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o autor.

JUAREZ ESTEV AM
XA VIER TA VARES, Procurador Regional
da Rl:púhlíca. além de mestre e doutor em
Direito. é consagrado professor univer-
sitário. kcional1lio. como titular da cadeira
de DireHo Penal. no curso de mestrado e
limJtOfado em Direito da Universidade
GaJ11d Filho e no curso de graduação da Es-
cola de Ciências Jurídicas lla Universidade
do Ri o ele Janeiro. Foi pesquisador cil:ntífi-
li) no Institulo Max-Planck para Direito Pe-
na] ESlrangeiro e Internacional (Alemanha)
c pro rcssor convidacio da cadeira de Direito
Pena] de W.Hassemer na Universidade de
FrankfurL Integra ainda o quadro docente
da Esco]a Superior ele Advocacia da Ordem
dl)s Alhogmlos do Brasil. Seção do RIO lir.:
.I;lneiro e é proCessm convidado do Curso
dc P()s-Graduação ele Direito Penal da Uni-
vnsielade de Buenos Aires. Faz parte. ade-
111'11S. conw memhro detivo. da Comissão
de Rcll1fm,l do C(ldigll Penal Brasileiro.

Delllrc suas ohras, cumpre-se des-


tacar Teorias do Deliro. que mereceu inclu-
SI\'C. com trallllção ao castelhano, edição
argenlina c DireifO Penol do Negligência,
LJuc trala da temia do delito culposo, além
de vários artigos em revistas especializadas.
São igualmente de sua autoria as segui11les
lr,lduçfJes Johannes Wessels - Direito Penal.
Pane Gna] (de) llriginal Alemão), MuFioz
Conde - Teoria Geral eloDelito (em colabo-
laçJ.o com Luiz Regis Prado) e Eugênio
Rau] Zaffaroni - Poder Judiciário.
JUAREZ TAVARES

AS CONTROVÉRSIAS EM TORNO DOS


CRIMES OMISSIVOS

INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE COOPERAÇÃO PENAL


1996

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,

-
INSTITUTO LATINO-AMERICANO
DE
COOPERAÇÃO PENAL
AV.GRAÇA ARANHA, 416 - S/301

RIo DE JANEIRO - RJ - 20030-0001

lH.: 262-3515 / FAX.: 533-7300

-
G
~
Conselho Editorial: C
Professores Benigno Rojas Via, Eugenio Raúl
Zaffaroni, Juarez Tavares, Joaquín Pedro da Rocha, ~
Jorge Vázquez Rossi, Luiz Regis Prado, Monica :2
Escrito em homenagem aos professores Cuiíarro, Raúl Cervini, Sergio do Rego Macedo e Técio =
portugueses Paulo de Sousa Mendes e Uns e Silva.
Teresa Serra, amigos e antigos colegas no
Instituto Max-Planck

Capa: Nana Gouvêa


Diagramação: Marcos do Nascimento Rocha
Revisor: Antonio Augusto de Carvalho Junior
1. INTRODUÇÃO
2. OS CASOS PRÁTICOS
SUMÁRIO

36
4343
23
39
20
46
27
44
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3. O INTERESSE DO TEMA _
4. A TAREFA INICIAL _
5. A TEORIA CAUSAL _
6. A CONTROVÉRSIA DA CAUSALIDADE _
7. BELING E SEUS ANTECESSORES _
8. AS CONTROVÉRSIAS NA TEORIA DA AÇÃO _
9. A TEORIA NEGA TIV A DE AÇÃO _
10. A TEORIA PERSONALISTA DE AÇÃO _
11. A VALORAÇÃO DA OMISSÃO E SEU SUBSTRA TO
SOCIAL _
12. CRIMES OMISSIVOS E COMISSIVOS _
13. AÇÃO E OMISSÃO NA ESTRUTURA NORMATIVA __
14. CRITÉRIOS DE DIFERENCIAÇÃO _
14.1. CRITÉRIO DA ENERGIA _
14.2. CRITÉRIO DA CAUSALIDADE _
14.3.CRITÉRIO DE SIEBER _
14.4. CRITÉRIO DO PONTO DE GRAVIDADE DA
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por CONDUTA _
qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, foto-
gráficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a 14.5. CRÍTICA E OpçÃO DOUTRINÁRIA _
recuperação total ou parcial bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em 15. A REABILITAÇÃO DA C AUSALIDADE _
qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também
às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais 16. A CONTROVÉRSIA DA TEORIA DA CONDIÇÃO _
é punível como crime (art.184 e parágrafos, do Código Penal, cf. leis 6.895, de
17.12.80 e 8.635, de 16.3.93) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca 17. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
e apreensão e indenizações diversas (arts. 122, 123, 124, 126, da lei 5.988, de À OMISSÃO _
14.12,73, Lei dos Direitos Autorais).
18. CAUSALIDADE E INCREMENTO DO RISCO _

Impresso no Brasil( 05/96 )


19. O CRITÉRIO AXIOLÓGICO _

ISBN .: 85-86178-01-2
6 TA VARES - CRIMES OMISSIVOS TAV ARES - CRIMES OMISSIVOS

20. CRIMES OMISSIVOS PRÓPRIOS E IMPRÓPRIOS --- 61


27.2.5. CRÍTICA -------------- 91
27.2.6. CRIMES QUALIFICADOS _ 92
20.1. A CLASSIFICAÇÃO TRIPARTIDA 61
27.2.7. CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS _ 93
20.2. A CLASSIFICAÇÃO BIPARTIDA 62
27.2.8. TENTATIVA ACABADA E INACABADA _ 94
20.3. CRITÉRIOS DE DIFERENCIAÇÃO 63
20.3.1. CRITÉRIO DO SUJEITO -------- 63 28. DOLO E ERRO
28.1. OS ELEMENTOS DO DOLO _
_ 95
95
20.3.2. CRITÉRIO DA PREVISÃO LEGAL 63
28.2. OS OBJETOS DE REFERÊNCIA DA
21. CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS 64
22. A POSIÇÃO DE GARANTIDOR 66 REPRESENTAÇÃO 96
23. ADELIMITAÇÃOLEGAL 70 28.3.,OERRODETIPO 98
23.1. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ------- 70 28.4. OERRODEMANDATO
29. A INEXIGIBILlDADE DE CONDUTA DIVERSA
98
100
23.2. O CRITÉRIO NORMATIVO . 72
24. O TIPO DOS DELITOS OMISSÍVOS ------ 74 BIBLIOGRAFIA --------------- 104
24.1. AINAÇÃO 74
24.2. A REAL POSSIBILIDADEDEATUAR 75
24.3. A SITUAÇÃO TÍPICA OMISSIV A 77
24.4. ODEVERDEIMPEDIRORESULTADO 78
25. A CLÁUSULA DA EQUIVALÊNCIA ------ 79
26. A SOLUÇÃO DOS CASOS 82
27. CONCURSO DE PESSOAS E TENTATIV A 85
27.1. CONCURSODEPESSOAS 85
27.2. TENTATIVA ------------- 89
27.2.1. CRIMES OMISSIVOS PRÓPRIOS ------ 89
27.2.2. A TEORIA FORMAL-OBJETIVA 89
27.2.3. A TEORIA MATERIAL-OBJETIVA ----- 90
27.2.4. EXEMPLO NOS CRIMES COMISSIVOS ---- 91
TA VARES - CRIMES OMISSIVOS

YJ
primeira vista. Se concluirmos que é omissivo próprio,
imediatamente poderemos ser contestados para indicar
onde a lei se refere à omissão, isto é, onde se diz que o
crime consiste em omitir-se de taxar ou de investigar a
mercadoria que entra no país. Se dissermos que se trata
de crime omissivo impróprio, devemos também escla-
recer acerca dos fundamentos do dever de garantidor.
Por outro lado, a sua identificação, como crime omis-
1. INTRODUÇÃO sivo próprio ou impróprio, não é produto de mera es-
peculação doutrinária. Conforme se trate de um ou de
1.1. O Código Penal brasileiro prevê no art. 318 outro caso, devem variar os pressupostos de sua pu-
o crime de facilitação de contrabando ou descaminho, nibilidade. Daí que essa classificação mereça um tra-
cuja ação está assim descrita: "Facilitar, com infração tamento mais específico do que poderia aparentar.
de dever funcional, a prática de contrabando ou des-
caminho".
2. OS CASOS PRÁTICOS
Embora seja um antigo delito funcional, a artáli-
se do respectivo tipo pode gerar, entretanto, alguma Além de questões dessa ordem, que são comuns
perplexidade, sugerindo, como primeira assertiva, no trato judiciário, a vida cotidiana é extremamente
aquilo que a· doutrina brasileira, desde NELSON rica de exemplos e de casos, aos quais a teoria jurídica
HUNGRIA,e sem qualquer outra preocupação, vem muitas vezes não pode dar uma resposta satisfatória,
admitindo, que o delito possa ser praticado por ação ou porque ainda insuficientemente desenvolvida. -
por omissão1. Mas esta simples afirmativa, ainda que
correta, não esgota o âmbito da investigação típica. Se Situemos alguns deles.
praticado por omissão, podemos, por exemplo, em se-
guida perguntar: trata-se de crime omissivo próprio ou CASON° 1. Um guia alpinista convida umas pes-
impróprio? Dadas as características do tipo legal, essa soas para fazerem uma excursão ao Pico da Bandeira.
é uma pergunta para a qual não encontramos resposta à Nessa excursão, alguns morrem porque o alpinista não
lhes dá a devida atenção, deixando de indicar o cami-
1 NELSON HUNGRIA - Comentários ao Código Penal, 1959, voI. IX, p. 374. nho mais adequado de subida. Uma vez iniciado o pro-
B. C.

10 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 1


~NIC.~

cedimento criminal contra o alpinista, afirma este que, meio dos andares. Imediatamente, aciona o alarma e
na realidade, não era ele um verdadeiro guia, já que desperta o vigia. Este, contudo, apesar de sua boa
não havia acordado com os demais de que os levaria vontade, não sabe como mover o elevador, nem como
sãos e salvos até o cume do morro, mas apenas havia- abrir suas portas. O profissional liberal pede-lhe, en-
os convidado para tal aventura. tão, que se comunique com o síndico pelo telefone da
portaria, o que é feito. O síndico lhe diz, porém, que
CASOif 2. Fato semelhante ocorre com a pessoa nada poderia fazer, que esperasse até o outro dia, de
que vai à praia com seu filho menor e, desejando re- manhã, quando chegasse o ascensorista. Ademais, não
frescar-se nas águas do mar, pede a alguém que está ao poderia ir até o local, porque estaria de saída para uma
lado para dar uma olhada na criança, recebendo desse festa.
um rápido assentimento. Pois bem, enquanto a mãe dá
seu mergulho, a criança corre, entra na água e morre ,
afogada, porque a pessoa que deveria vigiá-Ia resolve . 3. O INTERESSE DO TEMA
dormir ao sol.
Esses exemplos são simples e corriqueiros, mas
CASO N° 3. Dois irmãos, sem qualquer acordo sua análise sugere a prévia investigação acerca da es-
prévio, estão nadando em águas profundas. Um deles, trutura dos delitos omissivos, cujo complexo de fun-
de repente, é acometido de cãibras e começa a afogar- damentos distintos tem sido de certa forma relegado
se. O outro nada faz para ajudá-Io. pela doutrina.

CASON° 4. Em determinado edifício, observa-se O tema dos delitos omissivos, na verdade, só


defeito contínuo nos elevadores, a ponto de o ascenso- passou a alcançar maior repercussão, quando, no art.
rista alertar o síndico para o problema, enfatizando que 13, § 2° do CódÍgo Penal, o legislador brasileiro en-
alguém ali ainda fícaría preso, obtendo, no entanto, campou uma parte da elaboração doutrinária, inserindo
como resposta de que tudo não passava de mera fanta- nesse dispositivo as fontes do dever de garantidor, ou
sia e que nada disso iria acontecer. Certo dia, um pro- melhor, as fontes que fundamentam a posição de ga-
fissional liberal, que possuía consultório no prédio, rantidor. Desde então os juristas têm aguçado sua per-
precisou trabalhar até mais tarde, vindo a deixar o cepção na busca de soluções adequadas, ainda que não
serviço após 22:00 horas, quando no local apenas definitivas; às questões que daí decorrem, principal-
permanecia um vigia. Toma o elevador e este pára no mente acerca da parte omissiva dos crimes comissivos
12 TAVARES'- CRIMES OMISSIVOS
TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 13

e do perfeito equacionamento dos limites do dever de


'( homicídio, infanticídio, omissão de socorro ou orms-
impedir o resultado, que expressam em certa medida
são de comunicação de crime2.
os pontos centrais da investigação.
A adoção de uma regra geral de omissão não de-
4. A TAREFA INICIAL corre, entretanto, de uma imposição legislativa, mas é
fruto da evolução que se processa na teoria do delito,
notadamente com a introdução do conceito de conduta,
4.1. Mas, a primeira grande tarefa dos juristas,
ao tratarem dos crimes omissivos, não se situa imedia- por parte de BERNER em 1857, que possibilitou a sepa-
ração entre ação e punição, como conseqüência tardia
tamente na delimitação do dever de impedir o resulta-
da concepção hegeliana sustentada na culpabilidade de
do, senão em determinar como se procede à diferenci-
vontade3. O ponto crucial dessa evolução foi traçado,
ação entre ação e omissão. Esta é a tarefa inicial e de-
porém, com o conceito de tipo, formulado por BELING,
cisiva. Afinal de contas, essa foi a preocupação de toda
o qual, superando as proposições da doutrina anterior,
a doutrina do Direito Penal, desde que se formaram os
sistemas da teoria do delito. que se mostrava incapaz de diferenciá-Io da noção de
conduta, possibilitou, ademais de outros efeitos, a con-
, secução de um conceito geral de ação, baseado no
4.2. Na evolução do conceito analítico de delito dogma causal4.
e tendo em vista a sua escassa incidência prática, a
omissão não passava, inicialmente, de modalidade se-
cundária de ação. Na realidade, o delito omissivo, S. A TEORIA CAUSAL
como tal, só muito lentamente é que veio a despertar
maior curiosidade de análise. O importante era a iden-
Vê-se, portanto, que uma vez superada a questão
tificação da ação positiva, da qual deveria resultar a
da possibilidade de um conceito geral de ação, era na-
omissão. Ainda que concebido como delito autônomo,
tural que daí decorresse para a teoria causal uma difi-
os crimes omissivos só começaram a engendrar um re-
culdade ainda maior, que era a de estender o seu con-
gulamento próprio a partir do século XIX, quando se
desperta a atenção à necessidade de uma regra geral da
omissão. Antes disso, o problema se achava limitado
MEZGER- Tratado de Derecho Penal, tradução de Rodriguez Mufioz, 1955,
ao exame de casos concretos, relativos aos delitos de 2
vaI. 1, p. 19, nota 1.
3 ROXIN- Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2". edição, 1994, p. 180.
4 ROXIN- Strafrecht, Allgemeiner Teil, 1994, p. 181.
14 TAV ARES - CRIMES OMISSIVOS TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS 15

ceito de ação, tomada como causa de um resultado, à Entretanto, a transposição da causalidade da


