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SANTOS NETO, Arnaldo Bastos; SANTOS, Leila Borges Dias.

A Cena Forense nas Pinturas de Honoré


Daumier.

A CENA FORENSE NAS PINTURAS DE HONORÉ DAUMIER

FORENSIC SCENE IN HONORÉ DAUMIER’S PAINTINGS

Arnaldo Bastos Santos Neto1


Leila Borges Dias Santos2

Resumo: O presente artigo busca refletir acerca de uma das obras mais expressivas sobre o cotidiano
dos tribunais, as litogravuras de Honoré Daumier, artista francês do século XIX influenciado em
seus conteúdos pelo naturalismo e o realismo. Nesta reflexão buscaremos estabelecer um diálogo 57
com algumas passagens das obras de Gustav Radbruch, jurista alemão de formação humanística, e
Piero Calamandrei, o célebre jurista italiano que refletiu detidamente sobre a vida nos tribunais.
Palavras-chave: Honoré Daumier; Cena Forense; Teoria do Direito; Piero Calamandrei.

Abstract: This article aims to reflect on one of the most significant works on the daily lives of courts,
lithographs by Honoré Daumier, french artist of the nineteenth century influenced in their content
by naturalism and realism. This reflection will seek to establish a dialogue with some passages
from the works of Gustav Radbruch, German jurist of humanistic, and Piero Calamandrei, the
celebrated Italian jurist who reflected deeply about life in the courts.
Keywords: Honoré Daumier; Forensic Scene; Theory of Law; Piero Calamandrei.

Sumário: Introdução; 1. O direito como dramaturgia; 2. As escadarias da justiça; 3. Porque dormem


os juízes?; 4. Pessimismo antropológico; Considerações Finais; Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

O direito como experiência humana possui uma dimensão estética, capturada de modo
genial por autores como Honoré Daumier (1808-1879). Mestre das litogravuras, é considerado
um dos príncipes das caricaturas na França do século XIX. Nascido em 1808, em Marselha,
Daumier estudou na Escola de Belas Artes e na Academia Boudin. Inquieto, não aderiu ao
estilo clássico e trabalhou em uma revista de crítica social e política chamada La Caricature.
Suas litogravuras tratam de diversos aspectos da vida social, postulando suas convicções
políticas, acusando os desmandos que atentavam contra seus ideais republicanos, destacando
os desenganos e misérias impostos sobre uma população que se sentia ludibriada pelos
encaminhamentos da Revolução Francesa.
Daumier foi contemporâneo de acontecimentos os quais eternizou em seu trabalho,
experiência que configurou em maior realismo, dramaticidade e indignação ao cenário de
violenta repressão política contra a população. Em seu tempo foi também alcunhado de

1
Doutor em Direito pela UNISINOS, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.
2
Doutora em Sociologia para UnB, Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás.

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.


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Daumier.

“Michelangelo da caricatura”. Tendo trabalhado como auxiliar de um funcionário da justiça e,


ainda no teatro, consolidou seus trabalhos como um dos pioneiros do naturalismo, do
expressionismo e do realismo.

Imagem 1: Honoré Daumier

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Por conta de suas caricaturas ferinas, especialmente uma que ridicularizava o Rei Luis
Felipe, amargou seis meses de prisão, em 1831 3. Trata-se da obra Gargântua, na qual retratou
Luís Filipe como Gargântua (aquele que come em excesso, o glutão), devorando toda a
riqueza produzida pela sociedade francesa.
Outro alvo de suas críticas era a corrupção do universo jurídico e burocrático francês.
O convívio cotidiano com as lides forenses o fez um eterno cético quanto ao que realmente
acontecia naqueles recintos cheios de oratória e formalidade. Como observou Gustav
Radbruch a respeito: “se sabe incluso que nunca los labios del viejo maestro se plegaban en
un rictus de mayor desprecio, que cuando sus oídos escuchaban las palavras tribunal y
Derecho”4.
Charles Baudelaire homenageou Daumier em “As flores do mal”, onde dedica ao
litogravurista, pintor, caricaturista e ilustrador, o poema intitulado Versos para o retrato de
Honoré Daumier:

3
Luiz Felipe I, rei da França no período compreendido entre a Revolução Francesa e a proclamação da Segunda
República, não era particularmente intolerante com a imprensa da época. Porém, o retrato que Daumier lhe fez,
pondo-o como um gigante obeso e insaciável, motivou uma punição severa: foram seis meses de prisão, o que
em nada abalou o espírito livre e mordaz de Daumier.
4
RADBRUCH, Gustav. Caricaturas de La Justicia: litografias de H. Daumier. Buenos Aires – Montevideo:
BdeF, 2008, p. 115.

