1965), p. 559-566. nova terra, para seu deleite.
Desse modo, mesmo que este evento Em outras palavras, Lázaro era apenas
seja aceito no seu real valor, seu signifi­ um sinal da ressurreição, enquanto Jesus
cado poderia ser interpretado, obviamen­ era a própria realidade. O primeiro ho­
te, numa forma que dificilmente inspira­ mem a ser verdadeiramente ressuscitado
ria fé. Os inimigos de Jesus devem ter dentre os mortos não foi Lázaro, mas
argumentado que, ainda que ele fosse Jesus (I Cor. 15:20). Lázaro voltou ao
capaz de providenciar uma libertação tempo das limitações da existência terre­
temporária da tumba, não significava na, experimentando a morte outra vez
isto apenas um adiamento do triunfo (12:10), ao passo que Jesus triunfou so­
final da morte? Já que os mortos geral­ bre a morte, transcendendo para sempre
mente permanecem em seus túmulos, a o domínio desta sobre a vida (Rom. 6:9).
emergência de uma exceção solitária le­ Por isso, foi Jesus, e não Lázaro, quem
varia a maioria dos homens a crer que se apresentou como a “ressurreição e a
poderiam ser igualmente felizes? Reco- vida” (v. 25). Quando Lázaro deixou
nhecia-se que a centelha de vida podia a sepultura, nada tinha para oferecer
permanecer por poucos dias dentro da­ ao mundo, a não ser o testemunho de um
quele que dava toda a aparência de estar novo período na vida, que apontava para
morto, mas que esperança havia para Jesus, como sua fonte. Somente Jesus, e
aquele cujo corpo tivesse sido reduzido a não Lázaro, poderia suscitar uma fé
pó? E, por fim, é uma perspectiva real­ capaz de ver em Lázaro mais que uma
mente promissora voltar ao mesmo velho maravilha médica e crer que ele signi­
conjunto de problemas que se enfrentou ficava a possibilidade de vida eterna.
durante a vida anterior?
Estas considerações sugerem que o 1) A Morte de Lázaro (11:1-16)
episódio de Lázaro foi interpretado como 1 O ra , e s ta v a e n fe rm o u m h o m e m c h a ­
um sinal (v. 47), destinado a fortalecer m ad o L á z a ro , d e B e tâ n ia , a ld e ia d e M a r ia e
a fé (v. 15), mais do que a servir como d e su a ir m ã M a rta . 2 E M a ria , cu jo irm ã o
uma prova indiscutível de que seu signi­ L á z a ro se a c h a v a en fe rm o , e r a a m e s m a
ficado pudesse ser amplamente percebi­ que u n g iu o S en h o r co m b á ls a m o , e lh e
enxugou os p é s co m os se u s c a b elo s. 3 M a n ­
do por todos que dele participassem. d a ra m , pois, a s ir m ã s d iz e r a J e s u s : S en h o r,
Como sinal, o acontecimento não apon­ eis que e s tá e n fe rm o a q u e le q u e tu a m a s .
tava diretamente para o significado da 4 Je s u s , p o ré m , a o o u v ir isto , d is s e : E s ta
ressurreição, mas apenas fornecia uma e n fe rm id a d e n ã o é p a r a m o rte , m a s p a r a
g ló ria d e D eu s, p a r a q u e o F ilh o d e D eu s
analogia terrena sobre ela, de modo que s e ja g lo rificad o p o r e la . 5 O ra , J e s u s a m a v a
este evento poderia ser melhor definido a M a rta , e a su a ir m ã , e a L á z a ro . 6 Q uando,
como a restauração física de Lázaro. pois, ouviu que e s ta v a e n fe rm o , ficou a in d a
O Quarto Evangelho mesmo preocupa- dois d ia s no lu g a r o nde se a c h a v a . 7 D epois
se em estabelecer esta distinção, ao com­ d isto, d isse a se u s d is c íp u lo s: V am o s o u tra
vez p a r a a J u d é ia . 8 D isse ra m -lh e e le s :
parar a ressurreição de Lázaro com a de R a b i, a in d a a g o ra os ju d e u s p ro c u ra v a m
Jesus: (1) Lázaro saiu apenas depois que a p e d re ja r-te , e v o lta s p a r a lá ? 9 R e sp o n d eu
alguns homens tiraram a pedra da porta J e s u s : N ão sã o doze a s h o ra s do d ia ? Se
de sua tumba (v. 39 e 41), enquanto a lg u é m a n d a r de d ia , n ã o tro p e ç a , p o rq u e vê
a luz d e ste m u n d o ; 10 m a s se a n d a r d e n o ite,
Jesus não necessitou de semelhante ajuda
tro p e ç a , p o rq u e n ele n ã o h á luz. 11 E , ten d o
humana (20:1); (2) Lázaro saiu amarra­ a s s im fala d o , a c re s c e n to u : L á z a ro , o nosso
do em suas vestes tumulares (v. 44), ao am ig o , d o rm e , m a s v o u d e sp e rtá -lo do sono.
passo que Jesus passou através das vestes 12 D isseram -lh e , pois, os d is c íp u lo s: S enhor,
e as deixou para trás (20:6,7); (3) Lázaro se d o rm e , fic a r á b o m . 13 M a s J e s u s f a la r a
d a su a m o r te ; e le s, p o ré m , e n te n d e ra m que
voltou ao seu convívio terreno (12:1,2), fa la v a do rep o u so do sono. 14 E n tã o J e s u s
diferentemente de Jesus, que ascendeu lh e s d isse c la r a m e n te : L á z a ro m o r re u ;
para o seu Pai, nos céus (20:17). 15 e, p o r v o ssa c a u s a , folgo de q u e e u lá n ão
e stiv e ss e , p a r a q ue c r e i a is ; m a s v a m o s te r aflição e para descobrir a resposta que
co m e le . 16 D isse, pois, T o m é, c h a m a d o satisfizesse às necessidades de seus ami­
D ídim o, a o s se u s c o n d iscíp u lo s: V am o s nós
ta m b é m , p a r a m o r re rm o s com ele.
gos e para estar de acordo com a vontade
de Deus (cf. 2:3-5;7:3-10).
Lázaro, de Betânia é desconhecido, Diferentemente de Jesus, que só visava
nos Evangelhos Sinópticos, o que não a glória de Deus, os discípulos recuaram
acontece com suas irmãs Maria e Marta diante do chamado para salvarem a vida
(veja Luc. 10:38-42). Nos dois lugares, a de outro homem, temendo que isto lhes
imagem que fica é a de uma família custasse a própria vida. No entanto,
dedicada a Jesus, que também lhes ti­ quando Jesus lhes propôs voltarem
nham afeição. As irmãs pressupõem que (Vamos) à Judéia, os discípulos incré-
o Senhor reconhecerá uma referência ao dulamente retorquiram que os judeus
seu irmão — sem menção de seu nome — procuravam apedrejá-lo (cf. 8:59; 10:
como aquele que tu amas (phileõ), en­ 31-33) e, que, portanto, se pensasse em
quanto o evangelista informa que Jesus voltar para lá, não iriam com ele (note-se
amava (agapaò) a Marta, e a sua irmã, o tu, singular, do v. 8). Em resposta,
e a Lázaro (cf. v. 11 e 36). Esta ênfase Jesus comparou seu ministério às doze
suscita a possibilidade da identificação horas de um dia judaico (cf. 9:4,5 e o
de Lázaro com o “ discípulo amado” uso de “meu dia” em 8:56). Assim como
(13:23; 18:15?; 19:26,27; 19:35?;20:2-8; controlava o amanhecer e o entardecer,
21:7;21:20-23;21:24?), já que ele é o Deus também controlava cada momento
único seguidor do qual se diz Jesus tê-lo da vida de Jesus. Mesmo que seu dia
amado (o homem rico de Mar. 10:21 não tivesse chegado já ao fim, usaria o má­
se tornou discípulo). ximo possível das horas do ocaso sem
A mensagem enviada a Jesus (em reti­ tropeçar em seu trajeto, como os homens
ro além do Jordão? cf. 10:40), segundo a fazem quando a noite vence a luz. Desse
qual Lázaro estava enfermo, foi, pos­ modo, arriscar-se-ia a ajudar Lázaro,
sivelmente, um pedido indireto de ajuda sozinho ou acompanhado (note-se o re­
por parte de suas irmãs (note-se o mesmo soluto vou do v. 11).
uso desta afirmação como pedido em
2:3). Como no caso do cego de nascença Desde que tivesse vida, teria também
(9:3), Jesus não viu a enfermidade cor­ vida para caminhar (v. 9). Lázaro, po­
poral como uma tragédia, que redun­ rém, estando morto, dormia na noite e
daria em morte, antes, como uma opor­ precisava que Jesus o despertasse do sono
tunidade para a glória de Deus, se ma­ (cf. Mar. 5:39). Os discípulos acharam
nifestar através do Filho. Como sua afei­ que Jesus estava dizendo que Lázaro
ção pessoal por Lázaro era muito forte, estava no repouso do sono, concluindo,
qualquer esforço no sentido de realizar o então, que poderia ficar bom sem sua
propósito divino poderia ser equivoca- ajuda. Ironicamente, sem o saber, dis­
damente interpretado como um fruto de seram uma grande verdade; pois, diante
uma preocupação exclusivamente hu­ de Jesus, a morte era apenas um inter­
mana. Ademais, Jesus não alcançaria a lúdio reparador, de cujos terrores se
Lázaro antes de sua morte, mesmo que poderia ficar isento (a palavra traduzida
ocorresse imediatamente ao pedido, por ficar bom também significa “ser
como os versos 6 e 17 esclarecem. Ele salvo”). Visto que os discípulos estavam
assim entendendo, a partir do relato incapazes de perceber o profundo sentido
acerca dos sintomas do seu amigo ou de suas próprias palavras, Jesus disse-
por iluminação sobrenatural, demorou- lhes que, na realidade, Lázaro morrera
se ainda dois dias em isolamento, pos­ e que a reação dele, Jesus, ao problema
sivelmente para lutar com o peso de sua fortaleceria mais a fé dos discípulos do
que a presença dele lâ antes da morte do devendo toda a esperança ser abando­
amigo. nada. Segundo, muitos dos judeus das
Diante dessa explicação, Jesus nova­ cercanias de Jerusalém tinham vindo
mente (cf. v.7,15) apelou aos pastores consolar a família, o que talvez indique a
que entregassem suas vidas pelas ovelhas proeminência do defunto. Embora esses
(cf. 10:11-18); Vamos nós (todos) tam­ pranteadores não fossem especialmente
bém. Neste ínterim, o discípulo de nome hostis, em circunstâncias tão delicada
Tomé uma pessoa importante só neste (cf. v. 36 e 37), está claro que mantinham
Evangelho (cf. 14:5;20:24-29) — inter­ estreitos vínculos com a liderança, inte­
pretou a tímida disposição do grupo em ressada em destruir Jesus (v. 45 e 46).
segui-lo (cf. Mar. 10:32). Se fosse neces­ Terceiro, Marta não só estava no meio da
sário, preferiam morrer com ele do que semana do pranteamento que se seguia
viver sem ele. É claro que Tomé falou aos funerais judaicos (não havia tempo
mais a partir de um desespero leal do para chorar antes dos funerais, porque o
que de uma fé madura, embora sua tenaz enterro acontecia no mesmo dia da
ligação a Jesus representasse mais uma morte), como se encontrava absoluta­
expressão autêntica de discipulado do mente frustrada e perplexa diante de
que o entusiasmo superficial daqueles Jesus não ter chegado a tempo de impedir
que se impressionavam com os sinais que que seu irmão morresse.
ele operara. Vencendo, porém, seu desaponta­
mento, M arta deixou o passado para
2) Jesus e Marta (11:17-27) trás, num gesto de contínua confiança
17 C h eg ando, pois, J e s u s , en co n tro u -o j á em Jesus, que parecia traduzir a quase-
com q u a tro d ia s d e se p u ltu ra . 18 O ra , B etâ- esperança de que mesmo agora ele pode­
n ia d is ta v a d e J e r u s a lé m c e rc a d e quin ze ria ajudar. Talvez M arta conhecesse a
e stád io s. 19 E m u ito s dos ju d e u s tin h a m
convicção de Jesus de que o Pai lhe dera
vindo v is ita r M a r ta e M a ria , p a r a a s co n so ­
la r a c e r c a de se u irm ã o . 20 M a r ta , p o is, ao autoridade para ressuscitar os mortos
s a b e r q u e J e s u s c h e g a v a , saiu -lh e ao en c o n ­ (cf. 5:21) e, por isso, sugeriu que ele
tr o ; M a ria , p o ré m , ficou s e n ta d a e m c a s a . rogasse a Deus em seu favor. Esta inter­
21 D isse, p ois, M a r ta a J e s u s : S en ho r, se tu pretação ganha corpo com a resposta de
e s tiv e ra s a q u i, m e u ir m ã o n ã o te r ia m o r r i­
do. 22 E m e sm o a g o ra s e i q u e tu d o q u an to
Jesus a ela de que seu irmão iria ressur­
p e d ird e s a D eu s, D eu s to c o n c e d e rá . 23 R es- gir. Uma afirmação assim tão geral, po­
p ondeu-lhe J e s u s : T eu irm ã o h á d e r e s s u r ­ rém, não bastava a Marta, pois apenas
g ir. 24 D isse-lhe M a r ta : Sei q u e e le h á de significava que Lázaro ressurgiria na
re s s u rg ir n a re s s u rre iç ã o , no ú ltim o d ia . ressurreição no último dia, um ensino
25 D eclaro u -lh e J e s u s : E u sou a r e s s u r r e i­
ção e a v id a ; q u e m c rê e m m im , a in d a que
que qualquer bom fariseu aceitava. Co­
m o r ra , v iv e r á ; 26 e todo a q u e le q u e v iv e , e nhecia ela muito a doutrina da ressurrei­
c rê e m m im , ja m a is m o r r e r á . C rê s isto ? ção final, pois certamente muitos confor­
27 R espondeu-lhe M a r ta : Sim , S en h o r, eu tadores a tinham lembrado disso, só não
c reio q u e tu é s o C risto , o F ilh o d e D eu s, q u e estava certa do modo diferente que Jesus
h a v ia d e v ir a o m undo .
realizaria esta esperança.
Ao chegar a Betânia, Jesus defrontou- A resposta a esta incerteza se resume
se logo com três problemas: Primeiro, na fórmula maior: Eu sou (egõ eimi).
Lázaro encontrava-se já com quatro dias Jesus mesmo encarnou a realidade do
de sepultura. Na crença popular judaica, último dia já agora neste tempo. Crer
o espírito humano pairava próximo ao nele era apropriar-se prolepticamente da
corpo durante três dias, partindo a se­ plenitude esperada no futuro, anteci­
guir, quando a cor do cadáver começava pando assim, de modo cabal, o veredicto
a mudar. Para uma pessoa enterrada há da eternidade. Dito de outro modo, os
quatro dias, a morte era irrevogável, homens — como Lázaro — continuaram
a morrer de morte física, mas Jesus como A cena passa agora de Marta para sua
era a ressurreição, poderia capacitá-los irmã Maria (v. 1 e 2), que permanecera
a viver além do túmulo. Ademais, como em casa (v. 20), num gesto de cortesia
Jesus era a vida, aquele que vive espiri­ para com os convidados. Em segredo,
tualmente por crer em Jesus jamais mor­ M arta chamou Maria para se encontrar
rerá espiritualmente, nesta vida ou no com Jesus fora da aldeia, encarregando-
porvir. se ela de substituí-la junto aos prantea-
Jesus sabia que esta última verdade dores. No entanto, foi só Maria tentar
não era plenamente evidente, mesmo sair, para ser seguida pelos judeus, os
para uma amiga achegada. Por isso, fez quais pensaram que ela ia ao sepulcro
pender as questões de toda a eternidade para chorar ali, como era costume nos
numa questão existencial: Crês isto? De primeiros dias após a morte. Sem se
pronto, M arta confessou: Eu creio (v. perturbar com a descoberta de sua mis­
24), mas logo aduziu: Tu és (v. 27), são e nem com a interferência de uma
reconhecendo que a vida eterna não era possível audiência hostil ao seu encontro
uma proposta, mas uma pessoa. Evo­ particular com Jesus, Maria de imediato
cando sua formação judia, ela sintetizou lançou-se-lhe aos pés e repetiu o lamento
seu significado em três frases: (1) o Cristo da irmã (v. 21), segundo o qual ele fora
(cf. 1:41;4:29;7:41); (2) o Filho de Deus um Senhor ausente em seu momento de
(cf. 1:34;1:49); (3) aquele que havia de crise maior.
vir ao mundo (cf. 6:14). Confissões ante­ Tão logo a queixa se anunciou, parecia
riores a esta, neste mesmo Evangelho, e que a situação ia de mal a pior. Ao
que usaram estes títulos indica que contemplar este quadro, Jesus ficou mais
Marta realmente transferira suas espe­ perturbado do que as irmãs. Vários fa­
ranças dos fariseus para Jesus, embora tores explicam por que ele se comoveu
sua compreensão ainda não ultrapas­ ... e perturbou-se (literalmente, ele
sasse as categorias herdadas do judaís­ “gemeu violentamente” e “se agitou”
mo. no âmago de seu ser). No choro de
Maria, Jesus sentiu a irresistível reivin­
3) Jesus e Maria (11:28-37) dicação de um amor desamparado a
compeli-lo a agir naquele mesmo ins­
28 D ito isto , re tiro u -se e foi c h a m a r e m tante (diferentemente de Marta, Maria
seg red o a M a ria , s u a ir m ã , e lh e d is se : nada pediu, deixando simplesmente tudo
O M e s tre e s tá a í, e te c h a m a . 29 E la , o u vin ­
do isto , lev an to u -se d e p re s s a , e foi te r co m
em suas mãos). Ao mesmo tempo, viu,
e le . 30 P o is J e s u s a in d a n ão h a v ia e n tra d o nos judeus que com ela vinham, uma
n a a ld e ia , m a s e s ta v a no lu g a r onde M a r ta volta de todas as suas dificuldades com
o e n c o n tr a ra . 31 E n tã o o s ju d e u s q u e e s t a ­ Israel (cap. 5-10) e percebeu logo o preço
v a m co m M a ria e m c a s a e a c o n so la v a m , deste conflito e das imensas tribulações
v endo-a le v a n ta r-s e a p re s s a d a m e n te e s a ir ,
se g u ira m -n a , p e n sa n d o q u e la a o se p u lc ro que traria ao seu espírito. Num difícil
p a r a c h o ra r a li. 32 T endo , pois, M a ria c h e ­ momento de indescritível tristeza, a dor
g ad o ao lu g a r onde J e s u s e s ta v a , e vendo-o, provocada pela perda de um ente que­
lançou-se-lhe a o s p é s e d is s e : S en h o r, se tu rido, associada à indignação causada
e s tiv e ra s a q u i, m e u Irm ã o n ã o te r ia m o r r i­ pelo insistente ceticismo de seus próprios
do. 33 J e s u s , p o is, q u an d o a v iu c h o ra r, e
c h o ra re m ta m b é m o s ju d e u s q u e co m e la parentes espirituais, lesus chorou lágri­
v in h am , com oveu-se e m e sp írito , e p e r tu r ­ mas de sofrimento e frustração, pena e
bou-se, 34 e p e rg u n to u : O nde o p u se s te s? indignação, como as lágrimas do Getsê-
R esp o n d eram -lh e : S enhor, v e m e v ê . 35 J e ­ mane.
su s ch o ro u . 36 D is s e ra m e n tã o os ju d e u s :
V ede com o o a m a v a . 37 M a s a lg u n s d is s e ­
É importante notar que aqueles que
r a m : N ão p o d ia e le , q u e a b riu o s olhos ao testemunharam a ressurreição de Lázaro
cego, fa z e r ta m b é m q ue e s te n ã o m o rre s s e ? logo se dividiram diante de Jesus, antes
mesmo de todo o quadro se desenrolar. chamando-o em alta voz (cf. 5:25,28).
Alguns reagiram a estas lágrimas com Em tudo isso Jesus demonstrou ser o
uma terna afeição (v. 36), outros com um Senhor da vida e da morte.
cinismo cruel (v. 37 — a indagação pede Por outro lado, ele se comoveu outra
uma resposta afirmativa; isto é, ele podia vez profundamente diante da visão do
ter feito algo, mas não fez). A revelação a sepulcro. E não só perguntou onde se
ser dada no sinal não resolveu esta dia­ localizava a tumba (v. 34), mas, ao che­
lética de fé e incredulidade, mas apenas a gar, pediu que tirassem a pedra que
intensificou (veja-se o papel da fé no cobria a entrada da gruta sepulcral. Por
v. 40). Jesus, então, se pôs a caminhar fim, quando saiu o que estivera morto,
em direção à sepultura de Lázaro como pediu aos outros que o desatassem e o
se fosse a sua, porque sabia que alguns deixassem ir. Num certo sentido, estas
não estavam convencidos de ser possível imagens mostram que um poder maior
alguém ressuscitar “dentre os mortos” não perde tempo com tarefas banais,
(Luc. 16:31). realizáveis por qualquer pessoa, tor­
nando-se esta prática uma espécie de
4) A Ressurreição de Lázaro (11:38-44) parábola das pequenas coisas, pelas
quais podemos cooperar com o vivifi­
38 J e s u s , p ois, com ovendo-se o u tr a vez,
p ro fu n d a m e n te , foi a o s e p u lc ro ; e r a u m a cante ministério de Cristo. Aq mesmo
g ru ta , e tin h a u m a p e d r a p o sta so b re e la . tempo, no entanto, estes traços bem
39 D isse J e s u s : T ira i a p e d ra . M a rta , ir m ã humanos sugerem também que Jesus
do defu n to , d is se -lh e : S en h o r, j á c h e ir a m a l, evitou deliberadamente o papel de um
p o rq u e e s tá m o rto h á q u a tro d ia s . 40 R e s ­
taumaturgo espetacular. Evidentemente,
pondeu-lhe J e s u s : N ão te d isse q u e , se c r e ­
re s , v e rá s a g ló ria d e D eu s? 41 T ira r a m quem quer que tivesse o poder para res­
e n tã o a p e d ra . E J e s u s , le v a n ta n d o os olhos suscitar os mortos poderia mover mira­
a o céu, d is s e : P a i, g r a ç a s te dou, p o rq u e culosamente pedras de sepulcros ou
m e o u v iste. 42 E u s a b ia q u e s e m p re m e desatar os laços que aprisionam cadá­
o u v e s ; m a s p o r c a u s a d a m u ltid ã o q u e e s tá
e m re d o r é q ue a s s im fa le i, p a r a q u e e le s
veres. Jesus, porém, evitou consciente­
c re ia m qu e tu m e e n v ia s te . 43 E , ten d o dito mente qualquer ostentação. Em vez de
Isso, c la m o u e m a lt a v o z : L á z a ro , v e m p a r a deslumbrar os espectadores com o que
/o ra ! 44 S aiu o q u e e s tiv e ra m o rto , lig a d o s fizera, Jesus os levou a refletir sobre o
os p é s e a s m ã o s co m fa ix a s, e o seu ro sto miraculoso dom da vida, “escondida”
envolto n u m lenço. D isse-lh es J e s u s : D esli-
gai-o e deixai-o ir . nas circunstâncias tão humildes em que
Lázaro apareceu.
Um dos motivos por que a ressurreição
de Lázaro deixou os homens livres para a 5) A Reação dos Judeus (11:45-54)
crença ou para a incredulidade era que a
atuação de Jesus combinava soberania 45 M uitos, p o is, d e n tre o s ju d e u s q u e
tin h a m v in do v is ita r M a ria , e q u e tin h a m
divina com dependência humana. v isto o q u e J e s u s fiz e ra , c r e r a m n e le . 46 M a s
Por um lado, Jesus foi ao sepulcro só a lg u n s d e le s fo ra m t e r co m o s fa ris e u s e
depois de estar preparado (v. 6) e longe d isse ra m -lh e s o q u e J e s u s tin h a feito . 47 E n ­
de ceder a pressões terrenas (v. 3,21, tã o os p rin c ip a is sa c e rd o te s e os fa ris e u s
re u n ira m o s in é d rio e d iz ia m : Q ue fa re m o s ?
32,37). Ele ousou desafiar a morte mes­ p o rq u a n to e s te h o m e m v e m o p e ra n d o m u i­
mo depois de quatro dias, o que facili­ to s sin a is. 48 Se o d e ix a rm o s a s s im , to d o s
tava o fracasso. Estava certo, porém, de c re rã o n e le , e v irã o o s ro m a n o s, e n o s t i ­
que os crentes veriam a glória de Deus r a r ã o ta n to o no sso lu g a r c o m o a n o ss a
(cf. o comentário sobre 6:36-40), porque n a ç ã o . 49 U m d e le s, p o ré m , c h a m a d o C ai-
fá s , q u e e r a su m o s a c e rd o te n a q u e le an o ,
o Pai sempre ouvia suas orações. Sem d is se -lh e s: V ós n a d a sa b e is , 50 n e m c o n sid e­
fazer uso de qualquer técnica médica, r a is q u e v o s co n v é m q u e m o r r a u m só h o ­
sentiu como suficiente levantar Lázaro m e m p elo povo, e q u e n ã o p e r e ç a a n a ç ã o
to d a. 51 O ra , Isso n ão d isse ele p o r si m e s ­ o povo a crer que um novo dia estava
m o ; m a s , sendo o su m o sa c e rd o te n a q u e le raiando, e um procurador como Pôncio
ano, p ro fetiz o u q u e J e s u s h a v ia d e m o r r e r
p e la n a ç ã o , 52 e n ão so m e n te p e la n a ç ã o , Pilatos poderia ficar com uma impres­
m a s ta m b é m p a r a c o n g re g a r n u m só co rp o são desagradável em relação aos líderes
os filhos d e D eu s q u e e stã o d isp e rso s. que tolerassem tal reversão do status
53 D esde a q u e le d ia, pois, to m a v a m c o n se ­ quo. Qualquer ameaça de revolução
lho p a r a o m a ta r e m . 54 D e so rte q u e J e s u s podia levar à destruição tanto o lugar
j á não a n d a v a m a n ife sta m e n te e n tr e os j u ­
d eu s, m a s re tiro u -se d a li p a r a a re g iã o v izi­ santo (isto é, o Templo) quanto a própria
n h a a o d e se rto , a u m a c id a d e c h a m a d a nação. O dilema do concílio estava em
E f r a i m ; e a li d em o ro u c o m os se u s d isc íp u ­ que eles dificilmente poderiam punir um
los. homem por fazer muitos sinais, embora
Tão logo Lázaro saiu, a atenção trans- de maneira alguma pudessem permitir
feriu-se dele, focalizando-se pela reação que continuasse a agitar o povo.
dos espectadores, em Jesus. Mesmo antes A solução desse problema era urgente
de o milagre se realizar, Jesus tinha para Caifás, que era sumo sacerdote
esclarecido que seu propósito básico não naquele ano especialmente fatídico, em
era convencer o povo que Lázaro tinha que Jesus foi exaltado (na realidade
voltado do além (não há qualquer alusão Caifás serviu de 18 a 36 d.C.). Na crença
de que se lhe pedisse descrever a outra judaica, o sumo sacerdote, em virtude de
vida), mas que ele, Jesus, tinha vindo de seu ofício, tinha poderes especiais de
Deus. Muitos dentre os judeus da área adivinhação (Josefo, Antiguidades, XI,
de Jerusalém, que tinham vindo visitar 327; XIII, 299-300), e aqui, ironica­
Maria... creram nele, provavelmente da mente, Caifás exerceú esta prerrogativa
maneira demonstrada por M arta (v. 27). de uma forma tão profunda que nem ele
Outros, no entanto, foram ter com os a compreendeu. Na busca dos interesses
fariseus, possivelmente por não terem gerais, propôs que um só homem (Jesus)
crido, e disseram-lhes o que Jesus tinha devia morrer pelo povo, se isso evitasse
feito. Aparentemente, estas testemunhas que perecesse a nação toda. O evange­
não tinham dúvidas de que Lázaro viera lista, porém, entendeu que, num sentido
do além, mas não queriam aceitar o de redenção, Jesus não havia de morrer
milagre maior de que Jesus viera da parte apenas pela nação judaica, mas para
de Deus numa forma que mesmo Lázaro congregar, como um pastor, num só re­
jamais poderia alcançar. banho os filhos de Deus então dispersos
Ao ouvirem seu relato, os fariseus pelo mundo (cf. 10:16). Assim, ao deci­
pediram o apoio dos principais sacer­ dir pela morte de Jesus, o sinédrio ina­
dotes, saduceus, para juntos convocarem dvertidamente contribuía para a reali­
uma sessão informal do supremo concílio zação dos sublimes propósitos de Deus.
judaico, o sinédrio. Em outra circuns­ Compreendendo esta ameaça moral e
tancia esta congregação nada fizera de o modo como Deus a superaria, Jesus
efetivo para eliminar Jesus (cf. 7:25,26, deixou de ministrar manifestamente
32,45-48), mas agora era urgente uma entre os judeus de Jerusalém e caminhou
nação firme. O problema não estava em uns 20 km por uma região montanhosa,
que Jesus fosse um enganador, mesmo até chegar a Efraim, uma cidade de
porque este grupo hostil reservadamente localização hoje incerta.
aceitava que ele operava muitos sinais. Esta passagem é fundamental para a
Ao contrário, o perigo estava no número compreensão joanina da morte de Jesus.
cada vez maior de pessoas que criam nele Historicamente, ele morreu como uma
(ex.: v. 45), podendo, daí renunciar sua ámeaça ao Templo e à nação (cf. Mar.
lealdade à liderança aprovada pelos 14:58; At. 6:13,14), ou seja, como al­
romanos (cf. 12:11, BLH). Jesus excitava guém que perturbaVa o controle oficial
do status quo. Jesus defendia, em nome mais temática do que temporal, reu­
de Deus, uma mudança drástica, numa nindo, para o leitor, os materiais sobre
época em que qualquer mudança era todos os períodos do ministério de Jesus
politicamente explosiva. A liderança que expressam de modo profundo o
judaica pode ter lamentado profunda­ significado de sua cruz.
mente a eliminação de Jesus (cf. 3:2;7:
50,51;12:42,43), mas, diante das repre­ 1) O Complô Contra Jesus (11:55-57)
sálias romanas, aceitaram-na como o 55 O ra , e s ta v a p ró x im a a p á s c o a dos j u ­
menor dos males. Teologicamente, a d eu s, e d e s s a re g iã o s u b ira m m u ito s a J e ­
revelação suprema de Jesus como vida foi ru s a lé m , a n te s d a p á sc o a , p a r a se p u rifi­
c a re m . 56 B u sc a v a m , p o is, a J e s u s e d iz ia m
a ocasião de sua morte, isto é, este foi o u n s a o s o u tro s, e sta n d o no te m p lo : Q ue vos
preço pago por Jesus para nos dar a p a re c e ? N ão v ir á e le à fe s ta ? 57 O ra , os
vida eterna. Sua morte, porém, colocava p rin c ip a is sa c e rd o te s e os fa ris e u s tin h a m
os fundamentos, sobre os quais judeus d a d o o rd e m q u e , se a lg u é m so u b e sse onde
e le e s ta v a , o d e n u n c ia sse , p a r a q u e o p r e n ­
e gentios, sem distinção, poderiam ser d e sse m .
salvos e unidos numa só igreja.
Com esta terceira referência explícitá
2. A Preparação Para a Páscoa (11:55- à Páscoa dos judeus (cf. 2:13; 6:4), che­
12:36a) gamos ao ciclo final do ministério de
Jesus. A Páscoa era uma das três grandes
Esta seção se liga intimamente à an­ festas peregrinas do judaísmo, quando
terior, com a continuação do tema de muitos (perto de 100 mil) subiam, todos
Lázaro (12:1,2,9-11,17,18). Já em 11:45- os anos, vindos de várias partes, para
54, o sinédrio decidira matar Jesus por celebrar sua observância em Jerusa­
ter ressuscitado Lázaro dentre os mortos. lém. 30 Antes de entrarem no Templo,
Depois, pela mesma razão (12:2,3), aqueles que estivessem religiosamente
Maria respondeu a esta setença de morte impuros (por exemplo, pelo contato com
ungindo-o para o sepultamento (12:1-8). gentios, em suas viagens) deviam levar
No dia seguinte,, uma excitada e festiva cerca de uma semana para se purifi­
multidão tentou apresentar Jesus como carem (cf. Núm. 9:9-14; II Crôn. 30:
um libertador nacionalista (12:12-15), 17-19).
ainda por causa do seu poder em ressus­ Um toque semelhante é acrescentado
citar Lázaro (v. 13,17,18). É impressio­ a este parágrafo de transição com a
nante como este milagre suscitou tão descrição de multidões curiosas discu­
díspares reações, de hostilidade, gratidão tindo se Jesus provocara o edito eclesiás­
e possessividade. tico contra sua vida, ao sair de seu retiro,
Na forma, ll:55-12:36a constituem para aparecer publicamente na festa.
uma série de unidades livremente inter­ A decisão do sinédrio em destruí-lo
ligadas, tendo como objetivo iluminar (11:53) já era do conhecimento público,
vários aspectos da paixão iminente. São, uma vez que havia a ordem dada pelos
aqui, dignos de nota os numerosos para- principais sacerdotes e fariseus (cf.
lelismos diretos e alusões indiretas a 11:47), segundo a qual, se alguém sou­
incidentes e ensinos reunidos através dos besse onde Jesus estava escondido, o
Evangelhos Sinópticos (ex.: transfigu­ denunciasse, para que o prendessem.
ração, Getsêmane, unções, parábolas Ironicamente, os peregrinos religiosos
da semente e ditos sobre a vida e a que se tinham purificado para o maior
morte). Embora as estruturas joanina
e sinóptica sejam mais teológicas do que 30 Para um cálculo sobre os peregrinos da Páscoa, veja
Joachini Jeremias, Jerusalém in the Time of lesus, trad.
cronológicas, uma comparação sugere de F. H. e C. H. Cave (London: SCM Press, 1969),
que em João a seqüência é basicamente p. 77-84.
festival sagrado de Israel serviram dire­ ungir um rei (ex.: I Sam. 10:1), embora
tamente de informantes num sinistro ela não usasse seus cabelos. Novamente,
complô contra aquele que nenhum mal em Lucas 7:38, uma mulher pecadora
lhes fizera. usou seus cabelos para enxugar as lá­
grimas que caíam sobre os pés de Jesus,
2) A Unção em Betânia (12:1-8) enquanto os ungia com bálsamo, um
1 V eio, p ois, J e s u s se is d ia s a n te s d a p á s ­ processo compreensível para alguém
coa, a B e tâ n ia , onde e s ta v a L á z a ro , a q u e m tão desacreditada. No entanto, era algo
ele re s s u s c ita r a d e n tre os m o rto s. 2 D e ram - fora de propósito uma mulher judia da
lhe, a li, u m a c e ia ; M a r ta se rv ia , e L á z a ro reputação de Maria ungir alguém, apli­
e r a u m dos q ue e s ta v a m à m e s a co m ele.
3 E n tã o M a ria , to m a n d o u m a lib ra d e b á l­ cando nardo puro à parte mais humilde
sam o de n a rd o p u ro , d e g ra n d e p re ç o , u n g iu do corpo deste, seus pés descalços (cf.
os p é s de J e s u s , e os enxu g o u co m os se u s Luc. 10:39) e, depois, enxugar o perfume
c ab elo s; e ench eu -se a c a s a do c h e iro do com a mais “gloriosa” parte do corpo
b á ls a m o . 4 M as J u d a s Is c a rio te s , u m dos
seu s d iscíp u lo s, a q u e le qu e o h a v ia d e tr a ir ,
dela, seus cabelos soltos (cf. I Cor.
d is s e : 5 P o r que n ão se v en d e u e ste b á ls a m o 11:15).