modalidade da omissão. ação à omissão não pode ser feita sem maiores pro-
blemas. Como conceber, como causa de um resultado,
É cediço que a teoria causal não formulou, a uma inatividade que não tem no mundo exterior qual-
princípio, um conceito de ação no sentido de que, dire- quer expressão de procedimento causal? A discussão
tamente, se pudesse dizer que a ação fosse causa de já começa a agravar-se quando se busca equacionar o
um resultado. Há outros modos de expressar esse con- que se deva entender por causa de um resultado.
ceito, de maneira indireta, mais literária, mas que no
fundo significa a mesma coisa. O nosso saudoso
6. A CONTROVÉRSIA DA CAUSALIDADE
ANÍBAL BRUNO dizia que a ação constitui "um compor-
tamento humano voluntário que produz uma modifica-
ção no mundo exterior"s. Igualmente, VON LISZT, um I 6.1. Não é de hoje que a causalidade tem susci-
dos mais criativos penalistas de todos os tempos, con- tado os mais acalorados debates, tanto no âmbito das
ceituava ação como "a produção de uma modzficação ciências naturais quanto no Direito. Enquanto no Direi-
no mundo exterior, referenciada à vontade humana,,6. to, pela necessidade de justificação da responsabilida-
Embora os enunciados se apresentem distintos, isto de, a causalidade é sempre tomada no sentido lógico
nada mais é do que a retratação de um procedimento de certeza, na teoria científica moderna, chegou-se à
causal que se desdobra, que se desenrola no mundo conclusão de que não há causalidade exata, precisa,
exterior e produz um acontecimento perceptível, que é inequívoca. A causalidade só pode ser aferida depois
o seu resultado. Se o que importa é o processo de pro- que o processo já se desenvolvera e se sabe o que o te-
dução do resultado, a ação, que se identifica com esse ria impulsionado ou se tem, então, uma idéia intuitiva
processo, deve ser concebida como causa desse resul- de que existe um responsável por aquele resultado.
tado. Como o conceito de ação serve de elemento pri- Mas, antes disso, não há como elaborar hipoteticamen-
mário de ligação entre todos os elementos do delito, te o que poderá constituir a causa de um resultado.
deve englobar também a omissão, a qual, é claro, de-
veria da mesma forma ser vista nesse contexto como Parece que, dado o grau de incerteza de suas
"causa de um resultado". variadas fórmulas, nenhuma teoria que se ocupe do
conceito de causa pode elucidar essa matéria. No cam-
po das ciências empíricas, essa incerteza quanto à
5 Ao"1fBAL BRUNO- Direito Penal, Parte Geral, 1959, val. I, p. 282. identificação da causalidade tomou maior significado,
6 VONLlsZT- Lehrbuch des deutschen Strafrechts, 1891, p. 128.
16 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 17

por exemplo, com as investigações procedidas no setor pois a desvinculavam dos enunciados da mecânica, até
do átomo e sua evolução. O cientista alemão então dominantes e que sempre exerceram enorme e
HEISENBERG7,da Universidade de Munique e Prêmio significativa influência no âmbito do Direito, e ainda
Nobel de Física, ao proceder à elaboração dos princí- alteravam o pressuposto empírico de sua configuração
pios informadores da teoria quântica, enuncia na déca- lógica.
da de trinta o princípio da indeterminação, pelo qual a
impossibilidade de serem obtidas medidas corretas de 6.2. Na esteira dessas modernas concepções, po-
uma determinada magnitude, sem desconsideração de demos dizer que a causalidade não pode ser equacio-
outra magnitude com ela relacionada, conduz à con- nada através de umá teoria única, segundo a qual sem-
clusão de que, no mundo dos corpúsculos nucleares, a pre, e da mesma forma, ela deverá verificar-se. Daí a
causalidade não é certa, mas 'meramente provável. Mas tentativa de superar a velha teoria da condição, medi-
antes disso, a causalidade já era posta em questão com ante uma individualização da causalidade, primeira-
a antiga teoria de MAXWELL,enunciada para explicar mente no plano naturalístico, com a teoria da adequa-
um dos princípios da termodinâmica. Segundo este ção proposta por VONKRIES,e depois no plano norma-
princípio, um corpo quente que se vincule a um corpo tivo, com a teoria da relevância jurídica, elaborada por
frio produz a passagem de seu calor para es.te corpo MEZGER.
frio e não vice-versa. Quer dizer, quando dois corpos
entram em contacto, um quente e o outro frio, o pri- De acordo com a proposição de VONKRIES, a
meiro, que está quente, transfere ao segundo, que está causalidade seria unicamente aferida com base na ex-
frio, uma parte de seu calor, no sentido de um equilí- periência, segundo um juízo de previsibilidade, o qual,
brio térmico. Segundo MAXWELL,essa constatação conforme o complemento trazido por TRAEGER,deve-
empírica, entretanto, não é certa, é meramente prová- ria ter em conta todas as condições existentes ao tempo
vel, assim como tudo na investigação científica. Essa da ação, conhecidas ou cognoscíveis por um homem
formulação da termo dinâmica, embora do século pas- prudente8. Por sua vez, MEZGERentende que a causali-
sado e o princípio da indeterminação marcaram no dade, tomada no sentido da teoria da condição, não é
campo da causalidade uma perspectiva completamente suficiente para fundar o nexo de responsabilidade, se-
diferente do que a ciência até então havia indicado, não em atenção à relevância jurídica da condição, que

7 HEISENBERG - Die physikaJischen Prinzipien der Quantumtheorie, 1930, IV


§ 3°. 3 TRAEGER- Der KausaJbegriff im Straf-und Zivilrecht, 1927, p. 159

1-
18 TA VARES - CRIMES OMISSIVOS (~ U;.1 ~.
TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 19 !

só poderá ser reconhecida no processo de interpretação que tomava como referência não a ação contemporâ-
te1eo1ógica da norma9.
nea, mas a ação realizada momentos antes 11.

Mas, como a causalidade é meramente provável, 7.2. BELINGI2, que foi o grande teórico da teoria
está claro que toda teoria causal é falha, porque traba- causal, ciente dos transtornos lógicos provocados por
lha sobre juízos e critérios de probabilidade e não de uma concepção puramente causal do delito, chegou à
certeza. Se a incerteza toma-se a regra, fica, assim, conclusão de que para fundamentar a causalidade na
mais difícil ajustar-se o conceito de omissão, como omissão só dispunha de um recurso, que era partir da
inatividade, ao conceito de causa, que fundamenta o investigação sobre o organismo da pessoa do omitente.
conceito de ação.
Segundo ele, isto se daria da seguinte forma: na ação, a
pessoa produz um movimento corpóreo e, portanto,
desenoadeia perceptivelmente a casualidade; na omis-
7. BELING E SEUS ANTECESSORES
são, ao 'contrário, a pessoa não produz movimento COf-
póreo algum, mas, para não fazê-Io, deve retrair sua
7.1. Dentro da evolução percorrida pela teoria capacidade muscular de movimentar-se. Justamente
do delito, os primeiros critérios estabelecidos para jus- nesta retração subsistiria a causa do resultado. Esta
tificar a causalidade na omissão, até pelas sua dificul- concepção, entretanto, não era nova. Nada mais é, ali-
dades, buscaram. fundamentá-Ia em algo positivo, ás, do que uma reformulação sistematizada na teoria
como na prática de ação diversa. Assim, por exemplo, do delito das teorias da interferência, mencionadas
são as soluções apresentadas por LUDEN, com sua teo- por LANDSBERG e sustentadas por diversos autores,
ria da ação contemporânea, pela qual o que efetiva- dentre os quais BINDING, que, ·contestando as antigas
mente causa o resultado proibido é a prática de uma teorias da ação precedente e da ação contemporânea,
ação positiva contemporânea à omissão, diversa da-
tentavam demonstrar que a omissão teria uma eficácia
quela que deveria ter sido executadalO, e por KRUG, ativa, de modo que o omitente, ao não agir, passaria a
GLASER e MERKEL, com a teoria da ação precedente,
expressar uma força interferente sobre o impulso que

9 MEZGER- Tratado de Derecho Penal, tradução de Rodriguez Mufíoz, 1955,


voI. I, p. 243. 11ADOLFOMERKEL- Kriminalistische Abhandlungen, 1867, p. 76.
12BELING_ Die Lehre vom Verbrechen, 1906, p. 17. Mais recentemente, esta
10 LUDEN- Abhandlungen aus dem gemeinen deutschen Strafrecht, 1840, vaI.
1. P. 467 concepção é reestilizada por NOVOAMONREAL- Fundamentos de Ias delitos
de omisión, 1984, p.176.
20 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS 21

normalmente o compelia a fazê-Iol3. Não será preciso lores e só pode viger sob o enfoque da teoria da rele-
socorrer-se de maiores indagações, para perceber a ar- vância jurídica, que deixa de ser uma verdadeira teoria
tificialidade dessas construções, que novamente deslo- da causalidade para transformar-se em teoria de impu-
cam o tema da causalidade do setor lógico para o bio- tação do resultado.
lógico ou mecânico, tornando ainda mais obscura sua
perfeita dimensão. A omissão sempre representou, na verdade, um
ponto nebuloso na teoria do delito, que não foi eluci-
dado nem pela teoria causal e suas variantes e nem
8. AS CONTROVÉRSIAS NA TEORIA DA AÇÃO pelas teorias que se sucedem, por exemplo, a teoria fi-
nalista, as quais continuaram a defrontar-se com difi-
8.1. Procurando superar os percalços da concep- culdades para equacioná-Ia.
ção causal originária, MEZGER, com base nos postula-
dos assentados pelo neokantismo da Escola de Baden, 8.2. Afinal de contas, o que constitui a omissão?
principalmente por RrcKERT, enfatiza que "o problema É uma inatividade? Mas, sendo uma inatividade, é
da causalidade nos delitos de comissão por omissão modalidade de ação? Será outra categoria de compor-
aparece situado exatamente da mesma man,eira e tamento, que, juntamente com a ação, integra, em seu
exatamente da mesma forma do que no fazer ativo, sÓ todo, a conduta humana?
que não em referência à omissão como tal, senão à
ação positiva esperada e ao seu resultado". A pergun- A própria teo ria finalista da ação parte do con-
ta decisiva, será, portanto a seguinte: "o resultado ju- ceito de que a ação, antes de sér valorada juridicamen-
ridicamente desaprovado teria sido evitado pela ação te, tem um fundamento natural, isto é, pertence à cate-
esperada"? Se a resposta for afirmativa, a omissão será goria ontológica do ser. Como a ação é conceito gené-
considerada causa do resultado 14. Contudo, a referên- rico e natural, assim também a omissão teria funda-
cia à ação esperada, que só pode ser vista em face da mento naturalístico, como inação. Seria a omissão,
exigência da ordem jurídica, está em contradição com portanto, modalidade de conduta, como inação, que se
a concepção causal primitiva, porque desloca a questão contrapõe à ação, como modalidade de conduta positi-
do plano natural da causalidade para o mundo dos va- vaI5. A relação entre ação e omissão se situaria logi-

13 BINDING- Die .Normen, II, p. 546; VON HIPPEL - Deutsches Strafrecht,


1930, voL lI, p. 158. 15 WELZEL _ Derecho Penal Alemán, tradução de Bustos Ramirez e Yafíez

14 MEZGER- Tratado de Derecl10 Penal, vol I, p. 299 Pérez, 1970, p. 276.


22 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS
(uNlj
~

camente como os indicativos A e Não-A, objetos inde- o núcleo da discussão não se situa, evidente-
pendentes do mundo do ser, cada qual com suas pro- mente, na tentativa de demonstrar a propriedade de
priedades. Ainda que se reconheça a engenhosidade uma finalidade potencial na conduta, senão, como já
desta tese, talvez a única que poderia ser compatível ao dissemos, na constatação de que inexiste omissão sem
esquema das categorias ônticas, ainda assim não violação de dever de agir. E quando associamos uma
abrange a questão em todas as suas pmticu1aridades e ação, ou uma inatividade, a um dever de agir, já esta-
em toda a sua extensão. remos descartando a hipótese de que esta atividade ou
inatividade possa ser vista, exclusivamente, sob o en-
8.3. A deficiência da teoria finalista reside na foque naturalístico. É que o dever de agir não é qual-
sua base, de conceber a omissão dentro da categoria do quer coisa pertencente à categoria ôntica, isto é, não
ser, quando esta só pode ser verdadeiramente retratada possui substrato natural, mas possui, isto sim, um
se vinculada a um dever de agir. A contradição não é subs~ato axio1ógico. Quando impomos uma atividade
superada com a tese de ARMIN KAUFMANN16, seguida a alguém, dizemos que essa atividade é imposta em
por CEREZO MIR17, de que não sendo a omissão uma face de um dever a que está vinculada determinada
ação e apenas guardando em comum com esta a capa- pessoa. Se a pessoa não estiver vinculada ao dever de
cidade de ação, o conceito finalista de conduta pode agir, a sua inatividade é um nada, absolutamente irre-
cumprir a função de elemento básico do delito, ainda levante.
que não unitário, ao reconhecer-se que na omissão se
trata da não realização de uma atividade finalista que
o sujeito podia realizar na situação concreta. Também 9. A TEORIA NEGATIVA DE AÇÃO
nesta hipótese, a omissão continua sendo enfocada
como um dado do ser, vindo a complicar-se ainda 9.1. Seguindo uma variante subjetiva da teoria
mais, como já ocorria com WELZEL, com a adoção de finalista, com base no desdobramento do princípio da
uma atividade final, que efetivamente não se realizou, finalidade potencial, KHARS e HERZBERG, primeiramen-
mas podia realizar-se, quer dizer, a finalidade deixa de te, e depois BEHRENDT e de certa forma JAKOBS criam
ser real e passa a ser potencial. um conceito diverso de ação, com base no princípio da
evitabilidade, a que se denomina de conceito negativo
de ação. Ação seria, então, "a evitável não evitação de
16 ARMIN KAUFMANN - Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte,1959, p. 85.
17CEREZOMIR - O Finalismo, Hoje, tradução de Luiz Regis Prado, in Revista
Brasileira de Ciências Criminais, n° 12,1995, p. 43.
24 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 25

um resultado em posição de garantia ,,18,OU "a reali- 9.2. Por sua vez, não socorre tal conceito a posi-
zação do resultado evitável ,,19. Com isso se quer si- ção crítica de J AKOBS, que primeiramente nega um
gnificar que comissão e omissão se constituem de uma conceito negativo e chega a taxá-Io de equivocad021,
não evitação de alguma coisa, pois também nos delitos mas, partindo do mesmo critério da evitabilidade,
comissivos subsistiria a responsabilidade de evitar o como elemento identificador da ação, desemboca uma
resultado decorrente do movimento corporal do agen- posição mais equivocada ainda, quando, por exemplo,
te, atualizado como foco potencial de perigo 20. nega a qualidade de ação à realização inevitável da
morte de outrem, porque não estaria juridicamente
Este conceito negativo de ação, ainda que, para configurado o plano do autor e, por conseguinte, ine-
se constituir, tome como modelo um critério que po- xistiria uma lesão à norma22.
deria fundamentar um ato omissivo, que seria a evi-
tabilidade do resultado, é incapaz de solucionar os 9.3. Mais criticável ainda se mostra a tese psica-
problemas do enquadramento lógico e dogmático da nalítica de BEHRENDT, para o quem o conceito de ação
omissão em um conceito superior de ação. Primeira- não se ocupa do agir humano em geral, senão como
mente, porque o próprio HERZBERG não vê necessidade expressão da por ele denominada destrutividade hu-
de utilizar um tal conceito na caracterização do;; deli- mana23. Assim, a ação praticada em legítima defesa
tos omissivos em espécie. Em segundo lugar, p(l)rque deixaria de constituir uma modalidade de causa de
se para os fatos comissivos o que basta é a não- justificação, com a conseqüente exclusão da antijuri-
realização do resultado, a qual é identificada com a sua dicidade, para se transformar em uma hipótese de au-
evitação, para os fatos omissivos, onde o que ocorre é sêrlcia de ação, porque sendo tal fato inevitável con-
a não-realização da ação, o critério estaria baseado na duziria à conclusão de que igualmente não caracteri-
não-não-realização do resultado, o que soa um absur- zaria uma expressão da destrutividade humana24. A
do. omissão não seria, portanto, entendida como a não
execução de uma ação possível ou de uma ação espe-
rada ou mandada, senão a omissão da direção contrária