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Daumier.

Este de quem te esboço o vulto


E que, com sua arte ferina,
Rir de nós mesmos nos ensina,
É um sábio ao qual se deve o culto.
Ele é um satírico, um bufão,
Mas a energia com a qual
Nos pinta as sequelas do Mal
Prova-lhe o imenso coração5.

No presente texto, interessa-nos refletir sobre uma parte destacada do seu trabalho que
foram as caricaturas em que retratou a cena forense de sua época. Entendemos que a
compreensão do direito pode ocorrer de modo muito instigante por meio da arte. A atualidade 59

das litogravuras de Daumier reside propriamente na sua capacidade de despertar uma reflexão
crítica sobre como o direito é exercido na nossa sociedade. Para tanto, iremos refletir
livremente sobre alguns temas fundamentais da sua obra.

1. O DIREITO COMO DRAMATURGIA

Em várias de suas litogravuras, Daumier retrata a cena forense naquilo que a mesma
possui de espetáculo, de representação, com seus gestos grandiloquentes, expressividades
faciais e retóricas altissonantes. Não só os advogados representam um papel, também os réus,
de olhar baixo e sempre compungido, se encontram cônscios da importância de tal encenação.
O que interessava era o ser humano com o qual se deparava no dia a dia, sem idealizações
artísticas e/ou estéticas, daí representá-lo tal qual ele se mostra diante do sofrimento,
vicissitudes e contingências.
Numa das suas obras, um advogado, olhando ao juiz, aponta para uma senhora,
sentada, logo atrás de si. Vemos na expressão do rosto da presumida ré um olhar esquivo,
duvidoso e levemente irônico, que desafia nossa imaginação. Será culpada ou inocente? Atrás
do quadro, vemos uma plateia atenta e silenciosa, contemplando com evidente interesse o
espetáculo forense que se desenrola à sua frente.

5
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012, p. 810.

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Imagem 2: Avocat Plaidant

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Em várias outras litogravuras, temos advogados em ação, com suas vestes escuras,
esvoaçantes e seus gestos grandiloquentes. Um causídico, com rosto desfigurado pelo seu
esforço retórico, aponta o dedo para seu colega e adversário que, no entanto, assiste a toda a
encenação, impassível, demonstrando absoluto autocontrole, sabendo, que logo em seguida,
pelo princípio do contraditório, será sua vez de retrucar e tentará fazer a pó as alegações de
seu adversário. O ambiente é sóbrio, a plateia, envolta em mutismo, contempla o espetáculo e
aguarda o veredicto. A oratória dos advogados é acompanhada por uma multidão de gestos e
expressões, como anotou Piero Calamandrei – o notável advogado italiano que nos legou
observações perspicazes sobre a vida forense –, porque não é possível “idealizar o que seria
Cícero declamando suas catilinárias confortavelmente sentado em uma mesa”6.
Imagem 3: Une cause célèbre

Disponível em: http://www.daumier-register.org/werkview.php?key=8063

6
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Traduzido por Ivo de Paula. São Paulo:
Pillares, 2013, p. 72.

