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Paradigma Da Afrocentricidade e Uma Nova Concepção de Humanidade em Saúde Coletiva
Paradigma Da Afrocentricidade e Uma Nova Concepção de Humanidade em Saúde Coletiva
RESUMO Este ensaio tem por objetivo fornecer elementos para o estudo da relação entre saúde
mental e racismo com vistas a inaugurar uma nova concepção de humanidade em saúde co-
letiva baseada no paradigma da afrocentricidade. As reflexões partem da problematização da
existência de dois paradigmas civilizatórios que constituem a sociedade brasileira e que pro-
duzem subjetividades: o paradigma ocidental e o negro-africano. No campo da saúde coletiva,
o desafio que se apresenta é o de inaugurar um novo processo de escuta e reconhecimento dos
diferentes valores e práticas civilizatórias, rompendo com o olhar preconceituoso e racista
que ainda hoje é lançado às pessoas de ascendência africana.
ABSTRACT This essay aims to provide elements for the study of the relationship between mental
health and racism in order to cast a conception of humanity in public health as from the afrocen-
tricity paradigm. These reflections depart from problematizing the existence of two civilizational
paradigms that form the Brazilian society and produce subjectivities: the Western paradigm and
the black-African one. In the public health field, the challenge concerns the launching of a new
process of listening and recognition of different values and civilizational practices, breaking with
1 Escola
the bigoted and racist sight still turned against African descendent people.
de Filosofia e
Teologia Afrocentrada
(Estaf) – Porto Alegre (RS), KEYWORDS Mental health; Racism; Public health; Psychology, social.
Brasil.
oba.olorioba@gmail.com
2 Escola de Filosofia e
Teologia Afrocentrada
(Estaf) – Porto Alegre (RS),
Brasil.
jaypjesus@hotmail.com
3 Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Programa de
Residência Integrada
Multiprofissional em Saúde
Mental Coletiva – Porto
Alegre (RS), Brasil.
dani.scholz@hotmail.com
DOI: 10.1590/0103-1104201510600030025 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. 106, P. 869-880, JUL-SET 2015
870 ALVES, M. C.; JESUS, J. P.; SCHOLZ, D.
desigualdades no modo de inserção e im- Kuhn define, ainda, que esse conceito possui
pactos perversos na subjetividade de grupos dois sentidos:
racialmente oprimidos. A manifestação do
racismo por meio de “preconceitos, estereó- De um lado, indica toda a constelação de cren-
tipos e discriminação é gerador de situações ças, valores, técnicas etc. partilhadas pelos
de violência física e simbólica” (SILVA, 2005, P. membros de uma comunidade determinada.
130) e, sobretudo, de violência civilizatória, De outro, denota um tipo de elemento dessa
que, ainda segundo a autora, “produzem constelação: as soluções concretas de quebra-
marcas psíquicas, ocasionam dificuldades -cabeças que, empregadas como modelos ou
e distorcem sentimentos e percepções de si exemplo, podem substituir regras explícitas
mesmo” (SILVA, 2005, P. 130). como base para a solução dos restantes quebra-
O descentramento existencial produzido -cabeças da ciência normal. (KUHN, 2006, P. 220).
