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O MODERNO E O CONTEMPORANEO (O NOVO E 0 OUTRO NOVO) Ronaldo Brito Com a explosio das vanguardas nas primeiras décadas do século XX, a obra de arte passou a ser tudo € qualquer coisa. Nenhum Ideal tedrico, nenhum principio formal poderiam mais defini-la ou qualificd-la a priori, Seguindo ‘um movimento paralelo ao da cigneia ~ e até da propria realidade, com 0 afluxo das massas ~ a arte tornou-se strana, A sua aparéncia mesma mostra- vva-se oposta ao mundo das aparéncias, com o qual sempre esteve (problema- ticamente) ligada, A Modernidade apresentava de inicio um sei \anifes- tamente liberatério, caracterizava-se pela disponibilidade absoluta: parecia sm qualquer direcao. Bigode e cavanhaque na diante, Mas o gesto de possivel fazer tudo, com tud Mona Lisa, pegas de micté liberar implica uma situagao de opressio, uma situagio insustentavel. A liber- dade moderna nao era simplesmente a afirmagio de novas possi idadles: era, sobretudo uma rovolta, um desejo eritico frente as coisas e valores institul dos. No limite, expressava o paradoxo de um sujeito que nao reconhecia mais omundo enquanto tal. E de um objeto—o mundo ~ que parecia nao se comu aio ocidental: 0 Sujei nicar com a principal figura construida pela ci A correlagio organizada —amarrada mesmo por lagos de autoridade indi — entre Sujeito e Objeto, a famosa Ravo do século XIX, dissipava-se ae sabor dos ventos no cotidiano massificado. Era desconstrufda minuciosamen te nos laboratdrios de pesquisa e salas de aula, Por que os ateligs ficarint alheios a essa, digamos, Confusio Esclarecedora? A radical negatividade Dada, o escindalo surrealista ¢ a Vontade de Or lem Construtiva, com suas diferengas irreduti ‘um suposto duplo da realidade aparente (de fato, nunca o fizeram), uma re- confortante e gratificante doagio de prazer que ratificasse a plenitude da Noss io. Ao contrario, empenhavam-se em dissolvé-la, questionar o proprio visi- a sua fragilidade, Assim, no localizavam nada —ixversamente, tiravam as coisas do lugar. Ora, com isso perdiam sua posicio marcada, os Pontos de apoio, ficavam enfim deslocadas. sto é, sem localizagio fixa. Hist6- rica e filosoficamente destinadas pelo Ocidente a duplcar a Realidade ~ dai sua condenagio ou valorizagio —, a arte perdia o seu estatuto ao voltar-se contra simesma e contra o Real enquanto Unidules, Realizava desse modo tarefa sime- esta a que The fora atribuida, fala-se em Crise di Arte, Em sentidos varios, de maneiras di- versas, a arte nfo reencontraria mais a plena Razio de Ser. C! vel, den 0, a cri ico de um mundo em meio a nntradicao atingia em cheio a propria obra, suspensa ¢ tre seu cardter tinico ~ guardado pelas belas-artes —¢ a obra de arte virava um campo de batalha no qual Iutavam forgas opostas © desiguais, Cindi ma els Aparinaive dela para “compreender” a nova situagio. O pr Questo de sobrevivéncia — ou pensar a inteligéncia negativa de si mesma o correr 0 risco de morrer despercebida do tumulto de um mund te da arte, praticé-la, por assim dizer, era a rotina das van- do século XX. Que o fizessem pondo em circslagio uma juemas formais, novos procedimentos, assimilando ainda conseguiria interromper esse processo intelectivo coerente sobre 0 qual 0 Saber Dominante Ocidental (a Filosofia e, em seguida, a Ciéncia) sempre ‘manifestou desconfianga ou desprezo. De fato, a0 colocar-se em xeque,a arte visava também ao que se pensiva ¢ ao que se dia correntemente dela, Eis um ponto em que, surpreendentemente, filosofia e senso comum andaram mi tas vezes juntos. Hoje aparece cada dia com mais clareza a distingio —sendo a contradigio—entre o Saber da Artee o Sabersobrea Arte, Entre a ver dos trabalhos de arte, a0 longo 8 E se constata o quio pouco se conhece desse primeiro e decisivo saber, apesar dos esforgos em diregio a uma pretensa ciéncia da arte. Dessa diferenga, passada as vezes sob forga de emergéncia, Da insuspeitad supunha existir numa 1 letra maitiscula ~ protegida ¢ ~ possuia uma materialidade social. Era lica, cumpria pay Ao investir certo modo contra si mesma ~ ela tam estéticas decadent: quiria espaco propr Interpunha uma Muscu, as determinagées do mercado, a autoridade da chamada tra esses papeis a arte investia |, quisessem ou nio as arte pela arte, Mas ao sobreviver a esse choque, para atuacao cr dincia polémica entre a sua inteligéncia ¢ as |. precirio e ambiguo, mas pro} a produgio estava radicalmente A frente do local onde operava a Instituisio- Arte, Ora, um descompasso radical so pode sé-lo uma tinica vez —no momento mesmo em que é denunciado. A defasagem entre a produgio ¢ a in segue em curso no nosso conturbado universo cultural, mas agora sob o para- doxal signo da continuidede do descompasso. Nomes-la vanguarda, a rigor, & desco- nhecer a realidade atual ou abusar do termo: nio pode haver a tradicao da vanguarda, , a no ser como contrafagao A TRADIGAO DA INQUIETUDE A institucionalizagio da modernidade, a complexa manobra de transforma- ges e recalques que exigit do universo simbélico