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As vestes talares usadas nos tribunais possuem sua origem remota nas roupas
sacerdotais da antiga Roma. Trata-se de um símbolo do poder conferido a quem a enverga e
acentua uma distinção social. Os advogados e juízes as trajam com orgulho de pertencimento
profissional. Calamandrei aponta a importância das togas tanto para advogados quando para
os juízes, afirmando que as mesmas representam um fator de igualdade, pois todos estão
vestidos do mesmo modo:

61
Gosto da toga não pelas mangas largas que dão solenidade aos gestos, mas por sua
uniformidade estilizada. Corrige de modo simbólico todas as intemperanças pessoais
e nivela as desigualdades individuais dos homens sob o uniforme escuro do cargo. A
toga, igual para todos, reduz aquele que a envergou a ser na defesa do direito “um
advogado”. Da mesma forma, quem se senta no alto do tribunal é “um juiz”, sem
acréscimo de nomes e títulos7.

A cena se repete em outra litogravura, onde um advogado, apontando o dedo acusador


na direção do outro causídico, exercita sua arte retórica, consistente não somente em palavras,
mas também em toda uma gestualidade que envolve o seu eu físico. Também impassível, o
outro advogado devolve o olhar, porém com expressão carrancuda e sombria, que mesmo em
silêncio, fala, deixando claro seu aborrecimento e sua contrariedade com o que está sendo
dito. Ao fundo, com expressões um tanto desbotadas, vemos a plateia acompanhando o que é
dito.
Geralmente anônima, a plateia raramente ganha contornos faciais muito claros,
certamente a destacar o seu papel de meros espectadores. O caso muda de figura quando os
expectadores são advogados, acompanhando o trabalho de seus colegas enquanto aguardam o
momento de suas audiências. Vemo-los atentos e de olhar inquisitivo, analisando
meticulosamente o desempenho profissional de seus pares.

7
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, p. 42.

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Imagem 4: Une péroraison à la Démosthène.

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Uma consideração refletida dessas obras não deixa de nos surpreender com a maneira
como Daumier observa seus personagens. O olhar naturalista e realista é implacável. Porém,
certa admiração pela arte representativa desses profissionais do foro não lhe escapava. Uma
admiração que transparece também nas reflexões de Calamandrei:

Se tiveres a paciência de assistir a toda uma audiência, que poderá durar três ou
quatro horas, verás discutir, suponhamos, oito causas. (...) Sairás da audiência cheio
de melancolia, mas também cheio de admiração por dois gêneros de heroísmo: o dos
advogados, que conseguem dizer em dez minutos, clara e corretamente, sem
balbuciar, apesar de sua precipitação e da falta de tempo, tudo quanto tem para
dizer; e dos juízes, que durante uma tarde inteira sofrem, impassíveis e desde há
anos, o suplício terrível de ouvir vinte e quatro discursos em três horas8.

O advogado, ocupando o centro da cena, é desnudado em suas misérias, mas também


exaltado pela grandeza da sua arte. Tendo também trabalhado nos bastidores do teatro,
captura como ninguém o direito em toda a sua teatralidade. O advogado, agindo para
influenciar as decisões, argumenta, vitupera, ironiza, analisa, rebate, clama pela absolvição,
tentando falar tanto pela razão quanto pela emoção.
Em outros momentos, como numa gravura traduzida para o português como “O
advogado fracassado”, retrata de modo satírico um causídico infeliz e incapaz de exercer seu
ofício. Contemplando o quadro, nada sabemos sobre que questão está em jogo, qual a lide que
demanda uma prestação jurisdicional. Mas tememos pela sorte do representado ao vermos

8
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, p. 62.

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como Daumier apresenta aquele que alcunhou de “advogado”: um homenzinho inseguro abre
os braços pateticamente, estendendo suas mãos para o alto, num gestual que nos lembra mais
uma rendição que um ataque vitorioso. Seu rosto, escondido entre as mangas esvoaçantes de
suas vestes forenses, denota desamparo. Ou seja, um advogado incapaz de triunfar nas suas
lides.