nas subjetividades individuais e coletivas por
meio da distorção de sentimentos e da percep- Enquanto Kuhn (2006) discute o conceito de
ção de si impede uma análise crítica sobre os paradigma como parte de comunidades cien-
efeitos da colonialidade nas relações de poder, tíficas, Morin (2002B; 2007) amplia esse conceito
de modo a contribuir com a manutenção ao alegar que a ele subjazem visões de mundo
das iniquidades civilizatórias, ou seja, com a partilhadas pelas comunidades científicas,
negação da existência de diferentes ontologias, embora não se limitando a essas. Para Morin
epistemologias e éticas do viver no mundo. (2007, P. 59) “a palavra paradigma é constituída
Este artigo tem por objetivo fornecer ele- por certo tipo de relação lógica extremamen-
mentos para o estudo da relação entre saúde te forte entre noções mestras, noções-chave,
mental e racismo com vistas a inaugurar uma princípios-chave”. O autor define que um pa-
nova concepção de humanidade em saúde radigma contém os conceitos ou as categorias
coletiva baseada no paradigma da afrocentri- fundamentais para sua inteligibilidade e, a um
cidade. Trata-se de um ensaio temático cujas só tempo, o tipo de relações lógicas de atração/
reflexões e discussões partem da problema- repulsão entre elas. E assevera que “os indiví-
tização da existência de dois paradigmas duos conhecem, pensam e agem segundo os
civilizatórios que constituem a sociedade paradigmas inscritos culturalmente neles”, de
brasileira e que, consequentemente, produ- modo que os sistemas de ideias “são radical-
zem subjetividade no seio do extrato social: mente organizados em virtude dos paradig-
o paradigma ocidental e o negro-africano. mas” (MORIN, 2002B, P. 261). Nessa perspectiva, por
paradigma civilizatório entendemos um con-
junto de pressupostos, concepções, valores,
Paradigmas crenças, saberes e práticas compartilhadas
por um grupo de pessoas, e que transcende os
As discussões em torno do conceito de pa- limites geográficos onde vivem, que dão viva-
radigma, no campo científico, têm na obra cidade e organização a um modo de observar,
de Kuhn (2006) ‘A estrutura das revoluções agir e compreender o mundo.
científicas’ um importante marco. Já em seu Para conceituar paradigma civilizatório oci-
prefácio, o autor salienta: dental, partimos das discussões provocadas por
Santos (2002) e Morin (2007). Para Santos (2002, P.
considero ‘paradigmas’ as realizações cientí- 10), a racionalidade da ciência moderna cons-
ficas universalmente reconhecidas, que, du- trói o que chama de “Paradigma Dominante”,
rante algum tempo, oferecem problemas e ou seja, um “modelo totalitário” de observar
soluções modelares para uma comunidade de e compreender o mundo, na medida em que
praticantes de uma ciência. (KUHN, 2006, P. 13). “nega o caráter racional a todas as formas de
conhecimento que não se pautarem pelos seus de uma “localização centrada na África e sua
princípios epistemológicos e pelas suas regras diáspora”. Dito de outro modo, essa análise e
metodológicas”. Esse paradigma pressupõe a compreensão precisam ser feitas a partir da
separação entre ser humano e natureza; visa a epistemologia e de elementos civilizatórios
conhecer a natureza para dominá-la e contro- do complexo cultural africano.
lá-la; assenta-se na redução da complexidade; A afrocentricidade é entendida como
possui como pressupostos a ordem e a esta-
bilidade do mundo. Morin (2002A; 2003; 2007), ao um tipo de pensamento, prática e perspectiva
trabalhar com a ideia de ‘paradigma simplifica- que percebe os africanos como sujeitos e agen-
dor’, afirma que ele põe ordem no universo, ex- tes de fenômenos atuando sobre sua própria
pulsando dele a desordem; busca a eliminação imagem cultural e de acordo com seus próprios
da irreversibilidade temporal e de tudo o que interesses humanos. (ASANTE, 2009, P. 93).
é eventual e histórico; atua no isolamento/se-
paração do objeto em relação ao seu contexto; O cerne desse paradigma, portanto, está na
pressupõe a separação entre o objeto e o sujeito afirmativa de que os africanos devem “operar
que o percebe/concebe; reduz o conhecimento como agentes autoconscientes” de sua histó-
do todo ao conhecimento das partes; vê apenas ria, cuja autodefinição positiva e assertiva deve
o uno ou o múltiplo, não conseguindo ver que o partir da “cultura africana” (MAZAMA, 2009, P. 111).
uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo; reduz Nessa perspectiva, tendo em vista que “qual-
o conhecimento ao que é mensurável, quantifi- quer ideia, conceito ou teoria, por mais ‘neutro’
cável, formulável, negando e condenando todo que se afirme ser, constitui o produto de uma
o conceito que não possa ser traduzido por matriz cultural e histórica particular” (MAZAMA,
uma medida. 2009, P. 111), compreende-se que o paradigma ci-
Não obstante, o paradigma civilizatório vilizatório negro-africano é constituído pelo
ocidental também se constitui a partir de conjunto de elementos do complexo cultural
conceitos e pressupostos do capitalismo. africano que inscreve em território brasileiro
Este, para manter sua hegemonia desde o uma dinâmica civilizatória (LUZ, 2000; SANTOS,
início da modernidade, pressupõe a con- 2008; SODRÉ, 1988) mesmo diante do paradigma
tínua concentração de capital; a crescente dominante. É constituído por um sistema de
expansão geográfica sem limites; o direito valores, crenças e ideias que constrói um modo
de propriedade privada de quaisquer bens; e específico de observar, agir e compreender o
o poder ideológico, cuja relação de confian- cosmos em suas dimensões visível e invisível,
ça “explica a pacífica aceitação de qualquer e que estabelece uma ética e uma estética para
espécie de poder: político, militar, econômi- o viver coletivo, fazendo com que seus limites
co, familiar ou religioso” (COMPARATO, 2011, P. 270). não coincidam com a dimensão geográfica do
No que se refere ao paradigma civili- continente africano.
zatório negro-africano, para conceituá-lo,
dialogamos com o ‘paradigma afrocêntrico’
proposto por Mazama (2009) e Asante (2009). Por uma concepção de
A ideia afrocêntrica, segundo Asante (2009, humanidade afrocentrada
P. 93), refere-se à “proposta epistemológica
do lugar”, ou seja, tendo sido os africanos
em saúde coletiva
e afrodescendentes (no continente africa-
no ou na diáspora) “deslocados em termos A colonialidade atualiza e reforça os antago-
culturais, psicológicos, econômicas e histó- nismos criados pelo sistema colonialista, e as
ricos”, qualquer análise e compreensão de instâncias de poder do estado democrático de
suas condições de vida deve ser feita a partir direito reforça a colonialidade por meio de uma
reconhecimento do que Santos (2010A, P. 543) da colonialidade que se mantém viva, porém
chama de “diversidade epistemológica do com novas formas e roupagens, contribuin-
mundo”, atentando-se para o “fascismo epis- do com a manutenção do racismo em nossa
temológico”. O autor salienta que o sociedade. Portanto, a perspectiva da demo-
cracia racial, como afirma Fernandes (2007),
fascismo epistemológico existe sob a forma não possui consistência na sociedade brasi-
de epistemicídio, cuja versão mais violenta foi leira e constitui inverdade na medida em que
a conversão forçada e a supressão dos conhe- difunde uma relação harmoniosa e igualitá-
cimentos não ocidentais levadas a cabo pelo ria entre grupos raciais, não corresponden-
colonialismo europeu. (SANTOS, 2010A, P. 544). do, pois, à realidade vivida pela população de
ascendência africana.
Como contraponto a esse ‘epistemicídio’, No que se refere à construção mundial do
Santos (2010A) propõe a “ecologia dos saberes”, racismo, é importante ressaltar a diferença
ou seja, a tentativa de minimizar ao máximo a entre o racismo produzido pelo colonizador
assimetria entre diferentes saberes. A diferen- europeu em relação aos povos africanos e
ça epistemológica entre os saberes só poderá outras formas de relações racistas viven-
ser minimizada por meio de comparações re- ciadas na história da humanidade. Como
cíprocas entre eles na “busca de limites e pos- conceito básico, sabemos que o racismo pres-
sibilidades cruzadas”. A proposta que o autor supõe que um grupo racial – considerando-
faz sobre a “ecologia dos saberes” se refere -se o conceito social de raça – considera-se
a uma “epistemologia da douta ignorância”, superior a outro grupo racial.
isto é, levar ao máximo para a consciência a No que se refere ao racismo produzido
incompletude de cada saber por meio do “tra- entre colonizador europeu e povos africa-
balho de tradução” – procedimento de busca nos, a base da relação racista transcende a
de proporção e correspondência entre os relação de superioridade/inferioridade, isto
saberes (SANTOS, 2010A, P. 544). Ou seja, “um pro- é, inclui o antagonismo humanidade/não hu-
cedimento capaz de criar uma inteligibilidade manidade. Dito de outro modo, os povos afri-
mútua entre experiências possíveis e dispo- canos, para o colonoizador europeu, eram
níveis sem destruir a sua identidade”, que se mais do que inferiores, eram não humanos.