Dor tre z e n to s d e n á rio s e n ão se d eu a o s Para complicar o problema, Judas
p o b re s? 6 O ra, ele d isse isto , n ã o p o rq u e Iscariotes lançou um protesto, dizendo
tiv e sse cu id ad o dos p o b re s, m a s p o rq u e e r a que o bálsamo poderia servir aos pobres,
la d rã o e , ten d o a b o lsa , s u b tr a ia o q u e n e la
se la n ç a v a . 7 R esp o n d eu , pois, J e s u s : D e i­ desde que fosse vendido por trezentos
x a-a ; p a r a o d ia d a m in h a p re p a ra ç ã o p a r a denários (o denário era uma peça de
a se p u ltu ra o g u a rd o u ; 8 p o rq u e os p o b res prata equivalente ao salário de um dia;
s e m p re os te n d e s co n v o sco ; m a s a m im ne m cf. o comentário sobre 6:7). Parecia
s e m p re m e te n d es.
incrível a esta mentalidade “prática”
Como o Quarto Evangelho parece que se permitisse a Maria desperdiçar
datar esta Páscoa (15 de Nisã) num sá­ num momento aquilo que um trabalha­
bado, isto é, das 18 horas de sexta-feira dor ganhava em um ano. O evangelista se
até as 18 horas do sábado; cf. 18:28; apressa em acrescentar, entre parêntesis,
19:14,31,42), seis dias antes ofereceu-se que Judas dificilmente tinha cuidado dos
uma ceia em Betânia a Jesus, na noite do pobres, cobiçando a contribuição de
sábado anterior. Embora Marta servisse Maria para a tesouraria comum dos
(cf. Luc. 10:40) e Lázaro era um dos que discípulos, porque era o encarregado da
estavam à mesa, não se sabe onde a bolsa (cf. 13:29) e roubava dela o que
refeição teve lugar (cf. Mar. 14:3). A quisesse. Que Judas era ladrão pode ser
atenção centralizou-se sobre Maria (cf. depreendido de outra narrativa sobre sua
11:2), que, tomando uma libra (cerca de traição a Jesus (cf. 6:70,71;13:2,26-30).
meio litro) de bálsamo caro, ungiu os pés Jesus respondeu a toda objeção ao
de Jesus com tanta profusão que a casa estranho ritual de Maria mostrando a
se encheu de sua fragrância. A generosi­ sua validade como uma antecipação sim­
dade de seu ato era óbvia, dado o preço bólica de sua sepultura. Ela não só estava
do perfume e o seu uso em tanta quanti­ grata pela restauração de seu irmão,
dade que se fez necessário enxugar o como sentia o terrível preço a ser pago
excesso com seus cabelos. por Jesus por sua participação no mila­
A chocante originalidade do método gre. Segundo a prática funeral dos ju­
de Maria fica logo evidente numa com­ deus, uma grande quantidade de espe­
paração com duas unções descritas nos ciarias devia cobrir seus pés (cf. 19:39,
Evangelhos Sinópticos. Em Marcos 14:3, 40), como ela agora prefigurava de for­
uma mulher de nome não mencionado ma simbólica. Esta vigorosa defesa, por
derramou este mesmo nardo puro sobre parte de Jesus (Deixa-a), reflete não
a cabeça de Jesus, uma forma comum de somente sua preocupação com a paixão,
mas sua gratidão para com uma pessoa sacerdotes entenderam que a morte de
que compreendia e honrava sua provação Jesus não estancaria o movimento por ele
numa época em que mesmo os discí­ começado, porque sua vida fora com­
pulos mais chegados pareciam negli­ partilhada com outros. Anteriormente
gentes diante da crise por que estava tinham-se irritado com Lázaro por este
passando. quebrar sua teologia saducéia (na qual
O conclusivo comentário de Jesus, de não havia a doutrina da ressurreição).
que os discípulos nem sempre o teriam Agora, sua crescente popularidade lhes
com eles, embora tivessem sempre os dizia que era necessário matar também a
pobres, não foi uma rejeição cínica dos Lázaro, “pois, por causa dele muitos
esforços para mitigar a pobreza através judeus estavam abandonando seus líderes
da caridade e nem uma tentativa de e crendo em Jesus” (v. 11, BLH). Do
garantir a primazia da devoção pessoal mesmo modo como o cego perdera tudo,
a si mesmo, de preferência à preocupa­ ao recobrar a visão (9:34), Lázaro estava
ção social para com os outros. Antes, marcado para morrer por receber uma
foi um aviso, aos seus seguidores, de que nova vida em Cristo. Aqui estava uma
deviam lutar contra a grande enfermi­ última perversidade da parte dos inimi­
dade da humanidade que o arrastava gos de Jesus: condenar um homem à
para a morte, em vez de tentar encobrir morte simplesmente porque estava vivo!
uma parte dos sintomas através do ofe­ O propósito literário deste parágrafo
recimento voluntário de algum dinheiro a de transição é relacionar a unção em
mais. Betânia (v. 1-8) com a entrada triunfal de
Jesus em Jerusalém (v. 12-19). Nem esta
3) O Complô Contra Lázaro (12:9-11)
seqüência dos dois eventos e nem sua
9 E g ra n d e n ú m e ro d o s ju d e u s cheg o u a íntima conexão se encontram nos Evan­
s a b e r q ue ele e s ta v a a l i ; e a flu íra m , n ão só
p o r c a u s a de JLesus, m a s ta m b é m p a r a ve-
gelhos Sinópticos (cf. Mar. 11:1-10;
re m a L á z a ro , a q u e m e le re s s u s c ita ra d e n ­ 14:3-9 e referências). A organização
tre os m o rto s, 10 M as os p rin c ip a is s a c e rd o - joanina de fazer seguir a unção imedia­
te s d e lib e ra r a m m a t a r ta m b é m a L á z a r o ; tamente pela entrada visa destacar o
ÍT p õ fq iie m u ito s, p o r c a u s a d e le , (jeix av ãm paradoxo do “rei sepultado” (v. 7 e 13),
os ju d e u s e c ria m e m J e su s.
cuja vitória estava em sua derrota, cuja
Uma razão por que Jesus apreciara tão glória estava em sua ignomínia, cuja
claramente o gesto de Maria era devido coroa estava em sua cruz.
ao seu contraste não apenas com a negli­
gência de seus discípulos, mas também 4) A Entrada Triunfal de Jesus (12:12-19)
com o superficial entusiasmo das mul­ 12 No d ia se g u in te , a s g ra n d e s m u ltid õ es
tidões. Um bom número de judeus, pos­ que tin h a m vin d o à fe s ta , o uvindo d iz e r que
sivelmente vindos das cercanias de Je­ Je s u s v in h a a J e r u s a lé m , 13 to m a ra m r a ­
m o s de p a lm e ira s , e sa íra m -lh e a o e n c o n tro ,
rusalém, ao saberem que lesus estava e c la m a v a m ; H o sa n a l B endito o q u e v e m
em Betânia (12:1), afluíram não só para e m n o m e do S e n h o r! B en d ito o r e i d e I s r a e l !
ver este fugitivo famoso (11:56,57), mas 14 E a c h o u J e s u s u ín ju m e ritln h o e m o n to u
também para verem a Lázaro, a quem ele n ele, c o n fo rm e e s tá e s c rito : 15 N ão te m a s , ó
filh a de S ião ; e is que v e m o te u R e i, m o n ­
ressuscitara dentre os mortos. O silêncio tan d o so b re o filho de u m a ju m e n ta . 16 Os
do registro em relação às suas razões se u s d iscíp u lo s, p o ré m , a p rin c íp io n ã o e n ­
sugere que conseguiram ver que Lázaro te n d e ra m is to ; m a s qu a n d o J e s u s foi g lo ri­
estava biologicamente vivo, mas não ficad o . en tã o e le s se le m b r a r a m de q u e e s ­
“perceberam” que Jesus era a fonte da ta s c o isa s e s ta v a m e s c r ita s a re s p e ito d ele,
e d e q u e a s s im lh e fiz e ra m . 17 D a v a -lh e r \
vida eterna para todos quantos cressem. 'p o is, te s te m u n h o a m u ltid ã o q u e e s ta v a com
Como Lázaro começasse a ganhar e le q ü a n d o c h a m a ra ''a L á z a ro n a s e p u ltu ra
uma crescente notoriedade, os principais e o r e s s u s c ita r a d e n tre os m o r to s ; 18 e foi ;
p o r isso que a m u ltidão lh e sa iu ao e n c o n tro , de paz. Este gesto recordava Zacarias
p o r te r ouvido q ue ele fiz e ra e s te s in a l. 9:9, onde o rei de Israel foi concitado a
19 De so rte que os fa ris e u s d is s e ra m e n tre
si: V edes q ue n a d a a p ro v e ita is ? e is q u e o
vir, não sobre um cavalo de guerreiro,
m undo in te iro v a i a p ó s e le. mas montado sobre o filho de uma ju­
menta, “triunfante” e “humilde” ao
Enquanto nos Sinópticos a entrada mesmo tempo. Mesmo seus discípulos
ocorre três dias antes da unção (Mar. não entenderam este paradoxo a prin­
11:1-20; 14:1-3 e referências), aqui acon­ cípio, mas depois, quando Jesus foi
teceu no dia seguinte. Esta cuidadosa glorificado (isto é, assunto aos céus, a
referência cronológica dá a impressão de tríplice interação do Espírito residente,
uma contagem regressiva da aproxima­ da memória histórica e da Bíblica escrita
ção de Jesus da “hora” de seu destino corrigiram a equivocada visão (cf. 2:22;
final, quando chegou a Jerusalém o 7:37-39).
rumor de que ele vinha do subúrbio de A incapacidade dos discípulos de com­
Betânia, as grandes multidões que ti­ preender o estranho simbolismo do seu
nham vindo à festa... saíram-lhe ao Senhor não deixou Jesus sem um teste­
encontro. Possivelmente, muitos desses munho. A pequena multidão vinda da
peregrinos eram galileus com o mesmo Judéia e que o vira ressuscitar Lázaro
entusiasmo nacionalista recusado por (11:45) contara que ele fizera este sinal,
Jesus na Páscoa do ano anterior (6:4,15). incentivando a multidão maior da Gali-
Uma chave para se compreender a léia, presente em Jerusalém, a ir ao seu
intenção da multidão está em sua estra­ encontro e saudar este vencedor da morte
tégia deliberada de usar ramos de pal­ como seu novo Rei. Esta convergência de
meiras, exatamente como o fizeram os entusiasmo por parte dos do norte e dos
macabeus, quando da celebração da sulistas convenceu os fariseus que todos
libertação do Templo e da cidade, dos os seus esforços (11:57) resultaram inú­
conquistadores sírios (II Macabeus 10:7; teis. Vedes, lamentaram numa irônica
I Macabeus 13:51). Como 0 ramo passa­ declaração, que o mundo inteiro vai após
ra a ser usado nas moedas e nas festas no ele.
Templo como lembrança permanente
dessas façanhas do Período Macabeu, 5) O Pedido dos Gregos (12:20-26)
balouçá-los diante de Jesus era uma
20 O ra, e n tr e os que tin h a m subido a a d o ­
forma simbólica de encorajá-lo a fazer 0 r a r n a f e s ta h a v ia a lg u n s g re g o s. 21 E s te s ,
mesmo contra os romanos. Uma outra pois, d lrlg tra m -se a F ilip e , q u e e r a de B et-
indicação do modo de agir da multidão s a id a d a G a lilé ia , e ro g a ra m -lh e , d izen d o :
se reflete na saudação Hosana! — um S enhor, q u e ría m o s v e r a J esusrffiT F ilipe foi
dizê-lo a Á n d ré , e entácT A ndré e F ilip e fo ­
cântico que significava “ Salva-nos (liber- ra m dizê-lo a J e s u s . 23 R esp o n d eu -lh es Je-
ta-nos) agora!” — e na proclamação de auB: É c h e g a d a a h o ra d e s e r gloiificadò~o
Jesus como aquele que vem em nome do FÚEô do h o m em . 24 E m v e rd a d e , e m v e r ­
Senhor (cf. Sal. 118:26). No contexto d a d e vos dig o : Se o g rã o d e trig o , cain d o n a "
original, esta expressão referia-se aos ( te r r a , n ã o m o r r e r , fic a e le só ; m a s , se m o r —
/ re r , d á m u ito fru to . 25 Q u em a m a a s u a v id a ,
peregrinos do Templo, em sua caminha­ p e rd ê -la -á ; e q u e m , n e s te m u n d o , o d eia a
da para o culto; aqui, porém, foi rein- su a v id a , g u a rd á -la -á p a r a a v id a e te r n a .
terpretada pela multidão para significar 26 Se a lg u é m m e q u is e r s e rv ir , s ig a -m e;
o Rei de Israel, em seu caminho para a e onde eu e s tiv e r, a li e s t a r á ta m b é m o m e u
se rv o ; se a lg u é m m e s e r v ir, o P a l o h o n ­
conquista. ra rá .
Em meio a esta demonstração, Jesus
respondeu, servindo-se de um jumenti- Simbolizando a secreta verdade pro­
nho, no qual montou, simbolizando, ferida pelos fariseus (v. 19), alguns gre­
assim que sua missão era de um homem gos (isto é, não-judeus), entre os pere­
grinos da Páscoa, chegaram, dizendo: nário), a menos que queiramos limitar a
Queremos ver a lesus. Ã primeira vista, mensagem universal da cruz.
isto pode ter parecido apenas um pedido * Jesus não só ensinou a necessidade de
para uma entrevista com alguém” por sua morte para uma misslfo redentora de
quem estavam interessados (ex.: porque jcaráter mundial, como procurou aplicãf
ele purificara a Corte dos Gentios no jseu significado à natureza do discipulado
Templo para seu uso). O evangelista, no (cf. Mar. 8:34-37). Guardar“ uma sê^
entanto, sem dúvida alguma, viu esses ihente é destruí-la, enquanto plantá-la é
gregos como um campo missionário gen­ libertá-la para um utilidade multiplica­
tílico, no microcosmo ligora preparado, da. Assim, aquele que ama possessivel-
para ver (isto é, crer em Jesus como o mente a sua vida acabará por destruí-la,
'Salvador do mundo. ao passo que aquele que odeia a sua vida
Seu pedido foi dirigido a princípio a neste mundo (cf. Luc. 14:26), isto é,
Filipe, e depois a André, os dois discí­ aquele que se dispõe a perdê-la em
pulos de nome grego e procedentes da benefício dos outros,. obterá uma vida
cidade helenística de Betsaida (1:44). eterna, que jamais lhe será retirada.
Embora tenham ido de imediato falar Este paradoxo central é posterior­
com Jesus, sobre esta tentadora oportu­ mente esclarecido e equilibrado de duas
nidade de evitar a frustração e os perigos maneiras, no verso 26. Primeiro, “odiar
de njinistrar aos judeus, não há infor­ a vida” não é uma renúncia passiva, pois
mação de que os gregos tenham conse­ o discipulado é também um seguir ativo
guido ver Jesus nessa ocasião. Este silên­ (cf. o comentário sobre 1:43). Segundo,
cio é deliberado, pois a hora tinha uma pessoa pode-se entregar pelos outros
chegado (cf. Mar. 14:41) quando Jesus, e ainda servir a Cristo (note-se a repeti­
como o Filho do Homem, seria glorifi­ ção de me... eu... meu, no v. 26). Não há
cado, não pela lisonia de uma vasta qualquer clivagem (ruptura) entre ação
platéia, mas pela solidão da rejeição, por missionária aos gregos e simpatia pessoal
parte ’dõleü próprío povo. Em lugar de o pelo Messias (cf. Mat. 25:40).
“ser visto” pelos gregos o salvar por meio 6) O Cometimento da Paixão
de uma fuga para o mundo helenístico, (12:27-36a)
o leitor vê-lo-á na agonia da escolha 27 A g o ra a m in h a a lm a e s tá p e rtu rb a d a ;
(v. 27), quando, ao contrário, decide, por e que d ire i eu ? P a i, sa lv a -m e d e s ta h o ra ?
sua morte, salvar os outros. M as p a r a isto v im a e s ta h o ra , 28 P a i, g lo ri­
Ele, entretanto, não permaneceria só, fic a o te u n o m e. V eio, e n tã o , d o cé u e s ta
voz: J á o ten h o g lo rificad o , e o u tr a v ez o
porque sua morte na cruz seria como um g lo rific a re i. 29 A m u ltid ã o , pois, q u e e s ta v a
grão de trigo que, ao cair na terra e a li, e q u e a o u v ira , d iz ia te r h a v id o u m
morrer, dá muito fruto. Assim como 1 tro v ã o ; o u tro s d iz ia m : U m a n jo lh e falou .
Tiinguém pode “ver” o trigo olhando para 30 R esp o n d eu J e s u s : N ão veio e s ta voz p o r
m in h a c a u sa , m a s p o r c a u s a d e v ó s. 31
a minúscula semente, os gregos não A g o ra é o juízo d e ste m u n d o ; a g o ra s e r á
; podiam “ver ” o significado de Jesus, até exp u lso o p rín c ip e d e s te m u n d o . 32 E eu ,
I que a missão mundial da Igreja fosse q u an d o fo r le v a n ta d o d a te r r a , to d o s a t r a i ­
^instaurada por sua morte e ressurreição, i re i a m im . 33 Is to d izia, sig n ifican d o d e que
m odo h a v ia d e m o r re r. 34 R esp o n d eu -lh e
Estes gregos, que tinham vindo a JenP"
a m u ltid ã o : N ós to m o s ouvido d a lei q u e o
salém para a Páscoa, como euriosos ou C risto p e rm a n e c e p a r a s e m p r e ; e com o d i­
prosélitos interessados no judaísmo que zes tu : Im p o rta que o F ilh o do h o m e m s e ja
eram, precisavam saber que Jesus iria à le v a n ta d o ? Q u em é e ss e F ilh o do h o m em ?
cruzj para fincar álTbàses sobre as quais 35 D isse-lh es e n tã o J e s u s : A inda p o r u m
pouco d e te m p o a luz e s tá e n tr e vós. A ndai
o mundo inteiro poderia ser salvo. Em e n q u a n to te n d e s luz, p a r a q u e a s tr e v a s n ão
função desse dia, não há razão por que ir vos a p a n h e m ; p o is q u e m a n d a n a s tr e v a s
aos “gregos” (isto é, ao campo missio­ n ão sa b e p a r a on d e v a i. 36 E n q u a n to te n d e s
a luz, c re d e n a luz, p a r a q u e vos to rn e is promisso com o mal, mesmo quando
filhos d a luz.
levantado da terra, numa crucificação
Era fácil para Jesus entender que a cruel, sua vitória de obediência atrairia
vocação de uma semente era morrer para todos a ele. A ênfase não está na totali­
que o fruto escondido em seu interior se dade da resposta, pois que esta depende
multiplicasse (v. 24), mas lhe era difícil da fé, mas sobre a universalidade do ape­
aceitar a mesma vocação pelas mãos de lo. O judaísmo oferecia um santuário na­
sua gente. Num momento de angústia no cional, uma circuncisão racial e uma lei
Getsêmane, ele percebeu o custo de seu religiosa sectária. Ao contrário, nada
cometimento na cruz: Agora a minha havia de partidário ou nacional na obe­
alma está perturbada (cf. Mar. 14:33, diência, no amor e no poder demonstra­
34). Seria mais humano dizer: Pai, salva- dos na cruz. Jesus não morreu por ter
me desta hora (cf. Mar. 14:35), mas este perdido a batalha, e, sim, porque a
pedido era incompatível com o propósito vencera contra a força que escraviza o
de sua vinda. Então, Jesus orou: Pai, espírito humano e separa o homem de
glorifica o teu nome (isto é, “permita- Deus.
me manifestar aos homens o teu verda­
deiro caráter”). Com sua costumeira insensibilidade,
Imediatamente, uma voz de revelação a multidão ignorou a coragem liberta­
direta dos céus confirmou que Deus fora dora de Jesus e preferiu avaliar suas
glorificado pela obra de Jesus no passado afirmações a partir de seus próprios
(isto é, pelos sinais) e que continuaria a preconceitos messiânicos (cf. 7:40-43;
ser glorificado outra vez no futuro (isto é, 10:19-21). Enquanto falava paradoxal­
pela sua morte e ressurreição). Na sua mente da morte com que havia de
forma exterior, esta comunicação foi morrer, ao ser “levantado” , eles concluí­
acompanhada por um trovão (como, por ram, a partir da lei (isto é, das Escri­
exemplo, no Sinai), que alguns da multi­ turas), que o Cristo permanece para
dão que ali estava interpretaram como sempre, provavelmente numa referência
um fenômeno natural, enquanto outros, à permanência do reinado davídico (Sal.
mais atentos à confirmação que Jesus 89:36; Ez. 37:25). Ironicamente, deseja­
ram um messias que vivesse para perpe­
recebera, disseram que um aiyo lhe tinha
tuar o nacionalismo judaico, enquanto
falado (cf. Luc. 22:43). Devido à sua
Jesus, por sua morte, transcendia esta
íntima relação com Deus, Jesus não
necessitava propriamente de qualquer visão e se tornava um ímã que atrairia
autenticação aparente, por um trovão ou todos a um reino que não é deste mundo.
por um anjo. A manifestação audível da Estas posições eram de tal modo irre­
voz veio não para ele, mas para os outros conciliáveis, que as perguntas da multi­
(cf. 11:42); só assim fariam o que fize­ dão não puderam ser respondidas. Em
ram. seu lugar, na pequena parábola do via­
Fortificado por um sentido maior de jante ao pôr-do-sol, Jesus mostrou a
aprovação celestial, Jesus falou triunfal­ urgência de se considerar a luz antes que
mente: Agora (cf. v. 23) é o juízo deste as trevas chegassem (cf. 9:4,5; 11:9,10).
mundo (cf. 5:22-24; 8:15,16). Essas pa­ Embora muitos da multidão vagassem em
lavras não eram uma ameaça de vin­ trevas espirituais e não stíubessem para
gança contra seus inimigos humanos, onde iam. enquanto Jesus estivesse com
mas um testemunho de que o poder de eles havia a oportunidade de crerem na
Deus repelira os esforços do príncipe luz e se fazerem filhos da luz. Com este
deste mundo (isto é, Satanás) para reinar resumo vivo das alternativas possíveis a
em sua vida (cf. o comentário sobre Israel, Jesus concluiu seu ministério
6:70,71). Como Jesus nunca teve com­ público.
3. Conclusão do Livro dos Sinais o seu resultado foi a confirmação, de
(12:36b-50) modo cabal, das descrições sobre a in­
credulidade de Israel (cf. Is. 53:1;6:10).
Uma outra prova de os capítulos 2 a 12
comprenderem uma unidade maior, Jesus não era o primeiro mensageiro de
Deus a encontrar oposição. Em busca de
dentro do Evangelho, é dada por esta
uma explicação, a igreja apostólica des­
elaborada conclusão, que divide clara­
cobriu que o Velho Testamento tinha
mente o Evangelho em duas partes. O
vislumbrado com perfeição a dinâmica
capítulo 12 prepara para este pós-escrito
formal, com várias conclusões prelimi­ desta rejeição, especialmente nos profe­
nares, que exprimem cabalmente o tér­ tas e nos Salmos.
Estes versos não refletem preconceitos
mino de seu ministério público (12:7,
8,31,35,36). Esta última seção difere, no anti-semitas, dirigidos contra Israel, por
entanto, do resumo retrospectivo feito cristãos frustrados, representando,
pelo evangelista (v. 36b-43) e do soliló­ antes, um julgamento, sobre os judeus,
quio proferido por Jesus (v. 44-50). Aqui, por suas próprias Escrituras (veja o
a segunda pessoa do plural, no discurso comentário sobre 9:41). A preocupação
direto aos judeus, desaparece, com estes principal aqui não é amaldiçoar uma
parágrafos dirigindo-se fundamental­ pessoa, mas demonstrar a coerência de
mente ao leitor. Deus em realizar seus propósitos através
da história de seu povo. Durante séculos,
1) A Rejeição Final de Jesus (12:36b-43) as terríveis palavras de Isaías tinham
permanecido nas Escrituras como um
H avendo J e s u s a s s im fala d o , re tiro u -se e aviso ao próprio Israel. Todo o apelo do
escondeu-se deles. 37 E , e m b o ra tiv e sse o p e ­
ra d o ta n to s sin a is d ia n te d e le s, n ã o c ria m
ministério de Jesus — apelo, este, la­
n ele; 38 p a r a q ue se c u m p riss e a p a la v r a do mentavelmente despercebido — era:
p ro fe ta I s a ía s : “não deixem que esta profecia se tome
S enhor, q u e m c re u e m n o ssa p re g a ç ã o ? uma verdade para vocês!” Na realidade,
e a q u e m foi re v e la d o o b ra ç o d o S en h o r? foi sua visão de Jesus em sua glória
39 P o r isso , n ão p o d ia m c r e r , p o rq u e ,
com o d isse a in d a I s a ía s : preexistente com Deus que possibilitou
40 C egou-lhes os olhos e e n d u re c e u -lh e s o Isaías a proferir seu aviso (pelo que vem
c o ra ç ã o , p a r a q u e n ã o v e ja m co m os olhos antes, o sua e dele do v. 41 devem referir-
e e n te n d a m com o c o ra ç ã o , se a Jesus, e não a Deus).
e se c o n v e rta m , e e u os c u re .
41 E s ta s c o isa s d isse Is a ía s , p o rq u e v iu a
A prova de que os versos 37-41 não
s u a g ló ria , e d ele falo u . 42 C ontudo, m u ito s visam condenar os judeus coletivamente
d e n tre a s p ró p ria s a u to rid a d e s c r e r a m está nos versos 42 e 43, que relatam que
n e le ; m a s p o r c a u s a d o s fa ris e u s n ã o o co n ­ muitos dentre as próprias autoridades
fe s sa v a m , p a r a n ã o s e r e m ex p u lso s d a s in a ­ creram nele. Indubitavelmente, era ne­
g o g a; 43 p o rq u e a m a r a m m a is a g ló ria dos
h om en s do q ue a g ló ria d e D eus. cessária uma boa dose de misericórdia
para ter este grupo na conta de crentes,
Com seu ministério a Israel no fim, visto, que, por causa dos fariseus, não o
Jesus se retirou e se escondeu deles, confessavam, para não serem expulsos
sendo esta a terceira saída de Jerusalém da sinagoga (cf. 9:22). Num período mais
nos meses finais da paixão (cf. 10:40- popular, Jesus encontrara uma fé super­
42;11:54). Durante o ministério público, ficial, baseada na força dos seus sinais
ele tinha operado muitos sinais (cf. (ex.: 2:23-25;7:31); agora, contudo, a fé
7:31;11:47;20:30;21:25), embora os capí­ se mostrava pela metade, porque repri­
tulos 2 a 12 só registrem alguns. O mida pela intimidação da estrutura do
propósito destes sinais, de levar os ho­ poder. No primeiro caso, a fé era defi­
mens a crerem nele (cf. 20:31), fora ciente, por não colocar Deus acima do
percebido de uma forma tão limitada que amor próprio; neste, era inútil, por não
colocar Deus acima do amor dos outros. Jesus ao mundo, Deus é o princípio e o
Mais do que nunca, Jesus considerou fim da fé, da visão, do juízo, da auto­
esta fé, embora débil, na esperança de ridade e da revelação. Longe de se
que resultasse num discipulado corajoso colocar como um “segundo Deus” ou de
e abnegado. desviar a atenção de Deus — a acusa­
ção básica apresentada pelos judeus em
2) O Discurso Finai de Jesus (12:44-50)
nome do monoteísmo — Jesus tudo fez
44 C lam ou J e s u s , d izen d o : Q u em c rê e m apenas para confrontar os homens com a
m im , c rê , n ão e m m im , m a s n a q u e le que realidade de Deus na totalidade da vida.
m e en v io u . 45 E q u e m m e v ê a m im , vê
a q u ele q ue m e en v io u . 46 E u , q u e sou a luz,
Paradoxalmente, ao não pedir qualquer
v im ao m u n d o , p a r a q u e todo a q u e le q u e c rê posição para si — seja sacerdotal, rabí-
e m m im n ã o p e rm a n e ç a n a s tr e v a s . 47 E , nica ou de rei — ele se distinguia
se a lg u é m o u v ir a s m in h a s p a la v r a s , e não frontalmente de todos os líderes religio­
a s g u a rd a r , e u n ã o o ju lg o ; p o is e u v im , n ã o sos e por meio disso exigia um veredicto
p a r a ju lg a r o m u n d o , m a s p a r a s a lv a r o
m undo. 48 Q uem m e re je ita , e n ã o re c e b e a s sobre sua pessoa. Os capítulos 13 a 21
m in h a s p a la v r a s , j á te m q u e m o ju lg u e ; a contam como foi ele glorificado à luz de
p a la v r a qu e te n h o p re g a d o , e s s a o ju lg a r á sua “humilhação” nos capítulos 1 a 12.
no ú ltim o d ia . 49 P o rq u e eu n ã o fa le i p o r
m im m e s m o ; m a s o P a i, q u e m e enviou, Segunda Parte: O Livro da Paixão
e sse m e d eu m a n d a m e n to q u a n to a o que
d izer e com o f a la r . 50 E sei q u e o seu m a n ­
(13:1-20:31)
d a m e n to é v id a e te r n a . A quilo, p o is, que eu Depois que o “livro dos sinais” (capí­
falo, falo-o e x a ta m e n te com o o P a i m e o r ­ tulos 2 a 12) descreveu em sucessivas
denou. etapas a descida ou humilhação do Filho
Este parágrafo final do “livro dos de Deus, o “livro da paixão” (capítulos
sinais” fornece um resumo formal da 13 a 20) completará a “parábola da
mensagem pública de Jesus a Israel, redenção” (veja a p. 251-52), descreven­
sintetizando temas teológicos desenvol­ do sua suWdâ^MJMÜâsfcjüato-aaJEai.
vidos em 3:16-21;5:19-29 e 8:12-26. Esta grande inversão da rejeição terrena
Como Jesus tinha já se escondido (v. tem lügar támbém em três etapas: (1) a
36b), a passagem não tem um quadro preparação dos discípulos para a cruz e a
histórico, aparecendo como algo de qua­ vinda do Espírito (cap. 13 a 17); (2) a
lidade não temporal. A solenidade do crucificação de Jesus na exaltação de um
estilo reforça a gravidade dos assuntos, amor obediente (cap. 18 e 19); (3) a
que deve ser ponderada pelo leitor. ressurreição de Jesus fortalece a fé de
A relação com o parágrafo anterior, seus seguidores e os capacita para a
especialmente com os versos 39 e 40, é missão (cap. 20).
fundamental. Lá a ênfase estava sobre a É altamente significativo que esta revi­
soberania de Deus, no trato com cora­ ravolta, no plano da narrativa joanina, se
ções endurecidos e olhos cegos. Mas, sem localiza antes e não depois da crucifica­
que isto elimine a liberdade humana, ção. Em conseqüência, a cruz é apresen"
aqui se faz um apelo explícito para tada não como a ignomínia final sofrida
“crer” no coração e “ver” com os olhos.
O homem é julgado porque não “guar­
! por um mártir derrotado, mas, parado­
xalmente, como a coroação de um Rei
da” ou “recebe” as palavras de Jesus, e triunfante, que reina a partir de um
não porque Deus deseja a sua destruição. lenho de vergonha. Na ressurreição?
As últimas alternativas para o homem Deus não resgatou Jesus da desgraçá^de j
são: aceitação ou rejeição. uma morte escandalosa, mas confirmou
A principal preocupação da passagem que a crucificação era em si mesma a
é reafirmar a primazia de Deus na vitória, que encerrava a obra da reden­
missão de Jesus. Como aquele que enviou ção (cf. 19:30).
Esta perspectiva ajuda a esclarecer o e que sua preocupação fundamental era
equilíbrio de Jesus durante sua paixão. para com o judaísmo e sua liderança
Não havia medo, agonia ou desespero. jreligiosa. ----- -
Jesus antecipou cada movimento de seus Ao contrário, os discípulos ocupam
adversários e permaneceu absoluto, num uni fugãr de destaque em João 13-2T.
controle completo da situação (cf. 13:11, S Fã^pnm êirím eta^ do Evangelho é um
18,19,26,27;16:33;18:4-6, 33-37;19: comeritanò sòbre como os do velho Israel
26,27,30). Não significa isto, entretanto, “não o receberam” (1:11), a(|egunda) é
que o evangelista nos forneça um relato um comentário sobre como aqüelesao
falso, sem sofrimento, para apresentar novo Israel que “o receberam” foram
Jesus como um estóico auto-suficiente. capacitados a se tomarem verdadeiros
Bem ao contrário, concebeu todo o filhos de Deus (1:12). Nos capítulosJU l^
Evangelho como uma longa história da a ênfase se fixou sobre ã dialética da luz e
paixão (observe-se referências introdu­ das trevas, que julgou a resposta de
tórias, como 1:10,11,29,36;2:4,13-22). Já Israel ao ofèrecimento da vida (phos-
em 5:16-18, Jesus enfrentava pessoas que phõtizõ e skotia/skotos ocorrem, neste
queriam matá-lo. Todo o seu ministério sentido, 32 vezes em 1-12, mas nenhuma
era, num certo sentido, um “julgamen­ vez em 13-21). —--------
Nos capítulos 13-21.
to” , caracterizado por amargas contro­ entretanto, a enfase se desloca soore o
vérsias. amor entre o Pai e o Filho, que deverá ser
Assim, o escopo do Evangelho mostra reproduzido nas vidas dos crentes
que Jesus enfrentou a prova da cruz (agape/agapaõ e philos/phileõ ocorrem,
consciente do significado do evento (ex.:‘ neste sentido, 12 vezes em 1-12, mas 48
10:11; 12:27). Diferentemente dos Sirióp- vezes em 13-21). Esta mudança dá um
ticos, em que o Getsêmane ocorre mais caráter predominante pessoal e ético à
tarde, quando da abertura do capítulo comunidade da Igreja, descrita em João
13, sua luía terminara, o desolado de­ 13-21, o que contrasta fortemente com a
sespero devido à rejeição de Israel pas­ divisão que persegue a comunidade
sara, e Jesus caminhava para a alegria da judaica, em João 1-12 (Dodd, Interpre-
perfeita obediência e para a certeza cfã tation, p. 398-399).
gTon afü tu ra.
' "Esta transicib, no Evangelho, marca I. Jesus Prepara Seus Discípulos
uma mudança maior não somentê no' (13:1-17:26)
ministério de Jesus, mas também na
atuação de todos os discípulos. Até esse Em todos os quatro Evangelhos, o
ponto, após uma breve introdução em discurso interno. envolvendo Jesus e seus
1:35-51, os seguidores mais próximos de discípulos, vem entre o fim do ministério
Jesus tinham participado muito pouco. publico e o comeco da .paixio. Cf mais
"Através doTgrãndes debates dos capí- longõ ^eites interlúdios é Joãp ^ -iT t,
tulos 5 a 10, quando as autoridades especialmente porque apresènííl&ma^só
judaicas exigiram testemunhas acerca de seção o equivalente joanino do material
Jesus, os discípulos não compareceram que ós Sinópticos apresentam separada­
nem apresentaram qualquer defesa vo­ mente como ensinos de Jesus desenvol­
luntária de seu líder. Quando, nalguma vidos no Monte das Oliveiras (Mat.
circunstância, participavam mesmo que 24:1-25:46; Mar. 13:1-37; Luc. 21:5-36),
modestamente, sua atuação se marcou no cenáculo (Mat. 26:20-30; Mar. 14:
pela falta de visão (ex.: 6:5-9,15-19,66- 17-26; Luc. 22:14-38) e no Getsêmane
71:9:1-4:11:8,12-16; 12:4-6,16,20-23). (Mat. 26:36-46; Mar. 14:32-42; Luc.
Em João 1-12, a forte impressão que 22:40-46). Ao reunir estes ensinos sobre o

r
ficou foi a de que Jesus ministrou sozinho futuro, sobre a morte de Jesus e sobre a
importância da oração, o Quarto Evan­ lhe foi mostrado o que isso significou
gelho leva ao clímax uma ênfase apenas para o Mestre, enquanto não lhe foi
parcialmente desenvolvida nos outros ensinado o que isso envolve para ele
Evangelhos. próprio e enquanto não foi oferecido a
A fusão deste material esotérico numa Deus em oração por Aquele que conquis­
unidade homogênea representa ã contri­ tou todo o seu terror.
buição literária mais original do evange-' O assunto mais característico, nos
lista para a estrutura deste Evangelho. capítulos 13 a 17, refere-se ao conse-
"’Em nenhum lugar da literatura cristã õ* lheiro ou Paracleto (Ho^grego paraklê-
discipulado está tão intimamente ligado , \ i S ^ r n n T conceito repetido em cinco
ao ministério histórico de Jesus no pas­ passagens, aqui (14:15-17:25,26; 15:26,
sado, à residência do Espírito no pre-J 27;16:7-15) e em I João 2:1, mas em
sente e à luta da Igreja com o mundo nof nenhum outro lugar do Novo Testamen­
futuro. Ao colocar esta seção no centro to. 31 Este título para o Espírito Santo
‘ 3o Evangelho, em vez de no fim, o Evan­ (cf. 14:17,26;15:26;16:13) não pode ser
gelista, com isto, insiste que a Igreja não traduzido adequadamente para uma só
é uma idéia que os homens c^ceberam ^ . ‘palavra em português, uma vez que
enTconseqüência da tragédia, mas a vida conota advogado ou testemunha, inter­
"continua do povo de Deus que Jesus~ cessor ou porta-voz, confortador ou con-
transformou, como uma parte integral de so!ad^°e°°mestre ou guia. Embora a
sua tarefa na terra. Os discípulos não palavra não fosse muito usãda no he­
foram tomados de surpresa pela repen­ braico e no grego, para designar um
tina partida de seu líder, pois ele já lhes ofício religioso, seu significado foi ante­
apresentara a natureza pós-ressurreição cipado no modelo veterotestamentário de
de sua existência. Diante dísso, o leitor é um relacionamento íntimo entre os líde­
levado a perceber a “glória da cruz” nos res que partiam e os seus sucessores que
capítulos 18 e 19, uma vez que, nos continuavam sua obra (ex.: Moisés/
capítulos l3 a 17, já lhe foi apresentada a Josué, Elias/Eliseu) a na visão judaica
fórma de comunidade que daí nasceria. posterior de espíritos angelicais como
A grandê"preocupação de Jesus pelo defensores do povo de Deus e media­
destino dos sjüs seguidores — embora dores da verdade divina. A diferença
fo ss^ e le ln ín u ^ a morrer! — se reflete fundamental, certamente, e q ü e , no
nas três formas como ele os preparou Quarto Evángelho, o papel do Paracleto
para a provação ã que sèríam sübrnetP está associado exclusivamente a Jesus, j
HÕsf^Primdra)servindo-se de um método Tudo o que seria feito pelo Paracleto
de grâirdg^simplicidade, ele deu um também o fora por Jesus, funcionando
exemplo pessoal no lava-pés. como uma aquele como a realidade contínua deste
parábola referente ao significado da cruz no mundo depois de sua ascensão. —J
(13:1-30). Depois, seguiu esta lição obje­ A missão fundamental do Paracleto é
tiva com uma instrução detalhada, num
bem desenvolvido discurso sobre a exis- os discípulos como uma fonte de força e
tencia cristã na era posterior à sua visão, anteriormente características de
morte (13:31-16:33). Finalmente, num Jesus; (2) julgar o mundo pela vitória
crímax espiritual, empregou ojnais exal­ obtida por Jesus em suas lutas terrenas
tado dos métodos, a intercessão divina.
31 Sobre o Paracleto no Evangelho de João, veja Ray­
para situar o destino dos discípulos num mond E. Brown, “The parad etc in the Fourth Gos­
contexto etêrrio, por meio de sua oração pel” , New Testament Stndie*, 13 (1967), p. 113-132,
de consagraçãoTí7:l-26). Não se solicita e a literatura citada na obra, especialmente Hans Win-
disch, The Splrtt-Pararlete in the Fourth Goepel, tra­
de nenhum Tègúidor de Jesus a tomar a dução para o inglês por James W. Cot; “ Facet Books,
cruz dos capítulos 18 e 19, enquanto não Biblical Series” , 20 (Philadelphia: Fortress, 1968).
com Satanás. Uma compreensão destes preparavam para celebrar aquela. Por
papéis era de especial relevância para a isso, aqui a instituição da Ceia foi
Igreja na época em que este Evangelho omitida, para evitar que se concluísse
foi escrito. Como as testemunhas apos­ que Jesus estava perpetuando um cos­
tólicas começavam a morrer, alguns tume judaico.
devem ter imaginado que o último elo Já no mundo cristão ao tempo da
vivo com o Jesus terreno devia ser pre­ composição do Quarto Evangelho, havia
servado. tendências para uma sacramentalização
” " João estava certo de que, jitravés do extremada da Ceia como o “elixir da
ministério do Paracleto, a comunidade imortalidade” ou o “antídoto contra a
cristã não só tinha uma conexão p e F j morte” (Inácio, Efésios, 20:2) e como
manente com o Senhor encarnado, más! “a carne de nosso Salvador Jesus Cristo
que seu t,spiriW~cõhduztnaT’ geràções (Inácio, Smirnenses, 7:1). João deve ter
futuras a compreender Jesus como aque­ temido que a Ceia se transformasse num
le que cãpacitara os primeirÔíTdiscípulos substituto para a singularidade histórica
I a fazê-lo. Ademais, a Igreja jião preci- de Jesus, por isso evitou qualquer suges­
j sava perder a esperança pela falta de um tão de que o fundador do cristianismo
| retorno antecipado de Jesus, para encer- tivesse inaugurado um ato de culto des­
| rar este século mau. Jesus tinha voltado tinado a perpetuar sua encarnação atra­
no Confortador, para dar sentido ao vés de símbolos tangíveis. Em vez deste
ínterim antes da consumação final. O supersacramentalismo, Joâo insistiu que
mundo podia supor que a cruz destruísse a vida de Jesus se fixava no passado, mas
1 tudo o que Jesus dignificava, porque a que seu significado tornava-se presente
I morte parecia tê-lo banido da terra, mas para cada geração em que o Espírito
la Igreja sabia que seu Espírito estava vivo contemporanizava suas irrepetíveis pa­
je triunfante no meio dos crentes. lavras e atitudes (cf. sobre 6:52-65).32
1. A Última Ceia (13:1-30) 1) O Lava-pés dos Discípulos (13:1-11)
Esta cena de abertura, no cenáculo, é
1 A ntas d a f e s ta d a p á sc o a , sa b en d o J e s u s
surpreendente pelo que omite e pelo que e r a c h e g a d a a su a h o ra d e p a s s a r d e ste
que informa. O fato principal, nos Si­ m undo p a r a o P a l, e h av en d o a m a d o os se u s
nópticos — a instituição da Ceia do que e s ta v a m n o m u n d o , am o u -o s a té o fim .
Senhor — não é mencionado aqui, en­ %E n q u a n to c e a v a m , ten d o j á o D iabo posto
no c o ra ç ã o de J u d a s , filho d e S im ão Isc ario -
trando em seu lugar um acontecimento te s , q u e o tr a ís s e , 3 J e s u s , sab e n d o q u e o
— o lava-pés — não referido nos Sinóp­ P a l lhe e n tr e g a r a tu d o n a s m ã o s, e que
ticos. A razão básica deste silêncio pare­ v ie ra d e D eu s e p a r a D eu s v o lta v a , 4 le v a n ­
ce ser um desejo de livrar a Ceia da tou-se d a c e ia , tiro u o m a n to e, to m a n d o
incompreensão, vinda de duas direções. u m a to a lh a , cin g iu -se. S D epois d eito u á g u a
n a b a c ia e co m eç o u a la v a r o s p é s a o s
Primeiro, a data peculiar que João dá discípulos, e a e n x u g ar-lh o s com a to a lh a
para a última refeição, como sendo 14 de com que e s ta v a cingido. 6 C hegou, pois, a S i­
Nisã, na noite anterior à Páscoa (e não m ã o P e d ro , q u e lh e d is s e : S en h o r, la v a s -m e
15 de Nisã, na noite da Páscoa, como os p és a m im ? 7 R espo n deu -lh e J e s u s : O que
eu faço , tu n ã o o sa b e s a g o r a ; m a s d ep o is o
está nos Sinópticos) sugere uma preo­ e n te n d e rá s. 8 T o m o u -lh e P e d ro : N u n ca m e
cupação em distinguir o rito cristão de la v a r á s o s p é s. R eplicou-lhe J e s u s : Se eu
sua contraparte judaica. Embora a n ão te la v a r , n ã o te n s p a r te com igo. 9 D isse-
Páscoa possà ter fornecido certos ante­ lhe S im ão P e d ro : S en h o r, n ã o so m e n te os
cedentes históricos para a Ceia, as duas
observâncias jamais poderiam ter o mes­ 32 Este ponto de vista é desenvolvido por Helmut Koester,
"History and Cult in the Gospel of John and in Igna­
mo significado, porque esta se fundava na tius of Antioch” , louraal for Theology and the Church,
morte de Jesus nas mãos daqueles que se 1(1965), p. 111-123.
m eu s p é s, m a s ta m b é m a s m ã o s e a c a b e ç a . onde” e “para onde” — eram oriundos
10 R espondeu-lhe J e s u s : A quele q u e se b a ­ de Deus.
nhou n ão n e c e s s ita de la v a r se n ã o os p és,
pois, no m a is e s tá todo lim p o ; e vós e s ta is
A fim de iniciar seus discípulos no
lim pos, m a s n ão todos. 11 P o is e le s a b ia ministério de sua paixão iminente, Jesus
q u em o e s ta v a tra in d o ; p o r isso d is s e : N em agiu fora dessas realidades transcen­
todos e s ta is lim p o s. dentais e a partir de sua autoconsciência.
Do mesmo modo como o ‘livro dos Primeiro, ele tirou o manto, sugerindo
sinais” (capítulos 2 a 12) foi introduzido que abria mão de sua vida pelos seus (cf.
com uma contundente afirmação teoló­ 0 mesmo verbo, tithêmi, em 10:17,18).
gica (1:50,51), que tratava da chegada do Depois, cingiu-se com uma toalha (cf.