18 HERZBERG _ Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, 21 Strafrecht, Allgemeiner Teil, 1993, p. 143.
J AKOBS -
1972, p. 174. 22 JAKOBS Strafrecht, Allgemeiner Teil, 1993, p. 144.
_
19 JAKOBS - Vermeidbares Verhalten und Strafrechtssystem, in Festschrift für 23 BEHRENDT _ Die Unterlassung im Strafrecht. Entwurf eines negativen
Welzel, 1974, p. 309. Handlugsbegriffs aufpsychoanalytischer Grundlage, 1979, p. 96.
20 HERZBERG - ob. cit. , p. 173. 24 BEHRENDT- ob. cit., p. 106.
28 T A v ARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 29

pode deixar de reconhecer que o conceito de ação, dição natural, de expressão da personalidade humana,
muitas vezes, dadas as características reais de sua ma- como seu ponto de referência, evitando, com isso, uma
nifestação, está vinculado também a juízos de valor, de concepção puramente normativista, própria do positi-
ordem social ou pronunciados pela ordem jurídica, Vlsmo.
através dos respectivos tipos de delito. Esse inclusive é
o caso da omissão, que tomada dentro do conceito de 10.2. A relevância da omissão, como violação
ação como manifestação da personalidade está prati- do dever de agir, é que assinala, assim, a sua própria
camente imbricada nos graus de valoração, que fun- existência. Pertence ela àquela categoria dos objetos
damentam o injusto. A omissão só será considerada dependentes, de que fala HUSSERL. Não possui exis-
como manifestação da personalidade se tomada em re- tência real, por si mesma, senão quando associada a
ferência à ação esperada, a qual, normalmente, vem outro elemento, representado por um dever. Quando
fundamentada socialmente, antes de sua configuração nos referimos à omissão, portanto, estamos no âmbito
jurídica, em face de deveres sociais que são impostos de um mundo axiológico, de um mundo onde valora-
ao sujeit029. A~lção esperada, assim, não é a ação que mos as diversas modalidades de comportamento e não
se poderia evitar, ou a ação simplesmente que não se apenas de um mundo puramente naturalístico, onde o
realizou por interferência mecânica ou musculqr, nem importante é unicamente assinalar suas características
a não-ação referente a uma ação final determina~a, in- reais. Por isso, é que, na tarefa de diferenciação entre
serida no âmbito das categorias reais, mas, sim, a ação ação e omissão, para não cairmos nos mesmos erros
que a comunidade social ou a ordem jurídica aguarda- causais, temos que descartar, desde logo, neste setor a
va como instrumento de proteção do bem jurídico. posição meramente naturalística.

Em face dessa abordagem acerca da omissão, a Analisando a forma e as deficiências do trata-


recente concepção personalista de ROXIN, portanto, mento do comportamento omissivo dentro da teoria do
não pode ser caracterizada como uma pura teoria natu- delito, que conduzem a posturas insolúveis, chegamos
ralista de ação, mas simplesmente uma teoria de fundo à conclusão de que a teoria finalista é basicamente
naturalístico. Quer dizer, a ação não se compõe neces- uma teoria da ação, que foi concebida de modo funci-
sariamente de elementos puramente naturais, como onalmente correto no tocante aos crimes comissivos,
condição de sua categoria ôntica, mas toma essa con- mas que é claudicante quando procura tratar da omis-
são. E, embora quando trate da ação, em geral, supere,
sem a menor dúvida, os enunciados da teoria causal,
29 ROXIN - Strafrecht, A T, 1, p. 200.
30 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 31

também como ocorre com essa teoria causal não con- 11.2. Mas, surge um outro aspecto. Se a omissão
segue superar suas contradições na omissão, justamen- tem fundamento axiológico, isto significa que ela pas-
te porque incorre no mesmo erro, de considerá-Ia como sa a ser objeto de um juízo, pelo qual tem assegurada
um dado do ser (categoria ôntica) e não como um dado sua existência. E como objeto de um juízo, deve sub-
de valor (categoria axiológica). meter-se à consideração de se depende também de uma
norma jurídica ou possui relevância fora, do Direito.
Esta é uma questão que decorre do seu significado
A v ALORAÇÃO
11. DA OMISSÃO E SEU axiológico, como dado social ou normativo.
SUBSTRATO SOCIAL
Se reconhecemos nos valores um substrato so-
11.1. Ao buscar diferenciar a ação da omissão, cial e não exclusivamente normativo, como aliás deve
temos que nos situar, portanto, em plano axiológico: a ser, p~emos assumir a postura inicial de que a omis-
omissão não é modalidade de conduta que se reduza a são tem relevância e existência fora do Direito. A
elementos puramente naturais. A omissão é modalida- omissão, como modalidade de comportamento valora-
de de conduta vaIorada. E justamente em razão dessa do, não pode afastar-se de seu conteúdo social, que lhe
valoração, é que adquire relevância social30. assinala a relevância independentemente de seu reco-
nhecimento normativo. E pode, quando valorada juri-
Por isso, o melhor modelo será aquele que situe dicamente, gerar efeitos nas mais variadas disciplinas
o conceito de conduta dentro da ordem social e não jurídicas, dentre as quais o Direito Penal31.
exclusivamente na ordem natural. Quer dizer, a condu-
ta como comportamento humano socialmente relevan- Há ações, aliás, que presenciamos na coletivida-
te, onde se considere o seu momento axiológico e se de, que constituem comportamentos, às vezes, conside-
descarte toda fundamentação naturalística no tocante à rados antiéticos, desleais, estranhos, irregulares, desvi-
omissão. A omissão passa, assim, a se enquadrar den- antes, mas que não configuram, em qualquer hipótese,
tro de um campo valorativo e não num campo ontoló- comportamentos juridicamente enquadráveis. Quantas
gico real. vezes, por exemplo, cruzamos com alguns colegas
nossos e não recebemos o devido cumprimento? Essa

31 Com posição semelhante, HEITORCOSTAJÚNIOR- Teorias Acerca da


30 Assim também, em linhas gerais, ROXIN- Strafrecht, AT, I, p. 201. Omissão, in Revista de Direito Penal, vaI. 33, 1982, p. 71.
32 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 33

ausência de cumprimento configura uma omissão des- objetivo regulamentador, o efeito exclusivo de criado-
sas pessoas, que nos atinge na nossa relação de cordia- ra de deveres sociais, como propunha nesse passo a
lidade entre colegas. Mas isto não constitui nada em orientação neokantista. Ao invés, devemos admitir que
termos jurídicos, nem no âmbito do Direito Penal, nem a não execução de uma ação esperada apresenta rele-
no âmbito de outros ramos do Direito e nem tem assi- vância na ordem social, antes de se constituir em obje-
nalada sua existência porque referenciada a uma nor- to jurídico. A ação esperada de MEZGERnão deve ser
ma. É uma omissão que sentimos socialmente e que, exclusividade jurídica, mas a expressão de exigências
inclusive, produz efeitos mais amplos do que se pode- sociais de convivência.
ria supor na ordem social, porque a pessoa que não
cumprimenta um colega, em determinado momento fi- Esta referência social da omissão representa um
cará antipatizada. E as demais pessoas que sentem a passo adiante na elaboração do conceito de conduta,
ausência dessa atitude de cordialidade poderão dizer: que, tomado como conceito geral, deve ser suficiente-
"Bem, esse sujeito é um antipático; consequentemente, mente flexível e abrangente para englobar todas as
não vamos convidá-lo para - as nossas
" festividades, modalidades concretas do comportamento.
nem para nossas programaçoes etc.
11.3. Pode acontecer, ademais, que a orrussao
Há, portanto, uma reação das pessoas a e1ssetipo não apresente qualquer fundamento valorativo na or-
de comportamento omissivo, ainda que fora do Direito. dem social, ainda que resulte relevante juridicamente.
Mas sua relevância não deriva da reação que poderá Isto, todavia, não desnatura seu conteúdo social extra-
engendrar. Independentemente ou não dessa reação, jurídico, mas apenas reflete um estado de instabilidade
que indicaria que a omissão, antes de sofrer a incidên- normativa, pelo qual a norma vale durante certo tem-
cia das respostas do Direito, produziria efeitos sociais, po, ainda que carente de substrato, mas cujo estado
deve-se considerar que, ao lado das imposições decor- tenderá, a longo prazo, à sua ineficácia porque isenta
rentes da norma jurídica, subsistem deveres sociais de de conteúdo. Mas, então temos que vê-la de outra ma-
convivência, que integram o substrato das categorias neira, não só no seu aspecto de existência, mas tam-
axiológicas. Justamente esse fundamento social é que bém no sentido que ela assume com vistas à proteção
assinala o conteúdo extrajurídico da omissão. Não po- de bem jurídico, porque pode acontecer que a própria
demos, assim, partir do princípio de que a omissão só norma, em face do sentido protetivo que passa a de-
tem relevância para o campo do Direito, porque então sempenhar, venha a induzir a criação de deveres soci-
estaremos emprestando à norma jurídica, além do seu ais de convivência, que lhe irão depois preencher os
34 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 35

fundamentos. Em face dessa capacidade inventiva do creto, já que "valor é sempre valor para alguém ,,33. Na
Direito, chega FIGUEIREDODIAS, através da crítica à atual sociedade de risco, ademais, a tipificação de con-
teoria social da ação, a postular uma postura inteira- dutas serve na maioria das vezes como resposta a situ-
mente normativista de conduta, ao entender que a ação ações políticas emergenciais, confundindo-se com as
esperada só pode ser vista através de uma imposição normas puramente administrativas, que só interessam
jurídica de ação, que nasce do tipo de ilícito32. Embora aos ditames imediatos do Estado, sem consideração ao
não se deva aderir a essy pensamento normativista, não seu real substrato social vinculado à proteção de um
apenas sistematicamente, senão também em face da bem jurídico estratificado e sob a violação de direitos
necessidade de não afastar o Direito Penal de seu fundamentais, cuja observância deve anteceder a qual-
substrato real, que principalmente na América Latina, quer elaboração normativa34. É nesse sentido, inclusi-
a exemplo do que sucedeu na história européia dos ve, que se manifesta a crítica de HASSEMERde que o
anos trinta, poderá justificar a criação de delitos sem a atual, modelo penal repressivo, sob a falácia dé sua
correspondente lesão ou perigo de lesão a bens jurídi- eficiência prática, vem se transmudando em um verda-
cos, como meras infrações a deveres, assinala ele as deiro direito policial35. Diante dessa anomalia legisla-
deficiências de um conceito puramente natuf3lístico de tiva, mostra-se imprescindível sustentar a conduta típi-
conduta, como incompatível com a estrutura e as ca- ca, qualquer que ela seja, sobre uma base ou um subs-
racterísticas da omissão. Ainda que se possa dizer que trato sócio-individual, antes que por questões sistemá-
será no tipo de injusto o local adequado a proceder-se ticas ou funcionais, como forma de sua delimitação.
à perfeita separação entre, por exemplo, delitos omis-
sivos e culposos, a adoção, entretanto, de um conceito
puramente normativista de ação, que ficaria na depen-
dência exclusiva da previsão do tipo de injusto, poderá
bem servir ao seu escopo funcional, mas conduz na
prática à sua desumanização. Será preciso sempre lem-
33 RENÉ DOTII _ A Incapacidade Criminal da Pessoa Jurídica, in Revista
brar, como faz RENÉDOTTI,que o Direito Penal, como Brasileira de Ciências Criminais, n° 11, 1995, p. 186.
ciência de valores, está referenciado a um sujeito con- 34 BARATA_ Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal, Lineamen-
tos de uma Teoria do Bem Jurídico, in Revista Brasileira de Ciências Crimi-
nais, n° 5, 1994, p. 12 e ss.; PETER-ALEXISALBRECHT- Erosionen des
rechtsstaatlichen Strafrechts, in Kritische Vierte1jahresscbrift für Gesetzge-
32FIGlJEIREDODIAS - Sobre o Estado Atual da Doutrina do Crime, in Revista bung und Recbtswissenscbaft, n° 2,1993, p. 163 e ss.
Brasileira de Ciências Criminais, número especial de lançamento, 1992, p. 35 HASSEMER_ Aktuelle Perspektiven der Krimina1poJitik, in Strafverteidiger,
35. n° 6,1994, p. 333 e ss.
36 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 37

12. CRIMES OMISSIVOS E COMISSIVOS teoria mais recente considera que não existe norma pu-
ramente proibitiva, como não existe norma puramente
12.1. A proteção de bem jurídico, como sabe- man damenta.136 E~que, se nao - conSl'derarmos que a
mos, em face da multiplicidade de variantes sociais, norma é proibitiva e mandamental ao mesmo tempo,
muitas vezes não é desempenhada diretamente através não poderemos proteger suficientemente o bem jurídi-
de proibições de modalidades de ações juridicamente co. Porque no momento em que dissermos que a norma
indesejáveis, que pela experiência possam pô-Io em mandamental é aquela simplesmente que impõe uma
perigo ou lesá-Io, senão mediante a imposição de deve- atividade, contentamo-nos em dizer que aquele que se
res concretos que pretendem evitar esses resultados. encontre em inatividade viola a norma mandamental.
Na omissão, a proteção pode ser exercida de duas es- Mas aquele que se encontre em inatividade, embora
pécies, ou mediante a imposição de ações possíveis, viole a norma mandamental, não é o único a fazê-Io.
que devem ser executadas por todos justamente para Também viola a norma mandamental aquele que reali-
impedir a concretização dessa lesão, ou por quem te- za outra atividade que não a que a norma determina.
nha, em face da assunção de posturas pessoais, um de- Portanto, a norma mandamental, ao mesmo tempo que
ver de impedir tal resultado. Com isso, surge a neces- impõe uma atividade, proíbe outra. Da mesma forma, a
sidade inicial de distinguir essas duas modalidades da norma proibitiva. Ao mesmo tempo em que proíbe
~ . estatal, como crimes omissivos próprios te im-
atuação uma atividade, por exemplo, a atividade de matar, im-
propnos. põe, também, uma atividade de respeito à vida huma-
na. Isto está implícito na norma proibitiva. E nem teria
Aqui, devemos, por sua vez, observar o seguin- sentido a proteção de bem jurídico através exclusiva-
te: quando diferenciamos crimes omissivos e crimes mente da proibição, pois seria absolutamente inócua.
comissivos, não devemos fazê-Io através da modalida- Isto não quer dizer, porém, que nos crimes comissivos
de de conduta. subsista, ao lado da proibição, um dever geral de obe-
diência. A atividade positiva que resulta da proibição
A diferença entre esses crimes deve residir na será aquela necessária à proteção do bem jurídico, na
estrutura da norma que impõe ou que proíbe a ativida- medida em que o sujeito se tenha decidido a empreen-
de. Sempre aprendemos, por exemplo, que o Direito dê-Ia.
Penal tem duas espécies de normas: proibitivas e man-
damentais. E sempre aprendemos que são normas
opostas, isto é, ou proibitivas ou mandamentais. Mas, a 36 BACIGALUPO _ Delitos Impropios de Omislón, 1970, p. 98.
TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 39
38 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS

12.2. Essas considerações, ainda que extensíveis 13. AÇÃO E OMISSÃO NA ESTRUTURA NOR-
a todos os delitos, adquirem maior relevância no âmbi- MATIVA
to dos delitos culposos.
13.1. É importante salientar esse entendimento
Por exemplo, há pessoas que dirigem em exces- acerca da estrutura complexa da norma penal, porque
so de velocidade, algumas vezes ultrapassando todos com isto se podem assinalar com precisão as diferen-
os limites imagináveis, Contudo, o excesso de veloci- ças entre os crimes omissivos e os crimes comissivos.
dade, por si só, não caracteriza delito algum, apenas
demonstra que há violação de um dever de cuidado. A Partindo desse aspecto, podemos, desde logo,
norma jurídica que impõe uma atividade cuidadosa é a estabelecer os critérios de diferenciação entre a ação e
mesma que proíbe uma atividade descuidada. À pessoa a Olnissão dentro da estrutura normativa do Direito Pe-
que dirige em excesso de velocidade, em determinado nalJ
local, a,norma jurídica diz que é proibido violar o de-
ver de cuidado, porque? violando o dever de cuidado, Alguns exemplos, podem demonstrar~ aliás, que
se pode ocasionar um resultado penalmente proibido. às vezes é penoso estabelecer-se uma linha divisória
Mas, ao mesmo tempo em que proíbe o excesso de absolutamente nítida entre ação e omissão e cuja solu-
velocidade, diz que aquele que quiser dirigir, é obri- ção, de caracterizar o fato como crilne conÚssivo ou
gado a dirigir em velocidade adequada. Portanto, a crime omissivo, não se limita a mera exigência c1assi-
norma jurídica compõe um conjunto de proibições e ficatória. Se optarmos pela Olnissão e tivermos um
comandos, num mesmo contexto, como forma de crime omissivo, teremos que definir ademais se o sujei-
ampliar os limites da proteção do bem jurídico. to tinha ou não o dever de agir, exatamente nos termos
em que a lei o determina.

13.2. EXEMPLOS I

EXEMPLO N" 1. Um sujeito, à noite e em meio J


neblina, dirige seu caminhão sem as luzes traseiras dei
advertência acesas, as chamadas luzes de estaciona-i
mento e acaba, com isso, ocasionando um acidente,i
porque o motorista de um automóvel, que trafega emi
40 TAVARES'- CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 41

excesso de velocidade, não o vê e vem com ele a cho- co pára de reanimar o paciente. Evidentemente, todos
car-se. Em conseqüência do acidente, o motorista do irão afirmar que se trata de crime omissivo.
automóvel vem a morrer.
Mas imaginemos que o médico não pare de rea-
A pergunta é a seguinte: haverá crime omissivo nimar o paciente e faça com que essa modalidade de
ou crime comissivo? reanimação tenha seqüência através de um aparelho
automático, que se encarrega da estimulação do cora-
A resposta pode variar conforme a identificação ção enfermo e permanece em funcionamento durante
da modalidade da conduta, se se trata de uma ação, ou alguns dias. Após certo tempo, vem outro assistente e
de uma' omissão. diz: "não adianta insistir, porque esse aparelho não
poderá reanimar o paciente. O melhor será desligá-
Poderíamos dizer, por um lado, que haveria, lo ". Se ambos desligam o aparelho e, em seguida, o
nesse caso, um crime omissivo culposo, porque o ca- paciente morre, a indagação acerca da natureza do
minhão não tinha as luzes traseiras acesas, quando o comportamento não será tão evidente. Haverá crime
motorista o dirigia, ou seja, omitiu-se esse motorista de omissivo ou comissivo?
verificar se as luzes traseiras estavam em condiçõys de
tráfego. Mas também poderemos concluir que haverá EXE.tvIPLO
N° 3, Um sujeito está para salvar outra
um crime comissivo culposo, se entendermos que o pessoa, que se está afogando na praia de Copacabana.
sujeito trafegou sem as luzes traseiras. A diferença é Quando está prestes a salvá-Ia, é impedido de fazê-Ia
sutil, mas é importante. por seu vizinho, porque este reconhecera no afogado
um seu inimigo, Haverá crime omissivo ou crime co-
EXEMPLON° 2. O médico está cuidarido de certo missivo?
paciente internado em estado grave num hospital. Ape-
sar de todo cuidado e do tratamento intensivo que re- EXEMPLON° 4. Ainda sobre o mesmo quadro, o
cebe, de repente apresenta parada cardíaca. O médico sujeito quer salvar uma pessoa que cai da barca Rio-
resolve socorrê-Ia através de massagens de reanima- Niterói e está se afogando. Para isso lança-lhe um sal-
ção, que são executadas sem qualquer proveito. Após va-vidas e, uma vez agarrado pelo acidentado, passa a
algum tempo, é aconselhado por um seu colega que recolhê-Io. No meio do ato de salvamento, contudo,
diz: "não adianta, ele não tem mais chance". O médi- reconhece no afogado seu inimigo e refletindo acerca
da fortuna do acidente resolve abandoná-Io à própria
r--
I
42 TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS I TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 43

I
sorte. lncontinenti solta a corda e deixa que a vítima se 0, dever
de agir pode ser visto como um dever
afogue. Haverá crime omissivo ou comissivo? geral imposto pela ordem jurídica, diante de certo caso
concreto que esta própria ordem jurídica legalmente
EXEM:PLO N° 5. Um caso da jurisprudência ale- prevê (o chamado dever geral de assistência), ou como
mã. Um fabricante importa da Pérsia algumas peles de dever que decorre de vinculação especial entre sujeito
carneiro para a confecção de cobertores, mas não man- e vítima, ou entre esse e a fonte produtora de perigo,
da desinfetá-Ias previamente como deveria. As peles de modo que se constitua em garantidor da proteção do
vêm impregnadas de um vírus que acaba matando os bem jurídico com relação àquela pessoa determinada
operários que as manipulavam para fazer o preenchi- ou àquelas pessoas afetadas pela fonte de perigo (o
mento desses cobertores. Haverá crime omissivo ou chamado dever de impedir o resultado).
comissivo?
I
13.3. Note-se que em todos esses exemplos a '14. CRITÉRIOS DE DIFERENCIAÇÃO
afirmação acerca da modalidade da conduta não pode
por si mesma elucidar acerca da natureza do delito, Dada a complexidade da distinção entre ação e
pondo em destaque a complexidade da diferenciação onÚssão, que não pode ser tomada por simples opção,
entre ação e omissão. Se enfocarmos de uma ou de a doutrina sugere três critérios para torná-Ia possível.
outra maneira, podemos entender que são crimes
omissivos ou comissivos. Mas as conseqüências da di- 14.1. Critério da Energia
ferenciação são importantes, porque se em todos esses
casos dissermos que se trata de crimes comissivos, as °
primeiro critério, e o mais antigo, é o chama-
exigências de punibilidade serão menores, bastando do critério da energia, que, inclusive, é sustentado por
demonstrar normalmente, além dos demais elementos vários autores de renome, dentre os quais ENGISCH37.
que compõem o tipo legal, que o resultado pode ser De acordo com este critério, a diferença entre delitos
imputado objetivamente ao sujeito. Mas se dissermos comissivos e omissivos reside em que nos crimes co-
que haverá crimes omissivos, teremos, então, que tam- missivos o agente desprende uma certa energia na rea-
bém demonstrar a violação do dever de agir, com to-
dos os consentâneos, o que altera os fundamentos da
punibilidade.
37ENGISCH _ Tun und Unterlassen, in Festschrift für W. Gallas, 1973, p. 163;
OITO - Grundkurs Strafrecht, AT, 1982, p. 127.
44 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 45

lização da ação. Desde que o sujeito não tenha impul- RUDOLPHI e SAMSON38 propõem que a análise se faça
sionado qualquer energia, haverá crime omissivo. exclusivamente em termos de causalidade. É a posição
assumida também por WELZEL39. Haverá, portanto,
Assim, no caso do motorista que trafega com comissão todas as vezes em que o sujeito desenvolver
seu caminhão sem as luzes traseiras de advertência um processo causal material, que produza dolosa ou
acesas, haverá crime comissivo e não omissivo, porque culposamente o resultado proibido.
ele mesmo estava dirigindo o veículo e, pois, despren-
dendo energia para realizar tal atividade, vindo com Assim, no caso do caminhão, haveria crime
essa atividade a produzir um resultado antijurídico. comissivo porque o motorista estava dirigindo o'"yeícu-
10. No caso do fabricante de cobertores, que não desin-
Este critério, entretanto, é praticamente insusten- fetou suficientemente as peles de carneiro, haveria
tável, porque em muitos casos não há comprovação crime comissivo, porque fora ele quem entregara as
efetiva de manifestação de energia, no momento em peles aos seus funcionários e, consequentemente, hou-
que o fato lesivo ocorre, porque mesmo no exemplo do vera provocado a infestação do vírus. Este critério so-
caminhão a energia era no sentido da direção do veícu- fre as mesmas críticas ofertadas ao critério da energia,
10, mas não no sentido de manter apagadas as luzes de embora possa ser visto sob o plano lógico e não me-
advertência. Ademais, no momento do acidente, este cânico. As deficiências permanecem ainda que se
caminhão poderia estar parado na pista, encontrando- adote qualquer outra teoria da causalidade, diversa da
se o motorista em plena inatividade, sem desprender teoria da condição, por exemplo, a teoria da causalida-
qualquer energia, a qual, então, deveria estar referida de adequada ou da relevância jurídica. É que com es-
ao momento em que a atividade se havia iniciado e não sas duas outras teorias, que se assentam, respectiva-
ao momento em que se produzira o resultado, o que mente, nos supostos de previsibilidade (adequação) ou
faria reeditar, para esse setor, a velha teoria da actio da ação esperada, mais difícil se torna firmar, desde
libera in causa. logo, uma nítida diferenciação entre fazer positivo e
omissão, no plano exclusivo da causalidade.
14.2. Critério da Causalidade

Em oposição a esse critério, JESCHECK,


38 JESCHECK - Tratado, p. 548; RUDOLPHI - StGB, Systematischer Kommen-
tar, 1977, vaI. I, p. 74; SAMSON - Begehung und Unterlassung, in Festschrift
fur H. We1zel, 1974, p. 579.
39 WELZEL_ Derecho Penal Alemán, p. 280.
.,.---
I
...

46 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS I TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 47


!
I
I
14.3. SIEBER40, por sua vez, associa os dois cri- I paciente através do emprego dos aparelhos automáti-
térios, da energia e da causalidade, para concluir que a cos de reanimação e quando os desliga, na realidade,
solução correta só pode advir dessa combinação, por- causou ele a sua morte, manifestando ainda energia
que nem sempre o desprendimento de energia coincide para fazê-lo. Por outro lado, se não tivesse desligado
com a interferência no processo causal, podendo os aparelhos, a vida humana se manteria, o que carac-
acontecer ou não. Trata-se da conjugação de critério teriza a conduta do médico como condição sine qua
mecânico e de outro critério lógico, desde que eviden- non do resultado. Mesmo para a teoria da adequação, o
temente se tenha em vista que a causalidade não se fato de desligar os aparelhos pode ser tido como causal
limita a exprimir um dado puramente naturalístico. para a morte do paciente, o que também se dá com a
teoria da relevância jurídica, independentemente do
socorro à ação esperada.
14.4. Critério do Ponto de Gravidade da ,
Conduta PGrtanto, os dois primeiros critérios (da energia
e da causalidade) não apreendem a questão em seus
14.4.1. Tendo em conta as dificuldades resultan- pontos fundamentais, pois a vida humana já era em si
tes da adoção de critérios puramente materiais, a dou- mesma insustentável. Pelo contexto social, ao contrá-
trina postula por uma solução na órbita normativa, rio, a atividade do médico que desliga os aparelhos
atendendo ao que se denomina de ponto de gravidade está vinculada a um preceito mandamental (de manter
da conduta penabnente relevante41. ligados os aparelhos) e não a um preceito de proibição
(de não desligá-Ias), o que implica a considerar esse
Na verdade, os critérios da energia e da causali- comportamento como onÚssão e não como comissão.
dade não podem explicar suficientemente, por exem-
plo, a solução para o caso do médico que desliga os A caracterização do comportamento como ação
aparelhos para evitar um prolongamento insatisfatório ou omissão, no entanto, só pode ser inferida pelo sen-
e até mesmo ineficaz da vida humana vegetativa. Por- tido imprimido pela ordem social, jamais por critérios
que, neste aspecto, quando o médico mantém a vida do objetivos materiais. Justamente neste sentido de ordem
social é que reside o fundamento do critério do ponto
40 SIEBER - Die Abgrenzung von Tun und Unterlassen. in Juristenzeitung, de gravidade da conduta penalmente relevante. No
1983, p. 431. exemplo dado, só haveria comissão se o desligamento
41 WESSELS - Strafrecht, A T, 1992, p. 224; SCHONKE-SCHRODER-STREE -
StGB Kommentar, 1991, p. 185. dos aparelhos fosse efetuado por terceiros, que não ti-
TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 49
48

