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Trés motivos em Grande Sertdo: Veredas Paulo Ronai Mal emergido dos dois compactos volumes do Cor- po de baile e resistindo a custo 4 vontade de relé-los, eis- -me as voltas com uma nova obra do autor, tao substan- ciosa como aquela, e nao menos hirta de obstdéculos nem menos rica de compensagées. Como prémio do esforgo exigido pela leitura, saimos dela com a impressao de ter- mos participado um pouco da obra de ficgio, de termos compartilhado nao s6 as vicissitudes das personagens, mas também a alegria criadora do autor. Essa impressao faz esquecer de vez 0 susto que se experimenta 4 entrada, ao sopesar o volume grosso, bloco maci¢o, sem claros, sem diviséo em capitulos, sem indice. Ainda mais: que vem a ser esse titulo estranho, com dois pontos no meio? A linguagem condensada, eliptica, re- sional e individual ao mesmo tempo, embora dentro da linha dos livros anteriores, impde ao interesse um perio do de adaptagio, Além disso, a historia tarda a comegar, 0 narrador parece experimentar virios rumos, embrenha-se ‘num atalho, marca passo,desvia-se, volta ao ponte iniial, recomega a agio, parece fragmentar-se num labirinto de episédios desconexos. Mas, lembrados de Sagaruma ¢ Cor- ‘pode baile, confiemo-nos sem reserva a0 autor, sigamo-lo por seus caminhos tortuosos: de repente, apds uma tra- vessia do rio Sio Francisco, ele nos faz desembocar numa ‘estrada real, de horizonte dilatado, por onde a histéria se desenrola ampla épica, iresistivel, levando de roldio ‘qualquer estranheza ou resistencia. Daf em diante, os mistérios do principio elucidam- -se progressivamente, as de rotas convergentes, episddios que pareciam desloca- dos se reatam a0 troneo da narragio, alusdes obscuras| ganham cariter de antecipagio e pressigio. Descobrir ‘ais entrelagamentos é um dos altos prazeres da assinali-los, ainda que parcialmente, talvez ndo seja pres- tar bom servigo ao autor. ‘Mas limitarmo-nos a registrar apenas © nosso en- ‘cantamento ou assinalar a intensidade da nossa emogio seria atitude ainda mais inadequada. “O dever de quem pretende falar a0 paiblico nas obras alheias é fazer todo ‘0 esforgo necessério para entendé-las ou pelo menos de- terminar as condigdes ¢ os constrangimentos que o autor se impés e que se Ihe impuseram” — escreve Paul Valéry, acrescentando esta observagio, que dirfamos concernir Jote Gurwantes Rove 20 specimens 208 fos de Guimardes Row: “Achar- ‘win entio que scares, a simplicdade ex abundincia rev gerlmente do wo ds ideas eds formes ele trae fnllre; ole ve reconbece nel Ss veacs timlelecido, Mas os opostosdesas qualidade sigicam is vez images dew pr alee” ‘A sipnligaa do teow scar rocesramente or diverce recon do romance, onde encontramos © turrador empenhodo em denis © trmo grnde eit, {alam de conti geogrico bem nid, para ee tem ainda otros cones vag esmplo. Eases defn fee vio doesitamentemesoligien a0 sbi: nls {ture ni mais de une vex do tom reprodv, © © tarradr cede palva 2 romancisa, Pas quem nee tuceue viveue com elev Kenic, o seed" sabe tendo toda aconfeneturaicet mete do mundo ve tel cosmid de que sb uma parte fnfira os € dado Coneer,peisment aque se avista ao long das ¥e- rea nes cana de penetra connie, Asin ‘inal —:—entreos dois clemenos do to teria valor Serato enabelecendo x opoigo entre aimensa reat ldadeinabragtvel suas mines parcels aces, 0, oui para oreo intel contest ‘forma do romance —uma Gn to comeg, feta peo frend Risbald, ex agen, 4 om forsteto — nto € casual, mas ext orpunicamente ligada ao proprio sssunto. Uma hstiria des 36 pode ser coca plo protagonists ccm primeira peso. A indeciso do comego, em que lembrangas fagmentadas narrativa, do fim se suceddem a sabor das associagbes, correspond & hesi- tacio do narrador, que 86 depde as reservas depois de ver fixo 0 interesse do ouvinte, o qual no somente desiste da intengio de prosseguir viagem no mesmo dia, mas anota a relago em sua caderneta ‘Contudo, 0 ouvinte permanece invsivel do princt pio ao fim, e sua presenca se percebe apenas pelas aps trofes do narrador. Este recurso fer confere & narragio ‘estilo oral e dramaticidade direra, e permite a Riobaldo cesmiugar com toda a meticulosidade suas lembrangas Espantado com a prépria sinceridade, tenta este justfic-Ia muitas vezes, essa tentativas consticuer ou- ‘to Jeiemoriv, to importante como as definigaes de “ser- Wo”. Segundo ele mesmo afirma, narra a vida para no fim consultar 0 interlocutor: “Quero armar 0 ponto dum. fato, para depois the pedir um conselho.” Esse conselho,, porém, nio chegs a ser pedido, Riobaldo pretende tam- bém relatar 6 passado para que o forasteiro o explique: “Conto a0 senhor & 0 que eu seie que 0 senhor nio sabe; ‘mas principal quero contar 60 que eu nao sei se se, e que pode ser que o senhor sibs.” Mas nio se dé ao estranho ‘oportunidade para tal explicaglo,e, aiés, Riobaldo sabe «que “a vida nlo é entendivel”. Afinal de contas, faz con- fissio para si mesmo, querendo “decifrar as coisas que io importantes" e preservi-las do esquecimento. “Nao gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, € «quase igual a perder dinheiro.” Mas a vontade de lembrar, ‘em Riobaldo, é mais que simples saudade de velho. De~ sejando reconstiuiro seu pasado, ele esté movido pelo anelo confuso de reafrmars unidade do seu eu, de sentir que eftivamente desempentou sigur papel ativo nas vi clssieades da prépria existénca ‘Sim, porque precisamente no tocante a isso & que £ mtormentado por continuasduvidas. No cerne mesmo de sua vida hi um segredo aterrador a que faz alusbes Incessntes, masque nfo se atreve a enfrentar de vez edo ‘qual se acerca a meias palavas, riando no esprto do-ou- ‘inte wa expectativaansios, Suascontinuasindagagdies sobre a exstencia do Diabo, a natureza o poder dele, preparam-nos para algum mistério espantoso. Quando evelag,embora pressentia, no deixa de ‘ele © ands, Tormam-se entio compreen- sfveis tadus as especulagies metafsicas do ex-jagungo, 2 primeira vista descabidas: se na solidao de sua velhice ele refer todas a suposiges dos teslogos, todas as teorias da lemonologia — chegando a intui no conceito do Diabo mera coneretizagio de um aspecto da alma humana — {fi por watar de assunto seu funiia,intimamente pes- soal, O mito ativico do pacto com 0 Deménio & revivido rele sob forma convincente, como experiéncia possvel dentro da nossa realidade, orolitio do pacto sio 0s acontecimentos inespe- rados e fivoriveis que lhe corroboram a validade no es- pirito de Riobaldo. Chega a sentinse onipotente, dono do universo,¢ entio entra avacilar a dar passos em falso, a nio saber o que fazer © a sentir uma terrivel insatisf- ‘sio. © poder chegs num momento em que de nada serve: sina ver 3

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