Homem dos céus à terra, o “livro da 1 Ped. 5:5), deitou água na bacia e co­
paixão” (capítulos 13 a 20) começa com meçou a lavar os pés aos discípulos.
um prefácio (13:1-13), igualmente exal­ Este estranho comportamento não teve
tado, que lança as bases teológicas sobre precedentes, primeiro porque aconteceu
as quais ele passaria deste mundo para o enquanto ceavam (cf. v. 2® e 49), depois,
Pai. Dois longos resumos oferecem uma porque ffa. comum banhaiLas^pis antes,
tríplice interpretação dos eventos que se .da refeição, e também porque nem mes­
desenrolarão. mo aos escravos judeus se pedia executar
tarefas tão servis. Na cena de abertura do
Primeiro, no verso 1: (1) Como a drama da paixão, Jesus demonstrou que
paixão de Jesus ocorreu antes da festa sua carreira terrena alcançava agora seu
judaica da Páscoa (cf. 18:28;19:14,31, apogeu. Depois de descer os degraus de
42), o drama do verdadeiro Cordeiro uma abjeta humilhação, começava agora
pascal (1:29,36) devia ser encenado sua ascensão aos píncaros mais elevados.
tendo a história sagrada de Israel como a ^ S ÍF 3 o p o n lomais baixo que se possa
pano-de-fundo. (2) Diferentemente das imaginar.
situações anteriores, quando as prema­ Às circunstâncias que favoreceram
turas pressões humanas se exerciam esta contundente estratégia talvez este­
(2:4;7:30;8:20), a hora de Jesus volunta­ jam descritas em Lucas 22:24-27. En-
riamente se sacrificar era agora chegada quanto os discípulos disputavam entre si
no cronograma divino (cf. 12:23,27; sobre quem era o maior, aauele aue
17:1). (3) O ato maior de obediência sabia que Deus lhe entregara tudo nas
envolvia amar os seus até o fim (cf. maos tomou nessas mãos os instrumentos
1:11,12), quantitativa (isto é, ao amargo do escravo mais vil (cf. Fil. 2:7) — nem
fim de sua vida) e qualitativamente (isto coroa nem cetro, mas iarro e bacia! —
é, ao derradeiro degrau; cf. 15:13). »Para demonstrar que a grandeza verda-<
Segundo, nos versos 2 e 3: (1) O ||Irai“ c<íÕ§j!% M q,no.J5gaiL òaS/T sei
ilimitado amor de Jesus para com seus ’ assenta, mas no jnodo cõmo se serve 1
seguidores era uma resposta deliberada à ? 7 T ^ u c T ^ 2 ! 2 7 l T b uso da água para lavar J
iniciativa do Diabo, para que Judas, filho pode sugerir que o trabalho humilde de
de Simão Iscariotes, o traísse (cf. 6:70, Jesus visava purificar seus seguidores de
71; 13:27). (2) Esta devoção sacrificial ao pecado|>qivsua morte próxima (cf. ÍToao
ponto da morte, por parte de Jesus, não f:7).
era um sinal de fraqueza, mas de onipo­ Como foi o caso também dos Sinóp­
tência por parte daquele que sabia que ticos (cf. Mar. 31-33), Pedro procurou
o Pai lhe entregara tudo nas mãos (cf. repudiar este paradoxo de um rei-escravo
Mat. 28:18). (3) Este sentido de autori­ por não saber ainda o que Jesus estava
dade soberana, num momento de perigo fazendo, embora depois — à luz da
mortal, fundamentava-se na certeza de crucificação e da ressurreição — o enten­
que sua origem e destino — seu “de desse (cf. 16:12,13). Firme, porém, Jesus
insistiu que, se não lavasse os pés de começos no passado e exige uma nova
Pedro — isto é, se Pedro se recusasse abertura para o futuro.
a aprender aquela lição — o seguidor não 2) O Exemplo de Jesus (13:12-20)
teria parte no destino de seu Senhor.
12 O ra , d ep o is d e lh e s te r la v a d o os p é s,
Diante dessa terrível alternativa, Pedro to m o u o m a n to , to rn o u a re c lin a r-s e à m e s a
impulsivamente passou para o extremo e p e rg u n to u -lh e s: E n te n d e is o q u e vos ten h o
oposto, pedindo, então, muito mais do feito? 13 Vós m e c h a m a is M e s tre e S en h o r;
que lhe fora oferecido: Senhor, não e dizeis b e m , p o rq u e e u o sou. 14 O ra, se e u ,
o S enhor e M e s tre , vos la v e i os p é s, ta m b é m
somente os meus pés, mas também as vós d e v e is la v a r os p é s u n s a o s o u tro s.
mãos e a cabeça! 15 F o rq u e e u v o s d e i e x e m p lo , p a r a q u e ,
com o e u vos fiz, fa ç a is vós ta m b é m . 16 E m
Para corrigir estes extremos, Jesus v e rd a d e , e m v e rd a d e v o s d ig o : N ão é o
contou a pequena parábola da banheira e serv o m a io r do q u e o se u se n h o r, n e m o
da bacia: Aquele que se banhou por en v iad o m a io r do q u e a q u e le q u e o en v io u .
completo antes da refeição não necessi­ 17 Se sa b e is e s ta s c o isa s, b e m -a v e n tu ra d o s
sois se a s p ra tic a r d e s . 18 N ão falo d e todos
tava de lavar todo o seu corpo novamen­ v ó s; e u co n h eço a q u e le s q u e e sc o lh i; m a s
te, quando chega à casa do anfitrião, p a r a q u e se c u m p r a a e s c r itu r a : O q u e
pois já está todo limpo. No entanto, c o m ia do m e u p ã o , le v a n to u c o n tra m im o
precisava lavar... os pés, que tinham-se se u c a lc a n h a r. 19 D esd e j á vo-lo digo, a n te s
sujado no caminho. Desse modo, Pedro e que su c e d a , p a r a q u e , q u an d o su c e d e r,
c re ia is q u e e u so u . 20 E m v e rd a d e , e m v e r ­
os outros já estavam limpos, devido o seu d a d e vos d ig o : Q uem re c e b e r a q u e le q u e e u
antigo compromisso com Jesus (cf. 15:3) e n v ia r, a m im m e r e c e b e ; e q u e m m e r e ­
— com exceção, é claro, de Judas, que ceb e a m im , re c e b e a q u e le q u e m e enviou.
o estava traindo — continuavam, porém,
Depois de ter “tirado o manto” (v. 4),
necessitados de terem sua compreensão
como símbolo da forma como entrega­
purificada, por assim dizer, das “impu­
ria sua vida, Jesus agora tomou o manto
rezas da viagem” na peregrinação do
novamente, como um símbolo da forma
discipulado. A conversão, que conquista
como retomaria sua vida (cf. o mesmo
o pecado, envolve um começo decisivo,
verbo, lambanõ, em 10:17), reassumin­
que transforma a base para uma reno­
do, assim, o seu devido lugar como
vação diária da graça.
Mestre e Senhor. Ora, se ele, cuja
Este diálogo entre Jesus e Pedro ilu­ humilhação seria legitimada por Deus na .
mina, de modo brilhante, a dinâmica de ressurreição, se prontificara a lavar os 1
uma fé em formação. De início, Pedro pés aos discípulos, deviam eles também I
recusou-se a aprender a dura lição da lavar os pés uns aos outros. Ademais, eleH
cruz, na presunção de que seu compro­ 'era o Senhor e eles os servos; ele era o /
misso já se completara, o que evidenciava que enviava, eles os enviados. O modelo-4
a necessidade de descobertas mais pro­ “ da paixão de Jesus não oferecia apenas
fundas, como essenciais a um relacio­ verdades abstratas passíveis de conheci­
namento com Jesus. Reagindo a esta mento, mas um exemplo correto, para
recusa, ele adotou o erro oposto, de que 0 praticassem, unindo assim a teo­
achar que todos os seus compromissos logia à ética. No primeiro século, a hu­
anteriores eram agora sem valor. Jesus, mildade não era vista como uma virtude,
porém, assegurou-lhe que não é necessá­ mas Jesus fez dela o símboÍõ~do^isdpu-
rio começar tudo de novo, para superar lãdõ. Ãspríorida3esc5I5cãHãs^£stãrpa?
as limitações anteriores. A um jovem, sagem, assim, alteram o padrão moral da
por exemplo, não se pede que renuncie humanidade.
um batismo realizado em tempo de Surge, porém, um problema, porque a
criança para que se possa tomar um prática utilizada por Jesus, para dar um
crente maduro. Jesus valoriza nossos exemplo de humildade, ^não existe em
nossa cultura. Para os primeiros discí- d a d e vos digo q u e u m d e v ó s m e h á de tr a ir .
pulóTnlãa poderia dramatizar de modo 22 Os d iscíp u lo s se e n tre o lh a v a m , p e rp le ­
xos, se m s a b e r d e q u e m e le fa la v a . 23 O ra ,
mais víyido o papel de servo Ho que o a c h a v a -se re c lin a d o so b re o p eito d e J e s u s
lãvãrdoTsêus pés (cf. I TinT BTÍÜTrFâra“ u m de se u s d iscíp u lo s, a q u e le a q u e m J e s u s
o homem ocidental contemporâneo, a m a v a . 24 A e s s e , p o is, fez S im ão P e d ro
todavia, este gesto não tem um signi­ sin a l, e lh e p e d iu : P e rg u n ta -lh e de q u e m
é que fa la . 25 A quele discíp u lo , re c o stan d o -
ficado evidente em si mesmo. Para levar­ se a s s im ao p eito de J e s u s , p e rg u n to u -lh e :
mos adiante a intenção de Jesus, preci­ S enhor, q u e m é? 26 R e sp o n d eu J e s u s : É
samos buscar novas formas de servifTqüê’ a q u ele a q u e m e u d e r o p ed aç o de p ão
m olhado. T endo, p o is, m o lh ad o u m bocado
sociedade'. que joujava^pés^iia Palestina de p ão , deu-o a J u d a s , filho d e S im ão Isc a -
rio te s. 27 E , logo ap ó s o b o cad o , e n tro u nele
antiga. S a ta n á s . D isse-lhe, pois, J e s u s : O que fa z e s,
Como aconteceu no parágrafo anterior faze-o d e p re s s a . 28 E n e n h u m dos q u e e s t a ­
(v. 10 e 11), esta unidade também v a m à m e s a p e rc e b e u a q u e p ro p ó sito lhe
termina com uma sombria referência à d isse is to ; 29 p o is, com o J u d a s tin h a a b o lsa,
traição de Judas. Talvez Jesus tenha p e n sa v a m a lg u n s q u e J e s u s lh e q u e ria d i­
z e r: C o m p ra o q u e nos é n e c e ss á rio p a r a a
percebido que sua insistência sobre o fe s ta ; ou, q u e d e sse a lg u m a c o isa a o s p o ­
serviço inferior tenha sido a ênfase que b re s . 30 E n tã o e le , ten d o re c eb id o o b o cad o ,
Judas mais violentamente recusava. De sa iu logo. E e r a noite.
qualquer modo, Jesus não se surpreen­
deu com o fato de que esta rejeição tenha A simples menção de um traidor em
vindo do círculo dos discípulos, pois a seu círculo turvou o espírito de Jesus
própria Escritura registrava que mesmo (cf. 11:33;12:27). É esta a última vez que
um “amigo do peito” pode desdenhar a semelhante desordem interior é mencio­
hospitalidade que se lhe oferece, como nada neste Evangelho, sugerindo que a
um animal se vira contra as mãos daque­ deserção de um discípulo íntimo de Jesus
le que o alimenta (Sal. 41:9). Jesus esco­ antecipava a agonia da cruz. Embora a
lhera correr este risco, ao procurar pes­ traição fosse um assunto de relevância
soas de vivências variadas, e, agora, maior (Em verdade, em verdade), que o
estava consciente de que Judas não res­ grupo precisava conhecer antecipada­
pondera ao seu generoso amor (v. 1 e 2). mente (cf. v. 19), Jesus preferiu escon­
Por isso, avisou antecipadamente os der a identidade do réu (um de vós),
seus discípulos que, quando a traição desse modo protegendo-o da fúria de
sucedesse, soubessem que ele não era seus companheiros, mantendo a possibi­
uma vítima desesperada, mas, sim, o lidade de uma mudança e confrontando
grande Eu sou (ego eimi); isto é, ele cada um dos presentes com a necessi­
representava a presença divina de Deus, dade do auto-exame (cf. Mar. 14:19),
cuja providência não devia ser menos­ onde todos os discípulos começam a
prezada, mesmo diante das terríveis perguntar: “ Sou eu?”).
escolhas que permitia aos homens. Ca­ Confusos diante deste anúncio, os dis­
racteristicamente, este aviso se acom­ cípulos fizeram sinal, através de Simão
panhava da promessa de que aquele que Pedro, para aquele a quem Jesus amava,
estivesse pronto para ser enviado por a fim de que perguntasse por eles quem
J H u ^ n u r iw ln is s |o ^ õ n ^ u m apóstolo: era aquele de quem falava. Nesta pri­
servo, estaria unido n ão somente a Jesus, meira referência explícita ao “discípulo
mas a Deus, que o envlatft, amado” (cf. sobre 11:3) não fica claro se
era considerado um dos doze ou não.
3) A Traição Feita a Jesus (13:21-30) Assentado à direita de Jesus à mesa, sua
21 T endo J e s u s d ito isto , tu rb o u -se e m cabeça se recostava ao peito de Jesus
e sp írito , e d e c la ro u : E m v e rd a d e , e m v e r ­ (cf. 1:18), quando se reclinavam para a
esquerda, durante a refeição, facilitan­ partida do emissário do diabo, Judas, em
do, assim, uma consulta em voz sussur­ 13:30, e a chegada do próprio príncipe
rante. À pergunta de Pedro (Quem é?), satânico, em 14:30,31. Entre esses pon­
ele disse: £ aquele a quem eu der o tos, Jesus contrapôs este desenvolvimento
pedaço de pão molhado. Na prática sinistro, ao discutir, com os discípulos,
social daquela época, isto era o símbolo sobre sua partida para o Pai e sua volta,
de um favor especial o hospedeiro mo­ para morar com eles. Este tema é domi­
lhar o pão na compota e servir pessoal­ nante de 13:31 a 14:31, com os verbos
mente ao convidado. “ir" e “vir" (akolouthêo, erchomai,
Sugere isso que a identificação de poreuomai, hupagõ), sendo usado pelo
ludas desta maneira teve um caráter menos 20 vezes num sentido mais espi­
mais particular do que público. Para ritual do que espacial.
Jesus, este gesto simples representava o A estrutura interna desta coleção de
último apelo de amor àquele que beirava sentenças se erige em tomo de perguntas
a perdição (cf. 17:12). Para Judas pode de quatro discípulos identificados (Pe­
ter parecido como um convite final à dro, Tomé, Filipe, Judas), as quais se
aceitação da estratégia do amor sofredor distribuem pela seção, para levar o diá­
que Jesus propunha, uma oferta recusa­ logo adiante (13:36;14:5,8,22). Tomadas
da quando permitiu que Satanás entrasse conjuntamente, estas perguntas não só
nele. Para os discípulos, entretanto, pode refletem a preocupação dos seguidores de
ter sido apenas um gesto de previdência Jesus nos momentos que antecederam
por parte de Jesus, ao despachar Judas sua morte como também os atribulados
para uma rápida missão, uma vez que problemas da igreja apostólica ao tempo
tinha a bolsa contendo os recursos do da produção deste Evangelho. A questão
grupo (cf. 12:6). Parece que nenhum ... básica era: Onde está Jesus? Como seus
da mesa (exceto o discípulo amado) seguidores se relacionam com ele agora e
percebeu que Jesus se utilizara de um entre si? A resposta básica, aqui desen­
terno gesto de afeição para designar seu volvida, foi: O Jesus ressurrecto se rela­
traidor. Isto explicaria seu fracasso em ciona com os crentes na terra do mesmo
conter Judas quando este empreendia seu modo como o Pai se relacionava com ele
sinistro negócio. na terra. A intimidade do homem Jesus
Quando Judas saiu, a porta que se com o seu invisível Pai celestial transfor­
abriu revelou que a noite caíra. As trevas mou-se no modelo do vínculo agora
eram um lugar próprio para abrigar existente entre a Igreja e seu assunto
Judas na realização de seus negros desíg­ Senhor (14:20). Do mesmo modo a pre­
nios (3:19). Dentro, porém, partido o sença do Espírito concedido pelo Pai a
traidor, podia Jesus agora compartilhar Jesus (1:32,33;3:34) outra coisa não era
com seus discípulos a glória do Filho do senão a presença do próprio Pai com ele
Homem (v. 31). Assim, o cenário estava (5:19,20; 10:30,38), a presença do Para-
montado para o ato final, no drama da cleto concedido por Jesus à Igreja (14:
luz que “resplandece nas trevas” (cf. 16,17,25,26) também deve ser entendida
1:5a). O discurso final (13:31-16:33), a como a presença do Senhor com ela
ter início, explicará como “ as trevas (14:3,18,23).
prevaleceram contra ela” (cf. 1:5b; O tema dos corações turbados, no
16:33). começo (14:1) e no fim (14:27) desta
seção, sugere que seu propósito funda­
2. A Partida e a Volta de Jesus (13:31-
mental era dar segurança à comunidade,
14:31)
que estava temerosa porque perdera,
O primeiro conjunto a se desenvolver diante da inexorável marcha do tempo,
no discurso final tem como marco a seus laços com a geração cristã original.
Quando a morte desatava os últimos elos presente e a era futura), mas parado­
com aqueles que tinham testemunhado xalmente, isto é, pela fé vive-se onde os
a encarnação, recordava-se, a igreja de dois mundos se interpenetram e as duas
então, que Jesus prometera, aos seus eras se sobrepõem.
seguidores, uma situação melhor depois
de sua partida, e não antes (14:28,29). 1) A Discussão com Pedro (13:31-38)
Observe-se as vantagens da era pós- 31 T endo e le , pois, saíd o , d is se J e s u s :
ressurreição descritas nesta seção: (1) A gora é g lo rificad o o F ilh o do h o m e m , e
o apoio de uma comunidade de amor D eus é g lo rificad o n e le ; 32 se D eu s é g lo ri­
(13:34,35); (2) a preparação de um lugar ficado n e le , ta m b é m D eu s o g lo rific a rá e m
si m esm o , e logo o h á d e g lo rific a r. 33 F ilh i-
na casa do Pai (14:2,3); (3) o conheci­ nhos, a in d a p o r u m pouco esto u convosco.
mento do caminho da salvação (14:4-6); P ro c u ra r-m e -e ls ; e com o e u d isse a o s j u ­
(4) o poder para efetuar obras maiores do deu s, ta m b é m a vós o digo a g o r a : P a r a onde
que as de Jesus (14:12); (5) o privilégio da e u vou, n ã o p o d eis vós ir . 34 U m novo m a n ­
oração intercessória (14:13,14); (6) a d am e n to vos d o u : q u e vos a m e is u n s a o s
o u tro s; a s s im com o e u vos a m e i a vós, que
ajuda do Paracleto ou Espírito da ver­ ta m b é m vós vos a m e is u n s ao s o u tro s.
dade (14:16,17,25,26); (7) o retomo pes­ 35 N isto co n h e c e rã o todos que so is m e u s d is ­
soal de Jesus e seu Pai para fazerem cípulos, se tiv e rd e s a m o r u n s a o s o u tro s.
morada em seus amados (14:18-23); e 36 P e rg u n to u -lh e S im ão P e d ro : S enhor,
p a r a onde v a is ? R esp o n d eu J e s u s : P a r a
(8) a provisão de uma paz que o mundo onde eu vou, n ã o po d es a g o ra se g u ir-m e ;
não conhece (14:27). m a is ta r d e , p o ré m , m e s e g u irá s ; 37 D isse-
Evidentemente, o Quarto Evangelho lh e P e d ro : P o r q u e n ã o posso se g u ir-te a g o ­
não minimizou a primeira vinda de Jesus r a ? P o r ti d a re i a m in h a v id a . 38 R esp o n d eu
no centro da história (l:14;6:53-58) e J e s u s : D a rá s a tu a v id a p o r m im ? E m v e r ­
dad e, e m v e rd a d e te d ig o : N ão c a n ta r á o
nem sua vinda final no término da galo a té q u e m e te n h a s n e g ad o tr ê s vezes.
história (5:28,29;6:39,40,44,54;12:48),
embora dê igual ênfase à sua vinda espi­ Uma vez que Judas saíra, dentre os
ritual durante o ínterim entre as duas. discípulos, para o tempo final (cf. I João
O tipo de material apocalíptico contido 2:18,19), esses eventos eram agora colo­
no grande discurso escatológico que cados em movimento, para que Jesus
neste ponto acontece nos Sinópticos (Mat. pudesse ser glorificado como o Filho do
24-25; Mar. 13; Luc. 21) não se escon- homem (17:1). Como Jesus não buscava
tra aqui, talvez devido ao mal-entendido, glória para si, Deus também seria glori­
por parte dos cristãos antigos, de que o ficado pelo amor obediente de Jesus,
fim do mundo aconteceria em sua gera­ demonstrado na cruz, como o fora em
ção (cf. Mat. 24:29,34; Mar. 13:29,30; todo o ministério dele, que chegava agora
Luc. 21:31,32). ao seu clímax. Observe-se que o próprio
Em vez disso, na teologia da existência Deus dava a glória que recebia em troca;
cristã desenvolvida em João 13 a 17 e, isto é, a obra de Jesus era um ato divino
especialmente, em 13:31 a 14:31, temos a desde o início até o fim. Tudo o que um
mais ousada reinterpretação da relação homem pode fazer para acentuar a
entre o tempo e a eternidade, que não se “reputação” ou o “prestígio” de Deus na
encontra em qualquer outro lugar do terra é deixar Deus ser Deus em sua vida
Novo Testamento. Agora, que o Reden­ como Jesus o fez na su a .33
tor escatológico penetrara no processo Observe-se também que esta glorifi­
histórico, os dois reinos não mais se cação de Jesus era uma coisa do passado
relacionavam espacialmente, como no
pensamento grego (o mundo superior e o 33 Sobre o significado de “ glória” , veja A. M. Ramsey,
The Glory of God and the Transfiguration of Christ
mundo inferior), ou temporalmente, (London: Longmans, Green and Co., 1949), e sobre
como no pensamento hebraico (a era o seu emprego em Joào 13 a 17, veja as p. 69-81.
(é glorificado) e do futuro (glorificará), aonde ele ia, mas que deviam amar como
que quer dizer que o compromisso para ele amou, Pedro procurou fugir a esta
sofrer já fora efetuado, mas ainda será responsabilidade, perguntando o que
levado avante. Deus não é honrado por Jesus iria fazer (cf. 21:18-22). Quando
uma decisão momentânea, que não con­ soube que não podia seguir Jesus agora
duza a gestos de coragem, ou por atos (isto é, Jesus não podia compartilhar sua
impulsivos, desligados de decisões pro­ cruz), mas haveria muitas oportunidades
fundas e permanentes, mas, sim, por sua para seguir a Jesus mais tarde (isto é,
vida coerente, em que a palavra e o ato, o novas possibilidades para o discipulado
interior e o exterior, o passado e o futuro surgiram após sua morte), Pedro ignorou
são uma coisa só. esta promessa de um futuro brilhante e,
Como sua glorificação na morte ocor­ em sua impaciência de realizar tudo
reria imediatamente adiante (logo), Jesus agora, ofereceu dar a sua própria vida
estaria com seus filhinhos (cf. o grego por Jesus.
orfanos, em 14:18) ainda por um pouco Como resposta, Jesus desafiou a cora­
(cf. 16:16-24) e, então, iria para onde josa declaração de Pedro, garantindo-lhe
não poderiam por enquanto ir (contraste- solenemente que o galo não cantaria até
se com 7:33-36, onde aos judeus não é que ele o negasse pelo menos três vezes.
dada qualquer esperança de outra volta). O “cantar do galo” era o nome dado à
Neste ínterim, para preencher o vazio, terceira vigília da noite (12h às 3h da
criado por sua ausência física, os discí­ madrugada). Jesus predisse, então, que a
pulos foram concitados a amarem uns lealdade de Pedro não duraria até a
aos outros, como ele os amara (cf. 13:1). manhã seguinte! Não há razão para se
' Este mandamento era novo e transfor- ^ duvidar das boas intenções de Pedro; só
mava o amor na realidade ética central / que eram inadequadas para a provação
da vida e o definia a partir do exemplo j que Jesus enfrentava. O dramático con­
' histórico de Jesus. O israelita era con­ traste, nas duas partes desta passagem,
vidado, pelo Yelho Testamento, a amar o entre o “Eu vos amei” de Jesus e o “Por ti
seu próximo como a si mesmo (Lev. darei a minha vida” de Pedro realça a
19:18), enquanto p discípulo devia se verdade de que o discipulado não pode se
igualar àquele que amara seu próximo basear no como damos a vida por ele,
mais do que a si mesmo (cf. 15:13). mas no como dá ele sua vida por nós.
Obviamente, um amor baseado na
revelação única, concedida em Jesus, não 2) A Discussão com Tomé (14:1-7)
precisa de mais nada; mesmo limitado 1 N ão se tu r b e o vosso c o ra ç ã o ; c re d e s
aos discípulos,„.este amor era visto como e m D eu s, c re d e ta m b é m e m m im . 2 N a c a s a
um testemunho a todos os homens. d e m e u P a i h á m u lta s m o r a d a s ; s e n ã o fo sse
Como Jésus estava de partida, seus se­ a ss im , eu vo-lo te r ia d ito ; vou p re p a ra r-v o s
lu g a r. 3 E , se e u fo r e vos p r e p a r a r lu g a r,
guidores não precisavam mais ser identi­ v irei o u tra vez, e vos to m a re i p a r a m im
ficados pela proximidade da presença m esm o , p a r a q u e onde e u e s tiv e r e s te ja is
física dele, mas pela sua perpetuação da vós ta m b é m . 4 E p a r a onde eu vou vós
forma de amor dele na vida de uma con h eceis o c a m in h o . 5 D isse-lh e T o m é ; S e­
comunidade visível . n h o r, n ã o sa b e m o s p a r a onde v a i s ; e com o
p o d em o s s a b e r o c a m in h o ? 6 R espondeu-
A prova de que a moralidade cristã lh e J e s u s : E u sou o ca m in h o , e a v e rd a d e e a
deve se fundamentar no exemplo de v id a ; n in g u ém v e m a o P a i, se n ã o p o r m im .
Jesus, e não nos impulsos interiores ou 7 Se vós m e c o n h e c ê sse is a m im , ta m b é m
mesmo nas sinceras convicções dos dis­ c o n h eceríeis a m e u P a i ; e j á d e sd e a g o r a o
co n h eceis, e o te n d e s v isto .
cípulos, foi logo propiciada por Simão
Pedro. Mesmo depois de Jesus ter decla­ Havia muitos motivos para os corações
rado explicitamente que eles não iriam dos discípulos estarem turbados: um
deles traíra Jesus (13:10,11,18,21); outro agora aprender que o “corpo” de Cristo
o negaria três vezes (13:38); mais pertur- (2:21) — isto é, a Igreja — era como um
badoramente ainda, Jesus estava indo santuário, onde se~põaiã encontrar., ao
para onde ninguém poderia segui-lo mesmo tempo, ã~IrêâÍTda3e de Deus e
(13:33,36). Como um antídoto para o' "um luga^de descanso Dara o peregrino.
..................... r ^ ^
fdesespero, Jesus os convidou para cre- UmaÇsegunda linha]de comparação é
(rem em Deus e nele mesmo. Pela fé, seu sugerida pelo relato dos Sinópticos, de
| mundo, que parecia tão vazio sem ele, se como Jesus, no dia anterior, enviou dois
í tomaria, em vez de uma casa mal-assom- de seus discípulos adiante, para “prepa­
Jbrada, um lar espiritual, com muitas rarem” um “ aposento” especial, onde
moradas, que incluíam um lugar prepa­ pudessem comer a Páscoa (Mar. 14:
rad o para eles quando da “partida” (isto 12-16). Eles não sabiam o caminho, mas
|é, morte e ressurreição) de Jesus. _J seguiram um homem, que os levou a
/ A Versão do Rei Tiago (KJV), nesta “um grande cenáculo” , onde tudo estava
passagem, traduz moradas como “man­ “preparado” . Este acontecimento pode
sões” . Este termo foi tomado por Tyn- ter sido utilizado como uma analogia, em
dale diretamente do latim mansiones, que o relacionamento dos discípulos com
que significa, como o grego monai, Jesus, depois de sua partida, se asseme­
“residência, morada, habitação, acam­ lharia à íntima comunhão que experi­
pamento de descanso ou estância” . A mentaram então com ele num lugar pre­
ênfase n&-R&lavra original estava num parado de uma casa com muitos apo­
lugar de permanência e não na espeta- sentos.
cularidade do local. 34 Tem sido uma tradição interpretar os
Duas possíveis circunstâncias devem versos 1-3 como uma promessa de que,
ter levado Jesus a descrever süãi futuras na sua morte ou em seu segundo ad­
relações com os discípulos como de uma vento, Cristo viria outra vez e tomaria os
vida em comum numa casa de muitas crentes para estarem com ele nos céus.
moradas.(Primeiro^estas palavras foram Especialmente na tradução King James
proferidas próximas à sombra do Tem­ (KJV), que usa “ mansões” , a passagem
plo, geralmente chamado de casa do Pai tem oferecido grande conforto e espe­
(cí; 2:16). Fora do santuário (grego, rança como um texto funeral favorito.
naos) propriamente dito havia muitos Uma série de considerações sugere, no
abrigos, onde os cansados peregrinos entanto, que esta passagem deve referir-
podiam descansar. Jesus pode ter-se se basicamente, a uma vinda do Cristo
aludido a esta situação familiar quando ressuscitado ao crente durante esta- vida
ensinou que prepararia um lugar (grego, terrena, para fortalecer e reanimar seu
topos, um termo comum para o Templo, atribulado coração:
como em 11:48), isto é, por sua morte e (1) A preocupação central dos discí­
ressurreição, glg-se tornaria o verdadeiro pulos no contexto maior não é saber
templo espintuaH i n ^ l T r e i ^ ê n d k v ^ aonde irão após a morte, mas se ficarão
universo com a presença de Deus (4:2T- sozinhos na terra depois da partida de
'24T"cf. Is. 66:1)7íSo deixando sequer um Jesus para o Pai (13:33,36,37). (2) A
canto vazio e nenhum aposento deso­ resposta de Jesus é que os discípulos não
cupado.- Isto devia ser relevante para os seriam abandonados, mas que ele e o Pai
judeus depois do ano 70 A.D., quando viriam habitar com eles na presença do
foram obrigados a deixar Jerusalém com Paracleto (14:16,17,18,21,23,28). (3) A
seu Templo físico destruído; eles podiam palavra-chave moradas (grego, monai),
no verso 2, encontra-se novamente em o
34 Para detalhes sobre o significado e a interpretação Novo Testamento apenas no verso 23,
de monai nesta passagem, ver Smith, p. 118-122. onde é traduzida por “lar” . E lá a
referência é a forma como os crentes único caminho pelo qual se pode ir ao
devem aprender a viver “em casa” , neste Pai. Apesar de os discípulos não terem
mundo, depois da encarnação, porque o alcançado seu destino final, podiam estar
Cristo exaltado e seu Pai virão outra vez, certos de que Deus esperava por eles ao
para habitar com eles numa comunhão fim de sua peregrinação. Segunda, co­
espiritual. nhecer Jesus significava conhecer o Pai
Se esta é a direção principal do texto, também, inseparáveis que eram (cf.
seu ensino serve não para enfraquecer, 10:30). Num certo sentido, o fim fora
mas para fortalecer a esperança cristã antecipado do início, quando Deus per­
pelos céus. Nossas experiências com Cris­ mitiu ser visto na vida terrena de seu
to, durante a peregrinação terrena, ofe­ Filho.
recem evidências de que ele venceu a
morte, o que nos garante que nele 3) A Discussão com Filipe (14:8-14)
podemos um dia fazer o mesmo. João 14 8 D isse-lh e F ilip e : S en h o r, m o stra -n o s o
'promete não apenas que um dia iremos P a i, e isso n o s b a s ta . 9 R esp o n d eu -lh e J e ­
para o céu (para o que, vejam-se pas­ su s : H á ta n to te m p o q u e e sto u convosco,
e a in d a n ã o m e co n h e c es, F ilip e ? Q uem m e
sagens como 17:24), mas que Jesus iá v lu a m im , viu o P a i ; co m o d izes tu : M o stra-
trouxe o céu para nós. Talvez o melhorJ nos o P a i? 10 N ão c rê s tu q u e e u e sto u n o
^comentário sõErêõnde eu estiver estejais P a i, e q u e o P a i e s tá e m m im ? A s p a la v r a s
vós também venha da Grande Comissão: que e u v o s dig o , n ã o a s d ig o p o r m im m e s ­
m o ; m a s o P a i, q u e p e rm a n e c e e m m im , é
“E eis que estarei convosco todos os dias q u e m fa z a s s u a s o b ra s . 11 C red e-m e q u e e u
até a consumação dos séculos” (Mat. esto u n o P a i, e q u e o P a i e s tá e m m im ;
28:20). c re d e a o m e n o s p o r c a u s a d a s m e s m a s
Até este ponto, o destino da cami­ o b ra s. 12 E m v e rd a d e , e m v e rd a d e vos d ig o :
nhada de Jesus não pudera ser identifi­ A quele q u e c rê e m m im , e sse ta m b é m f a r á
a s o b ra s q u e e u fa ç o , e a s f a r á m a io re s do
cado (13:33,36; 14:2,3). Agora, porém, que e s ta s ; p o rq u e e u v o u p a r a o P a i ;
ele disse aos discípulos que eles sabiam 13 e tu d o q u a n to p e d ird e s e m m e u n o m e ,
o caminho para onde ia, isto é, eles e u o fa r e i, p a r a q u e o P a i s e ja g lo rific ad o no
conheciam a estrada, mas não para onde F ilho. 14 Se m e p e d ird e s a lg u m a c o isa e m
ela levava. De imediato, Tomé objetou m e u n o m e, eu a fa re i.
que um conhecimento do destino era Apesar das explicações oferecidas por
necessário para que se conhecesse o Jesus, nos versos 1 a 7, os discípulos con­
caminho. A isto, Jesus replicou que ele tinuaram confusos. Jesus se apresentava
mesmo era o caminho verdadeiro e vivo. como “o caminho” , embora seu itinerá­
e isto era tudo quanto necessitavam rio conduzisse diretamente a uma cruz;
saber. Em outras palavras, eles começa­ como “a verdade” , embora não conse­
ram a seguir na direção certa (13:36) guisse convencer nenhum dos líderes
antes de verem o destino final. Bem ao religiosos a adotar sua causa; como “a
contrário dos apocalípticos ou dos gnós- vida” , etnbora fosse morrer em menos de
ticos, o crente não precisava de algum 24 horas!
conhecimento esotérico especial do além Filipe serviu de porta-voz ao desejo dos
para seguir agora no caminho da salva­ discípulos, por uma evidência menos
ção. Embora, como os outros, deva viver ambígua no que crer (cf. v. 8): Senhor,
num mundo de pecado e trevas, não há mostra-nos o Pai, e isto nos basta.
razão para ele duvidar da realidade de Novamente Jesus explicou que a fé cristã
um mundo melhor, só por não ter sido não descansa sobre epifanias espeta­
ainda alcançado. —• culares, como as anunciadas por outras
Duas razões são apresentadas aos dis­ religiões, pois Deus não viera em deslum­
cípulos, sobre a suficiência de seguir-se a brante esplendor, mas em carne huma­
Jesus como o caminho. Primeira, ele é o na: Quem me viu a mim, viu o Pai (cf.
I João 1:1). Isto não quer dizer que o (v. 13). Uma vez que chegara sua obra de
Deus eterno se limitou à breve vida redenção ao fim, exaltado que foi ao Pai,
terrena de Jesus, mas que escolheu estar ele faria pelos seus tudo o que estes
presente aqui de modo singular. pedissem em seu nome, isto é, coerente
Tão completa era a mútua habitação com sua natureza revelada por sua vida
do Pai e do Filho que as palavras e obras terrena (cf. 16:23,24). Tudo que Jesus fez
de Jesus eram também as palavras e na carne tinha glorificado o Pai (cf. 13:
obras de Deus. Filipe encontraria a 31,32). Agora podia ajudar os seguidores
^ resposta a seu pedido crendo no que a continuarem esta missão através do
Jesus disse: Eu estou no Pai, e o Pai... poder da oração respondida.
está em mim. Se esta última afirmação
parecia difícil de aceitar, ele devia come­ 4) A Discussão com ludas (14:15-24)
çar a crer nele por causa das obras, que 13 Se m e a m a r d e s , g u a rd a r e is os m e u s
até mesmo os judèus reconheceram que m a n d a m e n to s . 16 E e u ro g a r e i a o P a i, e ele
“ninguém pode fazer... se Deus não vos d a r á o u tro C o n so lad o r, p a r a q u e fiq u e
convosco p a r a s e m p re , 17 a s a b e r , o E s p í­
estiver com ele” (3:2). Na verdade a fé rito d a v e rd a d e , o q u a l o m u n d o n ã o pode
fundada em milagres não é tão madura re c e b e r ; p o rq u e n ão o v ê n e m o co n h e c e ;
quanto a fé pessoal, sendo melhor crer de m a s vós o co n h eceis, p o rq u e e le h a b ita c o n ­
forma superficial do que não crer de vosco, e e s t a r á e m vós. 18 N ão vos d e ix a re i
modo algum (cf. a respeito 2:23-25; ó rfão s; v o lta re i p a r a v ó s. 19 A in d a u m p o u ­
co, e o m u n d o n ã o m e v e r á m a is ; m a s vós
5:36). Pelo menos, as obras eram sinais, m e v e re is , p o rq u e e u v iv o , e vós v iv e re is.
que apontavam para realidades maiores 20 N aq u ele d ia c o n h e c e re is q u e e sto u e m
do que eles. Embora seja melhor ter a m e u P a i, e v ó s e m m im , e eu e m vós.
realidade do que o sinal, é também 21 A quele q u e te m os m e u s m a n d a m e n to s e
os g u a rd a , e ss e é o q u e m e a m a ; e a q u e le
melhor ter o sinal do que estar perdido! que m e a m a s e r á a m a d o de m e u P a i, e eu
Se os discípulos, na verdade, cressem o a m a r e i, e m e m a n ife s ta re i a ele. 22 P e r ­
em Jesus, em vez de ficarem presos às gu ntou-lhe J u d a s (n ão Is c a r io te s ) : O q u e
suas declarações, fariam também as h ouve, S en h o r, q u e te h á s d e m a n ife s ta r a
obras que ele fez. De fato, como sua nós, e n ã o a o m u n d o ? 23 R esp o n d eu -lh e J e ­
su s : Se a lg u é m m e a m a r , g u a r d a r á a m in h a
partida para o Pai, pela morte e ressur­ p a la v r a ; e m e u P a i o a m a r á , e v ire m o s a
reição, anunciava uma era de plenitude, ele, e fa re m o s n e le m o ra d a . 24 Q uem n ã o m e
nessa nova era os discípulos deveriam a m a , n ã o g u a rd a a s m in h a s p a la v r a s ; o ra , a
realizar obras maiores do que estas. p a la v r a q u e e s ta is ouvindo n ã o é m in h a ,
m a s do P a i q u e m e enviou.
Como as obras visavam produzir fé, esta
promessa cumpriu-se de modo trans- As grandes promessas dos versos 12 a
bordante pela missão cristã aos gentios, 14 não foram feitas incondicionalmente.
que resultou em mais crentes do que os Se me amardes (cf. v. 21) controla todo o
obtidos por Jesus na terra. Se os leitores contexto em que Cristo oferece auxílio
deste Evangelho se desencorajassem àquele que guarda os seus mandamentos
por terem visto a partida do Jesus ter­ (cf. 13:34). Não somente deviam orar
reno, sem verem seu retomo em glória, a ele (v. 13 e 14), mas ele mesmo rogaria
deviam compreender que a expansão do ao Pai, que daria aos discípulos outro
movimento cristão, com a conversão dos Consolador (grego, Paraklêtos). No limi­
homens, era uma obra mais poderosa do tado período em que com eles estivera,
que algum desfecho espetacular na his­ Jesus fora sua fonte de força, mas agora
tória que excluísse essa possibilidade teriam um confortador, defensor e ins­
para sempre. trutor, que estaria com eles para sempre.