dominante, produziu uma 1acio. Harold Rosenberg chamou-a A tradrio do now. © ingresso dos objetos modernos na histdria da arte nao se fez sem profundas acomoda- ges do terreno, Mas ocorreu, é um fato consumado. Aquele mater cl" foi enfim submetido a0 mesmo processo sublimante’ esquisit 3 tradigio, a modernida negada enquanto vanguarda. A tradigao moderna apresenta-se entre tanto de maneira problematica, pois a instituigao nao detém ainda sua co pleta inteligibilidade. Dai 0 “eterno retorno” da questio da vanguarda — a presenca surda de conteiidos como a morte da arte, a antiarte e outras meti- foras dessa ordem, ou melhor, dessa desordem, Dai o sentimento de faléncia, © fantasma de culpa que parecem onipresentes em todos os espagos do mun- do da arte, De algum modo, os trabalhos radicalmente modernos ainda pres- sionam e irradiam uma inteligéncia avessa 3 ideologia Belas-Artes. Esta per- cebe e recupera sb 0s tragos superficiais, os signos externos. As operaydes das, O que pode significar, por exemplo, penar um Picasso? Certamente algo diferente das verdades correntes automatica- transgressoras nao séo devidamente ass atribuidas a Picasso. © saber produzido por esse artista, quem 0 acompanha no registro correto, no seu embate minucioso (¢ silencioso) com a Historia dla Pintura? Nao é um problema de métier. Mas exatamente a questio da pintu ra enquanto sistema organizador da visualidade, cotidiana, inch cessirio praticar pintura para compreender a questio. E indisy tudo, conhecer por dentro as articulagdes do processo para nao fic sensibilidade do alho empirico. Esta sensibilidade, contra suposigdo comum, €a que existe de menos esponténea: esta totalmente determinada pela estrus tura dos cddigos vigentes de inteligibilidade. Gostar ou nao gostar, nesse se tido amplo, &4 mesma coisa —em qualquer dos casos ise perdeu a ver 0 real do trabalho ao traduzi-lo na rede instituida do Vise! Pas presenta o limite do olho humano e sim ode uma constr ucio da Visualidade cocrente com a implantagio e manute! dem burguesa. Ai dentro a modernidade artistica situa-se ambigua mente, Onde se queira mostrar sua estrita aderéncia a essa ordem, at este, o da or: ‘mo alguma fungio protetora, é facil localizar as partes antagénicas (o raciox nio acima pretendeu demonstré-las). Onde, inversamente, se tente provar ‘uma oposigdo absoluta entre © de produgio capitalista, vamos 0s procedimentos da arte moderna, 0 racioc! vyazio, Impos: xas, superpost mento formal de valor Essa resistente inadequagio, essa inquietude dos esquemas formais mo- dernos (Theodor W, Adorno’: as formas sio conteidos historicamente conden sados) no quadro da Historia da Arte, vai po nea e, adiante, um espago da contemporaneidade. Este nao seria uma figura clara, com ambitos plenamente definidos. Seria um feixe descontinuo, mo jo vor sério risco de cair no, ces ou relragées comple: a questo num julga ma arte contempord- compreensio ¢ superagio desses tre o trabalho moderno eo trabalho contemporsneo, vii por démarches distintas agindo “dentro” e “fora” deles. “Dentro” porque o de arte contemporineo no encara mais a ago modernista como cv! {dealizava e sim como resultou assimilada e recuperada. A erosio dos novos ss, a modernidade evidentemente desconhecia: a Iuta era contra 08 ar raigados valores do século XIX. A partir da Pep, no entanto, a arte vive no cinismo inteligente de si mesma. Vive com a consciéncia aguda das castragies que 0 Principio da Realidade impés & libido das vanguardas. Mais grave, com a certeza sobre a incerteza da identidade de suas linguagens ~ estas, por mais radicais, sofrerdo inevitavelmente o choque com o circuito, ¢ ai, 6 ai, dirio quem sto. “Fora”, 05 procedimentos s20 outros também. A mudanga da hegemonia do mercaclo de Paris para NovaYork nio foi somente uma questio geogratica. Foi uma mudanga estratégica. Nova York nio & um centro como Paris 0 era, representa um novo tipo expansio volitil, sem fronteiras na hogemonia q age pelo descentramento, onais ou outras delimitagdes fixas ria daArte” aparece cada ver fariamente. Os trabalhos acumulados nio vii desta contemy m tensio, 0 convergentes, ora divergentes Esta é a Historia deste Outro Novo. Ao mesmo tempo, em contrapar produgao se especifica, anal um de seus momentos, €atra- vessada por uma série de exigéncias téenicas que poem réprio conceito de arte como era ¢ ainda é entendido, E aqui a técnica deixa dle ser ‘meio expressivo do sujeito. Ao contrario, passa a ser necessidade objetiva de os artistas dominarem uma racionaldade profuunda e gener com detalhes cx LUSpenso 0 zada para acompa thar as deter minagdes do sistema cultural. Necessidade de investigar 0 seu campo de atuagao no nivel da consciéncia critica. Numa certa medida, ni € maisaarte iadaArte, 4 posterior, infltra-se na produgio e parece mesmo determiné-la, sitico mesmo, pouco se fala na passagem da modernidade c. Talvez inconscientemente a dltima passe, para que permite ahistéria da arte ¢ sim o inverso ~a His sta constru-

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