contrapõe a uma teoria geral que procura dar A palavra ‘negro’ – nome dado pelo coloniza-
conta da diversidade de experiências sociais dor europeu aos africanos – está carregada
(SANTOS, 2006, P. 779). de valores e ideologia de modo que significa
Considerando o conceito de humanidade ausência de luz, sem alma. Ou seja, não ter
e humano imposto pelo paradigma ocidental alma implica ‘não ser humano’, significa ser
e o epistemicípio levado a cabo pelo colonia- objeto, ser animal. Portanto, a representação
lismo europeu, torna-se material compre- social de ‘ser negro e negra’ no Brasil tem
ender os motivos pelos quais ‘ser negro e como base o conceito de não humanidade.
negra’ no Brasil é vivenciar diuturnamente Diante de séculos de imersão nessa verdade
uma humanidade subalterna, de concessão, universal, negros e negras, bem como a so-
que, obviamente, produz subjetividades ciedade brasileira como um todo, passam
subalternas alimentadas diariamente pelo a acreditar na não humanidade dos povos
racismo que mantém viva a divisão radical de ascendência africana, que, por sua vez,
entre o universo deste lado da linha e o uni- passam a vivenciar uma humanidade de
verso do outro lado da linha, conforme o concessão e subalterna, produzindo subje-
pensamento abissal de Santos (2010B). Fala-se tividades subalternas alimentadas diuntur-
de uma ‘humanidade africana’ que continua namente pelo racismo e pelas estratégias
sendo vilipendiada nas diferentes matizes de divisão alimentadas por esse mesmo
controlá-los, usem-nas. Façam com que as suas na diáspora o africano passou a viver em dois
esposas, filhos e empregados brancos também universos sociais distintos, sem que estes se
as utilizem. Nunca percam uma oportunidade. comunicassem. O que, por sua vez, demons-
Meu plano é garantido e a boa coisa nisso é trava que a aculturação não produzia, neces-
que se utilizado intensamente durante um sariamente, “seres híbridos, inadaptados e
ano, os escravos por eles mesmos acentuarão infelizes”; a essa capacidade Bastide (1955 APUD
ainda mais essas oposições e nunca mais te- CUCHE, 1999, P. 133-134) denominou de “princípio
rão confiança em si mesmos, o que garantirá de corte”. Ou seja, argumentava que o africa-
uma dominação quase eterna sobre eles. no que vive em contexto social pluricultural
Obrigado, senhores. tem a capacidade de cortar “o universo social
em um certo número de ‘compartimentos
William Lynch. (LYNCH, 2012). isolados’ nos quais eles têm ‘participações’
de ordem diferente que, por isso mesmo, não
Mas o que tudo isso tem a ver com saúde lhes parecem contraditórios”.
mental? Tem tudo a ver! Afinal, trata-se da No entanto, se num dado contexto social,
constituição de sujeitos, da produção de sub- histórico e cultural os africanos diaspóricos
jetividades, da construção de identidades do experimentavam com certa tranquilidade
‘ser negro e negra’ na diáspora. os estratagemas da racionalidade moderna,
A violência a qual os povos de ascendên- na contemporaneidade observa-se uma si-
cia africana estiveram submetidos no Brasil tuação um pouco diferente. Isto é, se um
ao longo de séculos não é apenas a da força dia a fragmentação provocada pelo prin-
bruta, pois o racismo como tipo de violência cípio de corte teve função protetiva para a
é exercido, antes de tudo, pela impiedosa saúde mental dos africanos na diáspora, na
tendência de destituir a condição humana contemporaneidade, ele também pode agir
de negros e negras. Vilhena (2006) salienta como fator desagregador na medida em que
que a população negra, por meio da interna- os sujeitos não conseguem mais articular
lização forçada e brutal dos valores e ideais aquilo que um dia foi fragmentado; não têm
do branco, é obrigada a adotar modelos in- mais consciência dos cortes realizados por
compatíveis com seu próprio corpo, de modo seus antepassados (ALVES, 2012).