vessem qualquer relação para com a manutenção da aos cuidados que a ordem jurídica lhe impunha para
vida do paciente, porque, então, estariam violando uma praticar uma conduta permitida.
norma proibitiva, mas não uma norma mandamental,
que não lhes seria aplicável. Mas, se os aparelhos fos- Na omissão, como a violação do bem jurídico
sem desligados pelo próprio médico, tratar-se-ia de não resulta de um contraste direto entre o proibido e o
omissão e não de comissão. O delito a ser analisado, permitido, mas da não execução daquilo que era de-
portanto, seria um delito omissivo e não delito comis- terminado ao sujeito, a contradição entre o comporta-
SlVO. mento do sujeito e a norma radica em outro suposto,
que é a vinculação de proteção entre o sujeito e o bem
14.4.2. O critério do ponto de gravidade, como jurídico. Assim, desde que se identifique no caso con-
critério normativo, deve ademais ser complementado creto uma situação em que a proteção do bem jurídico
pela orientação com vistas à proteção do bem jurídico. não está situada na forma e no modo da conduta, mas
Isto quer dizer que a análise deve recair também na na relação de dever para com o sujeito, estaremos dian-
forma e no modo da conduta que viola o bem jurídico. te de um quadro de omissão. Esta relação para com o
Na comissão, a forma e o modo contrastam com a sujeito é que assinala o conteúdo axiológico da omis-
sÜoe a diferencia da comissão.
proibição inseri da na norma. Há, portanto, uma afronta
à modalidade de conduta permitida, através dai execu-
ção de uma modalidade de conduta proibida. Isto dei- Como o critério do ponto de gravidade se orien-
xa de ser relevante nos delitos dolosos, quando o con- ta pelo sentido do comportamento, pode-se explicar o
traste entre o proibido e o permitido é direto e pode ser porquê da caracterização do desligamento dos apare-
constatado desde logo através da comparação entre a lhos como omissão e não como comissão, consoante o
conduta concreta e a conduta típica abstrata. Mas nos sentido de proteção do bem jurídico indicado pela
delitos culposos, em que a contradição entre a conduta norma. Se tratássemos, além disso, esse caso como
do agente e a proibição se faz indiretamente, mediante crime comissivo o médico deveria responder por ho-
a execução de uma conduta descuidada, o que se veri- micídio, já que havia efetivamente produzido de modo
fica é um contraste entre a conduta permitida e a mo- causal a morte do paciente. Entretanto, acolhida a hi-
dalidade de conduta concreta que o agente executou, pótese de crime omissivo, poderemos verificar, depois,
de modo que se possa dizer que o agente executou uma se efetivamente a ação que deixou de ser realizada te-
conduta proibida, justamente porque deixou de atender ria um sentido para o médico com vistas à proteção do
50 TA VARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 51

bem jurídico, o que não se daria na hipótese de delito 15. A REABILITAÇÃO DA CAUSALIDADE
comlSSlVO.
Por outro lado, independentemente da sua defi-
14.5. Crítica e Opção Doutrinária ciência para filmar a diferenciação entre ação e onÚs-
são, que, como vimos, não pode ser obtida pelos crité-
Os três critérios vêm sendo modernamente criti- rios aventados, a doutrina tem procurado reabilitar o
cados. Não só os dois primeiros, mas também o último. critério da causalidade, mediante uma reavaliação do
E a maior crítica que a ele se faz é que violaria o prin- conceito de causa com base em graus de probabilidade
dpio da legalidade. Porque afirma que, para a identifi- e não em parâmetros de certeza. Segundo essa postura,
cação da onÚssão em face da comissão, o que vale não haverá conÚssão quando o processo de produção do
é o que está escrito na lei, como dado objetivo, senão resultado tenha aumentado consideravelmente o risco
exatamente o contrário, ou seja, uma valoração de .or- dessa, produção. ] á a Olnissão, que se baseia em outros
dem social, que é efetuada pelo julgador, sem qualquer parâmetros, isto é, na relação de proteção com vistas a
parâmetro e, consequentemente, com possibilidades um bem jurídico que efetivamente possa ser protegido
enormes de favorecer ou prejud.icar o réu. Isso, eviden- em certo tempo e em certa medida, não pode ser aferi-
temente, configura um alto grau de insegurança nas da pelo critério do aumento do risco, que implicaria
relações jurídicas, especificamente na órbita do Direito uma comissão. O parâmetro aqui seria o seu reverso,
Penal.
isto é, haveria onÚssão se com o comportamento do
sujeito, ao não executar a ação possível, tivessem di-
Os três critérios, portanto, apresentam falhas e minuído as chances de impedir o resultado.
não são suficientemente aptos a dirimir a questão, sem
sacrificar alguns dos postulados do Direito Penal. A No caso do desligamento dos aparelhos, a morte
solução não parece encontrar-se num critérjo único, não pode ser evitada de imediato, nem através de qual-
senão em duas possibilidades: ou na conjugação do quer outro processo terapêutico, senão única e exclusi-
critério do ponto de gravidade com o critério da cau- vamente pela continuação infinita dessa reanimação
salidade, revitalizado pela teoria moderna, ou mediante mecânica, o que significa que o seu desligamento não
referência ao conteúdo axiológico emprestado ao fato. pode ser visto como um aumento do risco do resultado,
pois este risco já era absoluto, mas sim pelo aspecto de
que, com isso, diminuiria a possibilidade de que conti-
nuasse o paciente a viver.
52 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 53

Desde que não se possa configurar uma situação 16.2. Por exemplo, se estabelecermos, na teoria
em que a conduta represente um aumento positivo do da condição, que, segundo o princípio da eliminação
risco, estar-se-á diante de fato omissivo. Caso contrá- hipotética, haverá causalidade quando eliminada
rio, haverá comissão. Este critério, porém, como vere- mentalmente a ação (causa) será eliminado automati-
mos, é mais um critério de imputação do que de dife- camente o resultado, isto vale, é claro, geralmente para
renciação. Além disso, a circunstância do aumento do os crimes comissivos. Mas, ainda no caso de comissão,
risco ou da diminuição das chances de salvamento re- esse critério não se mostra correto, quando a causali-
sulta ser a mesma, apenas sob duas facetas. dade é incerta ou meramente provável, por exemplo,
na questão surgida com o uso do medicamento conter-
gam (talidomida), por exemplo, que pode comportar
16. A CONTROVÉRSIA DA TEORIA DA CONDIÇÃO uma análise tanto sob o aspecto de uma conduta culpo-
sa quanto omissiva. Esse medicamento, que produziu
16.1. Em face do nosso Código Penal, qualquer também no Brasil inúmeros efeitos desastrosos, foi
refonnulação da questão da causalidade enfrenta, en- lançado na Europa sob todos os encômios, porque era
tretanto, um sério obstáculo, pois, em seu art. 13, dis- efetivamente um fantástico regulador dos casos de
põe ele expressamente que se considera "causa a ação dismenorréia ou demais indisposições decorrentes da
ou omissão sem a qual o resultado não teria ocbrri- gravidez. Todos sabem, entretanto, os teratológicos re-
do". Acolhendo a teoria da condição, o Código esten- sultados que provocou, gerando defeitos físicos irre-
deu-a também à omissão. versíveis nos fetos, que os acompanharam até o final
de sua vida adulta. Na discussão da responsabilidade
Neste ponto reside o problema. Não podemos decorrente desses efeitos maléficos, seria impossível a
imediatamente optar pelo critério puro da causalidade utilização do critério da eliminação hipotética do resul-
para estabelecer a diferença entre omissão e comissão, tado, como proposto na teoria da equivalência das
para dizer que na primeira não há causalidade, quando condições, posto que não havia certeza de que, com a
o Código assume a postura de que aquela é também ingestão desse medicamento, se produzissem os defei-
causal para o resultado. Mas, apesar da regra do Códi- tos físicos de que vieram a padecer os recém-nascidos.
go, a causalidade deve ser adaptada à estrutura da Na realidade, se fôssemos entender a causalidade ex-
omissão. clusivamente no sentido mecânico, mediante o uso da
fórmula da eliminação hipotética, jamais poderíamos
concluir que a ingestão do medicamento fosse causa
\.LTl ........:

55 I
54 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS

do resultado: Mas a doutrina penal, que há muito traba- ça ou queimadas pelo fogo. Diante desse dilema, o su-
lha com questões de causalidade, também há muito jeito resolve que o melhor seria manter as crianças no
tem decidido que a fórmula da eliminação hipotética apartamento, à espera do salvamento do corpo de
não vale em determinadas situações, senão quando já bombeiros. Mas, resolve também jogar-se ele mesmo
se tem como identificada, com certeza, a causa que pela janela para ser aparado pelos vizinhos. Joga-se,
determinara o resultad042. quebra as pernas, mas não morre. As crianças, ao con-
trário, que permaneceram no apartamento, perecem su-
Nos crimes omissivos, o problema é ainda mais focadas pela fumaça. Aqui, independentemente da
complexo: eliminada mentalmente a causa - que seria a questão da colisão de deveres ou do estado de necessi-
omissão - seria eliminado automaticamente o resulta- dade, que se situam no âmbito do injusto, o problema
do? Não se sabe. Isto é mera hipótese. está em se saber se houve ou não uma relação de cau-
salidade.
16.3. OUTRO EXEMPLO
Verifiquemos como isso se passa. Eliminada a
EXEMPLO W 6. Em edifício em chamas, encon- omissão (de jogar as crianças para serem apanhadas
tra-se um sujeito com seus dois filhos menores, confi- pelos vizinhos), que seria, afinal do resultado? Se o
nado em seu apartamento, situado em andar alto. No sujeito tivesse efetivamente jogado as crianças, o resul-
solo estão seus vizinhos, que, com gestos e acenos, tado desapareceria? Não se sabe, é hipotético, poderia
gritam-lhe: "jogue as crianças, que nós as apanhare- ou não desaparecer. A fórmula é incapaz de dirimir
mos aqui embaixo, sem qualquer problel1w". O pai, essa dúvida
acossado diante da situação de desespero, e ademais
nervoso pela demora da chegada do corpo de bombei- Vê-se, pois, que a teoria da condição, que ado-
ros, está nesse dilema: ou jogar as crianças ou esperar tamos no Código Penal, quando aplicada à omissão
o salvamento. Sobre isso, reflete, entretanto, que se jo- não funciona de maneira escorreita. Baseia-se em mera
gasse as crianças, estas, apesar de toda a atenção dos hipótese, não em certeza, assim como qualquer outra
vizinhos, poderiam morrer, por causa da altura; e se teoria da causalidade.
não as jogasse, poderiam morrer sufocadas pela fuma-

42ROXIN- Strafrecht, AT, 23 edição, 1994, p. 287; WESSELS - Strafrecht, A T,


1992, p. 48.
56 TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS TA VARES - CRIMES OMISSIVOS 57

17. APLICAÇÃO DO PRINCíPIO DA CAUSALIDADE am? Ninguém sabe. Fica em situação crítica, nesse
À OMISSÃO caso, a teoria da condição, que é, porém, a teoria ado-

Como, então, poderemos aplicar o critério de


!
I:
\',
tada no Código Penal.

causalidade à omissão, diante da norma do Código


Penal? 18. CAUSALIDADE E INCREMENTO DO RISCO

De acordo com a teoria da condição, considera- 18.1. Além da teoria da condição, tem tomado
se que a omissão é causa do resultado, quando, elimi- corpo, mais recentemente, um outro princípio de impu-
nada mentalmente, eliminado restaria o resultado. Essa tação, que talvez possa superar esses obstáculos que se
formulação, entretanto, é inválida. Não se pode elimi- antepõem à causalidade na omissão. Trata-se da teoria
nar a omissão, pois seria um contra-senso lógico que do incremento do risco, que já foi antes rapidamente
se eliminasse aquilo que não existiu. Para adaptar-se à referida.
natureza da omissão, a teoria da condição deve consi-
derar a eliminação da ação que hipoteticamente o A teoria do incremento do risco, formulada e
agente deveria praticar. Se, eliminada essa ação hipo- exposta com maestria por ROXIN44, um dos mais notá-
tética, restasse também eliminado o resultado hip'qtéti- veis penalistas da atualidade, primeiramente para os
co, poderíamos dizer, então, que a omissão foi causa crimes culposos e depois estendida aos delitos dolosos,
desse resultado. Mas a causalidade, aqui, é hipotética, parte de que, na omissão, como no setor da imputação
não uma causalidade real, até porque o resultado em geral, mais importante do que a causalidade é de-
.
19ua 1mente nao- e/ certo 43 . terminar se, com seu comportamento, o sujeito tenha
diminuído as chances de se evitar o resultado. Como a
o exemplo n° 6, das crianças, que morrem no causalidade na omissão só pode trabalhar com hipóte-
incêndio, assinala de maneira bastante nítida essa in- ses, é indispensável que se corrija essa causalidade se-
certeza da causalidade na omissão. Não há possibilida- gundo o sentido da atividade. E esse novo critério, de
de de se dizer: "se ele jogasse as crianças, elas teriam se orientar pelos dados concretos acerca do aumento
sido salvas". Ninguém pode afirmar isso. Será que do risco da produção do resultado, não se subordina
lançadas, por exemplo, do 10° andar, elas se salvari-
44 ROXIN - Ptlichtwidrigkeit und Erfolg bei fahr1ãssigen Delikten, ZStW,
43Entende igualmente, como mero juízo de probabilidade, HELENOFRAGOSO 1962, p. 411; IDEM - Gedanken zur Prob1ematik der Zurechnung im Stra-
- Crimes Omissivos no Direito Brasileiro, in Revista de Direito Penal, vai. 33, frecht, in Strafrechtliche Grundlagenprob1eme, 1973, p. 123 e ss.; IDEM- Stra-
1982,p.44. frecht, Allgemeiner Teil, 2a. edição, 1994, p. 314 e ss.
58 TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 59

exclusivamente ao dogma causal, senão submete a por sobre a ingerência acolhe expressamente a teoria
apreciação do comportamento do sujeito a um juízo do incremento do risco.
objetivo. No caso em discussão, o importante para
identificar a imputação é decidir se, deixando de jogar A inserção do critério do aumento do risco no
as crianças aos braços dos vizinhos, o sujeito diminuiu setor da causalidade dá-lhe efetivamente um vigor
as chances de seu salvamento. Na realidade, o risco novo, ressuscitando sua natureza lógica e não sim-
seria o mesmo, tanto se deixasse as crianças no apar- plesmente mecânica. Por este critério, em síntese, será
tamento, quanto se as jogasse pela janela ao amparo causal a omissão, quando a não execução da atividade
dos vizinhos, o que exclui sua imputação. possível para evitar o resultado, tenha diminuído as
chances de sua não verificação, ou, dito de outro
18.2. A teoria do incremento do risco desempe- modo, em face da possibilidade de evitar a ocorrência
nha um papel relevante, como teoria complementar e do resultado, tenha diminuído essa possibilidade, au-
limitadora da causalidade. Se bem que a teoria do in- mentando b risco de sua produçã045. Mas esta teoria
cremento do risco não seja uma verdadeira teoria da não soluciona definitivamente a questão da diferença
causalidade, mas uma teoria da imputação, com vistas entre ação e omissão, apenas respalda o entendimento
a delimitar a relação de causalidade, pode ela servir de de que será possível conceber-se nova modalidade de
fundamento para determinar a responsabilidade do causalidade na omissão, fora da teoria da condição.
omitente nos casos em que o resultado, embora não se Ademais, para não se tornar mais uma teoria da causa-
produzisse com certeza absoluta, tivesse aumentado lidade, com seus efeitos ilimitados, precisa ser conju-
consideravelmente as chances de sua ocorrência com a gada com a teoria dos fins da norma, de modo que se
não intervenção de quem estava a isso obrigado. No possa exigir não apenas que a não realização da condu-
caso do medicamento contergam, por exemplo, a ta tenha diminuído as chances de se impedir ou evitar
omissão dos fabricantes de retirá-l o de circulação ou o resultado, mas também que o omitente seja respon-
de alertar para seus efeitos colaterais, aumentava si- sável pelo perigo (risco) realizado no resultado concre-
gnificativamente o risco de que com seu uso viessem a to46
ocorrer os resultados desastrosos, constituindo, portan-
to, um necessário fator causal para com as relatadas oTIO - Grundkurs
45 Strafrecht, A T, 1982, p. 144 e ss.
deformações. Isto, inclusive, está de acordo com o dis- 46 LENCKNER _ Strafgesetzbuch Kommentar, 24" edição, 1991, p. 160; ROXIN
posto no art. 13, § 2°, c, do Código Penal, que ao dis- - Strafrecht, A T, 2" edição, 1994, p. 319; WOLTER - Objektive und personale
Zurechnung von Verhalten, Gefahr und Verletzung in einem funktionalen
Straftatsystem, 1981, p. 341 e ss.
60 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 61