Diante da perfeita unidade de Deus e Na verdade, o mundo não podia receber
Jesus (v. 9-11), este era um objeto não só o Paracleto, porque não o vê nem o
de fé (v. 12), mas também de oração conhece, mas isto não representava qual­
quer problema, já que o próprio Jesus no coração humano que os discípulos
não fora melhor tratado. Ele também prepararam pelo amor.
não fora recebido (1:11;3:11,32;5:43; Nesta passagem, temos, uma das res­
12:48) por um mundo que “não o conhe­ postas mais profundas do Novo Testa­
cia” (1:10,26;8:14,19) e não viu o Pai mento à protelação da Parousia. Ántes
operando em sua vida (6:36). Mesmo os do fim dos tempos, Cristo já viera à
discípulos acharam difícil conhecer e ver Igreja no ínterim posterior à sua ressur­
Jesus corretamente (v. 8 e 9), mas eles reição. Sua presença não era algum
conheciam o Paracleto verdadeiramente, substituto inferior para o esplendor apo­
porque ele habita (permanece) convosco, calíptico sonhado pelos discípulos. Ao
e estará em vós. contrário, aprenderam, aqui, que, até
Do mesmo modo que anunciou a vinda que fosse visto na glória celestial (17:24),
de outro Consolador, Jesus garantiu aos Cristo poderia ser visto, na terra, nos
discípulos: Voltarei a vós (como no v. 3). atos de amor daqueles homens que guar­
Isto significa que o Paracleto não seria dam sua palavra, do mesmo modo como
uma presença diferente da de Jesus, e, vivia também pelo amor na obediência à
sim, a mesma realidade que eles tinham palavra do seu Pai (14:31). Era tão
conhecido durante a vida encarnada difícil, para a igreja apostólica quanto é
dele. Seus “filhinhos” (13:33) não fica­ para nós, compreender que o amor é
riam órfãos (grego, orphanos) ou deso­ uma verdadeira realidade maior e que
lados, quando, daí a pouco, desapare­ quando os homens amam uns aos outros,
cesse na morte, porque naquele novo dia, revelam o poder maior, que transformará
posterior à sua ressurreição, conhece­ o universo.
riam o que fizera para viver novamente
no Pai. Mas eles viveriam também, por 5) Síntese: O Legado de Jesus (14:25-31)
causa de uma residência mútua, de três
formas, que agora incluía os discípulos 25 E s ta s c o isa s vos te n h o fa la d o , e sta n d o
a in d a convosco. 26 M as o C on so lad o r, o E s ­
na espécie de relacionamento que Jesus p irito S an to a q u e m o P a i e n v ia r á e m m e u
compartilhara com o Pai durante seus nom e, e ss e vos e n s in a rá to d a s a s c o isa s, e
dias na terra (cf. I Cor. 3:23). vos f a r á le m b r a r d e tu d o q u a n to e u vos
Nesta seção, os discípulos expressaram ten h o dito. 27 D eixo-vos a p a z , a m in h a p a z
vos d o u ; eu n ã o v o -la d o u com o o m u n d o a
repetidamente seus desejos por uma reve­ d á . N ão se tu rb e o v o sso c o ra ç ã o , n e m se
lação clara destas realidades escatoló- a te m o riz e . 28 O u v istes q u e e u vos d is s e :
gicas, a que a vida de Jesus estava Vou, e v o lta re i a vós. Se m e a m á s s e is ,
conduzindo (cf. as perguntas em 13:36 a le g ra r-v o s-íe is de q u e e u v á p a r a o P a i;
e 14:5,8). Jesus agora tomava claro que p o rq u e o P a i é m a io r do q u e e u . 29 E u vo-lo
d isse a g o ra , a n te s q u e a c o n te ç a , p a r a q u e,
ele se manifestaria não através de eventos q u an d o a c o n te c e r, vós c re ia is . 30 J á n ão
cataclísmicos, mas na realidade do amor fa la re i m u ito convosco, p o rq u e v e m o p r ín ­
recíproco. Pensando ainda em termos de cipe d e ste m u n d o , e e le n a d a te m e m m im ;
uma epifania cósmica, Judas (não o 31 m a s , a s s im com o o P a i m e o rd en o u ,
a s s im m e s m o fa ç o , p a r a q u e o m u n d o s a ib a
Iscariotes) indagou como uma manifes­ que e u a m o o P a i. L e v a n ta i-v o s, vam o -n o s
tação assim portentosa não seria perce­ d aq u i.
bida pelo mundo. Em tomo da promessa
nos versos 2 e 3, Jesus respondeu que ele Ao esta seção, que contém o discurso
e seu Pai viriam em amcfr para, aquele de despedida, chegar ao fim, Jesus é
que o amasse e guardasse a sua palavra apresentado como um homem que satis­
(13:34). Note-se que no verso 3 o crente faz uma vontade enquanto está com os
é recebido numa morada preparada por seus queridos. Primeiro, promete que o
Cristo na casa de seu Pai, ao passo que Pai, que o enviara, também enviaria o
aqui Cristo e o Pai ocupam uma morada Paracleto em seu nome (cf. v. 16 e 17) —
isto é, como seu representante, sob sua mostram que Jesus ainda não estava para
autoridade, com seu espírito. Assim, em­ partir literalmente, sua declaração deve
bora seus seguidores precisassem ajus­ ter concitado os discípulos a uma prepa­
tar-se e uma forma não-física de sua ração interior, que prolepticamente an­
presença, não necessitavam transferir tecipava a provação que logo enfrenta­
suas lealdades a um novo líder, pois o riam no jardim.
Paracleto os levaria a lembrar de tudo
3. A Responsabilidade dos Discípulos
quanto Jesus lhes tinha dito (cf. a res­ (15:1-16:33)
peito 16:12-15). Sob a tutela do Espí­
rito Santo, a Igreja experimentaria a Descrevia Jesus, agora, em 15:1-16:33,
liberdade de crescer em sua compreensão a natureza do discipulado durante a era
de Jesus, sem abandonar a verdade subseqüente à sua partida e volta. As
revelada unicamente por sua vida. O muitas referências entre os capítulos 13
Quarto Evangelho é uma bela ilustração e 14 e 15 e 16 sugerem que estes dois
do cumprimento desta promessa, já que conjuntos devem ter servido originaria­
reflete a fusão criativa entre a memória mente como formas alternativas de um
histórica e a visão espiritual. discurso de despedida, embora, nesta
Outro legado de Jesus, de grande forma, os últimos capítulos claramente
valor, foi a paz que deixava com eles. Seu pressupõem os primeiros (capítulos 13 e
equilíbrio, em meio aos eventos turbu­ 14), sobre os quais elaboram. Apesar da
lentos da paixão, talvez seja o quadro ruptura abrupta e, 14:31, o material de
mais memorável deste registro (cf. João 13 a 16 permanece uma seqüência
16:33). O mundo ansiava pela paz de teológica convincente, tornando inúteis
Roma (Pax Romana), mas Jesus não quaisquer arranjos até agora propostos
legava uma trégua inquieta, obtida com para garantir sua ordem.
poder e mantida pelo medo. Antes, sua O tema central em 15:1 a 16:33 é a
paz tranqüilizava e assegurava, aos cora­ Igreia no mundo após a partida e voltajde
ções turbados, que partia de uma morte seu Fundador. Esta nova situagã^ é ^ t a
de amor obediente, mas que voltava na a partir de duas perspectivasíjrimeira) a
vitória de sua ressurreição. Longe de se vida interior dacom unidade cnstã é
atemorizarem, deviam se alegrar por sua descrita em comunhão com o Senhor
ida para o Pai, pois o Pai, fonte última de ressuscitado_e o Paracleto (15:1-17;16:
tudo quanto fizera por eles, é maior do 12-15) ...Segunda^ com a ajúda de sua
que Jesus. presença divina residente, os discípulos
O tempo da conversa chegara ao fim, são apresentados num conflito vitorioso
pelo que Jesus volveu suas atenções para contra o mundo hostil (15:18-16:11).
o príncipe deste mundo, que vinha para Depois de enorme monólogo, o mais
desafiá-lo. Ele nada (isto é, nenhum longo do Evangelho, a seção termina com
poder) tem em si, pois os acontecimentos um diálogo dramático (16:16-33), que
logo mostrariam um Jesus completa­ recapitula o argumento de todo o discur­
mente desamparado. Ele, porém, sabia so de despedida dos capítulos 13 a 16.
que, se fizesse o que o Pai lhe ordenara, Uma preocupação maior em 15:1-
o mundo conheceria uma espécie de 16:33 é provar o que é um discípulo
amor para com o Pai que o mal nunca verdadeiro (15:8). De jn o d o ^ ^ itiv o , o
poderia vencer. Fixando-se neste supre­ cristianismo autêntico e demonstrado
mo conflito, Jesus, em palavras que pelo amor uns aos outros (15:9,10,12,
recordam o Getsêmane, levou os discí­ 13,17) e, negátivámei^e. em suportar o
pulos a compartilharem de sua disposi­ ódio do m u n ^fÍ5 ^T 5 ^0 ; 16:2,3). Ade­
ção: Levantai-vos, vamo-nos daqui (cf. mais, alguém é cortado (15:2) e lançado
Mar. 14:41,42). Como os capítulos 15 a 17 fora (15:6) a partir de dentro ou então
afastado devido às pressões de fora o q u e e u vos m a n d o . 15 J á n ã o vos c h a m o
(16:1). Esta ênfase sempre presente suge­ serv o s, p o rq u e o se rv o n ã o sa b e o q u e fa z o
seu se n h o r; m a s ch a m e i-v o s a m ig o s, p o rq u e
re que esta seção era de particular tudo q u a n to ouvi de m e u P a i vos d ei a c o ­
relevância para a espécie de igreja des­ n h e ce r. 16 Vós n ã o m e e sc o lh e ste s a m im ,
crita em I João, que estava sendo tes­ m a s eu vos esco lh i a vós, e vos d esig n ei,
tada (2:26;4:1) pelas mesmas forças p a r a que v a d e s e d eis fru to , e o vosso fru to
demoníacas enfrentadas por Jesus na p e rm a n e ç a , a fim d e q u e tu d o q u a n to p e d ir ­
d es ao P a i e m m e u n o m e, e le vo-lo c o n ce d a.
cruz (2:18;4:3). A partir deste escrito r7 Isto v o s m a n d o : que vos a m e is u n s a o s
análogo, I João, sabemos que havia outros.
aqueles que não amavam os irmãos (2:9,
11:3:10,15:4:8,20). mas amavam o mun­ No Velho Testamento, usava-se muito
do, em seu lugar (2:15;4:5). Alguns até o termo “videira” como uma designa­
“tropeçaram” (2:10) e “saíram” da co­ ção para Israel (Is. 5:1; Jer. 2:21a; Os.
munidade (2:19), para andarem nas 10:l;Ez. 15:l-5;19:10,ll;Sal. 80:8-11).
trevas (1:6;2:11), culpados de pecado Desse modo, ao se apresentar como a
mortal (5:16). Alguém tem visto, nas videira verdadeira, Jesus se apresentava
relinhas desta epístola joanina, a luta como constituindo ^ v erd ad eiro Israel.
Ê Igreja (efésia?) para ser fiel ao legado
cenáculo. ___
Como seu Pai se assemelhava ao viti­
cultor. o uso da autodesignação divma7
Eu sou (egõ eimi), sugeria, de modo
1) Os Frutos da Permanência em Amor claro, sua identidade e sua subordina^
(15:1-17) ção ao Deus de Israel. O propósito fun- 1
1 E u so u a v id e ira v e rd a d e ira , e m e u P a i damental da analogia da vara da videira
é o v itic u lto r. %T od a v a r a e m m im q u e n ão era descrever um relacionamento per-
d á fru to , ele a c o r ta ; e to d a v a r a q u e d á manente entre Cristo e o crente, seme­
fru to e le a lim p a , p a r a q u e d ê m a is fru to .
3 Vós j á e s ta is lim p o s p e la p a la v r a q u e vos lhante ao firmado entre Israel e T ahveh,
tenho fa la d o . 4 P e rm a n e c e i e m m im , e eu para que desse muito fruto (cf. Is. 5:2;
p e rm a n e c e re i e m v ó s; com o a v a r a d e si Os. 10:1). ____
m e s m a n ã o pode d a r fru to , se n ã o p e rm a n e ­ O aviso de que toda vara em mim (isto
c e r n a v id e ira , a s s im ta m b é m vós, se n ão
p e rm a n e c e rd e s e m m im . 5 E u sou a v id e ir a ;
é, qualquer discípulo) que não dá fruto
vós sois a s v a r a s . Q uem p e rm a n e c e e m será cortada e lançada fora para ser
m im e e u n e le , e s s e d á m u ito fr u to ; p o rq u e queimada no fogo é um a reminiscência
se m m im n a d a po d eis fa z e r. 6 Q uem n ão do Velho Testamento, em que todas as
p e rm a n e c e e m m im , é la n ç a d o fo ra , com o principais passagens sobre videiras
a v a ra , e s e c a ; ta is v a r a s são re c o lh id a s,
la n ç a d a s no fogo e q u e im a d a s. 7 Se vós p e r ­ acabam numa nota de juízo dessa natu­
m a n e c e rd e s e m m im , e a s m in h a s p a la v a s reza (cf. Is. 5:5-7; Jer. 2:21b; Os. 10:2;
p e rm a n e c e ra m e m vós, p e d i o q u e q u is e r­ Ez. 15:6-8; 19:12-14; Sal. 80:12-16). Re­
des, e vos s e r á feito . 8 N isto é g lo rificad o lembra também a rejeição, por parte
m eu P a i, q ue d eis m u ito fru to ; e a s s im
se re is m e u s d iscíp u lo s. 9 C om o o P a i m e
de Jesus, da figueira, por ostentar folha-
am o u , a s s im ta m b é m e u vos a m e i; p e r m a ­ gem lem ’fruto (Mar. 11:12-14; cf. Mat.
n ecei no m e u a m o r . 10 Se g u a rd a r d e s os 21:18-22; Luc. 13:6-9). Alude, ainda
m eu s m a n d a m e n to s , p e rm a n e c e re is no m e u mais diretamente, à separação daqueles
a m o r; do m e s m o m odo q u e eu ten h o g u a r ­ que bebiam indignamente do “frutcTSa
dado os m a n d a m e n to s de m e u P a i, e p e r ­
m an eç o no se u a m o r. 11 E s ta s c o isa s vos videira” (cf. Didaquê, 9:2) e também à
tenho dito, p a r a q ue o m e u gozo p e rm a n e ç a Ceia do Senhor (Mar. 14:18,19) e às
e m v ó s, e vosso gozo s e ja co m p leto . refeições eucarísticas da igreja primitiva
12 O m e u m a n d a m e n to é e s te : Que vos (I Cor. 11:27-32)7 Nò contexto histórico
a m e is u n s a o s o u tro s, a s s im com o e u vos
a m e i. 13 N in g u ém te m m a io r a m o r do que
deste Evangelho, a referência deve se
e ste, d e d a r a lg u é m a s u a v id a pelo s seu s dirigir basicamente à Judas (cf. 13:2,
a m ig o s. 14 Vós sois m e u s a m ig o s se fiz e rd e s 18,21-30 e compare, especialmente,
13:10,11 com 15:3), enquanto, para os lado, eles não tinham escolhido um ao
leitores futuros, deve identificar aqueles outro (isto é, o crente não é livre para
que tinham deixado a igreja porque “não escolher seus próprios amigos espiri­
eram dos nossos.” (com oT~Jõlo27l9)7 tuais), mas foram escolhidos por Jesus.
O desenvolvimento do conceito de Por outro, deviam ir e dar fruto, conquis­
“permanência” , para descrever o rela­ tando outros, e este novo fruto devia
cionamento entre a videira e suas varas permanecer (isto é, a permanência mú­
(meno, permanecer, é usado 10 vezes nos tua do discípulo e do Senhor devia ser
v. 4-10), esclarece, de modo significativo, levada a todos que fossem conquistados
do misticismo cristão. Note-se as seguin­ através do amor, que, segundo o manda­
tes características especiais: (1) Em vez mento que receberam, deviam nutrir uns
de ser absorcionista, à identidade dos pelos outros). A Igreja deveria ser exclu­
dois é preservada — “permanecei em siva, em sua lealdade a Cristo, e não
mim e eu ... em vós”. (2) O conteúdo do exclusivista, no alcance de outros.
relacionamento não é o êxtase, mas o
amor — permanecei em mim significa 2) Os Odiados do Mundo (15:18-16:4a)
permanecei no meu amor. (3) Esta liga- 18 Se o m u n d o vos o d eia , s a b e i q u e , p r i ­
ção entre as duas partes não é um fim m e iro do q u e a vôs, m e odiou a m im . 19 Se
em si mesmo, pois seu propósito é dar fô sseis do m u n d o , o m u n d o a m a r ia o q u e e r a
s e u ; m a s p o rq u e n ã o so is do m u n d o , a n te s
fruto (karpos, fruto, aparece seis vezes eu vos esco lh i do m u n d o , p o r isso é q u e o
nos versos 2-8, duàs vezes mais no verso m u n d o vos o d e ia. 20 L e m b ra i-v o s d a p a la ­
16; cf. Mat. 3:8-10;7:16-20; Rom. 7:4; v r a q u e e u vos d is s e : N ão é o se rv o m a io r do
Gál. 5:22). (4) O elo entre Cristo e o| que o se u se n h o r. Se a m im m e p e rs e g u i­
1 crente não é mantido pela imediatez de! ra m , ta m b é m vos p e rs e g u irã o a v ó s; se
g u a rd a r a m a m in h a p a la v r a , g u a rd a r ã o
| uma experiência emocional, mas pela ta m b é m a v o ssa . 21 M a s tu d o isto vos fa rã o
;! permanência de suas palavras, conce- p o r c a u s a do m e u n o m e, p o rq u e n ão c o n h e­
didas na história e mediadas através da c e m a q u e le q u e m e enviou. 22 Se eu n ão
tvida de uma comunidade humana. (5) v ie ra e n ão lh e s f a la r a , n ã o te r ia m p e c a d o ;
«Finalmente, todo o relacionamento per­ a g o ra , p o ré m , n ã o tê m d e sc u lp a do se u p e ­
cado. 23 A quele q u e m e o d eia a m im , o d e ia
manece sob juízo (v. 6) e graça (v. 3), ta m b é m a m e u P a i. 24 Se eu e n tre e le s n ão
equilibrando, assim, responsabilidade e tiv esse feito ta is o b ra s , q u a is n e n h u m o u tro
privilégio (v. 7). De um lado, há manda- ? fez, n ã o te r ia m p e c a d o ; m a s a g o ra , n ão
mentos a guardar, e, de outro, gozo, que J so m en te v ir a m , m a s ta m b é m o d ia ra m ta n to
V v\

a m im com o a m e u P a i. 25 M a s isto é p a r a
pode ser completo (cf. 16:24;17:13). que se c u m p r a a p a la v r a q u e e s tá e s c r ita
O único mandaniento que tinha sua n a su a le i: O d ia ra m -m e se m c a u sa .
fonte e seu modelo em Jesus, era que 26 Q uando v ie r o C onsolador, que eu vos
amassem uns aos outros como ele os e n v ia re i d a p a r te do P a i, o E sp irito d a v e r ­
amara (cf. 13:34). Este amor se asseme­ d a d e , q u e do P a i p ro c e d e , e sse d a r á te s te ­
m u n h o d e m im ; 27 e ta m b é m vós d a re is
lha àquele demonstrado por alguém que, te ste m u n h o , p o rq u e e s ta is com igo d e sd e o
em auto-sacrifício. voluntariamente deu p rin cíp io .
a sua vida pelos seus amigos (cf. 10:11, 1 T enho-vos dito e s ta s c o isas p a r a q u e n ão
15,17,18). Em 13:16, Jesus se refere aos vos e sc a n d a liz e is. 2 E x p u lsa r-v o s-ã o d a s s i­
n a g o g a s; a in d a m a is, v e m a h o ra e m q u e
discípulos como servos e, como geral­ q u a lq u e r q u e vos m a t a r ju lg a r á p r e s ta r u m
mente acontece com tais pessoas, eles serv iço a D eu s. 3 E isto vos fa rã o , p o rq u e
não sabiam o que faz o seu senhor (cf. n ão c o n h e c e ra m a o P a i n e m a m im . 4 M as
13:36;14:5,8,22). Agora, no entanto, tenho-vos d ito e s ta s c o isa s, a fim de que,
fez-lhes conhecer tudo o que ouvira do Pai q u an d o c h e g a r a q u e la h o ra , vos le m b re is de
que eu v o -las tin h a dito.
(cf. 13:19;14:4,6,7,9,10) e os chamou de
amigos. Nada há de exclusivo, no en- j Por todo o discurso de despedida o
,r tanto, neste círculo de amigos. Por um f objetivo básico era definir o modo como
os discípulos, após a partida de Jesus, sofreriam o mesmo destino do ódio e da
deviam reproduzir, em sua vida comuni­ perseguição, porque o mundo amava
tária, e então ampliar, através da histó­ apenas o que era seu, isto é, aqueles que
ria, estas realidades centrais da vida eram do mundo (cf. 17:14-18). Tão
terrena de seu Senhor. Depois de reunir contundente era este antagonismo, que
seus seguidores no círculo de amor que eles necessitavam guardar-se para não se
compartilhava com o Pai (15:1-7), Jesus escandalizarem (cf. 15:6). Como o con­
agora os convida a entrar na arena da firmaram os acontecimentos seguintes,
luta que travariam com o mundo. Ironi­ foram expulsos das sinagogas (cf. 9:22,
camente, receberiam o privilégio de se 34;12:42; At. 14:l-6;17:l-15;18:4-7; 19:
identificarem com Jesus não somente por 8,9; sobre a Ãsia Menor, veja Apoc.
darem muito fruto, mas também por 2:9;3:9) e mesmo mortos por aqueles que
terem que enfrentar muita perseguição pensavam estar prestando um serviço a
(esta deve ter sido antecipada pela refe­ Deus (cf. At. 9:1,2;22:19;26:9-11; Gál.
rência à podadura, em 15:2). 1:13,14; Fil. 3:6). Tal como o crente
O tipo de perseguição para que os experimenta um relacionamento de amor
discípulos estavam sendo preparados tríplice e recíproco envolvendo o Pai, o
primeiro ocorreu no ministério de Jesus. Filho e os que crêem (15:9,10,12), ele
Como enviado pelo Deus a quem o também compartilha, com estes três, da
mundo não conhecia, ele viera não para reação do ódio por parte do mundo
falar aos homens desejosos de ouvir, nem (15:18,19,23,24).
para ser um porta-voz da tradição reli­ Diante de perspectivas tão sombrias,
giosa vigente e nem mesmo para chamar Jesus identificou três fundamentos de
a atenção para si mesmo, mas para esperança para os discípulos. Primeiro,
assentar a totalidade do direito divino fez um paralelo entre seu ministério e o
sobre a humanidade. Significa isto que dos discípulos não só com referência à
ele foi rejeitado como um intruso, a perseguição, mas também à aceitação:
quem o mundo odiou e depois perseguiu. se guardaram a minha palavra, guar­
Tamanha hostilidade não poderia, darão também a vossa. Apesar da opo­
porém, ser descartada como um equívoco sição coletiva, Jesus conseguira recrutar
qualquer, pois Jesus lhes falara clara­ um remanescente, coisa que eles tam­
mente acerca da vontade de Deus e fizera bém poderiam fazer. Ademais, não se­
obras, quais nenhum outro fez (ex.: riam surpreendidos pelo ataque do mal.
9:32). Embora não conhecesse de fato a Quando chegasse a hora do conflito, eles
Jesus, o mundo sabia o suficiente para se lembrariam de que Jesus isto já lhes
não terem desculpa do seu pecado (isto antecipara (cf. 13:19; 14:29). Um homem
é, há um nível de compreensão que pode prevenido vale por dois! Por fim, do
deixar um homem responsável, embora mesmo modo como Jesus fora enviado
não se comprometa). Com efeito, a pelo Pai, para vir e falar ao mundo
obstinada rebeldia encontrada por Jesus (15:21,22), ele agora lhes enviaria, da
veio daqueles que viram o bastante para parte do Pai, o Consolador ou Espírito da
crer, mas preferiram odiar tanto a ele verdade, que, quando viesse, daria tes­
quanto a seu Pai, como diz uma frase das temunho de Jesus. Neste contexto de
Escrituras, sem causa (cf.^ Sal. 35:19; perseguição, o Paracleto funcionaria,
69:4). fundamentalmente, como um defensor
A exemplo do seu Senhor, os discípu­ não dos discípulos, mas de Jesus, susten­
los não eram do mundo, porque Jesus os tando, assim, a obra dessas testemunhas,
escolhera do mundo (cf. v. 16). Como que falavam não de si mesmas, mas da­
proclamassem a mesma mensagem quele com quem estavam desde o princí­
(palavra) que seu senhor (cf. 13:16), eles pio (cf. At. 1:21,22).
3) A Ajuda do Espírito Santo (16:4b-15) Anteriormente, o Espírito fora apresen­
N ão vo-las d is se d e sd e o p rin c íp io , p o rq u e tado como um defensor ou testemunha,
e s ta v a convosco. 5 A g o ra, p o ré m , vou p a r a ao tempo em que Jesus continuava “em
aq u ele q u e m e en v io u ; e n e n h u m d e v ó s m e julgamento” e os discípulos dele teste­
p e rg u n ta : P a r a onde v a is ? 6 A n tes, p o rq u e
vos d isse isto , o vosso c o ra ç ã o se e n ch e u de munhavam aos outros. Agora, entre­
tris te z a . 7 T o d a v ia , digo-vos a v e rd a d e con- tanto, inverte-se a situação, e o Conso­
vém -vos q ue eu v á ; p ois, se e u n ão fo r, o lador é visto como um promotor ou juiz,
C onsolador n ã o v ir á a v ó s; m a s , se e u fo r, cujo papel se define por um verbo grego
vo-lo e n v ia re i. 8 E , q u a n d o ele v ie r, c o n v e n ­
simples (elegchõ), de sentidos múltiplos.
c e rá o m u n d o do p e c a d o , d a ju s tiç a e do
juízo; 9 do p ecad o , p o rq u e n ã o c rê e m e m A noção básica de “convencer” pode
m im ; 10 d a ju s tiç a , p o rq u e vou p a r a m e u conotar: (1) “iluminar” , no sentido de
P a i, e n ã o m e v e re is m a is , 11 e do juízo, trazer à luz; (2) “convencer” , no sentido
p o rq u e o p rín c ip e d e ste m u n d o j á e s tá ju l ­ de levar à uma convicção; (3) “refutar” ,
gado. 12 A inda ten h o m u ito q u e vos d iz e r;
m a s v ó s n ã o o p o d eis s u p o r ta r a g o ra .
no sentido de corrigir ou confundir (cf. a
13 Q uando v ie r, p o ré m , a q u e le , o E s p írito d a paráfrase da BLH). A conseqüência geral
v e rd a d e , e le vos g u ia r á a to d a a v e rd a d e ; é que o paracleto provaria o erro do
p o rq u e n ã o f a la r á p o r si m e sm o , m a s d ir á mundo em ter rejeitado Jesus e os seus
o que tiv e r ouvido, e vos a n u n c ia rá a s c o isa s
v in d o u ras. 14 E le m e g lo rific a rá , p o rq u e
seguidores.
re c e b e r á do qu e é m e u , e vo-lo a n u n c ia rá . Três tarefas específicas ilustram o
IS T udo q u a n to o P a i te m é m e u ; p o r isso eu escopo deste ministério de repreensão.
vos d isse q ue e le, re c e b e n d o do q u e é m e u , (1) O Espírito desmascararia o pecado
vo-lo a n u n c ia rá . do mundo, ao afirmar que isto viera de
A efêmera referência ao Paracleto, sua recusa em crer em Jesus. (2) Ele ainda
em 15:26, agora evolui para uma expo­ corrigiria a equivocada idéia de que a
sição maior de seu papel no período justiça não fora vista na cruz, pelo fato
depois que Jesus tivesse ido. Esta expla­ de Jesus ter retornado para seu Pai, não
nação não se fizera necessária desde o mais sendo visto na terra. (3) Por fim, ele
princípio do relacionamento de Jesus esclareceria que o juízo não devia mais
com seus discípulos (cf. 15:27), pois nes­ ser visto como um evento meramente
sa época o ministério do Espírito era cósmico, mas como um processo histó­
inseparável da presença física de Jesus rico presente, porque já, ao tentar des­
com eles. Tão satisfeitos estavam os truir Jesus, o príncipe deste mundo fora
discípulos com esta tangível relação, que julgado, numa espécie de antecipação do
nenhum deles perguntara para onde fim dos tempos (cf. 14:30). Através da
ele ia. Este desinteresse para com seu pregação (no grego geralmente chamada
destino final — que tem paralelos com de paraklesis) da Igreja, o Paracleto
uma preocupação contemporânea com confrontava o mundo com a necessidade
o “Jesus histórico” — teve, como conse­ de uma mudança drástica no modo de
qüência, uma compreensão inadequada ver o pecado, a justiça e o juízo como
de sua pessoa e obra, deixando-os mal conseqüências da vinda de Jesus.
preparados para enfrentarem sua partida Além deste ministério externo ao
por meio da cruz. Eles tinham com­ mundo (v. 8-11), o Consolador teria
preendido a conveniência de sua ascen­ também um ministério interno à Igreja
são, mas, mesmo assim, a tristeza enchia (v. 12-15). Enquanto os discípulos luta­
seu coração. vam para ajustar a imutável mensagem
Em contraposição à idéia de que seri­ de Cristo para tempos de mudança, ele
am abandonados, para servir a um os guiaria a toda a verdade. A preocupa­
Senhor ausente, Jesus novamente pro­ ção maior não devia ser envolver-se num
meteu enviar o Paracleto (cf. 15:26), conjunto de fatos eternos, que podem ser
para tomar o lugar dele em suas vidas. substituídos a qualquer hora, mas num
relacionamento com o Espírito da ver­ g uns dos se u s d iscíp u lo s p e rg u n ta ra m uns
dade, que conduz à peregrinação de p a r a os o u tro s: Q ue é Isto q u e n o s diz? U m
pouco, e n ã o m e v e re is ; e o u tr a v ez u m p o u ­
descoberta (cf. 14:4-7). Como toda a co, e v e r-m e -e is: e : P o rq u a n to v o u p a r a
verdade acerca de Deus reside num o P a i? 18 D iz iam , p o is: Q ue q u e r d iz e r is to :
direito transcendente sobre o homem, é U m p o u co ? N ão co m p ree n d em o s o q u e ele
algo em que não se deve apenas crer, mas e s tá dizen d o. 19 P e rc e b e u J e s u s q u e o q u e ­
também testemunhar (isto é, agindo ria m in te rro g a r, e d isse -lh e s: In d a g a is e n ­
tr e v ó s a c e r c a d isto q u e d is s e : U m pouco,
responsavelmente no presente). Jesus, e n ão m e v e re is ; e o u tr a v ez u m pouco, e
com sua profunda intuição para a per­ v er-m e-eis? 20 E m v e rd a d e , e m v e rd a d e vos
cepção da verdade, entendeu que, du­ digo q u e vós c h o ra re is e v o s la m e n ta r e is ,
rante seu breve ministério, os discípulos m a s o m u n d o se a le g r a r á ; vós e s ta r e is t r i s ­
te s , p o ré m a v o ss a tr is te z a se c o n v e rte rá e m
não tinham alcançado a inteireza do a le g ria . 2 1 A m u lh e r, q u a n d o e s tá p a r a d a r à
comprometimento necessário à instaura­ luz, se n te tr is te z a p o rq u e é c h e g a d a a s u a
ção completa das coisas que, havia mui­ h o ra ; m a s , d ep o is d e te r d a d o à luz a c r ia n ­
to, estava a lhes dizei. Estava, porém, ç a . J á n ã o s e le m b r a d a afliç ã o , p elo gozo d e
h a v e r u m h o m e m n a sc id o a o m u n d o . 22 A s­
confiante de que estas sementes de ver­ sim ta m b é m v ó s a g o ra , n a v e rd a d e , te n d e s
dade, que permaneciam latentes em suas tris te z a ; m a s e u v o s to r n a re i a v e r, e ale-
palavras, seriam colhidas um dia, depois g ra r-se -á o v o sso c o ra ç ã o , e a v o ss a a le g r ia
de cultivadas, pela comunidade, sob a n in g u é m vo-la ti r a r á . 23 N aq u e le d ia n a d a
orientação do Espírito. m e p e rg u n ta re is . E m v e rd a d e , e m v e rd a d e
vos digo q u e tu d o q u a n to p e d ird e s a o P a i,
Esta concepção da verdade escatoló- e le vo-lo c o n c e d e rá e m m e u n o m e . 24 A té
gicà (isto é, de uma verdade que tem a g o ra n a d a p e d is te s e m m e u n o m e ; p e d i, e
futuro) se fundamentava num cuidadoso re c e b e re is, p a r a q u e o v o sso gozo s e ja c o m ­
equilíbrio entre continuidade e mudan­ pleto.
ça. De um lado, não havia um dogma
rigidamente estabelecido, a partir do Através de João 13 a 16, Jesus deixou
passado, pois a tarefa do Paracleto era esplêndidas garantias, aos discípulos,
preparar o povo de Deus para enfrentar para que pudessem fruir da alegria
as novas coisas, que certamente sobre­ transbordante (cf. 15:11;16:24;17:13).
viriam, ao longo da caminhada. Por Uma promessa ainda não efetuada, no
outro lado, ele anunciaria uma palavra entanto, era a da ausência de conflito.
relevante, baseada não em si mesmo, De fato, simultaneamente ao terno
mas numa atualização daquilo que Jesus conforto, vinham avisos severos, acerca
já revelara, acerca do Pai. O Espírito não da perseguição inevitável. A coexistência
seria a fonte de novos caprichos que destes temas, aparentemente contradi­
impusesse à Igreja a tirania do tempo­ tórios, na mesma seção, cria o paradoxo
rário; antes, ele é a fonte que capacita a da alegria com misto de tristeza, expli­
Igreja à compreensão e ao encorajamento cada nos versos 16-24.
para aplicar estas verdades que recebera. De início, os dois lados do paradoxo
A maioria de nós possui uma verdade são resumidos numa fórmula simétrica
maior (exemplo, na Bíblia) do que é (v. 16,17,19): (1) Um pouco, e já não me
capaz de testemunhar. Precisamos de um vereis refere-se à partida de Jesus através
guia hábil (cf. At. 8:31), que nos possa do escuro túnel da tragédia (exemplo:
ajudar a levar a cabo as profundas im­ 13:33), enquanto (2) um pouco, e ver-
plicações do evangelho, que tanto dese­ me-eis se refere ao triunfante retorno do
jamos compreender e colocar em prática. Senhor ressurreto em seu Espírito de vida
(exemplo: 14:19). O uso da mesma ex­
4) O Paradoxo do Discipulado (16:16-24) pressão, um pouco, nas duas frases, visa
16 U m pouco, e j á n ã o m e v e re is ; e o u tra aumentar o paradoxo pela justaposição
vez u m pouco, e v er-m e-e ls. 17 E n tã o a l ­ de duas convicções. De um lado, o futuro
cie Jesus na carne estava totalmente sem e m m e u n o m e, e n ã o v o s digo q u e e u r o g a ­
defesa e vulnerável ao desastre; antes re i p o r vós a o P a i; 27 p o is o P a i m e sm o vos
a m a ; v isto q u e vós m e a m a s te s e c re s te s
mesmo de os discípulos o compreende­ que e u s a í de D eu s. 28 S aí do P a i, e v im ao
rem, sua vida seria apagada. De outro m u n d o ; o u tra v ez d eixo o m u n d o , e vou
lado, nos calcanhares de uma tragédia p a r a o P a i. 29 D is s e ra m os se u s d iscíp u lo s:
visível, viria um triunfo completo. E is q u e a g o ra fa la s a b e rta m e n te , e n ão p o r
Este uso tão profundo da expressão fig u ra a lg u m a . 30 A g o ra c o n h ecem o s que
sa b e s to d a s a s c o isa s, e n ão n e c e s s ita s de
“um pouco mais” é uma reminiscência que a lg u é m te in te rro g u e . P o r isso c re m o s
da provação do exílio judeu no Velho que s a ís te d e D eu s. 31 R esp o n d eu -lh es J e ­
Testamento (Is. 26:16-21), das predições su s : C re d e s a g o ra ? 32 E is q u e v e m a h o ra , e
dos “ três dias” , por parte de Jesus, nos j á é c h e g a d a , e m q u e vós se re is d isp e rso s
c a d a u m p a r a o se u lad o , e m e d e ix a re is
Sinópticos (Mat. 12:40; Mar. 8:31;14:58; só; m a s n ã o e sto u só, p o rq u e o P a i e s tá
cf. João 2:19) e do dilema da Igreja com igo. 33 T enho-vos d ito e s ta s c o isa s, p a r a
martirizada e ansiosa pelo juízo de Deus que e m m im te n h a is p a z . No m u n d o te r e is
(Apoc. 6:9-11). Como tal, isto reflete trib u la ç õ e s; m a s te n d e b o m â n im o , e u v e n c i
uma tensão central da dinâmica bíblica o m undo.
da esperança. Até este ponto de seus esforços, para
Diante das dificuldades dos discípulos instruir os discípulos, Jesus ensinara por
em compreender este resumo conciso, figuras (cf. 16:29), como, por exemplo,
que comprimia o destino do Senhor num no discurso simbólico, sobre a videira e
paradoxo singular, Jesus ilustrou suas as varas (15:1-11), e na analogia da
implicações, ao comparar sua situação à mulher em trabalho de perto (16:21)!
de uma mulher, quando está para dar à Entretanto, na nova era, a ser inaugura­
luz (cf. Is. 66:7-9). Assim como uma da pela ressurreição, ele poderia lhes
mulher grávida sente tristeza (isto é, falar abertamente acerca do Pai. A
sofrimento físico) quando sua hora de diferença não estava numa mudança em
libertação é chegada, e não mais se Deus, como se ele tivesse se escondido
lembra dessa breve aflição quando se deliberadamente no passado. Deus não
enche do gozo de ter dado à luz a precisava de qualquer lembrete, por
criança, os discípulos sentiriam tristeza parte de Jesus, para se revelar (v. 26b),
no pesadelo da hora do mal, porém seus pois sempre amara os discípulos e envia­
corações se alegrariam “um pouco mais” ra seu Filho para que pudessem conhecê-
adiante, quando ele retomasse e os lo melhor. Mais do que isso, a mudança
tomasse a ver. Naquele dia (v. 23), aconteceria na vida dos discípulos quan­
quando Deus transformasse sua tris­ do o Espírito da interpretação os capa­
teza... em alegria (v. 20), ninguém seria citasse a compreender que Deus se reve­
capaz de a tirar (v. 22). Do mesmo modo lara através do ministério de Jesus (como
como uma mulher não deseja questionar tão bem resumido no v. 28).
o sofrimento do processo do nascimento, Todavia, os discípulos, ansiosos de­
uma vez que a chegada de seu bebê mais para esperar “um pouco mais” por
tomou tudo absolutamente aceitável, os esta nova era de percepção, concluíram,
discípulos nada perguntariam a Jesus equivocadamente, que a hora tinha che­
quando tudo aquilo que tinham esperado gado quando Jesus lhes falaria aberta­
de Deus se tornasse palpável. mente. Já que prematuramente afirma­
vam saber o suficiente, para não terem
5) A Fé em Conflito (16:25-33) o que perguntar, Jesus desafiou, esta
excessiva confiança, com uma notável
25 D isse-vos e s ta s c o isa s p o r fig u ra s ; c h e ­
g a, p o ré m , a h o ra e m q u e vos n ão fa la re i avaliação de sua realidade presente. Em
m a is p o r fig u ra s , m a s a b e rta m e n te vos f a ­ vez de ter chegado a hora de crerem
la re i a c e r c a do P a i. 26 N aq u ele d ia p e d ire is todas as coisas, chegara, sim, a hora de
serem dispersos cada um para seu lado. tulada melhor de “Oração dos Discí­
Esta resposta realista, a uma enfatuada pulos” — evidencia a profundidade de
confissão, era uma estratégia caracte­ nossa miséria humana, uma vez que esta
rística de Jesus (cf. 6:68-70; 13:38), a oração abre uma janela para as altitudes
qual demonstrava que a Igreja tirava de sua suficiência divina. Está aqui a
sua existência não da coragem de seus base histórica para os mais profundos
privilegiados membros, mas do seu fun­ ensinos sobre a oração, no Novo Testa­
dador. mento: Cristo vive sempre para inter­
Os discípulos foram reprovados por ceder pelos seus (cf. Luc. 22:31,32; Rom.
suporem que se poderia alcançar a com­ 8:26,27; Heb. 7:25). A última coisa para
preensão necessária à fé sem primeiro os discípulos aprenderem, antes de ser
experimentar a cruz e a ressurreição (cf. enfrentada a cruz (capítulos 18 e 19), era
Mar. 9:31-33). O Evangelho de João é, que os terrores desta seriam vencidos
geralmente, caracterizado por sua ênfase (16:33) não porque eles tivessem orado
sobre a “escatologia realizada” ; aqui, por Jesus, mas porque ele orara por eles!