Imagem 5: Avocat levant les bras

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2. AS ESCADARIAS DA JUSTIÇA

Em várias de suas obras, encontramos uma cena clássica: o momento que impressiona
Daumier e o leva a compor vários de seus quadros é o instante em que os advogados sobem
ou descem as escadarias do Palais de Justice. Envergando suas vestes escuras e seu barrete, a
descida das escadarias é feita de modo solene, como que a lembrar, a todo o momento, o
princípio consagrado em todos os povos civilizados de que os advogados são essenciais à
administração da Justiça e que seu ofício de promover a realização da mesma é encarado de
modo sacerdotal.
Descendo solenemente as escadarias do Palácio de Justiça, vemos os advogados de
expressão compenetrada, como peito enfunado, o nariz levemente erguido e os olhos postos
na lonjura do horizonte, personagens cientes da grandeza com que viam o seu ofício de
proteção à liberdade, aos direitos e ao patrimônio de sua clientela. Todos descem as
escadarias envergando o olhar auto satisfeito de quem acredita ter cumprido sua missão.

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Daumier.

Imagem 6: Descente du grand escalier du Palais de Justice

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No olhar cético e irônico de Daumier sobre tal cena, vemos igualmente a figura de
outros advogados, que dirigem aos seus colegas uma olhadela esquiva, por sobre os ombros,
pondo em xeque a representação que se desenrola. Os constrangimentos postos por olhares
tão rigorosos somente reforçam a compenetração necessária de seus atores. A grande
escadaria do Palácio de Justiça aponta como uma metáfora arquitetônica de uma ascensão, de
um lugar elevado, acima da baixeza das ruas, como o lugar da Justiça, assinalada com inicial
em maiúscula. A própria escadaria é palco da solenidade e da imponência institucional da
Justiça como um dos grandes poderes do Estado.
Radbruch escreveu a respeito desse cenário retratado pelo grande gravurista:

Existen escaleras regias, por las que sólo es dado moverse con régio porte, y trajes
ondulantes, que envuelven en un halo real a quienes visten, confiriéndoles la
majestuosa dignidad de un rey. También nuestro joven aprendiz de ordenanza
observó a vezes, complacido, a un viejo procurador de facciones probas y sagazes y,
tras él, a un joven abogado, que llegará un día a parecerse a él, bajar, elegantemente
ataviados, la escalera del Palais, en un plano vertical cortado a plomo contra el
horizontal de los anchos peldaños; situado en segundo plano, un abogado que trepa
presuroso hacia arriba, no hace sino realzar, en solemnidad y contundencia, la
majestuosidad admirable de esas perspectivas vertical y horizontal9.

Daumier ilustra os advogados segurando cuidadosamente suas pastas e processos,


como guardiões de documentos preciosos, que de maneira alguma podem deixar escapar. Há
uma tensão evidente em tais representações, revelando que a encenação da justiça, com seus

9
RADBRUCH, Gustav. Caricaturas de La Justicia, p. 116-117.

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embates e decisões, não se encontra circunscrita à sala de audiências, mas que se estende para
fora.
Imagem 7: Grand escalier du Palais de justice, Vue de faces.

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Vez ou outra, surpreendemos o caricaturista francês capturando de modo mais afetivo


os seus personagens, como numa gravura, onde dois causídicos, relaxados e descontraídos,
conversam num intervalo entre as audiências, um deles demonstrando com uma das mãos o
tamanho de algo. Imaginando livremente sobre o que conversam, o que evidentemente não
está no quadro, podemos especular que um deles fala sobre a altura em que já se encontra um
de seus filhos. Certamente conversam sobre amenidades, pois a expressão é de descontração e
tranquilidade, um intervalo entre as batalhas travadas no recinto das audiências.

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Imagem 8: Les avocats et les plaideurs

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Fora da cena forense, mesmo assim, como ocorre em qualquer profissão, os advogados
podem também continuar tratando de temas profissionais, comentando suas vicissitudes no
tribunal, como lembra Radbruch relembrando um diálogo fictício entre dois causídicos
retratados por Daumier: “Dos letrados departen, risueños, mientras se ponen sus togas: ‘Hoy
lucharé contra usted con los mismos argumentos que Vd. empleó en mi contra hace catorce
días’. ‘Y lo contestaré con los mismos reparos que Vd. me opuso entonces’”10.

3. PORQUE DORMEM OS JUÍZES?

Numa de suas gravuras mais célebres, vemos uma bancada onde três juízes dormitam
em plena audiência. Um deles, com as mãos entrelaçadas por sobre a barriga, encontra-se a
sono solto e sua boca entreaberta deixa evidente que ronca. Indiferente ao sono dos juízes e
talvez até mesmo motivado pelo desafio de acordá-los, o advogado com a mão direita
estendida na direção dos magistrados não interrompe sua fala.