geral de assistência ou de impedir o resultado, ou


simplesmente da omissão a uma norma de cuidado,
19. o CRITÉRIO AXIOLÓGICO que só terá sentido, se efetivamente o sujeito realizar a
conduta47. Esse critério axiológico parece estar de
A separação entre omissão e comissão parece I acordo com a própria natureza da omissão, sem partir
'.
que só pode ser feita, nitidamente, mediante o emprego para as insolúveis demonstrações da subsistência da
de critério axiológico, e não pela causalidade. Haverá relação causal, que constituiu a deficiência tanto da te-
omissão toda vez em que a existência da conduta como oria causal quanto da teoria finalista, bem como daque-
tal se vincule a um dever de agir, que assinale sua re- las correntes, naturalistas ou normativistas, que visa-
levância, seja ele um dever geral de assistência, seja vam à sua superação.
um dever especial de impedir o resultado. Haverá co-
missão, quando sua existência como tal independa de
qualquer dever de agir. A única dificuldade que lhe 20. CRIMES OMISSIVOS PRÓPRIOS E IMPRÓPRIOS
poderá ser oposta reside justamente nas hipóteses de
deveres vinculados à conduta, que constituem o fun- 20.1. Além disso, devemos estabelecer também
damento dos delitos culposos e continuam sendq a pe- a diferença entre crimes omissivos próprios e crimes
dra de toque de qualquer sistema. Na ação culposa, omissivos impróprios.
entretanto, o dever que se vincula à conduta não é nem
um dever geral de assistência, nem um dever especial Normalmente, essa diferenciação não oferece
de impedir o resultado, mas um dever de cuidado, que dificuldades, pois todos sabem identificar quando se
só estará presente no momento em que a ação é execu- trate de um ou de outro. Mas, às vezes, as complexida-
tada. Assim, inexiste um dever geral de cuidado, como des afIoram e os critérios de diferenciação falham. Em
assemelhado ao dever geral de assistência. Da mesma face da diversidade de critérios, alguns autores pro-
forma, inexiste um dever especial de cuidado, no sen- põem a criação de três espécies de crimes omissivos e
tido de um dever de impedir o resultado. Convém es- náo de apenas duas. Assim, aventa-se a existência de
clarecer, por outro lado, que a ação culposa tem pro- um terceiro grupo de casos, de modo que se possam
priamente um conteúdo omissivo, o qual só se dife- reconhecer, primeiramente os delitos de mera omissão
rencia definitivamente no âmbito do tipo de injusto, (delitos omissivos próprios), os delitos de omissão e
quando então se poderá, desde logo, perceber se se
trata exclusivamente de omissão em face de um dever 47 TA" ARES- Direito Penal da Negligência, 1985, p. 134 e ss.
62 TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS

resultado e os delitos omissivos impróprios48. Ainda submetida a medida de segurança detentiva, a sua cor-
que se reconheça certa validade a esta classificação, é reta diferenciação deve valer-se de outros critérios.
preferível a classificação bipartida, porque os delitos
de omissão e resultado podem perfeitamente ser enfei- 20.3. OS CRITÉRIOS DE DIFERENCIAÇÃO
xados como delitos omissivos próprios ou impróprios.
Como veremos, o fundamento dessa classificação tri- 20.3.1. O primeiro critério de diferenciação é o
partida, que é de evitar a polarização de apenas uma mais elementar deles. Todos o conhecemos. É o crité-
das perspectivas (político-criminais, axiológicas, jurí- rio do sujeito49. Os crimes omissivos próprios não in-
dico-positivas ou estruturais) de identificação do des- dividualizam o sujeito. Todos podem ser sujeitos do
valor do ato ou do resultado, não deve ser levado em delito, porque o dever de assistência, como se dá, por
conta, porque apenas confunde e mascara o verdadeiro exemplo, na omissão de socorro, é extensivo a toda a
núcleo do problema. coleti,;idade, uma vez presentes os seus pressupostos
típicos ..Esta é a posição, inclusive, adotada, a contra-
20.2. Acolhendo uma classificação bipartida, ve- rio sensu, pelo finalismo, ao atribuir aos delitos omis-
remos que a diferenciação entre essas duas categorias sivos impróprios a qualidade de delitos especiais, jus-
de delitos omissivos torna-se até mesmo evidente em tamente em face da delimitação de seu círculo de auto-
certos casos, por exemplo, quando analisamos super- res50.
ficialmente a omissão de socorro em contraste com o
homicídio, para afirmar este último no caso da mãe 20.3.2. O segundo critério é o da previsão legal,
que deixa de amamentar o filho recém-nascido. O pri- sustentado entre outros por ARMIN KAUFMANN51.No
meiro será próprio, o outro impróprio. Mas, quando o crirne omissivo próprio, a lei penal descreve a própria
tipo legal comporta, no seu mesmo âmbito e sem indi- modalidade de omissão. Por exemplo, "deixar de
cação expressa, ações e omissões, como ocorre com o prestar assistência, quando possível fazê-Io sem risco
já citado delito de facilitação de contrabando ou des- pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à
caminho (art. 318) ou com o delito de fuga de pessoa pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave
presa (art. 351), este último configurado como promo- e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socor-
ver ou facilitar a fuga de pessoa legalmente presa ou ro da autoridade pública" (art. 135).

48 Assim, RODRfGUEZ MOURULLO - La cláusula general sobre Ia comisión por 49 BACIGALUPO - Delitos Impropios de Omisión, 1970, p. 110.
omisión, in POlitica Criminal y Reforma Penal, 1993, p. 907; SILVA SANCHEZ 50 WELZEL - Derecho Penal Alemán, p. 287 ..
- EI delito de omisión. Concepto y sistema, 1986, p. 323. 51 ARMIN KAUFMANN - Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, 1959, p. 277.
64 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 65

Mas esses dois critérios, que normalmente se Está claro que as denominações propostas por
conjugam, não são suficientes, porque ainda não res- JESCHECK são as mais corretas. Entretanto, como ele
pondem a questão do crime de facilitação de contra- mesmo diz, a denominação tradicional está tão arrai-
bando ou descaminho cometido por omissão, se é gada à prática doutrinária e jurisprudencial, que será
omissivo próprio ou impróprio. melhor conservá-Ia, até mesmo em face da sua aceita-
ção geral.

21. CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS 21.2. Diz-se, na verdade, que os crimes omissi-
vos impróprios são crimes de omissão qualificada por-
21.1. Antes de solucionarmos essa questão, ve- que os sujeitos devem possuir uma qualidade específi-
jamos quais são os critérios que identificam os crimes ca, que não é inerente e nem existe nas pessoas em ge-
omissivos impróprios. ral. O sujeito deve ter com a vítima uma vinculação de
tal ordem, para a proteção de seus bens jurídicos, que o
Modernamente, tem-se questionado, inclusive, situe na qualidade de garantidor desses bens jurídicos.
e~sa denominação de crimes omissivos impróprios, Portanto, a posição de garantidor é crn.cterÍstica es-
afirmando-se que ela não é adequada, sendo mais ina- pecífica dos crimes omissivos impróprios, daí dizer-se
dequada ainda a denominação de crimes comissivos que a omissão, no caso, é qualificada.
por omissão, pois não se trata de crime comissivo, se-
não de crime omissivo. Igualmente será incorreta a de- Além de constituir unainação, que é de sua na-
nominação de omissão imprópria. Imprópria porquê? tureza, e com isso. violar um dever de agir, a omissão
De onde vêm o próprio e o impróprio? Nosso antigo qualificada pressupõe essa vinculação especial do su-
mestre, JESCHECK52, sugere que se denominem os cri- jeito para com a vítima, de modo a torná-Io garantidor.
mes omissivos impróprios de crimes de omissão qua- A omissão é qualificada, porque tem alguma coisa
lificada, e os crimes omissivos próprios de crimes de além da omissão requerida nos crimes omissivos pró-
omissão simples, tendo em vista as particularidades prios, como no delito de omissão de socorro, por
dos sujeitos em ambas as figuras. exemplo.

A denominação proposta, de omissão qualifica-


52JESCHECK- Tratado de Derecho Penal, tradução de José Luiz Manzanares
Samaniego, 1993, p. 551.
da, nada tem a ver com a gravidade do fato. A qualifi-
66 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TA VARES - CRIMES OMISSIVOS 67

cação aqui não se refere à gravidade, mas às condições morte, responde por homicídio por omissão. Ainda
especiais do sujeito. antes de estar contida no Código Penal uma indicação
precisa dessa responsabilidade, esta foi a orientação da
doutrina. Mas esta conclusão sempre foi tomada arbi-
22. A POSIÇÃO DE GARAl\YfIDOR trariamente pela doutrina, com base no costume, fa-
zendo deste uma fonte de incriminação, o que violava
22.1. A· posição de garantidor, de acordo com o princípio da legalidade e toda a tradição liberal.
nosso Código Penal (art. 13, § 2°), está fundada no de-
ver de impedir o resultado. Este, por sua vez, pode de- Quando se trata de equacionar legalmente essa
rivar da lei, do contrato ou da assunção fática de prote- responsabilidade, pode-se notar que nem meSlno as
ção do bem jurídico, ou da prática de conduta anterior leis extrapenais, que disciplinam fatos específicos, o
que tenha criado o risco da ocorrência do resultado. faze11f1de modo expresso. Nosso Código Civil, por
Esta relação legal dos três grupos de casos que funda- exemplo, ao tratar do pátrio poder com relação à pes-
mentam o dever de impedir o resultado parece remon- soa dos filhos, em seu art. 384, não contempla expres-
tar a MEZGER53, que, exatamente corno faz o Código samente essa forma de responsabilidade, apenas obri-
Penal, ao comentar as conseqüências dessa classifica- gando os pais a dirigir-lhes a criação e a educação. Tão
ção, associa à existência da lei, por exemplo, a obriga- só com a atual Constituição (art. 229) é que se deter-
ção especial de cuidado, proteção ou vigilância, ou, ao minou que os pais têm não apenas o dever de criação e
contrato, a assunção da responsabilidade de impedir o educação dos filhos menores, mas ainda o de assistên-
resultado. A fórmula tripartida de MEZGER, que é da cia, o que inclui, evidentemente, o dever de alimentá-
década de trinta, foi adotada desde há muito pela dou- los e protegê-Ios fisicamente. Quanto aos filhos maio-
trina e agora pelo Código Penal, mas não é satisfatória. res, nada há na legislação brasileira, a não .ser a própria
norma constitucional (art. 229), que os obrigue a aju-
Senão, vejamos. dar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermi-
dade.
Costuma-se dizer que a mãe que deixa de ama-
mentar o filho recém-nascido e, assim, causa-lhe a 22.2. Vê-se, pois que a indicação formal das
fontes do dever de agir às vezes deixa de contemplar
casos relevantes, fazendo com que a doutrina venha a
53MEZGER - Tratado de Derecho Penal, tradução de Rodriguez Mufíoz. 1995,
vol. lI, p. 302 e 55. criar paralelamente outras fOffilas de incriminação. Di-
68 T AV ARES' - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 69

ante disso, podemos desde logo perguntar se foi válido Na vinculação especial entre o sujeito ga-
10. -
dispor acerca dessas fontes no Código Penal. A doutri- rantidor e a vítima em virtude de circunstâncias e
na ainda não deu uma resposta definitiva a esta ques- condições sociais e familiares, de modo a obrigá-Io
tão. A principal objeção à regra adotada no Código socialmente à proteção. Tal ocorre com relação aos
Penal é que ela se limita simplesmente a formalizar as pais, aos irmãos, ou dentro da comunidade familiar;
fontes do dever de impedir o resultado, mas nada es-
clarece acerca de seu conteúdo. 2°. - Nas relações de trabalho, nas quais uma
pessoa se obriga profissionalmente à proteção de ou-
Ao dispor sobre esses três supostos do dever de tras. É o que se dá com o médico com relação a seus
agir, que foram acolhidos no Código Penal, MEZGERjá pacientes; com os engenheiros para com os usuários
havia salientado a necessidade de delimitar com segu- das obras que realizam; o guia de uma expedição para
rança os fundamentos desse dever, para evitar que me- .com seus seguidores, etc.
ros deveres morais viessem a justificar a responsabili-
dade criminal54. E agregava ainda que, em todos esses 3°. - Na responsabilidade pelas fontes de pro-
casos, deveria haver um inequívoco sentido de que a dução de perigo. Quem detém as fontes produtoras de
infração ao dever jurídico de agir devesse condvzir à perigo, tem a obrigação de evitar resultados lesivos
responsabilidade criminal do sujeit05S. Não ch~ou, delas decorrentes. Isto acontece, por exemplo, com o
entretanto, MEZGERa conclusões definitivas acerca da dono do prédio para com os materiais ou acessórios
previsão dessa responsabilidade criminal, justamente nele utilizados; os pais para com os atos dos filhos; os
porque partia de premissas formais e se satisfazia em delegados de polícia para com os atos dos carcereiros;
ajustá-Ias aos casos concretos. as pessoas que detêm autoridade para com os atos da-
queles que lhes são subordinados56; aqueles que cria-
22.3. Se quisermos, entretanto, buscar um con- ram com sua conduta o perigo para com os resultados
teúdo para os fundamentos da posição de garantidor, lesivos que dele derivam (a chamada ingerência ), etc.
podemos encontrá-Io em três situações:

56 SHEILA BIERRENBACH - Crimes Omissivos Impróprios, 1996, p. 78 - enten-


de que o vocábulo "vigilância", inserido no art. 13, § 2°, a, do Código Penal,
54 MEZGER - Tratado, p. 303. autoriza, com base na teoria das funções de AIUvlIN KAUFMANN, a ereção da
55 MEZGER - Tratado, p. 305. responsabilidade do garantidor acerca da atuação de terceiras pessoas.
r"~"·"--~---
70 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS ,
TAV ARES - CRIMES OMISSIVOS 71