porém, como no capítulo 16, vemos o A perspectiva temporal incomum,
contrário. A viagem não chegara ao seu indicada pelos tempos verbais, dá uma
fim. Aquilo que Jesus colocara “um chave interessante para a natureza da
pouco mais” no futuro, os discípulos oração. No início do “livro da paixão” , a
tentaram realizar prematuramente no hora da glorificação, na cruz, que ante­
presente (observe-se a palavra-chave riormente estava no futuro (2:4;7:30;
“agora” , nos versos 29 e 31). Eles preci­ 8:20), agora muda para o presente (12:
savam compreender que não tinham 23,27,31; 13:1,31;16:32). Aqui, no en­
alcançado sua meta, embora Jesus tives­ tanto, a partida do mundo é vista como
se! Como o Pai estava com ele, ele — e só já acontecida no passado (v. 4,11,12a,
ele — venceu o mundo. Como conse­ 13a, 24). Como podia Jesus afirmar que
qüência de sua conquista, seriam eles completara sua obra e ascendera ao Pai,
encorajados (isto é, ter bom ânimo) em se não tinha passado ainda pela cruz? A
meio ao conflito, que prosseguia. O resposta é que, através da oração, ele se
equilíbrio dos discípulos não era decor­ projetava no futuro e mesmo no reino
rente de uma conquista própria (cf. celestial (cf. Luc. 9:28-31). Aos discí­
14:4,5), mas de sua paz e da oração, que pulos, então, foi permitido um lampejo
agora oferecia em seu favor (17:1-26). do relacionamento eterno que existia
entre Jesus e seu Pai. Temos, aqui, numa
4. A Oração de Consagração (17:1-26) expressão típica do misticismo joanino,
João 17 tem sido aclamado como a algo equivalente à convicção sinóptica
passagem espiritual mais sublime do de que oração é algo escatológico — isto
Quarto Evangelho. A ilustração no capí­ é, algo que nos capacita a experimentar
tulo 13 e as instruções nos capítulos 14 “na terra” coisas que estão “no céu”
a 16 chegam ao clímax e à transfigura­ (Mat. 6:10). A oração oferece elementos
ção na intercessão do capítulo 17. Só seguros para a aceitação das derrotas
Jesus poderia fazer tal oração, combi­ temporárias por “um pouco mais” (16:
nando uma submissão completa a Deus e 16), já que vimos o fim desde o início.
uma soberania completa sobre o homem. A estrutura da oração se organiza em
Com todo o mundo proclamando o seu três partes, destinadas a indicar as priori­
fracasso e com a morte às portas, Jesus dades teológicas pretendidas. Diferente­
mostrou-se plenamente confiante de que mente da Oração do Senhor, que nos
fizera exatamente o que deveria fazer. manda orar por nós mesmos, Jesus aqui
A assim chamada Oração do Senhor orou primeiro por si mesmo (v. 1-5), por
(Mat. 6:9-13) — que poderia ser inti­ já ter vencido o mundo (16:33), glori­
ficando, assim, o Pai, em tudo o que fez. isto é, Jesus era um espelho perfeito da I
A autoconsagração de Jesus era crucial, ''majestade divina, a refletir o resplendor }
porque tudo que segue na oração de­ de Deus, em vez de chamar a atençãoJ
pende desta obra concluída. A seguir, sobre si mesmo. Em(segundo luga5 Jesus
Jesus voltou a orar pelos seus discípulos daria vida eterna àqueles que Deus lhe
(v. 6-19), e não pelo mundo incrédulo, dera; isto é, Jesus não pediu qualquer
porque sua (dos discípulos) obra era crédito, para seus convertidos, indepen­
necessária, como elo de mediação das dentemente da operação de Deus em
testemunhas vivas. Finalmente, Jesus suas vidas. Alguns homens oram por
orou pela unidade de todos aqueles que aquilo que pensam poder conseguir de
cressem nele (v. 20-26), para que o Deus; Jesus orou por aquilo que devolvia
mundo pudesse conhecer o amor, a rea­ a Deus, numa vida de serviço obediente.
lidade mais profunda da Trindade. A A menção à vida eterna, no verso 2,
cuidadosa seqüência da oração sugere levou o evangelista a uma pausa e a
que o Cristo glorificado é a única espe­ inserir, parenteticamente, no verso J,
rança de novos convertidos e que a uma descrição desta realidade central em
comunhão em amor de todos os crentes é termos de “conhecer” o único Deus ver­
a única esperança de um mundo incré­ dadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviara.
dulo. 35 Aqui está uma das indicações mais cla­
ras, no Novo Testamento, de que a fé e o
1) Jesus Ora por Si Mesmo (17:1-5) conhecimento podem sef eqüivalentes,
em vez de serem antitéticos. Conhecer
1 D epois d e a s s im f a la r , J e s u s , le v a n ta n ­
do os olhos a o c éu , d is s e : P a i, é c h e g a d a
a Deus, no sentido joanino, e ter um
a h o ra ; g lo rific a a te u F ilh o , p a r a que t a m ­ compromisso existencial com ele como
b é m o F ilh o te g lo rifiq u e ; 2 a s s im com o lh e um sujeito vivo, em vez de aceitar cèrtos
d este a u to rid a d e so b re to d a a c a rn e , p a r a fatos a seu respeito como um objeto de
que dê a v id a e te r n a a to d o s a q u e le s q u e lh es contemplação. Ademais, este relaciona-
te n s d a d o . 3 G a v id a e te r n a é e s t a : que te
co n h eçam a ti, o ú nico D eu s v e rd a d e iro , mento pessoal com Deus se tornara
a J e s u s C risto , a q u e le q u e tu e n v ia s te . numa realidade presente (cf. 14:7b),
4 E u te g lo rifiq u ei n a t e r r a , c o m p le ta n d o a enquanto, no Velho Testamento, os pro­
o b ra q u e m e d e ste p a r a fa z e r. 5 A g o ra, pois, fetas falam do conhecimento direto de
g lo rifica-m e tu , ó P a i, ju n to d e ti m e sm o ,
com a q u e la g ló ria que e u tin h a co n tig o a n te s
Deus como esperança futura (Os. 6:3;
que o m u n d o e x istisse . Jer. 9:3,6,24;31:34). Agora, a consciên­
cia do homem sobre o único Deus verda­
Ao contrário do pecador que “nem deiro era inseparável de um conheci­
ainda queria levantar os* olhos ao céu” mento dAquele a quem enviara. Note-se
(Luc. 18:13), Jesus levantou os olhos que o monoteísmo clássico não foi com.-—
aos céus, na sublime certeza de que Deus prometido por uma afirmação do papel
lhe dera autoridade sobre toda a carne único desempenhado por Jesus Cristo na
(isto é, a humanidade). Agora que a história da revelação divina.
hora final de seu destino tinha chegado, Uma razão por que Jesus era digno de
a unidade completa do humano e do ficar ao lado de Deus como instrumento
divino seria vista de duas maneiras. de conhecimento. salvífico era que ele
Primeiramente, o Pai glorificaria o Filho, glorificava o Pai na terrãTEm lugar de se
e o Filho por sua vez, glorificaria o Pai; apresentar como um segundo Deus,
Jesus fez apenas a obra que lhe fora dada
35 Quanto a uma tentativa de esboçar o lugar histórico fazer (cf. 4:34;5:17), servindo, assim,
de João 17 na vida da igreja primitiva, veja Ernst Kae- sua vida, para apontar para Aquele que o
semann, The Testament of Jesus, traduzido para o
inglês por Gerhard Krödel (Philadelphia: Fortress, enviara. Sem o menor laivo de vaidade,
1968). recordou ele, agora, uma tarefa reali-
zada, alcançando um ponto de pleni­ corpo de auxiliares durante os dias em
tude espiritual que mesmo os maiores que sua glória eterna esteve por algum
santos não ousam afirmar terem alcan­ tempo apagada (v. 6-8). Um pouco
çado (cf. Fil. 3:12-14). O arrojo maior dê antes, as multidões, aos milhares, o
sua oração é visto, porém, em seu desin­ assediavam (6:10; 11:48; 12:19). Agora,
Í teresse em se dar por satisfeito com uma
peregrinação terrena que alcançara sua-
porém, muitos destes não mais estavam
ao seu lado, na hora do julgamento final
meta. A fim de ampliar o significado de (cf. 6:66; 12:42; 13:21). Apesar de se res­
seu ministério histórico, Jesus orou, sentir destes amargos resultados, Jesus se
agora, para que sua glória pudesse nova­ regozijou com os poucos que ficaram,
mente tomar-se cósmica, como fora como uma manifestação da generosi­
quando preexistia com Deus, antes que o dade divina (cf. 3:27). Deus primeiro
mondo existisse 1,2; Fil. 2:6,11). Na lhes deu Jesus (v. 6a,c) e este, por sua vez,
ascensão^a obra de redenção que estava lhes deu tudo quanto Deus lhe dera
encerrada no tempo e no espaço, torna­ (cf. 3:35;5:21,22). Não há como explicar
va-se válida para todos os tempos e uma comunidade eclesial, a não ser como
espaços. uma corporificação da graça, porque
2) Jesus Ora por Seus Discípulos (17: nela os homens se reúnem não por se
sentirem atraídos uns aos outros, mas
6-19)
porque são concitados por uma palavra
6 M a n ife ste i o te u n o m e a o s h o m e n s que
do m u n d o m e d e ste . E r a m te u s , e tu m o s
que sua imaginação não poderia criar.
d e ste ; e g u a r d a r a m a tu a p a la v r a . 7 A g o ra Isto não significa, entretanto, que não
sa b e m q u e tu d o q u a n to m e d e ste p ro v é m de houvesse algo que os discípulos pudes­
ti; 8 p o rq u e e u lh e s d ei a s p a la v r a s q u e m e sem fazer como resposta. Mesmo porque
d e ste , e e le s a s re c e b e r a m , e v e rd a d e ira ­ uma dádiva deve ser guardada, para ser
m e n te c o n h e c e ra m q ue s a í d e ti, e c r e r a m
que tu m e e n v ia s te . 9 E u ro g o p o r e l e s ; n ão efetiva. No caso do “ dom inefável” de
rogo p elo m u n d o , m a s p o r a q u e le s q u e m e Deus (II Cor. 9:15), esta resposta envolve
te n s d ad o , p o rq u e sã o te u s ; 10 to d a s a s três atitudes (v. 8): (1) abertura para
m in h a s c o isa s sã o tu a s , e a s tu a s c o isa s são receber as palavras que Deus dera a Jesus
m in h a s ; e n e la s so u g lo rific ad o . 11 E u n ã o
esto u m a is no m u n d o ; m a s e le s e s tã o no
para falar na história; (2) compreensão
m undo, e e u vou p a r a ti. P a i sa n to , g u a rd a - para conhecerem “verdadeiramente”
o s no te u n o m e, o q u a l m e d e ste , p a r a que (cf. v. 7) que Deus era a fonte de sua vida;
e les s e ja m u m , a s s im com o nós. 12 E n q u a n ­ (3) compromisso com a missão para que
to e u e s ta v a co m e le s J e u os g u a rd a v a no te u Deus o enviara. Veja-se, novamente,
n o m e q ue m e d e s t e ; e o s c o n se rv e i, e n e ­
n h u m d e le s se p e rd e u , se n ã o o filho d a p e r ­ como no verso 3, o papel central do
d ição , p a r a q u e se c u m p riss e a E s c r itu r a . conhecimento como o fundamento da fé
13 M as a g o ra vou p a r a ti ; e is to falo no duradoura.
m undo, p a r a q u e e le s te n h a m a m in h a a le ­ Agora que Jesus nio estava mais no
g ria c o m p le ta e m si m e s m o s. 14 E u lh e s d ei
a tu a p a la v r a ; e o m u n d o o s odiou, p o rq u e
mundo, os discípulos necessitavam da
n ão sã o do m u n d o , a s s im com o e u n ão sou mesma proteção do Pai que o Mestre lhes
do m u n d o . 15 N ão ro g o q u e os ti r e s do m u n ­ concedera na terra (v. 9-12). Só desta
do, m a s q ue o s g u a rd e s do M alig n o . 16 E le s forma eles seriam um e não se deixariam
n ão sã o do m u n d o , a s s im com o e u n ã o sou dividir pelos seus inimigos. A base de sua
do m u n d o . 17 S a n tific a -os n a v e rd a d e ; a tu a
p a la v r a é a v e rd a d e . 18 A ssim com o tu m e
segurança espiritual não era organiza­
e n v ia s te a o m iin d o , ta m b é m e u os e n v ie i ao cional, pois Jesus os guardara no nome
m undo. 19 E p o r e le s e u m e san tific o , p a r a que Deus lhe dera (isto é, o vínculo entre
q ue ta m b é m e le s s e ja m sa n tific a d o s n a v e r ­ os discípulos era a revelação comparti­
d ad e. lhada da natureza de Deus). A necessi­
Volvendo-se para os discípulos, Jesus dade de unidade não era apenas que
agora dedica atenção especial ao seu pudessem fortalecer-se uns aos outros,
mas fundamentalmente que pudessem como Jesus não era do mundo. Isto não
construir uma imagem tangível do modo significava, no entanto, que Deus os
como Jesus e Deus são um (cf. v. 10). Isto tiraria do mundo, mas, antes, que seriam
de fato explica por que Jesus estava enviados ao mundo, como Jesus fora
orando pelos discípulos, e não pelo mun­ enviado ao mundo (cf. 20:21). Á tensão,
do; isto aconteceu não porque não hou­ criada por esta dupla ênfase, visa manter
vesse esperança para o mundo (cf. v. 20), um equilíbrio entre separação e pene­
mas porque a unidade dos crentes é o elo tração, pelas quais a Igreja cumpre sua
necessário entre Deus e o mundo (cf. vocação para a santidade e para missões.
13:34). Se um grupo sem vínculos co­ Esta dialética — não do ... mas ao —
muns, de raça ou nacionalidade, podia se que distinguiria a vida da Igreja no
unir num tempo quando o mundo se mundo, caracterizava aqueles que ti­
dividia em campos de batalha, este nham sido “santificados” ou “consa­
mesmo grupo forneceria provas tangíveis grados” (o mesmo verbo grego, hagiazõ,
do poder reconciliador de Deus. é usado em ambos os termos). Esta
Jesus estava tão preocupado em livrar separação não era um exercício de auto-
seu rebanho da fragmentação (cf. 10: ajuda, mas o resultado da palavra puri­
11-16) que nenhum deles se perdeu, ficadora (cf. 15:3) que Jesus lhes dera de
senão Judas, o filho da perdição. Esta si mesmo, para que pudesse conhecer
defecção, entretanto, só fez destacar um a verdade (cf. 8:31,32). Jesus não so­
triste fato, já referido na Escritura, mente desenvolveu esta revelação divina,
demonstrando que há aqueles que, sem como a obedeceu pessoalmente, outor­
motivo, se rebelam (cf. 13:38). Em II gando aos seus seguidores um exemplo
Tessalonicenses 2:3,4, o “filho da per­ inolvidável do que significa para um
dição” representa o último adversário homem o consagrar-se. No Velho Testa­
que antecede à Parousia, ao contraditar mento, era comum ver-se o sistema
Deus em nome do próprio Deus. Judas, sacrificial e tudo a ele associado como
então, antecedendo a glória da cruz com santificado, mas Jesus aqui centralizou
uma covarde traição dAquele a Quem tudo num povo santo, sem referir-se a
seguira, encarnou esta “apostasia reali­ tempos ou lugares santos. Como acon­
zada” , característica dos anticristos, que tecera com Jesus, os discípulos se torna­
sempre se levantam na última hora (I ram o verdadeiro templo da permanência
João 2:18). de Deus, onde quer que ampliassem seu
Quebrar a solidariedade do grupo de corpo através do mundo (cf. 2:19-21).
discípulos compromete tanto a sua sepa­
ração do mundo como seu testemunho a 3) Jesus Ora Pelos Futuros Crentes (17:
este mundo, pois a unidade revolucio­ 20-26)
nária da Igreja, num mundo fragmen­
20 E ro g o n ã o so m e n te p o r e s te s , m a s
tado, é a melhor prova de que, aquilo ta m b é m p o r a q u e le s q u e p e la s u a p a la v r a
que Cristo fez por ele, era de Deus e não h ão d e c r e r e m m im ; 21 p a r a q u e todos
de algum homem. Neste sentido, opor-se se ja m u m ; a s s im com o tu , ó P a i, é s e m
ou mesmo enfraquecer a unidade da m im , e e u e m ti, q u e ta m b é m e le s s e ja m
u m e m n ó s; p a r a q u e o m u n d o c r e ia q u e
Igreja é fazer papel de Judas! tu m e e n v ia s te . 22 E e u lh e s d e i a g ló ria que
O verdadeiro relacionamento da Igreja a m im m e d e ste , p a r a q u e s e ja m u m , com o
com o mundo é cuidadosamente demons­ nós so m o s u m ; 23 eu n e le s, e tu e m m im ,
trado nos versos 14 a 19, num paralelo p a r a q u e e le s s e ja m p e rfe ito s e m u n id a d e ,
com o já referido relacionamento de a fim d e q u e o m u n d o co n h e ç a q u e tu m e
e n v ia ste , e q u e os a m a s te a e le s, a s s im
Jesus com o mundo. Dois pontos tomam com o m e a m a s te a m im . 24 P a i, d esejo que
a forma de um paradoxo. Para começar, onde eu e sto u , e s te ja m co m ig o ta m b é m
a Igreja não deveria ser do mundo, assim a q u e le s q u e m e te n s d a d o , p a r a v e re m a
m in h a g ló ria , a q u a l m e d e s te ; p o is q u e m e podem se unir em torno de um flame­
a m a s te a n te s d a fu n d a ç ã o do m u n d o . 25 P a i jante sentido de missão. Jesus protegeu a
ju sto , o m u n d o n ã o te co n h eceu , m a s e u te
conheço; e e s te s c o n h e c e ra m q u e tu m e unidade da missão da Igreja contra a
e n v ia s te ; 26 e e u lh e s fiz c o n h e c e r o te u corrupção, ao orar também para que
n om e, e lho fa r e i c o n h e c e r a in d a ; p a r a q u e o amor com que Deus o amara estivesse
h a ja n e le s a q u e le a m o r co m q u e m e a m a s te , neles, como nele estivera. Outra vez,
e ta m b é m e u n e le s e s te ja .
nada menos o próprio fundamento que
mantém unida a Trindade era tornada a
A decisão de Jesus de enviar seus
base para a unidade da Igreja. Num
discípulos ao mundo, apesar de seu ódio sentido teológico, o verdadeiro ecume­
e de seu mal, refletia uma preocupação nismo descansa sobre um fundamento
universal, cujo clímax tem lugar agora trinitariano. Não há razão para esperar
na oração (v. 20-23). Enquanto seus que uma comunidade humana sobre a
seguidores dessem ao mundo, teste­ terra possa ser múltipla e una, a menos
munho da verdade que lhes dera, o que se aceite que ontologicamente a
elemento final de sua certeza seria a comunidade divina, nos céus, seja múl­
compreensão de que todo aquele que tipla e unida.
viesse a crer... pela palavra já fora alvo A razão maior para a Igreja se tornar
da oração de Jesus. O propósito desta perfeita em unidade é que o mundo
oração era que a expansão da Igreja não
conheça a verdadeira natureza de Deus
ameaçasse sua unidade. A base desta como una (isto é, possa compreender que
unidade foi novamente definida como o monoteismo não é um princípio filosó­
uma fé compartilhada na unidade de fico ou ético, mas uma determinação
Deus e Cristo como enviante e enviado. A comunitária com o fim de amar). Quan­
partir do momento em que a comuni­
do a natureza de Deus é verdadeiramente
dade cristã refletisse, em sua vida corpo­ compreendida, sua glória pode ser vista.
rativa, a mesma espécie de harmonia Esta manifestação é mostrada aqui em
espiritual que existiu entre Jesus e o Pai, três estágios: (1) Deus deu sua glória ao
o mundo compreenderia que Jesus não só Jesus histórico (cf. 1:14), isto é, a uni­
ensinou os homens sobre o modo da
dade do Pai e do Filho se revelara na
cooperação mútua, .como lhe trouxe a encarnação. (2) Jesus, por sua vez, deu
unidade da própria Trindade. Jesus não esta mesma glória a seus discípulos, para
pôs em risco o monoteismo de Deus, pois que pudessem demonstrar, na vida de
o Pai estava nele e ele estava no Pai de uma comunidade crescente e plural,
modo tão completo, que eram um em aquelas realidades que o uniam perfei­
propósito e espírito. Como Jesus tivesse tamente a Deus. (3) Mas Jesus sabia que
compartilhado este relacionamento com esta unidade jamais seria completa na
seus seguidores, ao enviá-los, como fora
terra (cf. v. 12), pelo que orou para que
enviado, eles haveriam de experimentar a aqueles que lhe fossem dados como
unidade na diversidade e seriam perfeitos crentes (cf. v. 6) estivessem com ele nos
em unidade, em seu sentido de missão céus, para verem a sua glória eterna, e
ao mundo. assim compartilharem da harmonia
Nos versos 20 a 23, a unidade da Igreja maior da comunidade celestial. A uni­
é descrita em termos de missão (enviar), dade da igreja não é apenas um impera­
enquanto nos versos 24 a 26 é tratada em tivo evangelístico, já que o mundo deve
termos de motivo (amor). Embora um conhecer o significado de Cristo; é tam­
propósito comum ajude a manter a Igreja bém uma esperança escatológica, que crê
unida, isto nunca é o suficiente, pois que a unidade daquilo que nós testemu­
mesmo os mais despóticos dos movi­ nhamos na terra antecipa melhor a vida
mentos (como, por exemplo, o nazismo) do mundo além.
seguiu calma e confiantemente o plano
II. Jesus Morre por Seus divino. As sugestões de vitória, anteci­
Discípulos (18:1-19:42) padas nos capítulos 13 a 17, agora se
Seguindo-se a seção mais original do tomam realidade. A crucificação não foi
Quarto Evangelho (capítulos 13-17), a a perturbação de uma vítima desespe­
narrativa da paixão nos capítulos 18 e rada. Foi, antes, a “suspensão” ou exal­
19 aproxima-se, grandemente, mais do tação de um vencedor triunfante. Sua
que qualquer outra passagem, do trata­ morte não foi vista, pelo evangelista,
mento dado nos Sinópticos. Nos dois como um prelúdio para a ascensão, mas
casos, temos a descrição do aprisiona­ como uma parte integral dela. Pois Jesus
mento de Jesus, seu comparecimento não morreu simplesmente; ele escolheu
diante das autoridades judiciais dos morrer de uma forma que introduzisse
judeus e dos romanos, a sua tríplice profundas influências espirituais nas
negação por parte de um de seus mais vidas de seus seguidores.36
notáveis discípulos, a escolha de Bar-
rabás, por parte da multidão, a zom­ 1. Jesus Aceita Sua Paixão (18:1-18)
baria, a sua crucificação com dois ou­ Esta seção introdutória prepara o
tros, a sua morte e o seu sepultamento cenário para o que vem nos capítulos
antes do pôr-do-sol, na sexta-feira. 18 e 19. A iniciativa soberana de Jesus
Ao mesmo tempo, muitas imagens em seguir adiante, para enfrentar seu
sinópticas não aparecem em João: a destino, domina o texto e permanece em
agonia de Jesus no Getsêmane, o beijo de dramático contraste com a impetuosi­
traição por Judas, a condenação de Jesus dade e vacilação de seu discípulo Pedro.
pelo sinédrio por blasfêmia, o transporte Ficou a forte impressão de que somente
da cruz por Simão de Cirene, o insulto, Jesus sabia o que estava acontecendo e
ao Jesus estar na cruz, por parte da que o resultado dependia absolutamente
multidão, o brado de desolação por parte dele.
de Jesus, as trevas ao meio-dia e o rom­
pimento do véu do Templo. Por sua vez, 1) O Aprimoramento no Jardim (18:
a narração joanina contém uma série de 1 - 11)
detalhes que não aparecem nos Sinóp­ 1 T endo J e s u s d ito isto , s a iu c o m se u s
ticos: a prisão voluntária de Jesus para discípu lo s p a r a o o u tro la d o do rib e iro d e
proteger os discípulos, sua interrogação C edron, o nde h a v ia u m ja r d im , e co m e le s
por Anás, o seu diálogo com Pilatos, a li e n tro u . 2 O ra , J u d a s , q u e o tr a ia , t a m ­
b é m co n h e c ia a q u e le lu g a r ; p o rq u e m u ita s
sobre seu reinado, o papel do discípulo v ezes J e s u s se r e u n ir a a li co m os d is c íp u ­
amado, o seu brado de consumação, o los. 3 T endo, p o is, J u d a s to m a d o a co o rte
golpe de lança no seu lado, que pruduziu e u n s g u a rd a s d a p a r te dos p rin c ip a is s a ­
derramamento de sangue e água, e a c erd o te s e fa ris e u s , c h eg o u a li c o m la n t e r ­
n a s, a rc h o te s e a r m a s . 4 S abendo, p o is, J e ­
profusa unção de seu corpo, para o su s tu d o o q u e lh e h a v ia d e su c e d e r, a d ia n ­
sepultamento, por José e Nicodemos. tou-se e p e rg u n to u -lh e s: A q u e m b u s c a is ?
O efeito destas admiráveis diferenças é 5 R e sp o n d e ra m -lh e : a J e s u s , o n a z a re n o .
fortalecer a divindade real de Jesus pre­ D isse-lh es J e s u s : Sou e u . E J u d a s , q u e o
cisamente na hora de sua ignomínia tr a ía , ta m b é m e s ta v a c o m e le s. 6 Q uando
J e s u s lh e s d is s e : Sou e u , r e c u a r a m , e c a í­
maior. Seu conhecimento prévio destes ra m p o r te r r a . 7 T o rn o u -lh es e n tã o a p e r ­
trágicos eventos capacitaram-no a se g u n ta r : A q u e m b u sc a is? e re s p o n d e ra m :
controlar quando eles ocorreram. Em vez A J e s u s , o n a z a re n o . 8 R ep lico u -lh es J e s u s :
de o apanharem de surpresa, eles foram J á vos d isse q u e sou e u ; se , p o is, é a m im
aceitos como o cumprimento das Escri­
36 Sobre a realeza de Jesus em sua paixão, veja E. C. Col-
turas. Em meio ao tumulto, Jesus jamais wel e E. L. Titus, The Go*pel of the Spirit (New York:
sucumbiu ao “stress” . Pelo contrário, Harper and Brothers, 1953), p. 71-106.
que b u s c a is , d e ix a i i r e s te s ; 9 p a r a q u e se treinados para perseguir criminosos
c u m p riss e a p a la v r a q u e d is s e ra : D os q ue perigosos estavam por demais despre­
m e te n s d a d o , n e n h u m d e le s p e rd i. 10 E n tã o
Sim ão P e d ro , q u e tin h a u m a e s p a d a , de-
parados para esta derradeira afirmação
se m b ain h o u -a e fe r iu o se rv o do su m o s a ­ teológica. Jesus controlava de tal modo a
c e rd o te, co rtan d o -lh e a o re lh a d ir e ita . situação que ditou as condições de sua
O n o m e do se rv o e r a M alco . 11 D isse, pois, rendição: deixai ir estes. Embora já
Je s u s a P e d ro : M ete a tu a e s p a d a n a b a i­ tivesse orado pela proteção de seu reba­
n h a ; n ã o h ei d e b e b e r o c á lic e q u e o P a i m e
deu? nho e a preservação de sua unidade
(17:12; cf. 10:11-18), agora, numa si­
Só depois de ter dito as palavras regis­ tuação de grande perigo agia para que se
tradas em João 13 a 17 estava Jesus cumprisse a palavra que dissera.
pronto para sair, com seus discípulos, Esta aceitação de responsabilidade,
para enfrentar o inimigo. A rota levava por parte daqueles que se comprome­
do lugar da última ceia, em Jerusalém teram com esta preservação, não se
oriental, através do ribeiro de Cedron, fundamentava no merecimento próprio,
até um jardim ou pomar, onde muitas como a desvairada reação de SimSo
vezes se reunira... com os discípulos Pedro tão vividamente o ilustrou. Ao
(numa outra prova de um ministério contrário de Jesus, que protegera os
ampliado em Jerusalém). Judas, aparen­ discípulos com o vigor transparente de
temente, não só conhecia aquele lugar, sua força interior, Pedro desembainhou
como estava certo de que Jesus iria para uma espada, feriu o servo do sumo
lá após a refeição. Assim, para levar sacerdote — num esforço, sem dúvida,
adiante seu plano de trair Jesus (13:21- para rachar-lhe a cabeça — cortando-lhe
30), Judas foi até lá com uma coorte de a orelha direita. A presença de armas
soldados romanos e alguns oficiais ju­ entre os discípulos é surpreendente e
deus (guardas do Templo), da parte dos pode refletir sua dissimulada preparação
principais sacerdotes e fariseus. Obvia­ para a provação que Jesus sugerira (cf.
mente não era necessária uma delega­ 13:37). De qualquer modo, porque Pedro
ção de centenas de pessoas (uma coorte esqueceu que a vingança pertence so­
romana normalmente tinha 600 solda­ mente a Deus (Rom. 12:19), suas ótimas
dos), com lanternas, archotes e armas, intenções para nada valeram. Jesus lhe
para prender um homem desarmado, ordenou para colocar a espada na bainha
durante a lua cheia de Páscoa. Uma e depender de sua estratégia, que era
possibilidade é que a liderança pública beber o cálice que o Pai lhe dera (cf.
pode ter suspeitado que Jesus tivesse Mar. 14:36). Pedro achava que estava
ocultado um exército particular nos ar­ pronto para morrer por Jesus, mas sua
rabaldes da cidade. coragem logo ruiria (v. 17.25,27). Ao
Sabendo, pois, Jesus tudo o que lhe contrário, o que precisava era estar
havia de suceder (cf. 13:18,19), não pronto para Jesus morrer por ele.
fugiu dessa coalisão de inimigos, mas
2) A Acusação Diante de Anás (18:
voluntariamente adiantou-se, para se 12-14)
identificar como aquele a quem busca­
vam. Sem desempenhar qualquer papel, 12 E n tã o a c o o rte , e o c o m a n d a n te , e os
g u a rd a s dos ju d e u s p re n d e r a m a J e s u s , e o
Judas estava com os conspiradores. Fa­ m a n ia ta r a m . 13 E co n d u ziram -n o p r im e ir a ­
lando corretamente, Jesus não foi preso m e n te a A n á s; pois e r a so g ro d e C a ifá s,
por esta hoste poderosa, mas se entregou sum o sa c e rd o te n a q u e le an o . 14 O ra , C a ifá s
a ela. Tão soberana foi sua resposta, Sou e r a q u e m a c o n s e lh a ra os ju d e u s q u e c o n v i­
n h a m o r r e r u m h o m e m p elo povo.
eu (eg5 eimi), que os calejados soldados
recusaram, diante do seu impacto, e O cativeiro era, havia muito tempo, a
caíram por terra (cf. 7:45-47). Homens porção do povo de Deus. Aqui Jesus
permaneceu como uma servidão simbó­ trasse. Esta familiaridade e influência
lica para todos aqueles que, por seu junto ao cortejo sacerdotal sugere um
intermédio, se tomaram livres. O fato de cidadão de Jerusalém ou de um lugar
que aqueles que maniataram Jesus... próximo (na Judéia mesmo), ou, ainda,
conduziram-no primeiramente a Anás uma pessoa de alguma proeminência. É
demonstra que a prisão fora urdida pouco seguro identificá-lo com o discí­
basicamente pelos judeus, pois, do con­ pulo amado (cf. 13:23;19:26,27;20:2-9;
trário, ele teria sido levado primeiro ao 21:7,20-23). Poderia ser João, filho de
governador romano, Pilatos. Zebedeu, mas este não tinha intimidade
Anás foi elevado a sumo sacerdote em pessoal com Caifás; poderia ter sido
6 A.D. por Quirino, tendo sido deposto Lázaro (cf. 11:18,19,45-47), embora seja
em 15 A.D., por Valério Grato (Josefo. difícil imaginar que fosse bem recebido e
Antiguidades, 18:26,34). A parente­ permanecesse incógnito nestas circuns­
mente, porém, ele permanecia no poder tâncias (cf. 12:9-11). Provavelmente, este
“de fato” , uma vez que todos os seus relato ilustra que Jesus tinha muitos
cinco filhos o sucederiam como sacer­ seguidores na Judéia, para os quais pri­
dote (Josefo, op. cit., 20:198), bem como meiramente as memórias da paixão joa­
seu genro, José, chamado Caifás (cf. nina foram elaboradas (Dodd, Historical
Luc. 3:2). Embora Caifás servisse no Tradition, p. 86-88)
cargo de 18-36 A.D. (Josefo, op. cit., Embora o discípulo sem nome perma­
18:35,95), João o identificou como sumo necesse obscuramente no pátio, a aten­
sacerdote naquele fatídico ano, em que ção centralizou-se logo em Pedro. A
aconselhara os judeus da conveniência de porteira que o detivera à porta pergun-
Jesus morrer pelo povo (cf. 11:49-52). tou-lhe se não era um dos discípulos de
Jesus, e ele lhe deu a inequívoca resposta:
3) A Chegada de Pedro e de Outro Dis­ Não sou. As defesas deste “homem-
cípulo (18:15-18) pedra” (cf. comentário sobre 1:42), que
se jactara de estar pronto para lutar, ao
IS S im ão P e d rc s o u tro discíp u lo se g u ia m
a J e s u s . E s te d iscíp u lo e r a con h ecid o do lado de Jesus, até a morte (13:37),
sum o s a c e rd o te , e e n tro u com J e s u s no p á ­ ruíram diante da tagarelice acusadora de
tio do su m o s a c e rd o te , 16 e n q u a n to P e d ro uma serviçal! Esta primeira das três
fic a v a d a p a r te de fo ra , à p o rta . S aiu , e n tã o , negações (cf. v. 25 e 27) vem numa dra­
o o u tro d iscípulo q u e e r a co nhecido do su m o
sa c e rd o te , falo u à p o r te ir a e lev o u P e d ro
mática justaposição com o testemunho
p a r a d e n tro . 17 E n tã o a p o rte ira p e rg u n to u robusto de seu Senhor (cf. v. 19-23).
a P e d ro : N ão é s tu ta m b é m u m dos d is ­ Pedro permaneceu em silêncio, diante do
cípulos d e ste h o m e m ? R esp o n d e u e le : N ão braseiro aceso, enquanto Jesus estava
sou. 18 O ra , e s ta v a m a li os se rv o s e os diante de seus atormentadores, decla­
g u a rd a s , q u e tin h a m a c en d id o u m b ra s e iro
e se a q u e n ta v a m , p o rq u e fa z ia frio ; e t a m ­ rando-lhes que tinha “falado aberta­
b é m P e d ro e s ta v a a li e m p é no m elo d e le s, mente ao mundo” (v. 20). Ironicamente,
a q u e n ta n d o -se. Pedro parecia estar livre, quando, na
realidade, estava escravizado pelo medo
Pelo menos dois discípulos seguiram do silêncio, ao passo que Jesus parecia
lesus ao quartel sacerdotal, onde era estar escravizado, quando, na realidade,
interrogado: Simão Pedro e um outro estava livre do medo de falar.
discípulo, não identificado. Faz-se uma
inolvidável afirmativa acerca deste últi­ 2. Jesus Defende Sua Paixão (18:19-
mo discípulo, que era conhecido do sumo 19:16)
sacerdote, pelo que não só entrou com
Jesus no pátio do sumo sacerdote, como Três características da narrativa joa­
logo conseguiu que Pedro também en­ nina do julgamento logo se destacam, em
comparação com suas contrapartes si­ político, insinuando, assim, aos que ti­
nópticas: 37 nham zombado dele, que este era o único
(1) O modo judaico de julgar é bran­ rei que os judeus mereciam ter (19:19-
damente subordinado aos romanos. Um 22). Desse modo, embora não o preten­
comparecimento informal, diante de desse, Jesus encerrou sua vida sob um
Anás, só aparece em João (18:19-23), sinal que proclamava em três línguas seu
mas os procedimentos judiciais, diante reino rival a César.
de Caifás, que são por demais cruciais (3) Finalmente, o encontro central
nos Sinópticos (cf. Mar. 14:53-65 e refe­ entre Jesus e Pilatos é organizado, por
rências paralelas), não são descritos de João, de modo teatralmente artístico,
todo (v. 24,28). Ao contrário, os proce­ situação não encontrada em nenhum
dimentos diante de Pilatos, que são outro lugar dos Evangelhos. O escopo
mencionados resumidamente nos Sinóp­ literário básico visa apresentar sete
ticos (cf. Mar. 15:1-15 e referências cenas, que se alternam entre os judeus
paralelas), aqui ocupam uma posição de fora do Pretório e Pilatos dentro:38
destaque (18:28-19:16). Ao dedicar seis I (fora) — acusação por parte dos ju ­
versículos a Jesus diante do tribunal deus (18:28-32)
judaico e vinte e nove ao seu confronto II (dentro) — interrogatório romano
com Roma, o Quarto Evangelho tornou (18:33-38a)
decisivo o último encontro, indicando III (fora) — rejeição por parte dos ju­
que o que estava ocorrendo era nada deus (18:38b-40)
menos que o julgamento do mundo, e IV (dentro) — castigo romano (19:
não uma querela religiosa entre os ju­ 1-3)
deus. V (fora) — repúdio por parte dos ju ­
(2) Durante o julgamento romano, em deus (19:4-7)
João, predomina o tema do reino (18: VI (dentro) — reexame romano (19:
33-38;19:2-5,12-16), que, embora men­ 8 - 11)
cionado, não é desenvolvido nos Sinóp­ VII (fora) — Condenação por parte
ticos (cf. Mar. 15:2,9,12 e referências dos judeus (19:12-16)
paralelas). Aqui tudo gira em torno do A finalidade deste arranjo é destacar a
título “rei” (basileus). Contrariamente à pressão hostil exercida pelos judeus sobre
interpretação política de seu ministério, Pilatos. Por quatro vezes (18:40;19:6,
Jesus definiu seu reino não em termo de 12,15) eles “clamaram” (“gritaram” ,
defensores que lutam, mas em termos Moffat), um verbo grego forte (krau-
da soberania da verdade, demonstran­ gazõ), que sugere uma fúria demoníaca,
do, assim, que tanto ele como seus se­ à qual nem Roma poderia resistir.39
guidores não eram culpados de qualquer Cada vez mais a turba aumentava seu
sedição contra Roma (18:33-37). Os impulso para justificar Jesus e rejeitava
judeus, entretanto, astutamente usaram os esforços de Pilatos para libertá-lo.
sua odienta sujeição para compelir Pila­ Eis aqui uma circunstância em que
tos a agir, insistindo que todo amigo de Igreja e Estado devem permanecer sepa­
César deveria suprimir até mesmo um rados, mas por causa do Estado. (Que
inofensivo pretendente ao trono (19:12, presunção pensar que os sacerdotes estão
15). Impelido a agir, embora com reser­ sempre corretos e que os políticos sempre
vas, Pilatos decidiu dar a última palavra, errados!) Neste caso, judeus e gentios
condenando Jesus à cruz como um rival tomaram-se culpados por sua cumpli-
37 Para estas e outrai características da narrativa joanina 38 R. H. Strachan, The Fonith Goapd (3d ed.; London:
do julgamento, veja-se C. H. Dodd, Historical Tradi­ SCM Press, 1941), p. 310-318.
tion, p. 32-120. O criterioso estudo de Dodd, de toda 39 R. H. Líghtfoot, St. John1« Gospel, ed. C.F. Evans
a narrativa da paixão (p. 21-151), é de grande valor. (Oxford: Ciarendon, 1956), p. 325.
cidade (cf. Rom. 1:18-3:20), mas, de sua identificação com um movimento
algum modo, principalmente os primei­ político militante. Jesus respondeu à
ros (cf. o comentário sobre 19:11). acusação implícita sem fazer qualquer
rodeio, mostrando que sempre falara
1) O Interrogatório Pelo Sumo Sacerdote abertamente ao mundo, utilizando-se até
(18:19-24) das instituições oficiais das sinagogas
19 E n tã o o su m o s a c e rd o te in te rro g o u J e ­ e do templo, para este propósito. Como
sus a c e r c a dos se u s discípu lo s e d a su a todos os judeus se congregavam nesses
d o u trin a. 20 R espondeu-lhe J e s u s : E u ten h o lugares, Jesus convidou o sumo sacerdote
falado a b e rta m e n te a o m u n d o ; e u se m p re a perguntar aos que o ouviram acerca do
ensinei n a s sin ag o g as e no te m p lo , onde
todos os ju d e u s se c o n g re g a m , e n a d a fa le i que lhes falara. Como nada falara em
em oculto. 21 P o r q ue p e rg u n ta s a m im ? oculto, havia muitas testemunhas que
p e rg u n ta a o s q u e m e o u v ira m o q u e é que poderiam ser intimadas e, assim, ele não
lhes fa le i; eis qu e eles s a b e m o q u e eu d isse. precisaria se condenar a si mesmo.