10
RADBRUCH, Gustav. Caricaturas de La Justicia, p. 133 e 135.

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Daumier.

Imagem 9: Les cens de Justice.

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Disponível em: http://www.daumier-register.org/detail_popup.php?img=DR1347_1680&dr=1347&lingua=de

Certamente porque este é o tempo processual que lhe foi destinado para suas alegações
e o não exercício da palavra em tal momento processualmente assinalado, acarretará a fatal
preclusão. A cena nos incomoda e nos leva a questionar o sono dos juízes. A sátira aos juízes
nos lembra a observação de Calamandrei:

Como todos podemos notar, examinando a celebra série de desenhos que Daumier
consagrou à gente da justiça, nunca se fazem caricaturas de advogados sem envolver
na sátira os juízes. Os advogados e os juízes desempenham no mecanismo da justiça
o papel das cores complementares na pintura. Opostas, é pela aproximação que
melhor se fazem valer 11.

Uma visão superficial do quadro pode nos conduzir a um juízo de desapreço pelos
magistrados retratados, vistos como preguiçosos e indiferentes com relação ao terrível drama
humano que está em jogo. Para escaparmos de uma apreensão rasteira e algo moralista sobre a
sonolência dos magistrados, passemos para as observações de Calamandrei, que também se
interroga sobre essa grave questão da vida judicial: porque dormem os juízes? Encontrar uma
resposta satisfatória para tal problema constitui um desafio que deveria motivar seminários,
congressos e conferências, bem como estudos monográficos, dissertações e teses acadêmicas,
todas buscando uma resposta para a hipersonia – a sonolência excessiva dos magistrados.

11
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, p. 14-15.

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Daumier.

No texto de Calamandrei, vemo-lo retomar uma distinção que se tornaria clássica na


Teoria do Direito no século XX, qual seja, entre o caráter estático e o dinâmico dentro do
processo judicial. Para dirimir um conflito que se expressa sobre a forma de uma pretensão
resistida, configurando o que os juristas tecnicamente denominam como lide, designamos
dentro da intrincada trama de competências do ordenamento jurídico aquelas autoridades que
devem decidir aplicando e criando normas para a resolução da disputa no caso concreto. Este
terceiro que se coloca acima das partes, o juiz, numa visão clássica, deve manter-se
equidistante, como forma de assegurar sua independência e imparcialidade. Deve agir
68
somente quando provocado, deve ater-se aos autos, imaginando até, por força de notável
ficção, aquilo que nos autos não se encontra – e no mundo também não.
A diferença de papéis reflete-se também nas qualidades exigidas para o bom exercício
da atividade profissional:

No juiz, a inteligência não conta. Basta que seja normal e que ele possa chegar a
compreender, encarnação do homem médio, quod omnes intelligunt. O que
principalmente conta é a superioridade moral, que deve ser tamanha a ponto de
perdoar o advogado por ser mais inteligente do que ele. O advogado que se queixa
de não ser compreendido pelo juiz não se queixa do juiz, mas de si mesmo. O juiz
não tem o dever de compreender: é o advogado quem tem a obrigação de se fazer
compreender. Dos dois, o que está sentado à espera é o juiz; o que está de pé, o que
deve mexer-se e aproximar-se, mesmo espiritualmente, é o advogado12.