que tal interiorização leva, frequentemente, Viver em dois universos sociais, em duas
à alienação e à negação da própria natureza perspectivas civilizatórias, ‘do lado de cá
humana, oferecendo como único caminho o e do lado de lá’ simultaneamente, acabou
embranquecimento físico e/ou cultural. Não produzindo, hoje, nos africanos da diáspora
obstante, numa perspectiva mais complexa, um sentimento de fragmentação da própria
afirmamos que a população de ascendência individualidade, da própria identidade cul-
africana no Brasil vê-se obrigada a internali- tural. Afinal, não é tarefa fácil, para negros
zar valores civilizatórios ocidentais e adotar e negras, o exercício de vivenciar, identificar
modos de existência antagônicos ao paradig- e articular pressupostos filosóficos, éticos e
ma civilizatório negro-africano, o que, con- existenciais que sinalizem continuidades e
sequentemente, produz sofrimento psíquico. descontinuidades do paradigma civilizatório
Bastide (1955 APUD CUCHE, 1999, P. 133), em suas pes- negro-africano na relação com o paradigma
quisas sobre o universo da tradição de matriz ocidental (ALVES, 2012).
africana, defendia a ideia de que o africano no Luz (2000, P. 31) alega que o processo histó-
Brasil conseguia ser, ao mesmo tempo, fervo- rico negro-africano é caracterizado por
rosos adeptos da tradição de matriz africana e
agentes econômicos perfeitamente adaptados uma linha de continuidade ininterrup-
à racionalidade moderna; argumentava que ta de determinados princípios e valores
transcendentes que são capazes de engendrar linguagem e a lógica dos povos africanos tra-
e estruturar identidades e relações sociais. dicionais para apreender de forma profunda e
nítida o funcionamento dos povos africanos
Mattos (2003), ao fazer referência à função contemporâneos.
política e contra-hegemônica da elevação
dos valores civilizatórios negro-africanos a O autor defende ainda que os ancestrais afri-
redentores da dignidade e identidade negra canos foram trazidos para o
no Brasil, salienta a necessidade de nos man-
termos atentos ao risco de incidirmos nas Novo Mundo destituídos de liberdade, ou
seja, em grilhões, mas não chegaram destitu-
armadilhas dos essencialismos, na reprodução ídos de pensamento ou crenças sobre quem
não refletida desses valores como conteúdos eles eram.
inalterados de uma tradição supostamente imu-
ne às injunções do tempo. (MATTOS, 2003, P. 230). Os ancestrais africanos
Bastide (1968, P. 7), ao pôr em discussão vieram com uma lógica e uma linguagem de
as oposições entre civilização ocidental e reflexão sobre o que significava ser humano e
negro-africana, e ao caracterizá-las a partir sobre quem eles eram, a quem pertenciam e
da palavra, da linguagem, afirma que uma se por que existiam.
constitui a partir do “pensamento por sinais”
e a outra, do “pensamento simbólico”, ou, Nobles (2010, P. 281) salienta ainda que
ainda, “civilização do sinal” e “civilização
do símbolo”. Segundo o autor, a primeira somente por meio de uma interpretação pro-
“considera a linguagem significativa por si funda da linguagem e da lógica de nossa pró-
mesma, pela sua gramática, sua sintaxe, suas pria ancestralidade seremos nós, os africanos
regras lógicas”, de modo que “o sentido não diaspóricos.
se acha fora das palavras e sim na sua dis-
posição”, na sua organização gramatical. Já Afinal, como refere Alves (2012, P. 175), o sujeito
a segunda, vê nas palavras “a expressão do que cultua a tradição africana no Brasil
que se encontra do outro lado do real” e de
onde, ele, o real, retira toda a sua realidade. se constitui e se diferencia em sua subjetivi-
Dito de outra forma, na civilização do sinal dade, ao mesmo tempo em que ela é produzi-
(ocidental), a linguagem é concebida “como da na multiplicidade e unidade da comunida-
um objeto exterior que se estuda como uma de, dos ancestrais e das divindades.
coisa”, já na civilização do símbolo (negro-
-africana), a linguagem é concebida como Trata-se de um sujeito que se constitui e se
uma mensagem. diferencia a partir de uma base
Desse modo, pensar na saúde mental da
população de ascendência africana, da po- bio-mítico-social, ou seja, ele é constituído a
pulação negra brasileira é adquirir e empre- partir do sentido e significado das divindades
gar o impulso revolucionário para atingir a e ancestrais, de seus elementos naturais e de
liberdade mental e espiritual (NOBLES, 2009). sua relação com o coletivo. (ALVES, 2012, P. 175).