22 E , h av e n d o e le d ito isso , u m d o s g u a rd a s
Em resposta na mesma base em que
que a li e s ta v a m d eu u m a b o fe ta d a e m J e ­
su s, d izen d o : É a s s im q u e re sp o n d e s ao estava sendo interrogado, Jesus, a bem
sum o s a c e rd o te ? 23 R esp o n d eu -lh e J e s u s : da verdade, não estava se utilizando de
Se fa le i m a l, d á te s te m u n h o do m a l; m a s , se um dispositivo constitucional, (*) para se
b e m , p o r q ue m e fe re s ? 2 i E n tã o A n ás o recusar a responder, pois sua vida já era
enviou, m a n ia ta d o , a C alfá s, o su m o s a c e r ­
dote.
um livro aberto, que todos podiam ler.
Mais do que isto, ao demonstrar a
Não está bem claro qual sumo sacer­ incompetência do principal magistrado
dote agora interrogou Jesus. No verso 13, judeu, em reunir evidências de várias
Jesus fora levado a Anás, enquanto, no testemunhas de acordo com os processos
verso 24, ele seria enviado a Caifás, pelo estabelecidos, Jesus deixou logo claro
que possivelmente, o interrogador fosse (cf. o comentário sobre 5:31,32) que o
Anás. No entanto, se Caifás era real­ caso estava prejudicado desde o início.
mente sumo sacerdote nessa época (v. Este protesto foi imediatamente respon­
13), a referência poderia significar que dido por um dos guardas que ali estavam
ele viera ao quartel do seu sogro, para que deu uma bofetada em Jesus, pela
uma investigação informal sobre Jesus, insolência de semelhante resposta ao
antes da convocação de uma sessão mais sumo sacerdote. Há sempre aqueles que
formal, do sinédrio, no lugar próximo à acham que as questões fundamentais
sua residência oficial. O termo sumo de justiça podem ser tratadas com uma
sacerdote não decide a questão, uma vez demonstração de força bruta.
que podia referir-se tanto ao chefe da É interessante observar que, nesta
ordem sacerdotal como aos membros situação Jesus não respondeu ao tapa
das selecionadas famílias das quais eram dando literalmente “a outra face” (cf.
escolhidos os sumo sacerdotes. Mat. 5:39), mas, antes, replicou de modo
De qualquer modo, Anás e Caifás mais corajoso ainda, numa espécie de
trab alh aram , m uito provavelm ente, convite para um outro tapa. Os ensinos
juntos, para encontrar um fundamento de Jesus como um todo não prescrevem o
para a acusação política que Pilatos silêncio passivo diante de toda injustiça.
ouviria. As entrelinhas do interrogatório Aqui, por exemplo, Jesus mesmo insistiu
sugerem que se empreendeu um esforço
para se extrair de Jesus a confissão de (*) O autor escreve literalmente: "Jesus nfto estava, a bem
qiie estava treinando secretamente um da verdade, "tomando a Quinta Emenda” , para se
grupo de rebeldes spdiciosos. Se assim recusar a responder...” Na Conttltuiçlo Norte-Ameri­
cana, esta emenda garante aos réus o direito de não
foi, este não era o primeiro esforço para responderem a perguntas que julgaram prejudiciais
desacreditar um grupo novo através de à sua defesa. — N. do T.
na resolução do problema através das dos seus discípulos, certo?”), enquanto a
vias legais: Se falei mal, dá testemunho do verso 27 aguarda uma resposta afir­
do mal; mas, se bem, por que me feres? mativa (isto é, “Eu te vi com ele, não
Como esta demonstração de coragem foi?” ). De qualquer modo, a pressão
tomava claro que Jesus não se intimi­ acabou por levar Pedro a pôr as mangas
daria com tormentos verbais, Anás o de fora.
enviou, maniatado, a Caifás, o sumo Com a terceira negativa, Pedro não
sacerdote, talvez na esperança de que teve um momento de espera para o cum­
procedimentos mais formais dessem primento da predição de Jesus (13:38):
melhores resultados. Um julgamento imediatamente o galo cantou. Como a
completo não poderia ter acontecido no terceira hora da noite (12h às 3h eram
meio da noite e nem mesmo alguma chamadas de “o canto do galo” , o som
sessão do sinédrio é aqui registrada que Pedro ouviu podendo ter sido li­
(v. 24 e 28). Da perspectiva do quarto teralmente de uma ave ou do clarim da
evangelista, os judeus tinham tido já a Torre de Antônio, ao fim da terceira
sua chance para julgar Jesus, e, diante de hora, para anunciar a troca da guarda.
um veredicto negativo, foram julgados Seja como for, Jesus estava correto;
por ele (cf. o comentário sobre 1:19-28; o discípulo que proclamara uma grande
introdução a 5:1-10:42; e 12:36b-50). coragem não conseguiu mantê-la sequer
por uma noite sem negar o mais pro­
2) A Negação de Pedro (18:25-27) fundo compromisso de sua vida.
25 E S lm ão P e d ro a in d a e s ta v a a li, aq u en - 3) A Acusação Contra Jesus (18:28-32)
tan d o -se. P e rg u n ta ra m -lh e , p o is : N ão és
ta m b é m tu u m do s se u s d iscíp u lo s? E le 28 D epois c o n d u z ira m J e s u s d a p re s e n ç a
n egou, e d is s e : N ão sou . 26 U m d o s se rv o s do d e C a ifás p a r a o p re tó rio ; e r a d e m a n h ã
sum o sa c e rd o te , p a re n te d a q u e le a q u em ced o ; e e le s n ã o e n tr a r a m no p re tó rio , p a r a
P e d ro c o r ta r a a o re lh a , d is s e : N ão te v i no n ão se c o n ta m in a re m , m a s p o d e re m c o m e r
Ja rd im co m ele ? 27 P e d ro n egou o u tra v ez, e a p á sc o a . 29 E n tã o P ila to s s a iu a t e r co m
im e d ia ta m e n te o g alo can to u . e les, e p e rg u n to u : Q ue a c u s a ç ã o tr a z e is c o n ­
t r a e ste h o m e m ? 30 R e sp o n d e ra m -lh e : Se
Como o leitor já conhece a predição de ele n ã o fo sse m a lfe ito r, n ã o to e n tr e g a r ía ­
Jesus, em 13:38, de que Pedro o trairia m o s. 31 D isse-lh es, e n tã o , P ila to s : T om ai-o
três vezes, o suspense se instalou desde vós, e ju lg a i-o seg u n d o a v o ssa lei. D iss e ­
18:17,18, onde a cena repentinamente ra m -lh e os ju d e u s : A n ó s n ã o n o s é lícito
t i r a r a v id a a n in g u é m . 32 Isso foi p a r a q u e
mudou, depois que Pedro fizera apenas a se c u m p riss e a p a la v r a q u e d is s e ra J e s u s ,
primeira negação. Um pouco depois, sig n ifican d o d e q u e m o rte h a v ia d e m o r r e r .
tendo ao fundo a coragem de Jesus,
voltamos a Slmão Pedro, que se aquecia A cena agora muda para o pretório
diante do fogo. Então, o grupo repetiu o romano, um complexo que devia incluir
desafio proposto pela porteira: Não és a residência do governador, casernas
também tu um dos seus discípulos? Nem militares e um auditório para julgamen­
bem a sua negação saíra de seus lábios, tos. Sua localização na cidade é incerta;
um dos servos (ou escravos) do sumo provavelmente, ou integrava a Torre de
sacerdote forçou uma outra, e desta vez Antônio, logo adiante do Templo, ou se
porque, como parente daquele a quem interligava com o palácio de Herodes,
Pedro cortara a orelha, estava seguro de mais a noroeste. Aí começou propria­
tê-lo visto no jardim com Jesus. Uma mente o julgamento, pois os esforços
mudança na construção grega da frase judaicos anteriores redundaram em nada
(de mê para ouk) sugere que as pergun­ (v. 24). Era cedo (prfii), o que pode
tas, nos versos 17e 25, esperam uma significar a última hora da noite (3h às
resposta negativa (isto é, “Tu não és um 6h). Era o dia 14 de Nisã, às vésperas da
Páscoa judaica. Como desejavam comer caso, mudar a acusação de blasfêmia
à páscoa na noite seguinte, os judeus se para traição, e executar Jesus por cruci­
recusaram a entrar no pretório do gover­ ficação, que só os romanos poderiam
nador pagão, para não se contamina­ aplicar (cf. 19:10).
rem (embora a contaminação pudesse ser Aparentemente, o evangelista enten­
abolida por uma lavagem ritual antes de deu o problema no último sentido, pois
o novo dia começar, às 6 horas da noite). comentou que a estratégia judaica serviu
Que ironia imaginar que o permanecer para que se cumprisse a palavra que
fora lhes garantiria pureza religiosa, dissera lesus (cf. 12:32,33), acerca da
quando seus pensamentos interiores espécie de morte (isto é, “levantamento”
estavam dominados pelo desejo de matar = crucificação) pela qual havia de mor­
Jesus! rer.
Como uma concessão aos escrúpulos
dos judeus, nessa época santa, Pilatos 4) O Comparecimento Diante de Pilatos
saiu a ter com eles e lhes perguntou pela (18:33-38a)
acusação que tinham contra Jesus. Áo
33 P ila to s , p o is, to rn o u a e n tr a r no p r e tó ­
ouvir que era apenas um malfeitor, rio , c h a m o u a J e s u s e p e rg u n to u -lh e : É s tu
o prefeito 40 entendeu que tinha sido o r e i dos ju d e u s ? 34 R esp o n d e u J e s u s : D izes
transgredida alguma legislação judaica, isso d e ti m e s m o , ou fo r a m o u tro s q u e to
pelo que concitou-os a julgarem segundo d is s e ra m d e m im ? 35 R ep lico u P il a to s : P o r ­
v e n tu ra so u e u ju d e u ? O te u povo e os p r in ­
sua própria lei. Ê de difícil interpretação cip ais sa c e rd o te s e n tr e g a ra m -te a m im ;
a resposta de que isto não era de sua q u e fiz e ste ? 36 R e sp o n d eu J e s u s : O m e u
alçada, já que não lhes era lícito tirar a re in o n ã o é d e s te m u n d o ; se o m e u re in o
vida a ninguém. Os historiadores não fo sse d e ste m u n d o , p e le ja ria m os m e u s s e r ­
têm conseguido determinar com certeza, vos, p a r a q u e e u n ã o fosse e n tre g u e a o s
ju d e u s ; e n tre ta n to , o m e u re in o n ã o é d a q u i.
a partir de evidências seguras, se os 37 P e rg u n to u -lh e , pois, P ila to s : L ogo, tu é s
romanos tinham ou não permitido aos re i? R esp o n d e u J e s u s : T u d izes q u e sou re i.
judeus a prática da pena capital. 41 Se E u p a r a isto n a sc i, e p a r a isso v im ao
não, este versículo pode significar que os m u n d o , a fim d e d a r te s te m u n h o d a v e r d a ­
d e. Todo a q u e le que é d a v e rd a d e o u v e a
judeus consideraram Jesus digno de m in h a voz. 38 P e rg u n to u -lh e P ila to s : Q ue é
morte e pediram a intervenção de Pila­ a v e rd a d e ?
tos, já que só ele poderia decretar tal
pena. Se podiam, o versículo pode signi­ Ao passarem Jesus para Pilatos, as
ficar que, embora os judeus executas­ autoridades judaicas não devem tê-lo
sem, por apedrejamento, alguém que acusado apenas como “ malfeitor” (v.
cometesse ofensas religiosas (cf. 10:31- 30), mas o apresentaram como sendo um
33;11:53; At. 7:58-60), queriam, neste rei (cf. 19:12; Luc. 23:2). Obviamente,
esta era uma acusação que um repre­
40 Tradicionalmente, Pilatos era chamado de procurador, sentante de César tinha que considerar;
embora o título não fosse usado no Novo Testamento
e provenha de Tácito (Anais, 15:44). Ao tempo de por isso, Pilatos tornou a entrar no
Jesus, pode ter sido um anacronismo, uma vez que um pretório e começou a interrogar Jesus a
governador provincial da ordem eqüestre parece ter partir daí. Logo de início, Jesus perce­
sido designado como procurador do reino de Cláudio
(41-54 A.D.), anjes da época em que seria chamado beu, em suas palavras, a desprezível
praefectus ou pro legato. Talvez Pilatos tenha usado acusação foijada pelos judeus, pelo que
os dois títulos em vários estágios de sua carreira.
Veja Jerry Vardaman, “A New Inscription which Men-
chamou Pilatos à sua responsabilidade
tions Pilate as ‘Perfect’” , Journal of Biblical Litera­ judicial com uma pergunta: Dizes isto de
tura, 81(1962), p. 70 e 71. ti mesmo, ou foram os judeus que to
41 A literatura sobre este problema é extensa. Para um disseram de mim? Ao fazer isso, Jesus
recente estudo, veja A.N. Sherwin-White, Roman So-
dety and Roman Law in the New Testament (Oxford: forçou Pilatos a se posicionar como um
Clarendon, 1963), p. 1-47. fantoche, num plano sinistro, ou como
um homem de juízo independente e “origina” o meu reino — v. 36), a fim de
digno de sua função. Golpeado por sua dar testemunho da verdade. Pilatos ou
resposta inesperada — na realidade, qualquer outro ouviria sua voz com
uma pergunta que invertia os papéis e compreensão somente se ele fosse da
transformava Jesus em juiz — Pilatos verdade.
respondeu que não era judeu, isto é, as Esta sublime confissão de Jesus repre­
acusações do sinédrio nada significavam senta um significativo testemunho da
para ele, mas Jesus como era judeu, teria unidade existente entre o poder e a ver­
que responder às acusações formuladas dade. A maioria das civilizações tem sido
contra ele por seu próprio povo e os construída sob o fundamento de que os
principais sacerdotes. dois são incompatíveis — ou seja, que o
Nesta parte do diálogo, Jesus tinha poder é irracional, e a verdade, impo­
conseguido alterar o método do Pilatos. tente. A tensão entre governantes e
A seguir, este deixou as questões apre­ pensadores é conhecida o suficiente para
sentadas por outras pessoas, dedicando- merecer comentário. Contra esta desas­
se, então a descobrir a questão do ponto trada alienação, Jesus afirmou a ambos,
de vista de Jesus: Que fizeste? Isto dizendo que ele que testemunha da ver­
possibilitou Jesus a tomar a acusação de dade experiementa um poder que preva­
reino e redefini-lo como não sendo deste lecerá, e, reciprocamente, que ele que
mundo, que era a grande preocupação de reina deve submeter seu poder ao teste
Pilatos. A prova de que Jesus não era um da verdade. Pilatos fora ensinado a crer
zelote, com desejo de subverter Roma, que os reis governavam pelo poder, e não
está no fato de que seus servos não pela verdade, isto é, que a verdade estava
pelejaram para evitar sua prisão pelos ao lado dos melhores batalhões. Contem­
judeus (18:11; cf. Mat. 26:52-55). Não plando esse jovem “ rei” judeu em ca­
significa isto que o mundo estivesse deias, diante dele, Pilatos acabou por
excluído de seu domínio real, mas apenas perguntar (desprezo irônico ou indaga­
que seu reino não era daqui (isto é, a ção intelectual?): Que é a verdade? Não
fonte de sua soberania não era o poder podia ele sequer sonhar que, quando seu
que os homens conferem a seus líderes César estivesse esquecido, esta verdade
terrenos) e nem poderia a sua causa ser desse Homem estaria reinando sobre um
servida pelas armas das trevas. domínio mais vasto do que aquele que
Nesse momento, Pilatos supôs ter Roma conhecera.
ouvido, dos lábios de Jesus, bem como 5) O Oferecimento de Barrabás (18:
dos judeus, a revelação de que ele era um
38b-40)
rei. Novamente, porém, foi ele avisado de
que o modo como entendia a noção de E , d ito Isto , d e novo sa iu a t e r co m os
ju d e u s , e d isse -lh e s: N ão a c h o n ele c rim e
reino não era necessariamente coinci­ a lg u m . 39 T e n d e s, p o ré m , p o r co stu m e q u e
dente com o de Jesus: Tu dizes que sou e u vos so lte a lg u é m p o r o c a siã o d a p á s c o a ;
rei. O significado de uma coisa não é q u e re is, po is, q u e vos so lte o r e i dos ju d e u s ?
dado apenas por aquilo que um falante 4 0 E n tã o todos to r n a r a m a c la m a r, d izen d o :
disse a respeito desta coisa; é preciso E s te n ã o , m a s B a r r a b á s . O ra , B a r r a b á s e r a
sa lte a d o r.
que o ouvinte queira ouvir o que se
pretendeu dizer. Isto era especialmente Ao suscitar a questão maior, em torno
difícil para Pilatos, porque fora condi­ da verdade, Pilatos tentara fugir à res­
cionado, a vida inteira, a entender reino ponsabilidade de uma decisão sobre
em termo de poderio militar. Jesus, Jesus através de uma retirada para o
então, buscou logo redefinir o conceito relativismo (ou seja, nossos conceitos
de modo positivo: Eu para isso nasci e acerca da verdade diferem tão grande­
para isso vim ao mundo (isto é, disto se mente que é impossível chegar a uma
decisão final entre eles. Agora, tentava esp in h o s e o m a n to d e p ú rp u r a . E d isse-lh e s
evitar a necessidade de escolha, através P ila to s : E is o h o m e m ! 6 Q uando o v ir a m os
p rin c ip a is s a c e rd o te s e o s g u a rd a s , c la m a ­
de um gesto de clemência. Voltando a ter ra m , d izen d o : C ru cifica-o 1 cru c ifica -o !
com os judeus, primeiro lhes garantiu D isse-lh es P ila to s : T o m ai-o v ó s, e c ru c ifi­
que Jesus não cometera qualquer crime; cai-o; p o rq u e e u n e n h u m c rim e a c h o n e le .
ou seja, seu conceito de reino não era 7 R e sp o n d e ra m -lh e o s ju d e u s : N ós te m o s
u m a le i e se g u n d o e s t a le i d e v e m o r r e r ,
político, não sendo, portanto, um sedi­
p o rq u e se fez F ilh o d e D eu s. 8 O ra , P ila to s ,
cioso. Assim, referindo-se a um costume q u an d o o u v iu e s t a p a la v r a , m a is a te m o riz a ­
(para o qual não encontramos evidências do fic o u ; 9 e , e n tra n d o o u tr a vez no p re tó rio ,
Tora do evangelho) de libertar alguém por p e rg u n to u a J e s u s : D o n d e é s tu ? M a s J e s u s
ocasião da Páscoa, Pilatos ofereceu n ão lh e d e u re s p o s ta . 10 D isse-lh e, e n tã o
P ila to s : N ão m e re s p o n d e s? N ão s a b e s q u e
soltar-lhes o assim chamado Rei dos ten h o p o d e r p a r a te s o lta r, e p o d e r p a r a te
judeus. c ru c ific a r? 11 R esp o n d eu -lh e J e s u s : N e ­
No entanto, esta tentativa teve um n h u m p o d e r te r ia s so b re m im , se d e c im a
efeito contrário, como demonstrado pela n ã o te fo ra d a d o ; p o r isso a q u e le q u e m e
e n tre g o u a ti, m a io r p e c a d o te m .
expressa preferência da multidão: este
não, mas Barrabás! João ainda aduz Amarrado a seus bem-intencionados,
que Barrabás era salteador (no grego, mas ineficazes esforços de livramento
léistês) um termo geralmente usado para através de subterfúgios, Pilatos procura
os rebeldes que assolavam as montanhas, agora pacificar a turbulenta multidão
procurando, através da pilhagem, mo­ através de métodos cruéis. Primeiro,
lestar as forças romanas de ocupação. Jesus foi açoitado, prática que consistia
Se este era o papel de Barrabás, a mul­ em fustigar a vítima com um chicote de
tidão pode ter pedido sua libertação, por correias de couro, às quais se pregava
ser ele não um ladrão qualquer, mas um peças de metal ou osso, para aumentar a
herói do movimento nacional de resis­ tortura. Sofreu ele, ainda, a indignidade
tência. Diante disso, Pilatos, aflito, do escárneo de uma coroação, quando os
entendeu que um líder que não enfren­ soldados colocaram uma coroa de espi­
tara o problema da verdade e não jul­ nhos (grinalda de urzes brancas) sobre
gara em benefício próprio (v. 38a) bem sua cabeça, ... um manto de púrpura
poderia enfrentar os gritos de uma mul­ no seu corpo, e, então, zombaram dele
tidão enfurecida. A procura pela verda­ como Rei dos judeus, e lhe davam bofe­
de devia ser difícil, mas era preferível tadas. Em ocasiões normais, esta puni­
aos caprichos de uma multidão capaz de ção era ministrada pouco antes da cruci­
escolher um criminoso que assaltava ficação, para apressar a morte (cf. Mar.
sob a égide do patriotismo, em lugar do 15:15-20 e referências paralelas) ou para
“rei” que não cultivava suas aspirações obter uma confissão completa. Em a
nacionalistas. narrativa joanina, porém, o propósito
era, antes, satisfazer a sede de sangue
6) Os Esforços Para Libertar Jesus (19: por parte da multidão.
141) Para isso, Pilatos saiu outra vez ao
encontro dos judeus e voltou a reafirmar
1 N isso , p o is, P ila to s to m o u a J e s u s , e
m an d o u aço ltá-lo . 2 E o s so ld ad o s, te c e n d o
a inocência de Jesus. Junto com este
u m a c o ro a d e esp in h o s, p u se ra m -lh e so b re anúncio, porém, fez Jesus desfilar de
a c a b e ç a , e lhe v e s tir a m u m m a n to d e coroa de espinhos e com o manto de
p ú rp u r a ; 3 e , ch eg an d o -se a e le , d iz ia m ; púrpura e lhes disse: Eis o homem!
S alve, r e i do s ju d e u s 1 e d a v a m -lh e b o fe ta ­ Talvez seja este o mais sublime exemplo
d a s. 4 E n tã o , P ila to s s a iu o u tr a v ez, e d is ­
se-lhes : E is a q u i vo-lo tr a g o fo ra , p a r a q u e dé ironia de todo o Evangelho. Pilatos
s a ib a is q u e n ã o a c h o n e le c rim e a lg u m . queria dizer: “Olhem reduzi vosso pre­
5 S aiu , p o is, J e s u s , tra z e n d o a c o ro a de tendente real a uma lamentável paródia
de reinada; isso vos basta para satisfazer diante de um poder maior, de cima, por
vossas hostilidades?” O leitor, porém, tudo o que fazia, o culpado pelo maior
percebe, nestas palavras, uma profunda pecado diante de Deus não era ele, mas
realidade: “Vede o verdadeiro (Filho do) aquele que lhe entregara Jesus, pois tal
homem em sua hora de obediência per­ pessoa agira numa deliberada traição, ao
feita; não é o bastante para se ver e ser passo que Pilatos estava apenas tentando
salvo?” cumprir o seu dever. A pessoa indicada
Levados à fúria por este estratagema, por esta passagem não é identificada.
os principais sacerdotes e os guardas Embora se pudesse visar Satanás, a
clamaram por vingança, demonstrando, alusão deve se referir mais especifica­
pela primeira vez, seu desejo maior: mente a Judas ou ao sumo sacerdote.
Crucifica-o! crucifica-o! Provocado à Talvez o singular — aquele visasse enco­
exasperação por estes clamores, Pilatos brir alguém que contribuíra para a injus­
desafiou-os a utilizarem a lei com suas tificada prisão de Jesus.
próprias mãos: Tomai-o vós, e crucificai-
o; porque eu nenhum crime acho nele. 7) A Condenação de Jesus (19:12-16)
Pela terceira vez Pilatos procurava livrar
12 D a í e m d ia n te P ila to s p ro c u r a v a so ltá-
Jesus (18:38;19:4,6), mas os judeus se lo ; m a s os ju d e u s c la m a r a m : Se s o lta re s a
mostraram inflexíveis: Nós temos uma lei e s te , n ã o é s a m ig o d e C é s a r; to d o a q u e le
(contra a blasfêmia), e, segundo esta lei, qu e se fa z r e i é c o n tra C é s a r. 13 P ila to s ,
ele deve morrer (Lev. 24:16), porque se pois, q u a n d o o u v iu isto , tro u x e J e s u s p a r a
fez Filho de Deus (cf. 5:18; 10:33). Na­ fo ra e se n to u -se n o tr ib u n a l, n o lu g a r c h a ­
m a d o P a v im e n to , e m h e b ra ic o G a b a tá .
quele momento, os judeus, mais do que 14 O ra , e r a a p r e p a r a ç ã o d a p á s c o a , e c e r c a
Pilatos, prestaram, sem o saber, uma d a h o ra s e x ta . E d is se a o s ju d e u s : E is o
homenagem ao verdadeiro significado de vosso r e i. 15 M a s e le s c la m a r a m : T tra-o !
Jesus, ao identificá-lo, mesmo na base T ira-o ! c ru c ific a -o ! D isse-lh es P ila to s : H ei
d e c ru c ific a r o vo sso r e i ? R e sp o n d e ra m o s
do deboche, como o Filho de Deus (cf. p rin c ip a is s a c e r d o te s : N ão te m o s r e i, se n ã o
1:34,49;3:18,35;5:19-23;11:27). C é sa r. 16 E n tã o lh o e n tre g o u p a r a s e r c r u ­
Estas palavras de irônica confissão c ificad o .
exerceu também um impacto sobre Pila­
tos, pois este entrou outra vez no pretório Depois que Jesus admitiu, no verso 11,
e, talvez dominado por um sentimento de que, longe de pretender sobrepujar o
medo inextinguível, retomou a discussão ofício do governador, através de uma
com Jesus (cf. 18:36b), perguntando de revolta, exaltou-o como uma dádiva de
onde era. Entendendo que a pergunta já Deus, Pilatos pretendia novamente
fora respondida por aqueles que “ouvi­ soltá-lo quando foi trazido à realidade
ram” sua voz (18:37), Jesus nada res­ pelos judeus com a seguinte insinuação:
pondeu. Diante do menoscabo deste Se soltares a este, não és amigo de César;
“silêncio imperial” , que simplesmente todo aquele que se faz rei é contra César.
afirmava uma autoridade que não care­ Sem dúvida alguma, este foi o argumen­
cia de prova terrena, Pilatos começou a to mais convincente apresentado pelos
ameaçar, recordando a Jesus seu poder judeus contra a soltura. “Amigo do
para soltá-lo ou crucificá-lo. Imperador” era um título cobiçado, que
Diante dessa ruidosa afirmação de Pilatos sustentava ou aspirava; por isso
autoridade, Jesus respondeu simples­ não quis arriscar sua reputação de leal­
mente que Pilatos podia mostrar suas dade para com César, em não consi­
funções de juiz somente porque o ofício derar as acusações contra Jesus. O fato
lhe fora dado por Deus, para a manu­ de Pilatos ser, mais tarde, afastado do
tenção da ordem pública (cf. Rom. cargo, como conseqüência de um pro­
13:1). Embora Pilatos fosse responsável testo local, ilustra o perigo potencial em
que era agora lançado pelos judeus (cf. elevadas esperanças num lenho de ver­
Josefo, Antiguidades, 18:85-89). gonha?” Diante dessa terrível alterna­
Pela terceira e última vez, Pilatos ... tiva, os judeus foram obrigados a repu­
trouxe Jesus para fora, e alguém — o diar sua herança teocrática, para coagir
grego não especifica quem — sentou-se Pilatos: Não temos rei, senão César.
no tribunal. Se foi Pilatos, estava se Ao perceber que estavam prontos para
preparando para proferir uma sentença; pagar qualquer preço para sacrificar a
se foi Jesus, tratava-se de um último vítima, ele entregou Jesus para ser cru­
gesto para aumentar a zombaria. Agora cificado.
que se chegara ao clímax do julgamento, A narrativa não registra ter Pilatos
ás circuiístâncias históricas são deta­ condenado Jesus à morte, pois, em certo
lhadas, como se os menores detalhes sentido, ele não fez um sumário de
desse momento merecessem ser relem­ culpa, tendo apenas dado sua aquies­
brados. O lugar era chamado de Pavi­ cência ao veredicto judaico que se lhe
mento, possivelmente por ter sido cons­ oferecia. Na narrativa joanina, Pilatos é
truído sobre pedras cuidadosamente apresentado basicamente como um ro­
assentadas. Como este tribunal se ligasse mano rude, subitamente lançado numa
ao pretório, podia ficar ou na Torre de guerra judaica, da qual nada sabia e não
Antônio ou no palácio de Herodes (cf. o aprovava. Com fina ironia, o evangelista
comentário sobre 18:28): os dois lugares sugere que havia mais percepção nos
tinham uma elevação em rocha, que impulsos naturais e pagãos de Pilatos do
podiam ser chamadas de Gabatá (“coli­ que em todas as maquinações do sacer­
na saliente”) em hebraico (aramaico). dócio judaico. Pilatos era pela absolvi­
A data era 14 de Nisã, o dia da prepara­ ção, mas, ao ver que sua escolha era de
ção dã~páscõa (cf. Mar. 14:1,12,14). todo inaceitável para a estrutura local de
Aproximava-se a tarde (12 horas), cerca poder, ele resolveu tudo fazer para adiar
da hora sexta (cf. Mar. 15:25-33), quan­ o julgamento. Os inimigos de Jesus,
do os cordeiros pascais eram preparados porém, se mostraram implacáveis. E
para o sacrifício. Como o demonstra uma quando Pilatos capitulou diante de suas
comparação entre os Sinópticos, toda pressões, toda a força demoníaca em
esta informação caracteriza o Quarto ação, na frenética multidão, acabou por
Evangelho, sugerindo a utilização de se revelar ainda mais completamente.
uma fonte independente. Seria difícil encontrar evidência mais
Num esforço final para que o assunto terrível de depravação a que uma religião
não se estendesse, Pilatos disse aos ju­ pode levar.
deus, zombeteira e sarcasticamente:
3. Jesus Cumpre Sua Paixão (19:17-42)
Eis o vosso rei; ou seja, “este pobre
coitado é o único rei que permito que A seção anterior deixou claro o modo
tenhais” . Este gesto cruel e debochado pelo qual Jesus foi julgado como Rei; esta
teve o efeito de os judeus, sentindo-se narra o modo dele morrer como Rei. Em
ridicularizados, pedirem insistentemente lugar de se procurar esconder a vergonha
por sua crucificação. Incapaz de conse­ e o sofrimento terríveis de uma crucifi­
guir a libertação de Jesus por meio da cação pública, há mesmo um empenho
piedade, Pilatos apelou para o orgulho para dar aos detalhes mais obscenos uma
nacional: Hei de crucificar o vosso rei? nova dignidade, seja porque significasse
Havia um desafio sutil: “Não estou uma homenagem inconsciente à realeza
interessado em satisfazer seus desejos e de Jesus ou porque representasse a pleni­
executá-lo como criminoso. Quereis tude da profecia bíblica ou ainda porque
mesmo sofrer, vendo-me humilhá-lo ilustrasse a perfeita obediência de Jesus
como vosso rei, pregando suas mais perante a vontade de seu Pai. O fato de a
narrativa combinar um relato rigorosa­ latina dessa palavra, na Vulgata, é Cal-
mente histórico com uma profunda refle­ varia, o que explica o fato de Goigota e
xão teológica demonstra outra vez que o Calvário serem usados indistintamente
Evangelho não derivou sua fé de alguma nos dias de hoje. Não se explica a razão
especulação esotérica, mas de meditação desse nome. Uma conjectura possível é
orientada pelo Espírito e centrada no que, por servir como palco de execuções
ministério de Jesus. O grande paradoxo freqüentes, o epíteto se tornou próprio,
desta passagem é que, embora fosse uma vez que caveira simboliza morte. É
difícil ou mesmo impossível ver Deus incerta a sua exata localização, especial­
agindo nesta catástrofe aparente, era mente porque os cristãos não demons­
possível ver sua glória revelada mais traram qualquer interesse pelo problema
claramente aqui do que em qualquer até o quarto século. Atualmente, a Igreja
outro lugar. do Santo Sepulcro e o Jardim do Calvário
(de Gordon) disputam entre si, mas
1) A Crucificação e a Inscrição (19:17- nenhum deles tem muitos elementos que
22 ) autentiquem tal pretensão.
17 T o m a ra m , pois, a J e s u s ; e e le , c a r r e ­ A crucificação visava não somente
g ando a s u a p ró p r ia c ru z , sa iu p a r a o lu g a r expor a vítima à ignomínia pública, mas
c h a m a d o C a v e ira , que e m h e b ra ic o se c h a ­ também levar à morte por meio de uma
m a G ólgota, 18 onde o c ru c ific a ra m , e com vagarosa tortura física. Se os órgãos
ele o u tro s dois, u m d e c a d a lad o , e J e s u s no
m eio. 19 E P ila to s e s c re v e u ta m b é m u m
vitais não fossem atingidos, quando o
titulo, e o colocou so b re a c ru z ; e n e le e s ta v a corpo era cravado ou amarrado ao lenho,
e sc rito : JE S U S O N AZARENO , O R E I DOS a morte sobreviria, inevitavelmente,
JU D E U S . 20 M u itos dos ju d e u s , pois, le r a m vários dias depois, como decorrência da
e ste títu lo ; p o rq u e o lu g a r o nde J e s u s foi fome, da sede, da paralisia dos músculos
cru cificad o e r a pró x im o d a c id a d e ; e e s ta v a
e sc rito e m h e b ra ic o , la tim e g re g o . 21 D i­ e do colapso. O ritual era tão repulsivo
z iam e n tã o a P ila to s os p rin c ip a is s a c e r d o ­ que Roma o reservava apenas aos escra­
te s dos ju d e u s : N ão e s c r e v a s : O r e i dos vos e estrangeiros. Na Palestina, era
ju d e u s ; m a s q u e e le d is s e : Sou re i dos j u ­ usado geralmente para castigar ladrões e
d eu s. 22 R esp o n d eu P ila to s : O que e sc re v i,
esc re v i.
subversivos. Por isso, quando crucifi­
caram Jesus e com ele outros dois, todas
Como o propósito da crucificação era as aparências serviam para relembrar o
ridicularizar a vítima, era comum o poder de Roma. João não descreve os
condenado levar a parte transversal de outros dois (cf. Luc. 23:39-43), prefe­
sua própria cruz, através de uma rota rindo concentrar sua atenção em Jesus,
conhecida, até o lugar da execução. Não no meio dos dois.
se menciona aqui o constrangido papel Como já indicado no verso 15, Pilatos
desempenhado por Simão, o cireneu estava interessado em vingar-se do atre­
(Mar. 15:21 e referências paralelas), vimento dos judeus, que o coagiram a
possivelmente para enfatizar sua obra crucificar Jesus. Para coroar esta já
salvífica sem qualquer colaboração hu­ dantesca cena, ele colocou um título...
mana. Como Isaque, no passado (Gên. sobre a cruz, qtRTctizAa,: Jesus o Naza­
22:6), ele carregou os elementos para o reno, o Rei dos Judeus. È, para aumen­
seu próprio sacrifício. tar a vergonha ao insulto, Pilatos escre­
O destino era um lugar próximo à veu esta inscrição em hebraico, latim e
cidade, isto é, fora de seu muro (cf. Heb. grego, para que todo mundo pudesse
13:12). Depois, somos informados de que conhecer o tipo de rei que os judeus
ficava anexo a um jardim (v. 41 e 42). tinham ultimamente conseguido. Todos
O nome para o lugar em hebraico era os protestos dos principais sacerdotes
Goigota, que significa caveira. A forma não persuadiram Pilatos a mudar o que
havia escrito. Para o evangelista, a ironia perigo mortal. Exatamente como no
disso tudo era que Pilatos inconsciente­ verso citado, o salmista clamou: “um
mente proclamou a autoridade universal ajuntamento de malfeitores me cerca;
de Jesus, que governa o mundo a partir traspassaram-me as mãos e os pés” (v.
de uma cruz. 16). Como o salmista ficasse tão magro
que podia contar seus ossos, os seus
2) A Repartição das Vestimentas de vizinhos e parentes o contemplavam e
Jesus (19:23,24) zombavam de suas palavras (v. 17),
23 T endo, pois, os so ld ad o s cru c ific a d o a
chegando mesmo a dividir seus pertences
Je s u s , to m a ra m a s s u a s v e ste s, e fiz e ra m pessoais entre si, antes de ele morrer
d e la q u a tro p a rte s , p a r a c a d a so ld ad o u m a (v. 18). Como isso aconteceu a Jesus, o
p a rte . T o m a ra m ta m b é m a t ú n i c a ; o ra , a sentimento de um claro desespero, por
tú n ic a n ã o tin h a c o stu ra , sendo to d a te c id a parte de um justo sofredor, diante de
de a lto a b aix o . 24 P e lo que d is s e ra m u n s a o s
o u tro s: N ão a ra s g u e m o s , m a s la n c e m o s seus atormentadores, encontrou aqui
so rte s so b re e la , p a r a v e r de q u e m s e r á sua expressão maior.
(p a r a q u e se c u m p riss e a e s c r itu r a q u e d iz:
R e p a rtira m e n tr e si a s m in h a s v e ste s, e É interessante notar que, no salmo, os
sobre a m in h a v e s tid u ra la n ç a ra m s o rte s ). dois versos sobre a distribuição das vestes
E , d e fato , os so ld ad o s a s s im fiz e ra m . e do sorteio, no hebraico, estão em
paralelismo e se referem a um só aconte­
Numa crucificação, despia-se comple­ cimento, enquanto em João estes versos
tamente a vítima, o que contribuía para se referem a dois acontecimentos suces­
aumentar a vergonha do acontecimento, sivos, nos versos 23 e 24a. (cf. uma
uma vez que se tornava incapaz de adaptação semelhante de Zacarias 9:9
controlar suas funções orgânicas, e para em Mateus 21:5-7). Embora possa refle­
piorar sua tortura física como resultado tir uma compreensão inadequada da
de sua exposição aos elementos, ficar à poesia semítica, este uso do Velho Testa­
mercê dos insetos. Seu vestuário era mento demonstra que o sentido original
considerado propriedade dos carrascos, das Escrituras foi alterado, para se ajus­
neste caso um pelotão de quatro solda­ tar à realidade da história, em vez de
dos. Primeiramente, eles o dividiram em os fatos da história terem sido modifi­
quatro partes, e cada um pegou uma, cados, para se ajustarem a alguma idéia
provavelmente o turbante, as sandálias, anterior das Escrituras. Em outras pa­
a capa e o cinto. Sobrou a túnica, ou lavras, o cumprimento era maior que a
roupa de baixo, que não podia ser predição, e assim determinava seu uso.
dividida, por ser uma peça sem costura,
toda tecida de alto a baixo. Decidiu-se
não rasgá-la em quatro partes, mas sor­ 3) A Mãe de Jesus e o Discípulo Amado
teá-la, para que um do grupo a tivesse (19:25-27)
inteira.
25 E s ta v a m e m p é , ju n to à c ru z d e J e s u s ,
De uma perspectiva cristã, este com­ su a m ã e , e a ir m ã de s u a m ã e , e A laria,
portamento, um tanto insensível, foi m u lh e r de C lôpas, e M a ria M a d a le n a .
visto como cumprimento da Escritura 26 O ra, J e s u s , v endo a li s u a m ã e , e ao lad o
(Sal. 22:18). Este Salmo era uma das d e la o d iscíp u lo a q u e m e le a m a v a , d is se à
su a m ã e : M u lh e r, e is a í o te u filho. 27 E n tã o
passagens centrais da Bíblia, para os d isse a o d iscíp u lo : E is a í tu a m ã e . E d esd e
primeiros cristãos, quando se empenha­ a q u e la h o ra o discíp u lo a re c e b e u e m su a
ram em compreender a paixão de Jesus. c a sa .
Principiando pelo conhecido “Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?” Dos Evangelhos, João é o que mais
(cf. Mar. 15:34), o salmo descreve o importância dá às mulheres em relação à
lamento de uma pessoa ao enfrentar um crucificação. Enquanto nos Sinópticos,
um grupo de mulheres é mencionado, ao (como em Marcos 3:33-35:10:30), e aqui
fim da narrativa, como estando a obser­ este ensino foi literalmente cumprido. 42
var “de longe” (Mar. 15:40,41 e refe­
rências paralelas), aqui elas são sempre 4) A Morte de Jesus (19:28-30)
referidas, desde o início, como estando
junto à cruz de Jesus. Alguns problemas 38 D epois, sa b e n d o J e s u s q u e to d a s a s
de pontuação dificultam determinar co isas já e s ta v a m c o n su m a d a s, p a r a q u e se
quantas foram arroladas. Possivelmente, c u m p risse a E s c r itu r a , d is se : T enho sed e.