Tal posição, a mais adequada para um julgador, impõe, todavia, um preço a ser pago
pela narcolepsia dos magistrados. Passemos a palavra a Calamandrei:

A inércia é, para o juiz, garantia de equilíbrio, isto é, de imparcialidade. Agir


significaria tomar partido. Cabe ao advogado, que não receia parecer parcial, ser o
órgão propulsor do processo, tomar todas as iniciativas, fazer todas as diligências,
quebrar todas as lanças, breve: agir, não apenas no sentido processual, mas no
sentido humano. Essa diferença de funções, que se nota no decorrer do processo
entre juiz e advogado – o primeiro: momento estático, e o segundo: momento
dinâmico da justiça -, persiste nas manifestações exteriores e nos sinais visíveis das
audiências: o juiz está sentado, o advogado de pé; o juiz apoia a cabeça nas mãos,
imóvel e recolhido, o advogado – de braços estendidos como tentáculos – é
agressivo e nunca está quieto. A nítida oposição entre os dois tipos nota-se também
nos seus rostos, que refletem a deformação das suas respectivas qualidades. O
advogado, à força de agir, pode tornar-se um agitado, que é preciso colocar para fora
da sala como perturbador; o juiz, à força de concentração, pode simplesmente
tornar-se um dorminhoco13.

No espetáculo forense que Daumier retrata de forma tão expressiva, o papel ativo, o
elemento dinâmico da ação processual, recai sobre o advogado, sempre ameaçado pelo rigor

12
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, p. 54-55.
13
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, p. 46-47.

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.


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da máxima latina de que o direito não assiste aos que dormem. O advogado não pode dormir,
sobre seus ombros repousa toda a responsabilidade do sucesso ou fracasso do patrocínio dos
interesses de seu cliente. Na sala de audiências, nas gravuras, os juízes não falam, escutam.
Por horas a fio, os magistrados devem permanecer inertes, atentos ou não aos argumentos
esgrimidos pelos causídicos. Nesse sentido, Calamandrei anota:

Eu creio que muitas vezes o sono dos juízes é premeditado. Adormecem de


propósito, para não ouvirem o que diz o advogado e, não obstante, poderem segundo
sua consciência, dar razão ao seu cliente. O sono é, frequentemente, um hábil
expediente do juiz para defender uma ou outra das partes contra os erros dos seus 69
advogados. (...) Gosto também (mas talvez um pouco menos) do juiz que adormece
enquanto falo. O sono é o meio mais discreto que o juiz pode empregar para se
retirar na ponta dos pés, sem fazer barulho. Deixa-me à vontade, para discorrer
sozinho, comigo mesmo, quando meu discurso já não interessa 14.

4. PESSIMISMO ANTROPOLÓGICO

Daumier oscilava entre o naturalismo e o realismo em suas obras. Curiosamente, tais


correntes artísticas tiveram um grande alento no século XIX, época marcada por um grande
otimismo histórico, época das luzes, das grandes invenções, do despertar da ciência moderna,
da crença inabalável no progresso humano. Mas como todo naturalista e realista, Daumier não
poderia deixar de evocar em suas obras certo pessimismo antropológico, ou seja, uma visão
desencantada e sombria a respeito das motivações humanas. O naturalismo é o pessimismo
completo, a constatação de que o homem não pode superar sua animalidade. Por outro lado, o
realismo captura o eterno descompasso entre a capacidade humana de progredir em seus
conhecimentos, mas de pouco evoluir moralmente. Longe do que uma impressão superficial
possa transparecer, o pessimismo antropológico não configura em uma rendição diante dos
aspectos mais rasteiros da experiência humana, mas tão somente um alerta de que é mais
realista dar-se conta da existência das sombras ao invés de imaginar-se sempre habitando um
ilusório jardim florido.
Em uma gravura contundente, vemos uma mulher enlutada deixando o tribunal,
acompanhada de seu filho e do advogado, que ostenta uma absoluta indiferença para com o
choro da pobre mulher. O contraste entre o sofrimento e a indiferença tem como resultado a
criança despida de infância que puxa a mãe pelas mãos. A criança, posta como um adulto em
miniatura, cumpre o seu mister de apoiar sua mãe com uma atitude de aceitação da dureza e
injustiça primitiva da vida. A indiferença do advogado, hipostasiada numa atitude de soberba,

14
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, p. 77-78.

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.


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se destaca. De forma benevolente, podemos vê-la como a atitude do combatente que,


derrotado, tenta deixar o campo de batalha com uma expressão de dignidade, mas captamos
sempre a imagem da indiferença que nos choca. Toda a hostilidade primitiva da vida, das
injustiças que sempre sofremos, aparece nesta gravura, e nada podemos fazer pela mulher que
esconde o rosto coberto de lágrimas.