Ao investigannos a fundo os deveres de agir, tal omissão de determinada ação deverá gerar a res-
vemos que esses não se podem limitar apenas a fontes ponsabilidade criminal do sujeito.
formais, o que demonstra que possuem um conteúdo
muito mais abrangente, a .indicar que a omissão não Como um empreendimento dessa ordem, porém,
constitui matéria exclusivamente jurídica, mas encerra só pode ser admitido de lege ferenda, pois implicaria
um componente pré-jurídico inafastável, que é o senti- na criação de nova tipificação de condutas, devemos
do social empreendido nas relações entre as pessoas, por ora combinar o conteúdo desses fundamentos que
através das quais se exige de algumas proteção para sustentam a posição de garantidor com as exigências
com as outras.
fonnais inseridas no art. 13, § 2°, no sentido de que só
terão validade, se se encontrarem amparados na lei, na
Esses fundamentos do dever de impedir o resul- assunção fática ou jurídica da responsabilidade de im-
tado, que sustentam a posição de garantidor, todavia, pedir o resultado ou na ingerência.
por si sós ainda são insuficientes, não no sentido de
caracterizar e explicar a situação geradora desse dever, Na combinação desses dois critérios, porém,
ou indicar o conteúdo social da omissão, mas para as- deve-se ter presente que não basta, para caracterizar a
segurar uma inequívoca conformidade entre a sua vio- posição de garantidor, a mera referência a um dos ele-
lação e a previsão de sua punibilidade, nos termos do mentos daquela relação formal. Mais do que isso, será
princípio da legalidade. necessário demonstrar que o sujeito se encontrava em
situação real de possibilidade de atender ao dever, ou
ainda, quando da ingerência, que a conduta anterior,
geradora do perigo para o bem jurídico, tenha ela
mesma violado um dever de cuidado. Essa limitação
23. A DELIMITAÇÃO LEGAL
da ingerência, sugerida por RUDOLPHI57, é necessária
para restringir a amplitude do atuar precedente, evi-
23.1. A solução mais coerente com a exigência tando que a mera causação do perigo, sem qualquer
do princípio da legalidade, embora não exaustiva e outro respaldo legal, possa fundar uma posição de ga-
nem perfeita, seria a previsão, na Parte Especial do rantidor. Observa, com propriedade, SHEILA BI-
Código Penal, dos delitos que comportassem a punição
pela omissão. Só desta forma poderíamos satisfazer ao
57 RUDOLPHI - Die Gleichstellungsproblematik der unechten Unterlassungs-
sentido do empreendimento de MEZGER de afirmar que delikte und der Gedanke der Ingerenz, 1966, p. 154.
72 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 73

ERRENBACH58 que em face das normas dos arts. 121, § vel como tal, mas fundamentalmente na violação de
4° e 129, § 7° do Código Penal, inclusive, o atuar pre- uma norma proibitiva mediante o desatendimento de
cedente culposo, que exponha a perigo bens jurídicos uma norma mandamental. Daí exigir-se em algumas
pessoais, como a vida e a integridade física, não trans- legislações que os crimes omissivos impróprios preen-
forma o sujeito em seu garantidor, de vez que, para cham a cláusula da equivalência, ou da absoluta iden-
essa situação específica, já existe a previsão legal do tidade, isto é, que o não impedimento do resultado,
aumento de pena de um terço, o que fará excluir desde como omissão, corresponda ou se identifique à produ-
logo a criação de nova cadeia de imputação. ção do resultado, como ação.

23.2. o CRITÉRIO NORMA TIVO Somente através da análise, portanto, da estrutu-


ra normativa e da especial posição de garantidor, que
23.2.1. Tendo em vista a especial importância integram conjuntamente o tipo dos delitos omissivos, é
dos supostos da posição da garantidor para com os que se pode traçar uma diferença correta entre delitos
delitos omissivos impróprios, podemos, num primeiro omissivos próprios e impróprios.
plano, dizer que este critério do sujeito, como instru-
mento de diferenciação, é mais relevante do que o cri- Haverá crime omissivo próprio, toda vez que,
tério legal, porque faz destacar no tipo um compon6nte além da generalidade do sujeito, a não realização da
não escrito, que não se encontra presente nem nos deli- ação possível implique por si mesma na violação de
tos omissivos próprios, nem nos puros delitos de co- uma norma mandamental. Haverá, por outra parte,
missão. Mas, apesar disso, não é o critério decisivo. crime on1Íssivo impróprio, toda vez que a não realiza-
23.2.2. Pela própria natureza dos crimes omissi- ção da ação possível, por parte de um sujeito na posi-
vos impróprios, que não se constituem de simples ção de garantidor, implique no não impedimento do
omissão de deveres de assistência, mas do não impe- resultado, na mesma medida de sua produção por
dimento de determinado resultado proibido, tem-se ação59.
que sua identificação, mais do que com vistas ao sujei-
to e sua especial relação de proteção para com o bem V oltemos à hipótese do crime de facilitação de
jurídico, depende de sua estrutura normativa. Esta não contrabando ou descaminho. Aqui, a conduta proibida
está alicerçada apenas na omissão de uma ação possí- se refere a uma ação, de facilitar, e, ao mesmo tempo,

58 SHEILA BIRRENBACH - Crimes Omissivos Impróprios, 1996, p. 87. 59 WESSELS _ Strafrecht, AT, 1992, p. 228.
74 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS

a vincula à infração de dever funcional, o que significa Inicialmente podemos dizer que nos delitos
que sua estrutura está estratificada basicamente na omissivos próprios ou impróprios, há uma inação que
proibição, mas identifica com esta o não impedimento corresponde a uma infração à norma de comando. Em
do resultado, por omissão. Proíbe-se a ação de facilitar conseqüência da inação, haverá ou não um resultado,
e, ao mesmo tempo, determina-se a ação de impedir a dependendo da estrutura do tipo. No crime de omissão
realização do contrabando ou descaminho, que seria o de socorro, por exemplo, a consumação se dá desde
resultado da facilitação. Como o sujeito está subordi- que o sujeito não tenha prestado o socorro, ainda que
nado a um dever especial de proteção, decorrente de outro o tenha feito e, assim, impedido a morte do aci-
lei, é ele garantidor do bem jurídico protegido. Tendo dentado. Nos delitos impróprios, como no caso da mãe
em vista os dois critérios, podemos dizer que se trata, que deixa de socorrer o filho menor, que se está afo-
portanto, de crime omissivo impróprio de resultado, gando, a consumação só acontece com a ocorrência do
ou, se fossemos adotar a classificação de RODRÍGUEZ resultndo morte.
MOURULLO, delito de omissão e resultado. O resultado
aqui não precisa traduzir-se em efeitos materiais, basta 24.2. Integra também o tipo dos delitos omissi-
que a ação de descaminho ou de contrabando se tenha vos, a real possibilidade de atuar, que é, por sua vez,
iniciado para que se integralize o tipo legal. O mesmo condição da posição de garantidor. Não se pode obri-
se dá no delito de fuga de preso (art. 351), cujo resul- gar ninguém a agir sem que tenha a possibilidade pes-
tado pode estar configurado com o início da fuga ou soal de fazê-lo. A norma não pode simplesmente obri-
evasão, não sendo preciso que esta efetivamente se gar a todos, incondicionalmente, traçando, por exem-
conclua. plo, a seguinte sentença: "Jogue-se na água para sal-
var quem se está afogando". Bem, se a pessoa não
sabe nadar, como irá se atirar na água para salvar quem
24. O TIPO DOS DELITOS OMISSIVOS se está afogando? Essa exigência incondicional é to-
talmente absurda e deve ser considerada como inexis-
24.1. Embora ainda sem previsão na Parte Es- tente ou incompatível com os fundamentos da ordem
pecial, salvo para os crimes omissivos próprios, será jurídica. Convém ressaltar que a real possibilidade de
possível equacionar os elementos caracterizadores do atuar está condicionada à modalidade de conduta típi-
tipo legal de um delito omissivo. ca a que se refere, simplesmente porque inexiste uma
TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 77
76

omissão em si, senão omissão de ação determinada60. soa, portanto, que não pode pessoalmente atuar não
pode pessoalmente ser responsabilizada por sua omis-
Isto quer dizer que, dependendo da configuração do
são. Esta condição constitui elemento do tipo dos cri-
tipo de injusto, essa real possibilidade pode expressar-
se de várias formas, associando-se a certas característi- mes omissivos, tanto próprios quanto impróprios.
cas da norma mandamental. Assim, por exemplo, nas 24.3. O tipo desses delitos não está constituído,
hipóteses de delitos vinculados exclusivamente a in- como se pensava, apenas por aquelas duas característi-
frações de deveres, nos quais o legislador negligenciou cas, da inação e da real possibilidade de atuar, mas
acerca da identificação do desvalor do resultado, con- contempla também a chamada situação típica omissi-
tentando-se com a mera inatividade, como ocorre na va, que são aquelas características que fundamentam a
sonegação fiscal, a real possibilidade deve também omissão constante do tipo, como expressão do conflito
englobar a capacidade individual de realizar aquela social que o Direito quer regular, através da determi-
específica conduta determinada pela norma, ou seja, a nação de condutas.
capacidade de pagar, a capacidade de fazer pessoal-
mente, a capacidade de prestar informações etc. Evi- A situação típica omissiva engloba todos aque-
dentemente, se o sujeito não possui dinheiro, não se les elementos ou supostos que se associam à inação e
omite de pagar o débito; se não sabe realizar certa ati- fundamentam o dever de agir e o conteúdo de injusto
vidade, em face de seu desconhecimento ou defi'ciên- do fato, de modo a justificar sua punibilidade. Assim,
cia de formação, não pode ser obrigado a assumi-la por exemplo, no crime de omissão de socorro, consti-
pessoalmente; se não detém a informação, porque esta tui essa situação a descrição acerca da criança abando-
se encontra inacessível, ou na posse de terceiro desco- nada ou extraviada e da pessoa inválida ou ferida, que
nhecido ou de alguém que se recusa a fornecê-Ia, não se encontrem ao desamparo ou em grave e iminente
se omite de -prestá-Ia. perigo. Portanto, o tipo do crime de omissão de socor-
ro não é preenchido simplesmente porque o sujeito não
Note-se que a real impossibilidade de cumpri- atua, isto é, não presta socorro. Mais do que isso, há
mento de dever não é, porém, apenas questão penal. O uma situação típica que fundamenta o dever de atuar.
próprio Código Civil, ao disciplinar acerca das moda- Se a vítima não se encontrar ao desamparo ou em gra-
lidade dos atos jurídicos, considera inexistentes as ve e iminente perigo, não há omissão relevante. Poderá
condições fisicamente impossíveis (art. 116). A pes- haver uma simples inação, mas não o tipo de delito
omissivo. É que a conduta ordenada, objeto da norma
60 KÜHL_ Strafrecht. Allgemeíner Teil, 1994, p. 564 e 55.
78 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS 79

mandamental, não se esgota no simples não-agir, senão deriva daquelas fontes mencionadas no art. 13, § 2° do
também é assinalada, como seu conteúdo de injusto, Código Penal, interpretadas com base nas circunstân-
naquelas circunstâncias típicas que a fundamentam. cias que constituem seu conteúdo (as relações familia-
Aqui se passa da mesma forma como nos delitos co- res e profissionais, e a responsabilidade pelas fontes de
missivos, cuja ação proibida, não se esgota na mera perigo), constitui um elemento do tipo desses crimes
causalidade, mas na realização de todos os demais omissivos impróprios, especializando o círculo dos
elementos típicos que a caracterizam como tal. Ao le- seus sujeitos.
gislador igualmente não importa a mera inação, mas
esta naquelas circunstâncias tipicamente descritas. Tendo em vista, ademais, a natureza da norma
mandamental, que se insere como pressuposto do deli-
No crime de omissão de notificação de doença to, na mesma medida da norma proibitiva, faz parte do
(art. 269), que constitui um exemplo clássico de norma
tipo, cpmo seu anexo, a afirmação da identidade entre
penal em branco, onde o mandamento é complementa- a não execução da ação possível para impedir o resul-
do através de ato administrativo dos órgãos do Minis- tado e o conteúdo social de sentido da ação típica do
tério da Saúde, a situação típica está expressada na delito comissivo correspondente. Como conseqüência
natureza da doença (de notificação compulsória) e na do princípio da legalidade, não será admissível aqui a
circunstância de haver sido ela identificada por médico afirmação da mera equivalência, como pensam alguns
no exercício profissional. autores, mas sim de absoluta identidade de injusto en-
tre a omissão e a comissão.
Portanto, não é a mera omissão ou inação que
configura o tipo dos delitos omissivos, mas também
uma situação típica que fundamenta seu injusto, por-
25. A CLÁUSULA DA EQUIVALÊNCIA
que essenciais à sua configuração.

24.4. Nos delitos omissivos impróprios, além da 25.1. A cláusula da equivalência, imaginada
omissão, da real possibilidade de atuar e da situação como um meio de legalizar a punibilidade da omissão
típica, agrega-se ainda o dever de impedir o resultado, não prevista em lei, apresenta seus antecedentes 1egis-
com base na posição de garantidor. lativos no Código Penal alemão (§ 13) e tem suscitado

A posição de garantidor, que justifica a assunção


do dever de impedir o resultado, como já se disse e
80 T AV ARES - CRIMES OMISSIVOS TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS 81

acesos debates, em parte pela sua indeterminação, em tuosa. Para estes, todos os delitos comissivos, portanto,
parte pela redação que tem recebid061. podem ser, sem mais, cometidos por omissã063.