29 E s ta v a ali u m v aso cheio de v in a g re .
foram enumeradas quatro, talvez para P u s e ra m , p o is,n u m a c a n a de hissopo u m a
representar a contraparte fiel dos quatro e sp o n ja e n so p a d a de v in a g re , e lh a c h e g a ­
soldados mencionados no verso 23: ra m à b o ca . 30 E n tã o J e s u s , dep o is d e te r
(1) sua mãe, conhecida, fora deste Evan­ to m ad o o v in a g re , d is s e : E s tá c o n su m ad o .
gelho como Maria; (2) a irmã de sua E , in clin an d o a c a b e ç a , e n tre g o u o e sp irito .
mãe, desconhecida, a menos que seja
identificada com Salomé, a partir de Só depois de ter consumado toda a
Marcos 15:40 e Mateus 27:56 (o que obra para que foi enviado e de enfrentar
tomaria os filhos de Zebedeu primos, em a realidade de que a morte se aproxi­
primeiro grau, de Jesus); (3) Maria, mu­ mava, Jesus pensou em si o bastante,
lher de Clôpas, que pode ter sido a mãe para dizer: Tenho sede. Isto refletia toda
de Tiago, o jovem, e de José, como em a sua dor, numa das conseqüências mais
Marcos 15:40; e (4) Maria Madalena, dramáticas da crucificação. No entanto,
referida aqui pela primeira vez, neste esta confissão não significava fraqueza,
Evangelho, mas destinada a participar mas visava cumprir a Escritura de Sal­
apenas deste apoteótico capítulo (20: mos 69:21, que vislumbra a situação do
1-18). justo sofredor, que recebeu apenas vina­
Estas mulheres entraram na narrativa gre para dessedentar sua sede. Não
para prover o cenário em que Jesus viu estranha que uma tijela cheia desse
sua mãe, e ao lado dela o discípulo a mesmo vinagre estivesse junto à cruz,
quem amava. Embora tivesse tomado, porque esta era uma bebida popular
com a crucificação, sobre si o cuidado entre os soldados. Desta porção, uma
do mundo, Jesus não estava menos preo­ espoi\ja ensopada lhe foi chegada à boca,
cupado em cuidar de sua mãe. No numa tentativa de mitigar sua sede. Não
mesmo espírito de preocupação que se sabe se a esponja foi levada aos seus
demonstrara para com a proteção de seus lábios sobre hissopo (hussõpos, no gre­
discípulos (17:11,12; 18:8,9), ele não go), uma pequena planta usada em
permitiu que sua agonia pessoal o des­ relação à Páscoa (Êx. 12:22; cf. Heb.
viasse das tarefas práticas de filho. 9:19), ou sobre a espada (hussõi, no
Quanto à sua mãe (chamada aqui de grego). Esta obviamente funcionaria
mulher, como em 2:4), recomendou-a melhor para tal fim; semelhante inter­
ao discípulo amado como seu filho (isto pretação, porém, exige uma alteração
é, como alguém que participaria de sua > conjectural da palavra grega encontrada
vida); com referência ao discípulo, apre­ em nossos melhores manuscritos. Em
sentou Maria, em seu novo papel, como qualquer caso, como esta bebida não
sua mãe. Desde aquela hora, este dis­ entorpecia (ver também Marcos 15:23
cípulo ideal aceitou a responsabilidade e Mateus 27:34), mas antes produzia um
sobre ele colocada, e a recebeu em sua efeito refrescante, Jesus logo a tomou.
casa, que devia ficar, por inferência, na
região de Jerusalém. Em outra circuns­ 42 Alguns comentários encontram um elaborado simbo­
lismo nos versos 25*27. Veja E. C. Hoskyns, The Four*
tância, Jesus prometera que seus segui­ th Gospel, F.N. Davey, ed. (2d rev. ed.; London:
dores receberiam “ mães espirituais” Faber and Faber, 1947), p. 530.
Isto posto, os lábios que até há pouco Dois problemas foram criados, para os
estavam tão ressecados de sede que judeus, por ocasião da crucificação de
clamavam em agonia, agora exultaram Jesus. Primeiro, ela ocorreu na sexta-
em triunfo: Está consumado. Esta excla­ feira, o dia da Preparação para o sábado,
mação (tetelestai, no grego) deVe ter sido que começava ao pôr-do-sol. Depois,
ouvida pelos presentes como uma de­ como era o dia 14 de Nisã (cf. v. 14), este
monstração de resignação, num reco­ sábado seria também o grande dia por
nhecimento de que sua luta chegara ao coincidir eom a abertura do grande
fim. O leitor crente, no entanto, não festiyál pascoal de 15 de Nisã. Como
pode deixar de ouvir a afirmação de que Deuteronômio 21:22,23 prescrevera que
a época da redenção chegara ao seu uni cadáver não permaneceria “no ma­
clímax, pelo que Jesus amara os seus deiro durante a noite, mas certamente”
“ até o fim” (13:1). A partir de então todo devia ser “ enterrado no mesmo dia” ,
homem podia esperar não com base urgia que esta determinação fosse obser­
numa frustrada sensação de incomple- vada em tão solene circunstância. Por
tude, mas fundado na obra definitiva de isso, os judeus rogaram a Pilatos que se
Cristo. lhes quebrassem as pernas, uma forma
Depois de controlar sua paixão desde o costumeira de abreviar a morte durante a
princípio, Jesus agora voluntariamente longa provação da crucificação. É por
entregou o espírito, e morreu. Isto quer demais irônico supor que infligir seme­
dizer simplesmente que fez retomar, lhante traum a a vítimas desesperadas
a força que animava sua vida física, ao “preparasse” alguém para uma melhor
Deus criador, que a nutrira (cf. Mar. celebração desse dia, destinado a recor­
15:37). Entendem alguns, porém, haver dar a libertação de Israel da opressão
um sentido teológico mais profundo aí egípcia (cf. o comentário sobre 18:28).
contido, isto é, que, por sua morte, o Quando assim procederam em relação
Espírito Santo estava sendo “dado” ao primeiro e depois ao outro que com
(paredõken, no grego) aos seus segui­ ele fora crucificado, os soldados desco­
dores (cf. 7:39). Isto parece estar em briram que Jesus já estava morto, pelo
oposição à doação explícita do Espírito que não lhe quebraram as pernas. Em
Santo à Igreja, a ser descrita em 20:22. lugar disso, um dos soldados lhe furou o
lado com uma lança, para se assegurar
5) O Testemunho do Sangue e da Ãgua de sua morte ou para participar de um
(19:31-37) último gesto de crueldade casual. A
31 O ra , os ju d e u s , co m o e r a a p r e p a r a ç ã o , lança produziu uma efusão de sangue
e p a r a q u e no sá b a d o n ã o fic a sse m os c o rp o s e água da cavidade abdominal, o que não
n a c ru z , po is e r a g ra n d e a q u e le d ia d e s á ­ deixava dúvida de que o corpo realmente
b ad o , r o g a r a m a P ila to s q u e se lh e s q u e ­ morrera. Embora a fixação deste fato
b ra s s e m a s p e rn a s , e fo sse m tira d o s d a li.
32 F o r a m e n tã o os so ld ad o s e , n a v e rd a d e , possa ter sido importante, na luta cristã
q u e b ra r a m a s p e rn a s a o p rim e iro e a o o u tro contra os gnósticos, que afirmavam o
q ue co m e le fo ra c ru c ific a d o ; 33 m a s , vindo contrário, o evangelho estava interessado
a J e s u s , e v end o q ue j á e s ta v a m o rto , n ão em esclarecer o seu verdadeiro sentido,
lhe q u e b ra r a m a s p e r n a s ; 34 co n tu d o , u m
dos so ld ad o s lh e fu ro u o lad o co m u m a la n ­
em duas outras direções.
ç a , e logo s a iu sa n g u e e á g u a . 35 E é q u e m Primeiramente, João destaca, com
v iu isto q u e d á te s te m u n h o , e o se u te s te m u ­ ênfase, que a efusão de sangue e água foi
n ho é v e rd a d e iro ; e s a b e q u e diz a v e rd a d e , vista por aquele que testificara o seu
p a r a q u e ta m b é m vós c re ia is . 36 P o rq u e isto significado, com base num testemunho
a c o n te c e u p a r a q u e se c u m p riss e a E s c r itu ­
r a : N en h u m d o s se u s osso s s e r á q u e b ra d o . , que insistia ser verdadeiro, a fim de que
37 T a m b é m h á o u tr a E s c r itu r a q u e d i í r os leitores que pudessem receber sua
O lh arão p a r a a q u e le q u e tr a s p a s s à r a m . contribuição como uma parte de seu
Evangelho também cressem. Parece ine­ lado, a decisão de não quebrar as per­
quívoco que esta testemunha não era nas de Jesus significava que, nesse sen­
o autor final do Evangelho, uma vez que tido, ele se assemelhava tanto ao justo
todas as referências a ele aqui são na sofredor como aos cordeiros pascais, dos
terceira pessoa, o que significa que ele quais se disse que nenhum dos seus ossos
era uma fonte sobre a qual o livro foi será quebrado (cf. Êx. 12:46; Núm.
elaborado (cf. o comentário sobre 21: 9:12; Sal. 34:20). Por outro lado, o
24,25). Pode-se identificar, conjectural- lanceamento significava que os inimigos
mente, esta testemunha com o discípulo de Jesus estavam na mesma posição que
amado, seja por ter sido mencionado os jerosolimitanos do passado, que um
precisamente como estando “ ao lado dia olhariam para aquele a quem tras­
dela” (v. 26), seja porque uma afirma­ passaram (Zac. 12:10) e chorariam por
ção semelhante ao verso 35 é repetida em seus líderes martirizados. O secular
21:24, onde o contexto une inapelavel- drama da rejeição chegara agora ao seu
mente os dois. O fato de o discípulo último ato.
amado ser o único capaz de perceber 6) O Sepultamento de Jesus (19:38-42)
o significado do sangue e da água destaca
a ênfase sobre sua sensibilidade, notada 38 D epois d isto , Jo s é d e A rim a té ia , que
e r a discípu lo d e J e s u s , e m b o ra o culto, p o r
em outros lugares no Evangelho (exem­ m edo dos ju d e u s , rog ou a P ila to s que lhe
plos: 20:8; 21:7). p e rm itiss e t i r a r o co rp o de J e s u s ; e P ila to s
O conteúdo de seu testemunho não é lho p e rm itiu . E n tã o foi e o tiro u . 39 E Nico-
registrado, porém. Por isso, somos leva­ d em o s, a q u e le q u e a n te rio rm e n te v ie r a te r
dos a inferir seu ímpeto essencial, tanto com J e s u s de n o ite, foi ta m b é m , lev an d o
c e rc a d e ce m lib ra s d u m a m is tu ra d e m i r r a
da pressuposição de que o evangelista o e alo és. 40 T o m a ra m , p o is, o co rp o d e J e s u s
aceitou de todo o coração como da e o e n v o lv e ra m e m p a n o s d e linho co m a s
enigmática passagem de I João 5:6-8. 43 e s p e c ia ria s , com o os ju d e u s c o stu m a m f a ­
Uma premissa básica deste Evangelho é z e r n a p re p a r a ç á o p a r a a se p u ltu ra . 41 No
lu g a r onde J e s u s foi cru c ific a d o h a v ia u m
que as realidades físicas podem se encar­ ja r d im , e n e sse ja r d im u m se p u lc ro novo,
nar, tomando, então, um sentido verda­ e m q u e n in g u é m a in d a h a v ia sido posto.
deiramente espiritual. Biologicamente, 42 Ali, pois, p o r s e r a v é s p e ra do sá b a d o dos
o corpo de Jesus pode ter jorrado sangue ju d e u s, e p o r e s t a r p e rto a q u e le se p u lc ro ,
e um líquido claro semelhante à água. p u se ra m a J e s u s .
O Evangelho, no entanto, sempre dá a Depois da morte de Jesus, um certo
estes termos um rico significado espiri­ José, da cidade de Árimatéia, localizada
tual, relacionando-os à vivificação e à nas colinas próximas a Jerusalém, soli­
sustentação da vida eterna (exemplos: citou a Pilatos que lhe permitisse tirar o
2:7-9;3:5;4:14;6:53-56;7:38,39; 13:5-10). corpo de Jesus da cruz, para ser sepul­
Desse modo, o sangue e a água reais que tado. Muito provavelmente, José era
saíram do Cristo crucificado simbolizam um líder de alguma proeminência, uma
que somente ele é a fonte dessas reali­ vez que tinha acesso direto ao governa­
dades que redimem e nutrem todo aquele dor romano. Seu pedido obteve parecer
que crê. iavórável e seu colaborador, nessa em­
Em segundo lugar, o trabalho dos preitada, foi Nicodemos, aquele que
soldados recebeu também um significado anteriormente viera ter com Jesus de
pelo fato de que uma vez mais as Escri­ noite (3:1,2). Os Sinópticos nos contam
turas tinham-se cumprido. Por um que, a exemplo de Nicodemos, José era
“um ilustre membro do sinédrio” (Mar.
43 Sobre a interpretação de 19:34, 35 e I João 5:6-8, em 15:43), que tentou evitar a condenação
conexão com a Ceia do Senhor, veja Oscar S. Brooks,
“The Johannine eucharist” , Journal of Biblical Litera* de Jesus (Luc. 23:51). João concorda com
ture, 82(1963), p. 293-300. Mateus 27:57, segundo o qual José era
um discípulo de Jesus, embora acres­ ficação de Jesus é apresentada, num
cente que o era ocultamente, por medo sentido histórico, como o ponto mais
dos judeus (cf. 12:42,43). Não está claro baixo da humilhação do Filho do Ho­
se tal caracterização se aplica também a mem, por um lado, e, por outro, como o
Nicodemos. ponto mais alto de sua exaltação. De
Ao que parece, os dois eram ricos, a uma perspectiva humana, a cruz era uma
julgar, especialmente, tendo-se em vista indignidade absoluta; de uma perspec­
a contribuição que fizeram para o sepul- tiva divina, porém, era o triunfo do amor
tamento de Jesus. José ofereceu um obediente. Embora aos inimigos de Jesus
sepulcro novo, que tinha (Mat. 27:60) isto fizesse parecer que ele morrera em
num jardim próximo ao lugar da cruci­ ignomínia e vergonha, mostra-se ao leitor
ficação. O fato de ninguém ter ainda que, na realidade, ele morrera como rei.
sido posto na tumba nessa rocha, a Este brilhante esclarecimento, pelo
tornou especialmente apropriada para evangelista, prepara-nos para compre­
ser usada por Jesus, uma vez que a lei ender a ressurreição de Jesus não como
judaica proibia o sepultamento, de cri­ um reverso de uma tragédia evidente,
minosos executados, em túmulos familia­ mas como a confirmação de uma vitória
res. Nicodemos, foi também, de sua cabal (19:30). Não havia necessidade de
parte levando cerca de cem libras duma se magnificar a glória sobrenatural do
mistura de mirra e aloés. O uso dessas Senhor ressuscitado (como em Mat.
caras especiarias em tão grande quan­ 28:16-20), pois esta glória já se mani­
tidade sugeria honras mortuárias pró­ festara de modo definitivo na cruz. Em
prias de um rei (cf. II Crôn. 16:14). João 20, Jesus se move silenciosamente,
A realeza de Jesus, vista através de sua quase reservadamente, por sua cidade.
paixão, foi reconhecida até na morte. Para ser mais preciso, ele agora trans­
Os Sinópticos indicam que o corpo de cendera os limites do corpo físico e estava
Jesus foi envolvido numa mortalha de livre para ir e vir por entre portas fecha­
linho (Mar. 15:46 e referências para­ das (20:19), mas nem por isso passou a
lelas), mas aqui se informa que os participar menos da existência terrena de
homens o envolveram em panos de linho seus discípulos. De qualquer modo, as
com as especiarias, ou seja, eles o envol­ aparições da ressurreição visavam de­
veram com ataduras e perfumaram as monstrar a verdadeira humanidade do
dobras para combater os odores da de­ divino Jesus, do modo como as cenas da
composição. Como se estava seguindo as crucificação haviam demonstrado a ver­
práticas judaicas de sepultamento, o dadeira divindade do humano Jesus
corpo foi deixado intato, não sendo nem (Veja Dodd, Interpretation, P, 439-442).
cremado (costume romano) nem embal­
1. O Aparecimento a Maria Madalena
samado (costume egípcio). Com a unção
( 20 :1 - 18 )
do corpo de Jesus terminada antes de o
sábado começar, João não precisou lem­ A súbita proeminência de Maria Ma­
brar que algumas mulheres foram ao dalena, neste ponto, representa uma
túmulo, depois do sábado, na esperança evolução surpreendente na narrativa
de prestar este gesto final de devoção joanina. Muito embora os Sinópticos a
(Mar. 16:1 e referências paralelas). apresentem antes (Luc. 8:2,3), em João
ela não é mencionada anteriormente,
exceto numa lista de mulheres junto à
Dl. Jesus Vive Para os Seus cruz (19:25). Agora, no entanto, ela é
Discípulos (20:1-31) destacada como primeira testemunha do
Alcançando o nível mais profundo do túmulo vazio (20:1-10) e como a primeira
paradoxo no Quarto Evangelho, a cruci­ pessoa a quem o Senhor ressurrecto
apareceu (20:11-18), em contraposição em que até mesmo os discípulos se
aos Sinópticos, onde ela dividiu estas encontravam estáticos, diante da angús­
experiências com várias outras mulheres tia e do desespero. A história de Maria
(Mat. 28:1-10; Mar. 16:1-8; Luc. 24: Madalena acena para o fato de que as
1-11; a referência em Mar. 16:9 é de uma testemunhas mais humildes tornam-se
adição posterior que não integrava ori­ porta-vozes de esperança, num mundo
ginariamente este Evangelho). farto de decisões estúpidas, tomadas por
Há várias razões por que é surpre­ seus renomados líderes.
endente encontrar Maria desempe­
nhando este papel crucial no clímax do 1) A Descoberta da Tumba Vazia (20:
Quarto Evangelho. No mundo judaico do 1 - 10 )
primeiro século, o testemunho de uma
1 No p rim e iro d ia d a s e m a n a , M a ria M a ­
mulher jamais era digno de crédito, d a le n a foi ao se p u lc ro d e m a d ru g a d a , sen d o
sendo considerado inferior ao de um a in d a e sc u ro , e viu q u e a p e d ra fo ra re m o ­
homem (cf. Luc. 24:11). De qualquer v id a do se p u lc ro . 2 C o rre u , p o is, e foi te r
modo, seriam necessários dois ou mais com S im ão P e d ro , e o o u tro d iscíp u lo , a
q u em J e s u s a m a v a , e d is se -lh e s: T ira r a m
testemunhos para que se estabelecesse do se p u lc ro o S en h o r, e n ão sa b e m o s onde
a autenticidade de tão incrível relato o p u s e ra m . 3 S a íra m e n tã o P e d ro e o o u tro
(cf. 5:31,32; Deut. 19:15; Mar. 14:55, discípulo e fo ra m a o se p u lc ro . 4 C o rria m os
56). O fato de Maria ser da Galiléia, dois ju n to s, m a s o o u tro d iscíp u lo c o rre u
mais precisamente de Magdala, uma m a is lig eiro do q u e P e d ro , e c h eg o u p r im e i­
ro ao se p u lc ro ; 5 e, a b a ix a n d o -se , v iu os
cidade tão notoriamente pecaminosa que pan o s de linho a li d eix ad o s, to d a v ia , n ão
os rabinos depois atribuíram sua queda à e n tro u . 6 C hegou, p o is, S im ão P e d ro , que
licenciosidade, não fez aumentar a cre­ o se g u ia , e e n tro u no se p u lc ro e viu os p a n o s
dibilidade de seu testemunho em Jeru­ de linho a li d e ix ad o s, 7 e que o len ço , que
e s tiv e ra so b re a c a b e ç a d e J e s u s , n ão e s ta v a
salém. Para agravar, possivelmente, a com os p a n o s, m a s en ro la d o n u m lu g a r à
situação, havia ainda sua história de p a rte . 8 E n tã o e n tro u ta m b é m o o u tro d is c í­
possessão por sete demônios (Luc. 8:2), pulo, q u e c h e g a ra p rim e iro ao se p u lc ro , e
uma enfermidade psicofísica de tal gra­ viu e c re u . 9 P o rq u e a in d a n ão e n te n d ia m a
vidade que, embora parecesse curada, E s c ritu ra , q u e e r a n e c e ss á rio q u e e le r e s ­
su rg isse d e n tre os m o rto s. 10 T o rn a ra m ,
sua saúde poderia ser questionada pelo p ois, os d iscíp u lo s p a r a c a s a .
emocionado relato de que vira um morto
viver novamente. Segundo João, Jesus morreu numa
Reunidas, estas considerações suge­ sexta-feira à tarde, 14 de Nisã, pouco
rem que as notícias mais espetaculares, antes do início do sábado, chamado de
na história espiritual da humanidade, “grande dia” (19:31), por coincidir com
foram confiadas primeiramente a alguém o começo do festival pascoal de 15 de
que, pelos padrões humanos, era quem Nisã. Para os seguidores de Jesus, po­
menos gabarito tinha para proclamá-las. rém, esta observância do sábado dificil­
Um contraste implícito pode ser inferido, mente se constituiu num dia de descanso
numa comparação com o capítulo ante­ ou alegria, pois seu corpo jazia na
rior, onde o poder estabelecido do ju ­ tumba. Tão logo tornou-se lícito viajar
daísmo e o de Roma desdenhosamente no primeiro dia da semana, uma das
escarneceram de Jesus como “Filho de pessoas que tinham estado junto à cruz
Deus” (19:7) e “Rei dos Judeus” (19:19). (19:25), Maria Madalena, foi ao sepulcro
O que nem um sumo sacerdote nem um de madrugada, na manhã de domingo,
governador puderam entender, através quando estava ainda escuro (ou seja,
de sofisticados estratagemas de juris­ durante a quarta hora da noite, 3h às
prudência, Deus permitiu a uma só 6h da madrugada). Dos Sinópticos po­
mulher descobrir, numa circunstância demos concluir que ela e outras mulhe­
res não deviam saber que seu corpo fora turbante, como estivera sobre sua ca­
ungido (19:40), pelo que foram prestar beça).
suas últimas homenagens ao corpo morto Esta descrição meticulosa do vestuário
(Mar. 16:1). tumular era, obviamente, de grande sig­
Imagine-se a consternação de Maria nificado, pois indicava que Jesus res­
quando viu que a pedra fora revolvida suscitara num “corpo espiritual” (I
do sepulcro. A pilhagem de sepulturas Cor. 15:44), que transcendia os limites
era algo bem comum na Palestina, onde da ordem natural, e, assim, superava
as tumbas ficavam acima do chão. Di­ todos os grilhões físicos. A singularidade
ante disso, um crime devia ser esperado, desta ressurreição contrasta vividamente
uma vez que Jesus foi sepultado num com a de Lázaro, que, ressuscitado
túmulo emprestado, de um rico doador. fisicamente, tinha, ao sair da tumba,
Parece que Maria temeu que alguém “ligados os pés e as mãos com faixas e o
(eles) — fossem vândalos desvairados ou seu rosto envolto num lenço” (veja o
os inimigos que arquitetaram sua morte comentário sobre 11:44). Aqui o con­
— tivesse tirado seu corpo do sepulcro, teúdo da tumba de Jesus oferecia a
levando-o para um lugar desconhecido. primeira indicação de que a Páscoa não
Imediatamente, ela procurou pelo líder era um retorno à finitude da existência
dos discípulos, Simão Pedro e pelo discí­ terrena, mas uma ruptura em direção a
pulo... a quem Jesus amava, e lhes uma transformação definitiva.
relatou esta derradeira torpeza, perpe­ O discípulo amado, que parara antes
trada contra seu Mestre assassinado. diante do que vira no túmulo, agora
Não havia sequer um raio de esperança entrou também. Assim que viu a cena,
no relato de Maria. O fato de que a percebeu seu significado, e então creu no
tumba estivesse vazia soava-lhe como a Cristo ressurrecto que os fatos mostra­
prova de uma tragédia final, e não de um vam. O evangelista acrescentou que sua
triunfo derradeiro. percepção não se baseou no que viu e
Diante desta inesperada evolução dos nem nas Escrituras. Posteriormente, a
acontecimentos, nada restava aos discí­ Igreja compreenderia a Escritura, que
pulos senão ir ao túmulo para verem o era necessário que ele ressurgisse dentre
fato com seus próprios olhos. Embora os os mortos (I Cor. 15:4), embora este
dois corressem, o outro discípulo (o profundo apreço pelo Velho Testamento
amado) ... chegou primeiro ao sepulcro, se fundasse na experiência de fé tornada
mas este, ao vislumbrar o que dentro realidade pelo próprio Cristo. Estamos,
havia, não entrou. Pedro, porém, que se pois, diante de outra convicção joanina,
detivera primeiro (seria por uma cons­ de que é a atualidade histórica da reve­
ciência de culpa, por sua tríplice nega­ lação de Deus em Cristo que controla
ção?), permitiu que sua impetuosidade nossa compreensão das Escrituras,
superasse a precaução demonstrada por decorrendo, daí, que não é nossa com­
seu companheiro diante do mistério preensão anterior da Bíblia que deter­
final, e, então, entrou no sepulcro. Lá ele mina o modo de vermos Deus agir neste
viu os panos de linho nos quais o corpo mundo (cf. o comentário sobre 2:22;
de Jesus tinha sido enrolado (19:40) e 5:39,46;12:16;19:24).
o lenço que estivera sobre a cabeça de
Jesus. Estes panos não estavam em desa­ 2) A Descoberta do Senhor Ressuscitado
linho, como era de se esperar, se o corpo (20:11-18)
tivesse sido tocado; antes, a mortalha de
11 M a ria , p o ré m , e s ta v a e m p é , d ia n te do
linho jazia ali limpa, enquanto o pano da sep u lc ro , a c h o ra r . E n q u a n to c h o ra v a , a b a i-
cabeça encontrava-se num lugar à parte xou-se a o lh a r p a r a d e n tro do se p u lc ro ,
(isto é, continuava enrolado em forma de 12 e v iu d o is a n jo s v e stid o s d e b ra n c o s e n ­
tad o s onde ja z e r a o co rp o d e J e s u s , u m à corpo de Jesus estivera, entendeu ela que
c a b e c e ira , e o u tro a o s p é s. 13 £ p e rg u n ta ­
podiam saber do seu paradeiro.
ra m -lh e e le s : M u lh er, p o r que c h o ra s ? R e s ­
pondeu-lhes : P o r qu e ti r a r a m o m e u S en h o r, Como os anjos não respondessem,
e não sei onde o p u s e ra m . 14 Ao d iz e r isso , Maria voltou-se para trás, descobrindo
voltou-se p a r a tr á s , e v iu a J e s u s a li e m p é, que havia alguém em pé no jardim, atrás
m a s n ã o s a b ia q u e e r a J e s u s . 15 P e r g u n ­ dela. Em meio ao lusco-fusco da madru­
tou-lhe J e s u s : M u lh er, p o r q u e c h o ra s ? A
q u em p ro c u r a s ? E la , ju lg a n d o q u e fo sse o gada, com seus olhos cheios de lágrimas
ja rd in e iro , resp o n d e u -lh e : S en h o r, se tu o e sua mente dominada pela aflição, ela
le v a s te , d ize-m e onde o p u se s te , e e u o le ­ não reconheceu quem era. Quando o
v a re i. 16D isse-lhe J e s u s : M a ria I E la , v tra n - estranho lhe perguntou: Mulher, por que
do-se, d isse-lh e e m h e b ra ic o : R a b o n il — que choras? A quem procuras? ela pensou
q u e r d iz e r, M e s tre . 17 D isse-lh e J e s u s : D ei­
x a de m e to c a r , p o rq u e a in d a n ã o su b i ao que fosse o jardineiro. Repentinamente
P a i; m a s v a i a m e u s ir m ã o s e dize-lh es que lhe sobreveio uma nova explicação para o
eu subo p a r a m e u P a i e vosso P a i, m e u D eus desaparecimento de Jesus. Talvez o vigia
e vosso D eu s. 18 E foi M a ria M a d a le n a desaprovasse a presença de um cadáver
a n u n c ia r a o s d isc íp u lo s: Vi ao S en h o r! — e
que ele lh e d is s e ra e s ta s co isas.
de criminoso em seu jardim e, por isso, o
levara para outro lugar. Assim, assaltada
Depois que ouviram o desesperado re­ por estas duas perguntas, Maria deu
lato de Maria Madalena sobre o túmulo expansão a seu desejo maior: Senhor, se
vazio, Pedro e o discípulo amado se tu o levaste, dize-me onde o puseste, e eu
puseram a investigar, deixando-a para o levarei. Novamente, Maria não parou
trás. Embora tivesse sido ela quem con­ para identificar Jesus (ele) ou para pon­
tasse aos dois a sua descoberta, parece derar como poderia sozinha levar seu
que eles “tornaram... para casa” (v. 10) corpo. Este é um dos casos mais notáveis
sem ter a oportunidade de compartilhar de identificação falsa já relatados. Por
com ela o que tinham visto. Pressupondo procurar um corpo inerte, em vez de um
Maria que a tumba vazia significava a Senhor vivo, Maria confundiu o Salvador
prática de um gesto criminoso, nada com um servo!
mais natural para ela do que volver seus Bastou uma palavra para corrigir a
passos e montar guarda, chorando, di­ inacreditável confusão: Maria! Talvez
ante do sepulcro. Ao contrário do dis­ Jesus tenha falado no mesmo tom quan­
cípulo amado, ela não aprendera a lição do expulsara dela os demônios e a
última da ceia: “Convém-vos que eu vá” chamara para um verdadeiro sentido de
(16:7). identidade (Luc. 8:2) ou quando contem­
Na primeira passagem pelo jardim, era plara da cruz a fiel dedicação dela
“ainda escuro” , e ela vira apenas que “ a (19:25). De qualquer modo, ouvia agora
pedra fora removida” (v. 1). Agora, o Bom Pastor chamando sua ovelha pelo
talvez porque clareasse, olhou para den­ nome, como disse que faria (10:3). Num
tro do sepulcro. Lá, viu dois aqjos, ou instante, ela se convenceu da ressurrei­
mensageiros divinos, trajados de branco, ção, não pelo olhar, mas pelo ouvir.
sentados onde jazera o corpo de Jesus, Perplexa, um grito saiu dos seus lábios:
um à cabeceira e outro aos pés. Quando Raboni, uma palavra hebraica para
lhe perguntaram pela razão de sua an­ mestre. Como uma forma aumentativa
gústia, Maria repetiu a preocupação há de “Rabi” , este termo era geralmente
pouco comunicada aos discípulos (v. 2), usado para Deus; por isso, deve ter sido
sem fazer, porém, qualquer esforço para uma confissão espontânea, equivalente à
identificar se o seu Senhor tinha saído de Tomé, no verso 28.
por si mesmo ou se aqueles dois tinham Coerente com tal reconhecimento,
removido seu corpo. Uma vez que os dois Maria prostrou-se de medo diante dele e
anjos estavam agora assentados onde o começou a segurá-lo, possivelmente
agarrando-se aos seus pés. Ao agir assim, anunciar aos discípulos. Ela não somente
ela cometeu o segundo grande erro. vira o Senhor, mas fora informada do
Primeiramente, ela confudira sua iden­ significado da ressurreição, tanto para
tidade, e agora falhava em não perceber Jesus quanto para seus seguidores.
sua divindade. Devido à sua fatigante
preocupação em localizar o corpo de 2. Os Aparecimentos aos Discípulos (20:
(19-31)
Jesus (v. 2,13,15), não compreendera que
sua exaltação transcenderia todos os Nas aparições aos seus discípulos, o
limites terrenos. Jesus corrigiu gentil­ Jesus ressuscitado começou a cumprir as
mente este equívoco, propondo-lhe algo promessas dos capítulos 13 a 17. Pelo
melhor para fazer: Não continues e me menos cinco referências logo despon­
deter (haptou, no grego), porque ainda tam. 44 (1) “Voltarei a vós” (14:18) =
não subi ao Pai (isto é, afasta-te de mim “chegou Jesus, pôs-se no meio” (20:19a);
como uma presença física limitada, para (2) “Deixo-vos a paz, a minha paz vos
que possas receber-me em troca como dou” (14:27) = “e disse-lhes: Paz seja
uma presença espiritual universal); mas convosco” (20:19b); (3) “mas eu vos
vai aos meus irmãos (isto é, não me tomarei a ver, e alegrar-se-á o vosso
agarre egoisticamente, mas compartilha coração, e a vossa alegria ninguém vo-la
a realidade de minha ressurreição com os tirará (16:22) = “Alegraram-se, pois, os
outros). Até então os discípulos eram discípulos ao verem o Senhor” (20:20b);
chamados de “servos” (13:16) e de (4) “Assim como tu me enviaste ao
“amigos” (15:15), mas agora eram cha­ mundo, também eu os enviei ao mundo”
mados de irmãos, apesar do triste papel (17:18) = “Assim como o Pai me enviou,
que desempenharam na semana ante­ eu também vos envio a vós” (20:21);
rior! Quando Jesus foi preso, seu enco­ (5) “Se eu não for, o Consolador (o Espí­
rajamento de nada valeu e eles se dis­ rito Santo) não virá a vós; mas se eu for,
persaram. Agora que estava subindo vo-lo enviarei” (16:7) = “Soprou sobre
(isto é, transcendendo o tempo e o eles, e disse-lhes: Recebei o Espírito
espaço), poderiam ter um acesso igual e Santo” (20:22).
imediato ao seu poder. O propósito fundamental das apari­
Uma prova clara do papel singular a ções era estabelecer a identidade e conti­
ser desempenhado por Jesus após a nuidade do Jesus terreno com o Senhor
ressurreição é dada pela cuidadosa dis­ ressuscitado, ao mesmo tempo que defi­
tinção feita, aqui, entre meu Pai e vosso nia as enormes diferenças que sobrevi­
Pai... meu Deus e vosso Deus. As duas eram aos discípulos na passagem do
afirmações são feitas de modo harmô­ primeiro (Jesus terreno) para o segundo
nico. Primeiro, o relacionamento direto (Senhor ressurrecto). Basicamente, as
de Jesus com o Pai era fundamental­ aspirações pretendiam efetuar uma
mente diferente do seu relacionamento transição: do visto para o não visto, do
mediato com os discípulos. Podemos temporal para o eterno, do limitado para
dizer que Deus era o Pai de Jesus de fato o universal, do físico para o espiritual.
e Pai dos discípulos pela graça. Ao Nessa situação fronteiriça, a Igreja, isto
mesmo tempo, o fato de haver somente é, os crentes, também seriam transfor­
um Pai significava que os discípulos mados: de medrosos a serenos, de espec­
compartilhavam da vitória de Jesus. O tadores a testemunhas, de fracos a cheios
mesmo Deus que levantou Jesus dentre do Espírito, de vacilante a intimoratos.
os mortos e o habilitou para ascender os
vivificaria e os levaria a morar nos
44 A. M. Hunter, The Goepd According to John, "The
páramos celestes. Maria Madalena, pois, Cambridge Bible Commentary” (Cambridge: Univer­
tinha uma mensagem maravilhosa para sity Press, 1965) p. 187 e 188.
1) O Aparecimento ao Grupo (20:19-23) nos do que aquele que fora o Jesus ter­
reno, mas que eles estavam aprendendo a
19 C h e g a d a , p ois, a ta r d e , n a q u e le d ia , o viver com ele como numa presença espi­
p rim e iro d a s e m a n a , e e sta n d o os d is c íp u ­
los reu n id o s co m a s p o rta s c e r r a d a s , p o r
ritual permanente.
m edo d o s ju d e u s , ch eg o u J e s u s , p ô s-se no Agora que não mais agia como o
m eio e d is s e -lh e s : P a z s e ja convosco. 20 D ito encarnado enviado ao mundo pelo Pai,
isto , m o stro u -lh e s a s m ã o s e o la d o . A leg ra- ele os enviava, numa espécie de conti­
ra m -se , p ois, o s d iscíp u lo s a o v e re m o S e­ nuação viva de seu ministério terreno
n h o r. 21 D isse-lh es, e n tã o , J e s u s se g u n d a
v ez: P a z s e ja con v o sco ; a s s im com o o P a i (cf. 17:18). Até então, os discípulos
m e en v io u , ta m b é m e u v o s e n v io a vós. tinham sido concitados a amar uns aos
22 E , h a v e n d o d ito Isto, a ss o p ro u so b re e le s, outros como ele os amara (13:34;15:12);
e d isse -lh e s: R e ceb ei o E sp írito S an to . agora eram comissionados para serem
23 À queles a q u e m p e rd o a rd e s os p e c a d o s,
são-lhes p e rd o a d o s ; e a q u e le s a q u e m os
enviados aos outros, como ele fora envia­
r e tiv e rd e s , são -lh es re tid o s. do a eles. Do mesmo modo como Jesus
iniciou seu ministério pela recepção do
O Quarto Evangelho repete constan­ Espírito Santo (1:32,33), ele agora
temente que um testemunho humano assoprou sobre eles e disse-lhes: Recebei
sobre o significado de Jesus é por fim o Espírito Santo. No poder do Espírito,
validado pelo próprio Jesus (cf. 1:41, Jesus exercitara o ministério da miseri­
42,45,46; 3:29,30; 4:39-42; 10:40-42). córdia e do juízo (cf. 12:44-50); seme­
Neste momento, tanto Maria Madalena lhantemente, os discípulos proclamavam
(20:18) como possivelmente, o discípulo sua palavra que joeira os homens para
amado (20:8) já tinham testemunhado da toda a eternidade: Àqueles a quem per­
realidade da ressurreição; os discípulos, doardes os pecados, são-lhes perdoados;
porém, continuaram trancados, atrás e àqueles a quem os retiverdes, são-lhes
das portas, poi medo dos judeus. Nem o retidos (cf. Mat. 16:19,18:18).
relato de um túmulo vazio nem a confis­ Do mesmo modo como Deus soprou
são de uma aparição pessoal se mostra vida no pó, e assim criou o homem, aqui
convincente, pois, aquele podia ser atri­ o Filho de Deus assoprou o Espírito
buído aos depredadores de sepulturas, e Santo em seus discípulos, e assim criou
esta às alucinações. Não houve qualquer uma nova humanidade. Num sentido, os
mudança decisiva até que Jesus mesmo se versos 21 a 23 descrevem o equipamen­
pusesse no meio deles, corroborando, to da Igreja (isto é, a renovação do povo
assim, com uma informação subjetiva de Deus) e o fortalecimento do seu
com experiência subjetiva. ministério. Tanto o escopo como a se­
Evidentemente, este encontro se asse­ qüência dos acontecimentos aqui resu­
melhava e se distinguia de seu último midos são por demais significativos.
encontro, no cenáculo. Nos dois casos, Primeiro, Cristo legou conforto (paz),
ele outorgara paz (cf. 16:33), mas desta baseado em sua conquista sobre o mal.
vez mostrou-lhes as mãos e o lado, como Antes, porém, que esta dádiva, vinda da
prova da vitória que torna a verdadeira mão cravejada, se diluísse numa alegria
paz uma possibilidade. Ele permanecia temporária, os confortados foram ime­
sendo Jesus, um homem com um nome diatamente comissionados a ministrar
histórico, mas era também o Senhor, uma num mundo hostil. Não se lhes pediu
figura divina, digna de culto. Embora a que servissem pelo seu próprio poder,
congregação pudesse ver Aquele cujas uma vez que foram consagrados e capa­
feridas continuavam visíveis, ele, no citados pelo Espírito Santo. Finalmente,
entanto, aparecia e desaparecia à von­ apenas estes, cheios com a presença de
tade. Estes fenômenos sugerem que eles Cristo, foram autorizados a decidir sobre
não encontraram nada mais nada me­ questões fundamentais da vida, minis­
trando perdão e juízo. Estão aqui as d eles e d is se : P a z s e ja convosco. 27 D epois
visões centrais que determinam a com- disse a T o m é : C h eg a a q u i o te u dedo, e vê
a s m in h a s m ã o s ; c h e g a a tu a m ã o , e m e te -a
prensão joanina do que seja a Igreja. no m eu la d o ; e n ão m a is s e ja s in c réd u lo ,
Alguns suscitam um problema porque m a s c re n te . 28 R esp o n d eu -lh e T o m é : S enhor
nesta passagem se diz que o Espírito m eu , e D eu s m e u ! 29 D isse-lhe J e s u s : P o r
Santo foi dado na tarde do primeiro dia que m e v is te , c re s te ? B e m -a v e n tu ra d o s os
da semana (isto é, menos de 24 horas que n ão v ira m e c re r a m .
depois da ressurreição), enquanto em O evangelho de João é singular, ao
Atos 2:4 o Espírito Santo parece ter sido demonstrar um interesse especial por
outorgado no Pentecostes, cerca de 50 Tomé, um dos doze, chamado Dídimo
dias após a ressurreição. De fato, porém, (no grego, Didymus). Embora ele não
o Espírito Santo tinha sido uma reali­ seja destacado em nenhum outro lugar
dade no mundo desde o tempo da criação onde os apóstolos são citados (Mat.