Imagem 10: L'Avocat et la veuve.

70

Disponível em: http://www.daumier-register.org/werkview.php?key=12104

Acerca da litogravura acima, Radbruch comentou:

Un abogado y, junto a él, una mujer sollozando, con su hijo de la mano. Es una
imagen de composición soberbia: encorvada y llevando la delantera, va la llorosa
mujer con el niño; inclinándose hacia atrás, el abogado retarda el paso, con el deseo
inconsciente de librarse de su incómoda compañera. ¿Qué querrá dar a entender esa
arrogancia de sabiduría nasal en el rostro del abogado? ‘Hay – así pudiera hablar
éste – pleitos sin remédio, lo mismo que enfermedades incurables’. Mas la
enfermedad es cosa de la Providencia; la ley y su imperio, obra humana. ¿Cómo,
pues, un hombre que nos es jurista tendría que crer que la ley es asunto
irremediable?15.

Em outra, vemos um cliente insatisfeito, reclamando ostensivamente e apontando um


dedo acusador para o advogado, que também, indiferente, se afasta, olhando por sobre os
ombros e tranquilamente ajeita sua gravata. Praticante de uma profissão angustiante, pois,

15
RADBRUCH, Gustav. Caricaturas de La Justicia, p. 155 e 157.

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afinal, o resultado de seu trabalho não depende de si, mas de um magistrado, o advogado
desenvolve uma couraça que o imuniza contra as frustrações advindas dos resultados dos
feitos que patrocina, o que resulta na sua estudada indiferença diante da má sorte de seus
clientes. O advogado, mesmo o melhor e mais talentoso, sabe que perder é da vida forense;
sabe a que a vitória de hoje poderá ser apenas a antessala da derrota de amanhã. Diante disto,
autoimuniza-se contra as frustrações inevitáveis que sofrerá. Não lamentará o trabalho e o
tempo perdido, nem irá se abater com as queixas dos clientes.

Imagem 11: Un plaideur peu satisfait. 71

Disponível em: http://www.daumier-register.org/werkview.php?key=1362

Em outra gravura, esta mais cáustica e acusatória que as demais, vemos um advogado
correndo apressado, enquanto segura com as duas mãos seu precioso processo, atropelando
uma criança já estendida no chão. Surpreendida pelo avanço do advogado, enquanto brincava
com bolinhas de um jogo infantil, a criança jaz no chão. No fundo da gravura vemos
cavalheiros, de fraque e cartola, homens que ocupam boa posição na sociedade,
absolutamente indiferentes, conversam tranquilamente. Daumier cria uma poderosa metáfora
acerca da disposição dos advogados em passar por cima de tudo para alcançar a vitória
processual.

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.


SANTOS NETO, Arnaldo Bastos; SANTOS, Leila Borges Dias. A Cena Forense nas Pinturas de Honoré
Daumier.

Imagem 12: Mr. Tout affaires, avocat sans causes, se donne l’air empressé, et renverse, chaque jour, dans la
salle des pas perdus, une douzaine de moutards, écrase cinq ou six carlins, et espère grace à cette gymnastique,
faire croire à ses nombreux clients.

72

Disponível em: http://www.daumier-register.org/werkview.php?key=758

Do mesmo modo, numa gravura terrível pela sua violenta carga expressiva, vemos um
moribundo agonizando, deitado a uma cama, enquanto um mais que roliço cavalheiro lhe
toma o pulso, como que para verificar a passagem ou não deste senhor a outro mundo,
enquanto conversa com um advogado, chamado à cena, certamente, para cuidar das
consequências jurídicas de tal falecimento. O olhar do advogado, sinistro, nos remete ao de
uma ave de rapina. O moribundo, amarrado à cama, é prisioneiro, está sob o jugo de uma
corrente que lhe ata a mão esquerda. Sobre o que conversam? Certamente não estão ali para
expressar piedade para com quem está prestes a deixar este mundo. A dureza da cena é
realçada pelo preto e branco do quadro.

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.