O que, por sua vez, demanda uma noção de
saúde e de saúde mental centrada na huma- Nessa perspectiva, a materialização do
nidade africana. Para tanto, Nobles (2009, P. 281) princípio da equidade no Sistema Único de
defende ser necessário que nos interrogue- Saúde (SUS) só se efetivará a partir do reco-
mos sobre a nhecimento dos diferentes valores e práticas
civilizatórias que constituem o Estado brasi- [...] construir e divulgar concepções e pres-
leiro. Afinal, a grande dificuldade da saúde supostos capazes de reorientar a nossa com-
coletiva ocidental é desconstruir a univer- preensão do nosso próprio passado – e, se
salidade de seu paradigma civilizatório e, necessário, mudá-lo na forma como ele se
consequentemente, exercitar a dialógica e nos mostra – à luz consciente de um projeto
a alteridade com outras realidades consti- político e civilizacional contemporâneo, ao
tutivas de subjetividades e humanidades, mesmo tempo, emancipador e antirracista.
numa perspectiva de reparação civilizató- (MATTOS, 2003, P. 231).
ria. Afinal, as consequências psicológicas do
viver em uma sociedade estruturada pelo O desafio que está posto para a saúde co-
racismo são extremamente devastadoras e letiva é o de inaugurar um novo processo
aniquilantes. de escuta e reconhecimento dos diferentes
Assim, reafirmamos o paradigma da afro- valores e práticas civilizatórias que cons-
centricidade como uma perspectiva teórica e tituem a sociedade brasileira. Rompendo,
prática que inova no campo da saúde coletiva assim, com o olhar preconceituoso e
um conceito de humanidade, na medida em racista que ainda hoje é lançado às pessoas
que visa a reorientar africanos e suas culturas de ascendência africana, bem como com
de uma posição periférica para uma posição a perspectiva de desagência e de humani-
centrada, como ressalta Asante (2009), pro- dade de concessão e subalterna até então
duzindo pesquisa, conhecimento e práticas levados a efeito nas relações étnico-raciais
em saúde a partir dessa epistemologia. A de nosso país.
afrocentricidade concebe os africanos e seus Compreendemos ser necessária a forma-
descendentes como sujeitos de sua própria ção de equipes técnicas, políticas e de gestão
ação, sendo que a ideia de conscientização municiadas do paradigma da afrocentri-
de si está na centralidade, ou seja, africanos cidade com vistas a protagonizar políticas
e seus descendentes devem operar como públicas que tenham como princípio a equi-
agentes autoconscientes de sua história, cuja dade e a reparação civilizatória. Iniciativa
autodefinição positiva e assertiva deve partir efetivamente inovadora, com impacto polí-
das culturas africanas (MAZAMA, 2009). tico-social no seio da população brasileira,
sobretudo na camada da população de as-
cendência africana. Conforme Nobles (2009,
Considerações finais P. 278), “poucas discussões têm articulado
com seriedade a natureza fundamental de
Compreender, visibilizar, colocar em relevo, ser africano”, do ‘ser negro e negra’, “seus
positivar, reinterpretar e ressignificar são significados psicológicos e funções associa-
algumas das muitas palavras que nesse tivos ou a teoria(s) necessária(s) com res-
momento emergem e levam à reflexão e peito aos processos psicológicos africanos
problematização sobre coexistência de dois normais”.
paradigmas civilizatórios que contituem a Afinal, como defende Fernandes (2007, P. 51),
sociedade brasileira: o ocidental e o negro-
-africano. Nesse sentido, corroboramos não poderá haver integração nacional, em
as palavras de Mattos (2003, P. 230) quando bases de um regime democrático, se os di-
defende a “necessidade de edificação de uma ferentes estoques raciais não contarem com
cultura política afrodescendente” em nosso oportunidades equivalentes de participação
País ou, ainda, de: das estruturas nacionais de poder.
Referências
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