(Gên. 1:2), mas a partir de agora sua 10:3; Mar. 3:18; Luc. 6:15; At. 1:13),
presença estaria inevitavelmente ligada no Quarto Evangelho seu caráter é clara­
ao ministério de Jesus. João descreve a mente delineado em três passagens (11:
primeira infusão do Espírito no grupo de 16;14:5;20:25). Tomé era tremenda­
discípulos, ao passo que Atòs retrata sua mente leal, mas um discípulo espiritual­
vinda climática semanas depois na co­ mente obtuso e de mente fechada, que
munidade reunida e permeada pelo exigia provas tangíveis acerca de ver­
poder da oração (At. 1:14). Neste estágio dades intangíveis. Seu papel como o
inicial, em João, a presença do Espírito primeiro empirista cristão se ilustra bem
não era suficientemente forte para iniciar aqui: Se eu não vir ... e não meter o
um ministério mundial; realmente, como dedo... de maneira nenhuma crerei.
a próxima seção indicará (20:24-29), Já se disse que o problema de Tomé
os discípulos não se convenciam nem a si não era nem o ceticismo nem o absen­
mesmos de que tinham visto o Senhor teísmo: ele simplesmente não estava com
(v. 25)! Em Atos 2, entretanto, o que eles, quando veio Jesus. Uma realidade
começara como um “sopro” suave se fora revelada na vida coletiva dos discí­
transformou num “som, como de um pulos, que eram incapazes de comunicar-
vento impetuoso” , impelindo os discí­ lhe numa base individual. Todavia, note-
pulos a um testemunho público, sem se que sua incapacidade de aceitar o
qualquer medo. Uma comparação dos testemunho deles não o excluía de sua
dois relatos sugere que todos os cristãos comunidade, pois no domingo seguinte
recebem o Espírito Santo (João 20:22). (oito dias depois segue uma prática
Mas nem todos cultivam este Espírito até antiga de se contar os dois domingos
receberem “eloqüência” para falar com seguidos) seus discípulos estavam outra
ousadia (At. 2:4). vez aii reunidos e Tomé com eles. Uma
vez mais, nesse ambiente de culto, em­
2) O Aparecimento a Tomé (20:24-29) bora as portas estivessem cerradas, Jesus
pôs-se no meio deles e disse-lhes: Paz seja
24 O ra, T om é, u m dos doze, c h a m a d o Dí- convosco (cf. v. 19).
d im o, n ão e s ta v a com eles q u an d o veio J e ­ Nessa ocasião, Jesus concentrou-se tão
sus. 25 D iziam -lhe, pois os o u tro s d is c íp u ­
lo s: V im os o S enhor. E le , p o ré m , lh es r e s ­ completamente em Tomé, que a aparição
p o n d eu : Se eu n ã o v ir o sin a l dos c ra v o s n a s parecia uma visitação especial, feita
su a s m ã o s , e n ão m e te r o d edo no lu g a r exclusivamente em seu benfício. Foi
dos c ra v o s , e n ã o m e te r a m ã o no se u lad o , como se o Cristo exaltado, depois de
de m a n e ir a n e n h u m a c re r e i. 26 Oito d ia s
depois e s ta v a m os d iscípu lo s o u tr a v ez a li encerrado o processo de exaltação, ti­
reu n id o s, e T om é com e le s. C hegou J e s u s , vesse voltado uma vez mais, para que
e stan d o a s p o rta s fe c h a d a s , p ô s-se no m eio nenhum deles se perdesse (cf. 17:12).
Durante o ínterim da semana, porém, antes, com aquele que unira o temporal
Jesus não estivera totalmente ausente de ao eterno, o humano ao divino, em sua
seu meio. Obviamente, ele ouvira o que própria pessoa. Ao confessar Jesus como
dissera Tomé, enunciado no verso 25, Senhor meu, e Deus meu! Tomé fez o
pois imediatamente se apresentou, para círculo da história evangélica alcançar o
que ele pudesse servir-se das condições ponto onde começara (1:1), com uma
auto-impostas para ter fé. Tomé devia ter diferença: agora até mesmo o mais em­
cuidado com o que dissesse, pois os pedernido cético podia compreender o
muros entre os céus e a terra haviam sido que “no princípio” tinha sido um segre­
desfeitos por Aquele que habita nos dois do cósmico.
reinos! A resposta de Jesus à confissão de
O oferecimento de Jesus, no verso 27, Tomé serviu para esclarecer a natureza
está num dramático contraste com seu da fé e o propósito deste Evangelho.
pedido no verso 17. Lá ele aconselhara Como membro da geração apostólica
à Maria Madalena que não o tocasse, original, Tomé creu porque vira Jesus.
enquanto aqui instrui Tomé a fazer As aparições da ressurreição, porém,
exatamente o oposto. 45 No primeiro chegaram, necessariamente, ao fim
caso, uma seguidora precisava aprender quando o evangelho chegou àqueles que
que a realidade de Jesus não era bem nunca tinham conhecido o Jesus encar­
física (isto é, sua vida terrena transcen­ nado. Os gentios convertidos não tinham
dera na ressurreição), enquanto, no condições de reconhecer o Senhor res­
último caso, outro discípulo necessitava suscitado, mesmo que ele lhes aparecesse
aprender que a realidade de Jesus não em forma física. Isto, porém, não os
era bem espiritual (isto é, o Senhor res­ colocava em desvantagem, num con­
suscitado não era outro senão aquele que fronto com os primeiros seguidores de
vivera entre eles). Na harmonia formada Jesus. Ao contrário, os que não viram e
por estas duas passagens, o evangelho da creram eram tão bem-aventurados quan­
ressurreição é protegido dos extremos do to Tomé que crera porque vira a Jesus.
historicismo e do gnosticismo. A fé não Ao mesmo tempo, não significa isso que
se pode fundamentar exclusivamente as últimas gerações de crentes não ti­
sobre o tangível ou sobre o intangível. nham nada para “ver” e devessem acei­
Ao contrário, ela surge no ponto onde a tar o cristianismo como uma religião
tensão entre os dois se desfaz e trans­ espiritual, sem qualquer ligação com a
cende (isto é, a fé percebe e engloba a história. A diferença é que os cristãos de
verdadeira continuidade entre o tempo e agora não viram no mesmo sentido que
a eternidade). Tomé viu. O conteúdo do que lhes será
Esta perspectiva explica por que não permitido “ver” será agora esclarecido,
somos informados se Tomé realmente quando o evangelista interpretar o sen­
tocou Jesus naquela ocasião. Confron­ tido do seu Evangelho.
tado com Aquele que era tangível o
suficiente para deixar as marcas de sua 3) O Significado dos Sinais (20:30,31)
paixão e intangível o bastante para 30 J e s u s , n a v e rd a d e , o p e ro u n a p re s e n ç a
aparecer e desaparecer quando quisesse, d e se u s d iscíp u lo s a in d a m u ito s o u tro s s i­
Tomé compreendeu que não estava tra­ n a is q u e n ão e stã o e s c rito s n e s te liv ro ;
tando com um homem terreno, que fora 31 e s te s , p o ré m , e s tã o e s c rito s p a r a q u e
seu Senhor e Mestre, e nem com um ser c re ia is q u e J e s u s é o C risto , o F ilh o d e D eu s,
e p a r a q u e, c re n d o , te n h a is v id a e m se u
espiritual, que agora era seu Deus, mas, nom e.

45 Thom as K. H earn, Jr., “ Reach H ither — Touch Me Este resumo pode ser lido como uma
Not” , Review and Expositor, 59(1962), p. 200-204. conclusão do “livro dos sinais” (capítulos
2 a 12), embora neste contexto funcione ao mesmo ponto de Tomé, que foi
claramente como um clímax para todo o conduzido por uma aparição do Senhor
Evangelho. A referência aos sinais que ressuscitado — isto é, a ele é mostrado
foram registrados sugere que a aparição um Jesus terreno e se lhe pede que afirme
a Tomé, há pouco lembrada (v. 24-29), ser este homem ao mesmo tempo o
foi considerada nessa categoria (isto é, Cristo, o Filho de Deus. Quando, pela fé
como um ponteiro visível, que indica em Jesus como humano e divino, alguém
para a realidade de Deus em Jesus, a entra no reino onde este mundo e o
fim de nutrir a fé). Muitos outros sinais mundo por vir se encontram, então,
que Jesus operou... na presença de seus em seu nome (isto é, na realidade do
discípulos não foram escritos neste livro, Deus-homem), este pode viver neste sé­
uma vez que a fé parece basear-se apenas culo e ao mesmo tempo ter também a
na visão, por exemplo, das muitas his­ vida eterna do século por vir.
tórias maravilhosas dos Evangelhos
Apócrifos. De fato, apesar de aceitar que Conclusão (21:1-25)
a fé possa ser compelida pelo domínio Há muitas razões por que compre­
dos sentidos ou que seja corrompida pelo ender-se o capítulo 21 como um apêndice
apelo aos sentidos, o Evangelista rela­ suplementar ao Evangelho de João, nos
cionou sinais suficientes para levar o estágios finais de elaboração. (1) O
leitor a “ver” Deus em ação na vida de clímax real do livro é alcançado em
Jesus, mas não em demasia, para que 20:30,31, tendo 21:1-25 o sentido de uma
não se transformassem em fim em si explicação posterior. (2) As muitas
mesmos, fazendo com que o leitor não aparições da ressurreição, em João 20,
veja, além deles, as realidades espirituais não parecem pressupostas em João 21, o
para as quais apontam. que sugere que os dois capítulos origina­
Aqui temos a concepção mais pro­ riamente circularam de modo indepen­
funda do Evangelista sobre sua própria dente. (3) Várias figuras de linguagem e
tarefa. A época do Jesus terreno passara. de estilo, no capítulo 21, indicam a pos­
Não mais podia ser “visto” por seus sibilidade de um autor diferente do das
seguidores, em forma pré ou pós-res- seções bem semíticas dos capítulos 1 a
surreição. Como poderia, então, a Igreja 20. (4) As referências à autoria em
fincar as raízes de seu movimento em 21:24,25 tomam plausível a suposição de
formação na história singular de seu que este capítulo foi acrescentado pelo
Senhor? A resposta reside naquilo que editor final, que redigiu todo o Evan­
foi escrito neste livro. Assim como as gelho, enquanto os capítulos anteriores
obras e as palavras de Jesus foram vistas se baseiam, como ele mesmo o admite,
como “sinais” (isto é, como preparação nas fontes matrizes.
para a fé), este livro foi escrito para Do conteúdo podemos concluir que a
comunicar estas mesmas obras e palavras adição do capítulo 21 ao esboço final
ao leitor de sua época, que se encontrava deste Evangelho serviu a vários propó­
já numa enorme distância daquele pas­ sitos: (1) As aparições do Senhor ressus­
sado, que não se repetiria mais, a fim de citado na Judéia e na Galiléia, separadas
que, a exemplo dos primeiros discípulos, nos Sinópticos, foram aproximadas.
também pudesse crer.46 O leitor que faz (2) A natureza do ministério da Igreja —
uso inspirado deste Evangelho é levado especialmente os papéis de Pedro e do

difícil determinar a leitura mais aceitável. Conquanto


46 A forma verbal grega aqui traduzida por “creiais” a escolha prejudique uma compreensão do propósito
aparece, em manuscritos importantes, no aoristo do Evangelho, urge que ela não modifique a com­
(“possam vir a crer”) e no presente (“possam continuar preensão de seu caráter, como demonstrado aqui
a crer”). A evidência fica assim dividida, já que é (Veja Smith, op. cit., p. 3 e 4).
discípulo amado — foi explicada. (3) Galiléia, não se informa que Pedro e o
Más interpretações acerca da demora discípulo amado tivessem suas casas em
da Parousia e as conseqüentes mortes dos Jerusalém (20:10; cf. 19:27), de onde,
líderes apostólicos foram corrigidas. (4) segundo A,tos 1:4, não saíram até o
A autoridade do Evangelho e a legitimi­ Pentecostes. Nenhuma destas conside­
dade dos seus fundamentos foram refor­ rações, porém, coloca em cheque a con­
çadas e defendidas. Em linhas gerais, fiabilidade da narrativa, embora deixe
João 21 visou satisfazer as questões e implícito que o material não foi inte­
objeções que bem podem ter sido susci­ grado plenamente na estrutura do Quar­
tados durante o período quando um to Evangelho.
rascunho primitivo (capítulos 1 a 20?)
estava em uso na Igreja. 1) Um Aparecimento Junto ao Mar de
Tiberíades (21:1-14)
1. A Revelação de Jesus na Galiléia (21:
1-23) 1 D epois d isto m a n ife sto u -se J e s u s o u tr a
vez a o s d iscíp u lo s, ju n to a o m a r d e T ib e ría ­
Em Mateus 28:16-20 (veja, porém, d e s ; e m a n ife sto u -se d e ste m o d o : 2 E s t a ­
28:9,10) e em Marcos 16:7 (cf. 14:28), v a m ju n to s S im ão P e d ro , T o m é, c h a m a d o
as aparições do Jesus ressurrecto se D ídim o, N a ta n a e l, q u e e r a d e C a n á d a G a ­
liléia, os filhos d e Z eb ed eu , e o u tro s d o is dos
limitam à Galiléia, enquanto, em Lucas se u s d iscíp u lo s. 3 D isse-lh es S im ão P e d ro :
24:13-51 se restringem à Judéia. Ao Vou p e s c a r . R e sp o n d e ra m -lh e : N ós t a m ­
descrever as aparições do Senhor res­ b é m v a m o s contigo. S a íra m e e n tr a r a m n o
suscitado somente em Jerusalém, João b a rc o ; e n a q u e la n o ite n a d a a p a n h a ra m .
4 M as, a o ro m p e r d a m a n h ã , J e s u s se a p r e ­
20 concorda neste ponto, como sempre sento u n a p r a i a ; to d a v ia os d iscíp u lo s n ã o
acontece, com o material de Lucas. s a b ia m q u e e r a e le . 5 D isse-lh es, p o is, J e ­
João 21, entretanto, tem uma afinidade su s : F ilh o s, n ã o te n d e s n a d a q u e c o m e r?
clara com a abordagem de Mateus e R e sp o n d e ra m -lh e : N ão . 6 D isse-lh es e le :
Marcos, por recordar uma aparição na L a n ç a i a re d e à d ir e ita do b a rc o , e a c h a re is .
L a n ç a ra m -n a , p o is, e j á n ã o a p o d ia m p u x a r
Galiléia, junto ao Mar de Tiberíades, um p o r c a u s a d a g ra n d e q u a n tid a d e d e p e ix e s.
local ao qual é dada pouca atenção em 7 E n tã o a q u e le discíp u lo a q u e m J e s u s a m a ­
João. Pode ser que, à época em que este v a d isse a P e d r o : É o S en h o r. Q uan d o , p o is,
capítulo foi acrescentado, as narrativas Sim ão P e d ro o u v iu q u e e r a o S en h o r, cin-
giu-se co m a tú n ic a , p o rq u e e s ta v a d esp id o ,
sinópticas fossem conhecidas na igreja e lan ço u -se a o m a r ; 8 m a s o s o u tro s d is c í­
joanina, pelo que sentiu-se a necessidade pulos v ie r a m n o b a rq u in h o , p u x an d o a re d e
de se ampliar o Quarto Evangelho, para co m os p e ix e s, p o rq u e n ã o e s ta v a m d is ta n ­
incluir essas ênfases diferentes. te s d a t e r r a se n ã o c e r c a d e d u zen to s côva-
A vaga frase de transição (“depois dos. 9 O ra , a o s a lta r e m e m t e r r a , v ir a m ali
b ra s a s , e u m p e ix e p o sto e m c im a d e la s , e
disto”) com que a seção começa, dife­ p ão . 10 D isse-lh es J e s u s : T ra z e i a lg u n s dos
rentemente de muitas referências cro­ p eix e s q u e a g o ra a p a n h a s te s . 11 E n tro u Sl-
nológicas específicas, nos capítulos 18 m ão P e d ro n o b a rc o e p u x o u a re d e p a r a
a 20 (exemplos: 19:14,31;20:1,19,26), t e r r a , c h e ia d e c e n to e c in q ü e n ta e tr ê s
g ra n d e s p e ix e s ; e , a p e s a r d e s e r e m ta n to s ,
sugere uma distante relação com os n ã o se ro m p e u a re d e . 12 D isse-lh es J e s u s :
acontecimentos anteriores. Soa estranho, V inde, co m ei. N en h u m dos d iscíp u lo s o u sa ­
por exemplo, que, mesmo depois de ter v a p e rg u n ta r-lh e : Q uem é s tu ? sa b e n d o q u e
visto o Senhor ressuscitado duas vezes, e r a o S en h o r. 13 C hegou J e s u s , to m o u o p ão
como descrito em 20:19-29, a maioria ou e deu-lho, e se m e lh a n te m e n te o p e ix e. 14 F o i
e s ta a te r c e ir a v ez q u e J e s u s se m a n ife sto u
a totalidade dos sete discípulos aí refe­ ao s se u s d iscíp u lo s, d ep o is d e t e r re s su rg id o
ridos (inclusive Tomé!) ainda encon­ d e n tre os m o rto s.
trasse dificuldade para reconhecê-lo
novamente (v. 4,7,12). Ademais, na O Mar de Tiberíades só é assim clara­
passagem de cena, de Jerusalém para a mente referido aqui, em João (cf. o
comentário sobre 6:1,23). O nome foi ele na praia, sem ser reconhecido pelos
tomado de uma cidade, na costa sudo­ discípulos, apesar do fato de ter pergun­
este, construída por Herodes, em cerca tado: Filhos, não tendes nada que co­
de 25 A.D., em homenagem a Tibério m a? O fato de não o reconhecerem pode
César. O Quarto Evangelho é o único, ser entendido espiritualmente como a
em o Novo Testamento, a usar esta ausência de fé na ressurreição, como po­
designação para o Mar da Galiléia ou de também ser atribuído, naturalmente,
Lago de Genezaré, nos Sinópticos. Nos ao lusco-fusco da hora e/ou à distância
dois relatos, Simão Pedro é a principal que estavam da praia. (Geralmente, na
figura, numa história que se fundamenta Palestina o amanhecer é bastante luzi­
sobre o fato de que ele e seus sócios dio, embora uma neblina às vezes cubra
tinham labutado a noite toda, sem nada grandes porções vdo Mar da Galiléia.
apanhar. Em Lucas, apenas dois de Observe-se, no verso 8, que não estavam
“todos os que estavam com ele” são distantes da terra senão cerca de duzen­
mencionados: “Tiago e João, filhos de tos côvados.) Novamente a questão se
Zebedeu” (5:9,10); aqui, estes dois são volta para o sentido da transformação
mencionados num grupo de sete que, acontecida nos discípulos desde a cru­
além de Simão Pedro e os filhos de cificação, um fato que pode servir para
Zebedeu, inclui Tomé... Natanael... e determinar a relação deste capítulo com
outros dois, um dos quais é identificado João 20.
como sendo o discípulo amado (v. 7). As instruções de Jesus a estes deses­
Não está claro com que espírito este perançados pescadores de homens (Lan­
grupo de pescadores se constituiu. Hos- çai a rede à direita do barco, e achareis)
kyns (p. 552) vê a cena como uma deram resultado imediato: já não...
“apostasia completa” , que faz cumprir podiam puxar a rede por causa da
16:32, interpretando, assim, as palavras grande quantidade de peixes. Não se
Vou pescar como desânimo e volta à informa se o sucesso foi visto como mira­
antiga vocação. Todavia, Stracham culoso ou apenas como fruto da obser­
(p. 335) rejeita tal sugestão, tomando a vação de Jesus de que os discípulos
pescaria como um símbolo da missão dos tinham dado as costas a um cardume de
apóstolos como “pescadores de homens” peixes perto da praia. A liberdade da
(cf. Luc. 5:10), na qual descobrem a história, com seus adornos dramáticos,
contínua necessidade de Cristo (sem o ilumina o verdadeiro milagre, primeira­
qual nada apanharam) e de seu poder mente percebido por aquele discípulo a
para encher suas redes com novos con­ quem lesus amava: £ o Senhor! Mal
vertidos. A escolha entre estas interpre­ acabou de ouvir isso, Simão Pedro cin-
tações será decidida, basicamente, pela giu-se com a túnica, porque estava des­
relação deste capítulo com o anterior. pido. Provavelmente, estivesse vestido
Se 21:1-14 é um relato independente, apenas com um pano envolvido em torno
de uma primeira aparição após a ressur­ da cintura para que mergulhasse, quan­
reição, Hoskyns está certo. Se, no en­ do necessário, para soltar das rochas a
tanto, a comissão missionária de 20:21 rede que se deslocava para o fundo do
e o dom do Espírito Santo em 20:22 estão lago. Pedro pegou logo uma roupa e
claramente pressupostos, Strachan deve nadou até a praia, enquanto os outros
estar mais certo. vieram no barquinho, puxando a rede
Na Palestina, a noite era considerada com os peixes. Aqui, como em 20:5-8,
a melhor ocasião para a pesca, muito o discípulo amado foi o primeiro a ver,
embora os esforços de pescadores hábeis mas Simão Pedro o primeiro a agir.
se mostrassem infrutíferos, até que Jesus Ao se encontrarem com Jesus, nota­
aparecesse. Ao romper da manhã, estava ram que ele preparara ali brasas e havia
um peixe posto em cima delas e pão. E analogia começa a ruir, como em 10:
então foram convidados a trazer alguns 11-18, pois os peixes se destinam a serem
dos peixes que tinham acabado de apa­ fritos, assim como as ovelhas a serem
nhar. Outra vez na iniciativa, Simão abatidas. Para Jesus, porém, os homens
Pedro entrou no barco e puxou a rede eram mais que ovelhas ou peixes. Pescar
para a terra, cheia de ... grandes peixes. peixe é levá-los da vida para a morte,
Neste ponto, a história parece fazer um enquanto pescar homens é levá-los da
uso cada vez maior de simbolismo — morte para a vida (cf. Mar. 1:17).
pelo menos de uma perspectiva exegética A conclusão editorial, de que já era
— no mister de ensinar três coisas sobre esta a terceira vez que Jesus se manifes­
a pesca de homens. tara aos discípulos, depois de ter ressur­
Primeira, o número de peixes, cen­ gido entre os mortos, não devia integrar a
to e cinqüenta e três grandes peixes, parte original dos versos 1 a 13. Como já
representava uma pescaria completa. salientado em vários lugares, na reali­
Alguns zoólogos gregos sustentavam que dade não há indicação, na própria his­
havia ali 153 espécies de peixes, pelo que tória, de que esta fosse a terceira vez que
esta pesca cumpria Ezequiel 47:10. se encontravam com o Senhor ressus­
Ademais, 153 era a soma dos primeiros citado. De fato, este número específico só
17 números (1 + 2 + 3 ... + 17), parcialmente relaciona 21:1-13 com
devendo ser representada por um triân­ 20:1-29, já que no capítulo anterior
gulo de três lados iguais, com 17 unida­ houve três e não duas aparições (a Ma­
des na base e em cada lado (veja-se ria Madalena, ao grupo e a Tomé), o
Hoskyns, p. 553). Esta imagem ideal, que faz desta a quarta e não a terceira
portanto, simbolizava “a plenitude dos revelação. É possível que esta enume­
gentios” (Rom. 11:25) a serem salvos ração omita a aparição a Maria Mada­
pela missão apostólica. Desde os pri­ lena, já que ela não era um dos discípulos
mórdios de seus esforços evangeliza­ no sentido em que eles eram.
dores, Cristo viu a “pesca” final, e
prometeu que seria abundante. 2) A Responsabilidade de Simão Pedro
Segunda, o fato de serem tantos e a (21:15-19)
rede não se romper pode sugerir que a 15 D epois d e te r e m co m id o , p e rg u n to u J e ­
unidade da Igreja, a exemplo de uma su s a S im ão P e d ro : S im ão , filho d e J o ã o ,
veste inconsútil (19:23), não seria ras­ a m a s -m e m a is do q u e e s te s ? R esp o n d eu -
gada pela inclusão dos gentios (cf. o lh e : Sim , S e n h o r; tu sa b e s q u e te a m o .
D isse-lhe e le : A p a sc e n ta os m e u s co rd e iri-
comentário sobre 17:20,21). Dirigindo-se nhos. 16 T o rn o u a p e rg u n ta r-lh e : S im ão,
a um ambiente em que a Igreja se filho d e J o ã o , a m a s -m e ? R esp o n d e u -lh e :
encontrava ameaçada pelo cisma (cf. Sim , S en h o r; tu s a b e s q u e te a m o . D isse-
João 10;17; I João 2:19), João 21 oferecia lh e : P a s to r e ia a s m in h a s o v elh a s. 17 P e r ­
guntou-lhe te r c e ir a v e z : S im ão , filho de
a segurança de que as redes poderiam Jo ã o , a m a s -m e ? E n triste c e u -se P e d ro p o r
comportar todas as espécies de homens, lh e te r p e rg u n ta d o p e la te r c e ir a v e z : A m as-
sem se romperem sob o peso de tanta m e ? E re sp o n d eu -lh e : S en h o r, tu s a b e s to ­
variedade. d a s a s c o is a s; tu sa b e s q u e te a m o . D isse-
Terceira, o convite para que viessem lh e J e s u s : A p a sc e n ta a s m in h a s o v e lh a s.
18 E m v e rd a d e , e m v e rd a d e te digo q u e,
e comessem pode ter sugerido aos discí­ q u ando e r a m a is m oço, te c in g ia s a ti m e s ­
pulos que os esperados convertidos na m o, e a n d a v a s p o r onde q u e r ia s ; m a s , q u a n ­
missão mundial participariam de uma do fo re s v elh o , e s te n d e rá s a s m ã o s , e o u tro
refeição preparada pelo próprio Jesus. te c in g irá , e te le v a r á p a r a o nde tu n ão
q u e re s. 19 O ra , is to e le d is s e , sig n ifican d o
Sem sua ajuda, os discípulos trabalha­ com q u e m o rte h a v ia P e d ro d e g lo rific a r a
ram em vão, mas com sua presença D eu s. E , h a v e n d o d ito isto , o rd en o u -lh e:
realizaram uma pesca perfeita. Aqui a S egue-m e.
A partir do simbolismo do peixe (v. Pode ser também que, como conversas­
11-13), os discípulos compreenderam sem próximo à fogueira, Jesus estivesse
suas oportunidades e responsabilidades indagando de Simão se ele poderia cui­
em relação aos de fora da Igreja. Agora, dar deles mais que os outros discípulos
com o simbolismo da ovelha, um dos ali reunidos, como havia prometido no
líderes dos discípulos percebia suas obri­ cenáculo (13:37; cf. Mar. 14:29). Um
gações para com aqueles que pertenciam pouco mais genericamente, Jesus pode
à comunidade cristã. João 20 tinha dei­ ter desafiado Pedro a decidir se o amava
xado incerta a posição de Simão Pedro, mais do que afirmara em todas as velhas
depois de sua tríplice negação, em 18: promessas que fizera e quebrara, que
15-18,25-27. Esta seção dá um relato agora eram apenas amargas memórias.
de sua plena restituição ao serviço apos­ Seja qual for o sentido da referência,
tólico, por parte do próprio Jesus. Pedro resolveu não deixar qualquer riva­
O uso de um tratamento formal (Si- lidade para seu amor por Jesus. Ele não
mão, filho de João) indica a solenidade somente estava pronto para confessar
da ocasião. A tríplice repetição da per­ com seus lábios uma lealdade completa,
gunta Amas-me? (v. 15,16,17) corres­ coisa relativamente fácil de ser feita,
ponde à tríplice negação. De Pedro como estava certo de que seu Senhor, que
solicitou-se que reafirmasse sua lealdade conhecia todas as coisas, sabia que o
a Jesus com a mesma ênfase com que o amava. Por fim Pedro compreendeu que
rejeitara. Diante da variação nos verbos o centro de um compromisso com Cristo
gregos utilizados para amar, nas per­ não residia naquilo que dissera ser ver­
guntas de Jesus e nas respostas de Pedro, dadeiro, que acabara se provando falso
há a grande possibilidade de que, nos (exemplo: 13:37), mas naquilo que Jesus
versos 15 e 16, Jesus estava pedindo uma sabia ser verdadeiro no âmago do ser de
devoção espiritual (agapaõ) maior do que Pedro (cf. 2:25; 10:27).
a que Pedro pensava dar (phileõ); por É interessante que, a cada vez que
isso, Pedro entristeceu-se, no verso 17, Pedro confessava seu amor, Jesus dirigia
quando Jesus perguntou se ele o amava esta confissão para um pedido para que
mesmo num nível humano (phileõ). No apascentasse e pastoreasse o rebanho de
Quarto Evangelho, porém, estes dois Deus (cf. 10:1-5). Apesar de desastrada
verbos gregos empregados para amar às performance de Pedro durante a paixão,
vezes parecem sinônimos; por isso, a ele não só fora perdoado, como restituído
questão básica não é a espécie de amor ao serviço. Ãs vezes achamos que um
envolvido, mas a disposição de Pedro em erro patente no cumprimento do dever
traduzir sua amizade pessoal por Jesus desqualifica para sempre um ministro
num ministério de preocupação com o para o serviço, mesmo que seu pecado
rebanho. É possível que Pedro tivesse tenha sido perdoado por Deus. Jesus,
ficado triste, quando Jesus lhe disse pela entretanto, confiou seus poucos cordeiros
terceira vez: Amas-me? porque isto lhe àquele que violara tão completamente
fez recordar seu terceiro e derradeiro seu mais sagrado juramento, havia tão
fracasso, quando da prova cujo sinal fora poucos dias. E este não só se tornou um
o canto do galo (18:27). discípulo por meio de um gesto de graça
O contexto não dá a mínima base para misericordiosa, como também ministrou
a comparação, pretendida pela referên­ aos outros discípulos, graças à disposição
cia, de Pedro amar a Jesus mais do que de Cristo em confiar nestes que, a
estes. Já que Pedro retomara a sua primi­ despeito de o amarem, tinha falhado
tiva vocação de pescar (v. 3), Jesus deve diante dele de modo tão trágico.
ter-lhe perguntado se o amava mais do A reintegração de Pedro, porém, não o
que os botes e redes aportados na praia. eximiu do sofrimento que procurara
evitar, ao negar Jesus. Quando fosse Tão logo recebeu o convite para seguir
velho, ele viveria a experiência de não ter a Jesus, mesmo sob o peso do martírio,
mais a liberdade do seu tempo de jovem, Pedro procurou desviar a conversa para
quando podia vestir-se e ir para onde uma discussão em torno do destino do
quisesse. Ao contrário, estenderia suas discípulo a quem }esus amava, discípulo
mãos em preparação para ser crucifica­ este já caracterizado em 13:23-25. Como
do, e outro o cingiria e o levaria para o sugere desta descrição, o papel funda­
lugar da execução, para onde não queria mental do discípulo amado era servir
ir. Pedro porém, não precisava se preo­ como um elo básico entre a igreja primi­
cupar com este futuro destino, mesmo tiva e o Jesus histórico. Embora Pedro
desolador; antes, sua tarefa para agora fosse também uma testemunha da vida
era seguir Jesus até o fim, mesmo se este terrena de Jesus, ele não poderia levar a
fim significasse morte (cf. o comentário efeito a sua função tão bem como o
de 1:43). Como o contexto salienta, esta discípulo amado, porque lhe faltava o
obediência não era um assunto parti­ discernimento do significado mais pro­
cular, ou momentâneo, mas envolvia o fundo dos eventos históricos (ex.: 20:
cuidado constante do rebanho. 6-8;21:7). Enquanto Pedro proporcio­
O evangelista inseriu um comentário, naria, basicamente, uma liderança cora­
entre parêntesis, para explicar que a josa, o discípulo amado proveria uma
referência à crucificação de Pedro, velho orientação teológica. Desse modo, os
e desamparado, foi feita para demons­ dois papéis eram necessários, se a Igreja
trar com que morte havia Pedro de desejasse cumprir efetivamente suas
glorificar a Deus. Provavelmente isto responsabilidades.
signifique que a profecia de martírio fora Quando Pedro viu o discípulo amado,
cumprida e era conhecida do editor deste perguntou a Jesus: Senhor, e deste que
capítulo final. Se tal ocorreu, a primeira serã? Não se esclarece se a pergunta
data para o Quarto Evangelho deve ser foi motivada por alguma insatisfação
colocada após a execução de Pedro. Não com seu próprio papel (que envolvia, por
há qualquer certeza nesta questão, em­ exemplo, o martírio) ou por alguma
bora seja provável que Pedro tenha reserva em relação ao papel do discípulo
perecido na perseguição comandada por amado (que não o previa). Pode-se,
Nero, por volta do ano 64.47 forçando, ver, nesta pergunta, as tensões
existentes na Igreja entre os defensores
3. A Morte do Discípulo Amado (21: do Evangelho de Marcos, que tinham
20-23) Pedro como fonte autorizada, e os de­
20 E P e d ro , v ira n d o -se , v iu q u e os se g u ia fensores do Evangelho de João, que
aq u ele discípulo a q u em J e s u s a m a v a , o tinham o discípulo amado como sua
m esm o q ue n a c e ia se r e c o s ta r a so b re o fonte autorizada, mas tal possibilidade é
p eito d e J e s u s e p e r g u n ta r a : S en h o r, q u e m
é o q ue te tr a i? 21 O ra , vendo P e d ro a e ste ,
por demais mirabolante. Independen­
p e rg u n to u a J e s u s : S enh o r, e d e ste que temente das razões da indagação de
s e rá ? 22 R espondeu-lhe J e s u s : Se e u q u is e r Pedro, Jesus não estava interessado em
que ele fiq u e a té q ue e u v e n h a , q u e te n s tu criar uma questão falsa: Se eu quiser que
co m isso ? S egue-m e tu . 23 D ivulgou-se, pois, ele fique até que eu venha, que tens tu
e n tre os irm ã o s e s te d ito q u e a q u e le d is c í­
pulo n ão h a v ia de m o r r e r . J e s u s , p o ré m , n ão com isso. Segue-me tu. Como a meta de "1
d isse q u e n ão m o r re ria , m a s : Se e u q u is e r r'cada discípulo é viver conforme a von-
que e le fiq u e a té q ue e u v e n h a , q u e te n s tu I tade de Jesus para sua vida, ele está J
com isso? / isento da responsabilidade de planejar j
/ seu próprio destino e os dos outros. [
47 Para um estudo meticuloso do martírio de Pedro, veja
Oscar Cullmann, Pedro: Discípulo-Apóstolo-Mártlr | Desde o início ao fim da peregrinação''
(Säo Paulo, ASTE, 1967), p. I cristã, é bastante seguir Jesus. Fora esta
a primeira palavra de discipulação ou­ mencionado como um dos doze e só
vida por Pedro (ex.: Mar. 1:17) e agora aparece na história evangélica em 13:23.
a ouvia pela última vez. O evangelista Em segundo lugar, parece que alguns
estava consciente de que este dito se acusavam o Quarto Evangelho de omitir
divulgara entre os irmãos, sendo inter­ “muitas outras coisas que Jesus fez” ,
pretado como uma promessa de que o tornando-se, assim, incompleto, devido
discípulo amado não morreria. Interes­ à sua seletividade. O motivo para este
sado em corrigir este equívoco genera­ protesto pode ter sido oferecido por uma
lizado, o autor explica que Jesus não comparação com os Sinópticos que co­
disse que não morreria; era apenas uma meçavam a circular, os quais incluíam
frase usada hipoteticamente, para enfa­ muitos assuntos sobre os quais o Evan­
tizar o que disse a Pedro: Se eu quiser gelho silenciava. A notável semelhança
que ele fique até que eu venha, que tens dos outros três Evangelhos pode ter
tu com isso? Desta passagem pode-se estimulado a necessidade de uma expli­
inferir que o discípulo amado, a exemplo cação das diferenças nos quatro.
de Pedro, já estava morto e que o editor
final sentiu a necessidade de explicar sua 1. A Autenticidade do Evangelho (21:24)
morte para aqueles que erroneamente
24 E s te é o d iscíp u lo q u e d á te ste m u n h o
supuseram que ele sobreviveria até à d e sta s c o isa s e a s e s c re v e u ; e sa b e m o s que
Parousia. Pode ser que alguns deles o seu te s te m u n h o é v e rd a d e iro .
fossem levados por este Evangelho a
continuar achando que o mundo aca­ Embora não haja qualquer identifi­
baria antes que a geração apostólica cação, neste versículo, a alusão este é o
original morresse. discípulo visa, sem dúvida alguma, o
discípulo amado dos versos 20 a 23.
II. Conclusão do Evangelho Apesar de, possivelmente, estar morto,
(2 1 :2 4 ,2 5 ) ele continuava dando testemunho através
Já observamos que 20:30-31 serve das páginas deste Evangelho (cf. o co­
como uma admirável conclusão ao “livro mentário sobre 1:15. A amplitude deste
dos sinais” , bem como a todo o Evan­ testemunho, indicado pela vaga expres­
gelho, permitindo que 21:24,25 seja são estas coisas, incluía claramente
entendido como um comentário final muito mais que o incidente relatado
exclusivo do capítulo 21. O escopo destes nos versos 20 a 23 ou até mesmo todo o
versículos é muito amplo, sugerindo que capítulo 21. Provavelmente, a referência
foram concebidos para oferecer uma era à fonte escrita utilizada, pelo editor
conclusão alternativa a todo o livro. final, como base para o Quarto Evan­
Parece que duas objeções foram levan­ gelho, do mesmo modo como a pregação
tadas contra o Evangelho, com força de Pedro, preservada por Marcos, pode
suficiente para justificar uma resposta. ter sido o núcleo do segundo Evangelho.
Em primeiro lugar, por razões não escla­ Conquanto o discípulo amado escre­
recidas, os detratores estavam colocando vesse estas coisas para perpetuar suas
em dúvida a credibilidade da fonte-tes­ memórias para as futuras gerações, não
temunha sobre que fora escrito. Pode-se fora ele mesmo o editor final deste
conjectórar que o problema se agravou Evangelho em sua forma final. Isto fica
quándo outros Evangelhos começaram a demonstrado pela forma como o editor e
circular, com seus defensores preten­ sua Igreja avaliaram sua contribuição e
dendo superioridade, por se basearem no afirmaram: sabemos que o seu teste­
testemunho de apóstolos originais, como munho é verdadeiro (cf. 19:35). O Evan­
Pedro (veja o comentário sobre 21:21). gelho era mais que um repositório de
Ao contrário, o discípulo amado não fora informação histórica. Seu ímpeto inicial
era registrar o testemunho de um parti­ 1:1-4). Todavia, ele não se desculpou
cipante original da vida de Jesus, teste­ pelo fato de o seu relato ser tão seletivo.
munho este confirmado posteriormente e Se as coisas que Jesus fez fossem escritas
enriquecido na vida de uma comunidade uma por uma, estejamos certos de que
de fé. (Sobre este nós apostólico, cf. 1:14 nem ainda no mundo inteiro caberiam os
e ver Hoskyns, p. 86-95.) livros que se escrevessem. Com este
pensamento final, o autor relaciona a
2. A Seletividade do Evangelho (21:25)
conclusão, no capítulo 21, com a do
25 E a in d a m u ita s o u tr a s c o is a s h á que capítulo 20. Em 21:25, ele dá uma razão
J e s u s f e z ; a s q u a is , se fo ssem e s c r ita s u m a literária para sua seletividade: tão vasto
p o r u m a , c re io q ue n e m a in d a no m u n d o
in teiro c a b e ria m os liv ro s q u e se e s c r e v e s ­ era seu material que, se procedesse de
sem . outro modo, o livro jamais acabaria! A
primeira conclusão, em 20:30,31, ofere­
Depois de se referir ao “«le” de um cera uma razão teológica para a mes­
testemunho ocular e ap “nós” da confir­ ma decisão: a fé precisa somente de
mação comunitária, o autor, do versículo um número limitado de sinais para se
final do Evangelho, se refere direta­ encaminhar em direção à verdadeira
mente a si mesmo como “eu” . (Sobre crença. Nenhum Evangelho podia deixar
estas referências a “ele” , “nós” e “eu” , a impressão de que de suas páginas (isto
veja o problema da autoria conforme é, pela leitura) poderia alguém ser salvo.
discutido na Introdução.) Sem fazer Por fim, chegara o tempo de concluir um
rodeios, ele admitiu haver muitas outras Evangelho sobre Jesus Cristo, para que o
coisas feitas por Jesus e não narradas em leitor pudesse ultrapassar as palavras
seu Evangelho. Como o terceiro evan­ escritas e descobrir para si a Palavra
gelista, tinha ele acompanhado de perto viva. E isto se aplica àqueles que, no
os muitos esforços de compilação feitos decorrer dos séculos, alcançam este
das narrativas da vida de Jesus (Luc. ponto a partir do Evangelho de João.

Emanuence Digital
e
Mazinho Rodrigues

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