SANTOS NETO, Arnaldo Bastos; SANTOS, Leila Borges Dias. A Cena Forense nas Pinturas de Honoré
Daumier.

Imagem 13: Celui-là, on peut le mettre en liberté! il n'est plus dangereux.

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Disponível em: http://www.daumier-register.org/werkview.php?key=85

Finalmente, mas de maneira mais irônica e até mesmo com certa comicidade, vemos
um grupo de cavalheiros que se reúnem e se abraçam fraternalmente. Entre eles, um
advogado. O cômico da cena reside no fato de que enquanto se abraçam, uns batem a carteira
dos outros, esvaziando furtivamente o bolso alheio. A cobiça, este poderoso motor humano,
está presente e domina toda a cena.

Imagem 14: Nous sommes tous d'honnètes gens, embrassons-nous, et que ça finisse.

Disponível em: http://www.daumier-register.org/werkview.php?key=95

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.


SANTOS NETO, Arnaldo Bastos; SANTOS, Leila Borges Dias. A Cena Forense nas Pinturas de Honoré
Daumier.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Poucas vezes na história da arte, um grande pintor retratou de maneira tão expressiva a
cena forense. A estética dos seus quadros nos proporciona uma visão nada edulcorada da
Justiça. Daumier é considerado precursor do expressionismo, devido aos traços de seu estilo,
também carregado de pinceladas realistas e naturalistas, onde relatava o cotidiano e suas
mazelas, compondo cenas com a máxima fidelidade possível com relação aos acontecimentos
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que testemunhava, deixando uma marca pessoal que o tornou inconfundível.
Tivéssemos que relacionar Daumier com as definições correntes da Teoria do Direito
acerca do seu objeto e forçosamente sua afinidade, seria com as definições não apologéticas e
realistas sobre o Direito e seus personagens, juízes, advogados, promotores, réus etc. As
visões não apologéticas procuram mostrar o direito sem as mistificações legitimadoras
construídas em torno de uma visão idealizada da Justiça. O Direito é capturado em sua
dimensão humana, escravizado pelas mesmas paixões negativas ou positivas que caracterizam
outros aspectos da vida social.
As cenas retratadas por Daumier nos sugerem que a defesa dos interesses dos clientes
ou a realização da Justiça não são o foco principal do universo jurídico, mas o mise em scéne
de sua formalização e a performance de seus interlocutores, no caso, advogados e juízes. Mas
isto diz apenas metade sobre seu trabalho, que vai além da mera denúncia social. O drama
humano das disputas, das vaidades, as sutilezas, teatralizações, formalidades e vestes, e tudo o
mais que compõe a cena dos tribunais não implicam necessariamente numa negação da
justiça. Mostra, todavia, o que a Justiça tem de propriamente humana, justamente por se
mostrar falível, incompleta, precária, contingente, pois se ampara em algo igualmente humano
e falível, o Direito.
A distância simbólica entre a Justiça e o Direito não pode ser eliminada e a Justiça
permanece, como pretendeu Derrida, como o fantasma que desafia o Direito, uma sombra que
diz a todo momento que não se fez justiça ou que lança a pergunta eterna: o que se fez foi
justiça? Enquanto nos faz rir dos poderosos, Daumier nos oferece o seu olhar de observador
realista, que pergunta e responde ao mesmo tempo: é esta a Justiça? Sim, é essa a Justiça. O
que isto nos traz de perturbador é o que faz a grandeza de sua obra.

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.


SANTOS NETO, Arnaldo Bastos; SANTOS, Leila Borges Dias. A Cena Forense nas Pinturas de Honoré
Daumier.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas Ivan Junqueira. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Traduzido por Ivo de
Paula. São Paulo: Pillares, 2013.
DAUMIER, Honoré. Caricaturas. Porto Alegre: Editora Paraula, 1995.
RADBRUCH, Gustav. Caricaturas de La Justicia: litografias de H. Daumier. Buenos Aires –
Montevideo: BdeF, 2008.
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Recebido em: 22 de setembro de 2016.
Aceito em: 23 de outubro de 2016.

Campo Jurídico, vol. 4, n.2, pp. 57-75, outubro de 2016.

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