A redação original do Código alemão é a seguin- 25.4. A inserção de uma cláusula da equivalên-
te: cia entre ação e omissão nada mais faz do que admitir
"§ 13 O cometer por omissão na interpretação integrativa dos tipos legais o argu-
mento analógico, vindo a ampliar indevidamente as
"Quem se omite de impedir um resultado possibilidades da punição por omissão. Uma tal cláu-
pertencente ao tipo legal de uma lei pe- sula é evidentemente inconstitucional porque viola os
nal, só é punível quando tenha o dever fundamentos e os corolários do princípio da legalida-
jurídico de evitar tal resultado e a omis- de, que exigem a descrição precisa de uma conduta
são eqüivale à sua produção por ação". estrita. Não basta para fundamentar a punibilidade que
se afirme uma semelhança entre ação e comissão. Será
2.'1.2. A um setor da doutrina, esta cláusula da preciso que o legislador indique, com absoluta preci-
equivalência teria a finalidade restrita de também in- são, os elementos que compõem essa punibilidade.
cluir no âmbito dos delitos omissivos impróprios
aqueles casos em que o resultado típico venha condici- Como no Código brasileiro não consta essa
onado a uma determinada e específica forma de reali- cláusula, a relação entre delito comissivo e omissivo
zação da ação, os chamados delitos de atividade vincu- não pode ser efetivada através do critério da equiva-
lada a um resultado62, delitos esses que se contrapõem lência, mas exclusivamente pelo critério da identidade.
aos puros delitos de resultado, que, para a sua ocor- Isto quer dizer que, para configurar um delito omissivo
rência, não pressupõem uma ação especial. impróprio, não previsto na lei, será indispensável que a
redação do tipo legal, combinada com as situações le-
25.3. Outros entendem que a cláusula da equiva- galmente expressas que fundamentam o dever de im-
lência significa a forma de atender ao princípio da le- pedir o resultado pela constituição do sujeito garanti-
galidade, fundamentando a punibilidade da omissão, dor, possa implicar o mesmo conteúdo de injusto do
sem qualquer consideração à modalidade de ação deli- seu cometimento por ação. Assim, conforme, aliás,

61 Crítico, RODRfGUEZMOURULLO- La cláusula general sobre Ia comisión por


omisión, in Política Criminal y Reforma Penal, 1993, p. 909 e ss. 63MAURACH-G6SSEL-ZIPF- Derecho Penal, Parte General, tradução argentina
62 LACKNER- StGB, 1993, p. 94. de Jorge Bofill Genzsch, 1995, tomo lI, p. 244.
82 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS
TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS 83

uma proposta de SILVA S ANCHEZ64, na ausência de uma era o único treinado, configura a assunção fática de
tipificação expressa dos delitos omissivos impróprios responsabilidade de proteção a seus convidados. Tem,
na Parte Especial, só seria admissível a sua punição, portanto, o dever de impedir que resultados lesivos
mas com pena atenuada (por aplicação do art. 66 do provenham do seu empreendimento, visto estar em
CP), num restrito número de casos, onde não haja dú- posição de garantidor da integridade do bem jurídico
vida de que o ato que descumpre a nonna mandamen- alheio. O mesmo se dá na hipótese da mãe que leva o
tal se identifique materialmente com o ato violador da filho à praia e o deixa aos cuidados de terceiro. Trata-
norma proibitiva, em razão da especial conformação se, como no exemplo do alpinista, da assunção fática
do injusto com vistas à direta proteção do bem jurídi- de responsabilidade de proteção do bem jurídico, vin-
co. Tal evidentemente, afora os casos expressos, só se do caracterizar sua omissão o delito de homicídio e
dá nos delitos contra a vida, a integridade corporal e a não simplesmente omissão de socorro.
liberdade, cujos objetos jurídicos, pela sua natureza e
pelas conseqüências, necessitam de uma imediata e 1,26.2. Embora a relação de parentesco gere soci-
oportuna intervenção protetiva, que não pode ser pos- almente uma vinculação maior entre as pessoas, no to-
tergada para não se tornar inócua6.'i. cante à proteção mútua, o innão omitente deve respon-
der somente por omissão de socorro, visto que, no
26. A SOLUÇÃO DOS CASOS âmbito das exigências formais inseridas no art. 13, §
2°, não está contida simplesmente a relação de paren-
26.1. Na hipótese do alpinista, embora inexista tesco, mas apenas a prévia existência de dispositivo
um acordo formal, capaz de caracterizar um contrato legal que a torne fonte da posição de garantidor. Como
profissional, o fato de o alpinista haver convidado pes- a legislação brasileira carece de tal dispositivo, a rela-
soas inexperientes para realizar uma tarefa para a qual çâô entre irmãos não constitui, por si só, fundamento
para o dever de impedir o resultado, mas apenas um
64 SILVA SANCHEZ - EI delito de omisión. Concepto y Sistema, 1986,p. 369; dever geral de assistência, que integra o tipo dos deli-
da mesma forma, RODRIGUEZ MOURULLO - La cláusula general sobre Ia co-
tos omissivos próprios, como a omissão de socorro.
misión por omisión. in Po1itica Criminal y Reforma Penal, 1993, p. 911 e ss.
65 No sentido de uma limitação dos delitos omissivos impróprios na Parte Parece injusta essa solução, mas será-a solução legal.
Especial, ALCIDES MUNHOZ NEITO, Os Crimes Omissivos no Brasil, in Re-
vista de Direito Pena], voI. 33,1982, p. 25; igualmente, SCHONE - Umerlasse- 26.3. Na hipótese do condômino, o síndico,
ne Erfolgsabwendungen und Strafgesetz, 1974, p. 356 e ZAFFARONI - Pano-
como administrador do prédio, tem a responsabilidade
rama Atual da Problemática da Omissão, in Revista de Direito Penal, voI. 33,
1982. p. 34 e ss. pelas fontes de perigo nele existentes e, portanto, o de-
ver de impedir os resultados que advierem de seu uso,
84 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 85

como forma de ingerência. Não se cogita aqui do atuar 27. CONCURSO DE PESSOAS E TENT ATIVA NOS
precedente, desde logo contrário ao dever, porque a CRIMES OMISSIVOS
execução da ação possível, que caracteriza o momento
omissivo, é gerada justamente com o fato lesivo à li- Dois outros aspectos dos crimes OffilSSlVOS
berdade do condômino, produzida pelo defeito no ele- constituem ainda questões polêmicas, ainda sem solu-
vàdor e levada ao conhecimento daquele que estava ções definitivas. São os aspectos relativos ao concurso
obrigado a saná-Io. Não o fazendo, cometeu, portanto, de pessoas e à tentativa. Aqui, a doutrina tem tomado
o crime de seqüestro por omissão. caminhos absolutamente contraditórios, sendo melhor
que se adotem regras especiais, direcionadas à respec-
26.4. Nos dois exemplos do salvamento, em que tiva modalidade de delito.
terceiro intervém, no processo de sua realização ou
quando o próprio omitente desiste de continuar com 27.1. Concurso de Pessoas
sua ação já iniciada, trata-se de delito comissivo, por-
que, independentemente da análise do tipo legal ou da 27.1.1. Como os crimes omissivos são delitos de
espécie de norma que compõe seu substrato, com as dever, para usarmos a terminologia proposta por
respectivas. ações incrementaram o risco da produção ROXINIíIí, há uma certa especialização dos sujeitos, quer
do resultado. A circunstância do incremento do tisco, porque se encontrem concretamente diante da situação
por sua vez, assinala a característica precipuamente de perigo e, assim, estejam obrigados a atuar em face
proibitiva da norma que passa a regular o fato. de um dever geral de assistência, quer porque apresen-
tem uma especial vinculação para com a proteção do
26.5. No exemplo do pai que deixa as crianças à bem jurídico.
espera do corpo de bombeiros, em vez de lançá-Ias aos
braços dos vizinhos, haverá apenas omissão e não Embora a norma mandamental possa se destinar
ação, podendo, porém, excluir-se a imputação objetiva, a todos, como na omissão de socorro, o preenchimento
em face da inexistência de um aumento do risco da do dever é pessoal, de modo que não é qualquer pessoa
produção do resultado ou da indiferença quanto à di- que pode ser colocada na posição do ornitente. Somen-
minuição das chances de salvamento. te podem ser sujeitos ativos dos delitos omissivos,
primeiramente, aqueles que se encontrem aptos a agir e

66 ROXIN_ Taterschaft und Tatherrschaft, 6' edição, 1994, p. 459 e ss.

J
86 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS
TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS 87

se situem diante da chamada situação típica; depois, conjunto que não irão proceder ao salvamento. Embora
aqueles que, estando em condições reais de impedir a um tenha aconselhado o outro acerca do que devesse
concretização do perigo, tenham uma vinculação es- fazer ou não fazer, inexiste no caso participação, por-
pecial para com a vítima ou para com a fonte produtora que um deles responderá por crime de omissão de so-
do perigo, de forma que se vejam submetidos a um de- corro e o outro por homicídio por omissão. Cada um,
ver especial de impedir o resultado. portanto, responde individualmente pela omissão e
seus efeitos, na medida de sua posição em face da
Consoante esse dado, podemos afirmar que nos proteção do bem jurídico. O pai viola o dever de im-
crimes omissivos não há concurso de pessoas, isto é, pedir o resultado, porque era garantidor da vida do fi-
não há co-autoria nem participaçã067. Cada qual res- lho. O outro viola o dever geral de assistência, porque,
ponde pela omissão individualmente, com base no de-
como cidadão presente na situação de perigo, tinha que
ver que lhe é imposto, diante da situação típica de pe- lhe prestar SOCOlTO.
rigo ou diante de sua posição de garantidor. Trata-se,
na verdade, corno expõe ARMIN KAUFMANN, de urna Note-se, assim, que o comportamento de cada
forma especial de autoria colateral. São estas suas pa- um, que pode coincidir com o comportamento do ou-
lavras: "Se 50 nadadores assistem impassíveis ao afo- tro, não é decisivo para determinar a participação. O
gmnento de uma criança, todos ter-se-ão omitido de que importa é a posição de cada sujeito diante da pro-
prestar-lhe salvamento, mas não comunitariamente. teção de bem jurídico. Como a realização do tipo dos
Cada um será autor do fato omissivo, ou melhor, autor delitos omissivos está associada a violações de deve-
co l atera l d e omlssao
. -" 68 .
res, desde que qualquer pessoa tenha violado o dever
que lhe é imposto, já estará dando início à execução do
27.1.2. EXEMPLON° 7. Alguém está na compa- fato, que, dependendo da configuração legal, pode
nhia de outra pessoa e vê terceiro afogar-se. Quem se exigir a verificação do resultado para a sua consuma-
está afogando é filho de uma das pessoas que obser- ção. Este raciocínio não muda, quando o dever que é
vam o afogamento. Os dois não só o observam, mas imposto aos vários agentes pertença à mesma fonte. Se
comentam entre si quem irá salvá-Io, ressaltando as in- os que se omitirem do salvamento forem ambos pais
certezas desse empreendimento. Afinal decidem em de quem se está afogando, assim mesmo sua comum
resolução não implica participação ou co-autoria. Já
67 WELZEL - Derecbo Penal AJemán, p. 284. que, como vimos, o comportamento de ambos não in-
6B ARMIN KAUFMANN - Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, p. 189. terfere na realização do tipo de. delito que lhe seja atri-
88 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS T AVARES - CRIMES OMISSIVOS 89

buível, a participação, pelos seus fundamentos, não 27.2. Tentativa


pode exclusivamente derivar da fonte do dever de agir.
27.2.1. No tocante à tentativa, as coisas são um
Quer dizer, mesmo que os deveres remontem à mesma
pouco mais complexas. Podemos aqui afirmar, se bem
origem, o omitente não deve ser visto na qualidade de
que teoricamente se pudesse pensar ao contrário, que
portador de um dever solidário, mas, sim, como pessoa
nos crimes omissivos próprios não se admite tentativa,
individual, sobre quem recai o mandato normativo de
porque, uma vez que a omissão esteja tipificada na lei
realizar determinada ação para afastar a ocorrência do
resultado. como tal, se o sujeito se omite, o crime já se consuma;
se o sujeito não se omite, realiza ele o que lhe foi man-
dado.
27.1. 3. Resta examinar a posição de terceiro,
que através de conduta comissiva, contribui para a 27.2.2. Nos crimes omissivos impróprios, entre-
omissão de quem tinha o dever de impedir o resultado. tanto, a doutrina tem admitido a tentativa, mas alteran-
Da mesma forma que inexiste participação ou co- do as suas bases tradicionais.
autoria nos delitos omissivos, quando os sujeitos se
omitirem em face da mesma situação de perigo, aqui No campo da diferenciação entre atos prepara-
também será impossível admitir-se a relevância dessa tórios e executivos do delito, a doutrina brasileira
outra modalidade de participação. Deve-se seguir nbste adota, em sua maioria, sendo isto tradicional em nosso
contexto a ponderação de ROXIN, ao estipular como país, a teoria formal-objetiva, segundo a qual haverá
pressuposto de qualquer concurso de agentes que todos tentativa toda vez que, iniciada a realização estrita da
os participantes estejam subordinados aos mesmos ação típica, não é alcançada a consumação do delito
critérios de imputaçã069, o que não se dá quando se por circunstâncias alheias à vontade do agente. Esta
trata de delitos comissivos e omissivos, em face da fórmula, que adveio do direito liberal burguês, é con-
própria estrutura da norma. Cada qual - agente e omi- seqüência de uma interpretação formal e restritiva dos
tente - serão igualmente autores do fato, o primeiro de dispositivos legais que regulamentam a tentativa, com
crime comissivo e o outro de crime omissivo. base no início da execução. E é de se notar que a defi-
II
nição legal da tentativa inserida no art. 14, do Códi-
go Penal brasileiro é igualmente da tradição dos países
da América Latina, como, por exemplo, dos códigos da
Argentina (art. 42), Chile (art. 7°) e Uruguai (art. 5).
69 ROXIN _ Taterschaft und TaUlerrschaft, p. 470.
90 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TA V ARES - CRIMES OMISSIVOS

A questão principal da tentativa reside justamen- orientações são igualmente defeituosas, não havendo
te na determinação do que constitua esse início de exe- até agora uma solução definitiva e escorreita na de-
cução. A teoria fonnal-objetiva, fiel ao enunciado da terminação precisa do que se deva entender por início
teoria causal-naturalista, só poderia considerar como da execução.
início da execução aquilo que, objetivamente, desse
impulso ao desenrolar da ação típica, tomada no con- 27.2.4 .. EXEMPLO N° 8. Dois ladrões pretendem
texto da causalidade. No crime de homicídio, por arrombar urna casa, que é guardada por ferozes cães,
exemplo, a tentativa só teria lugar no instante em que o além de possuir grades e alarmes em p011as e janelas.
agente iniciasse a ação de matar, isto é, começasse a Para realizarem o furto, necessitam, previamente,
contornar esses obstáculos. Primeiramente, matam os
disparar contra a vítima, ou a esfaqueá-Ia, ou a minis-
trar-lhe veneno, etc. cachorros; depois colocam ácido nas grades e fechadu-
ras e"finalmente, provocam um curto-circuito para de-
Esta teoria, entretanto, embora tenha seus méri- sativar o sistema de alarme. Pela teoria formal-
tos incontestáveis, principalmente no sentido de buscar objetiva, esses atos, que não podem ser identificados
uma precisa delimitação da zona que separa a conduta com a ação de subtrair, constituem meros atos prepara-
proibida da permitida, não é suficientemente apta a, tórios, impuníveis. Pela teoria material-objetiva,
diante de alguns casos controvertidos, proteger opor- constituiriam já início da execução do delito de furto,
tuno tempore o bem jurídico. porque estariam integrados em plano natural à própria
ação típica de subtrair, como seus sucedâneos, e teriam
Como a teoria formal-objetiva parte do início da colocado em perigo o bem jurídico. A mesma solução
seria dada pela teoria subjetivo-objetiva, com base no
realização estrita da ação típica, está claro que enfren-
tará enormes dificuldades quando aplicada aos crimes plano dos agentes.
omissivos, que não podem ser retratados materialmen-
te. 27.2.5. A questão da aplicação dessas teorias
alternativas reside, porém, na insegurança jurídica que
27.2.3 .. Como complemento a esta teoria pura- podem gerar, porque, desvinculadas da exata configu-
mente formal, a doutrina tem desenvolvido outros cri- ração da ação típica, começam a interpor na análise do
térios, como os da teoria material-objetiva ou da teo- tipo critérios nem sempre inequívocos, como o do su-
cedâneo natural da ação típica. A superação desses
ria subjetivo-objetiva, agregando-se-Ihes ainda o cri-
tério do perigo para o bem jurídico. Mas, todas essas
92 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 93

problemas de segurança só pode ser alcançada no caso ção majoritária da doutrina70, quando se trata de crimes
concreto. comlSSlVOS.

No exemplo n° 8, os atos praticados pelos la- 27.2.7 .. Nos crimes omissivos impróprios, o
drões estão descritos no Código Penal como modali- início da execução se dá com a violação do dever de
dade qualificada de execução do delito de furto (art. impedir o resultado, que faz parte do tipo de injusto.
155, § 4°, I), o que os carateriza como atos de execu- Mas essa violação deve manifestar-se concretamente,
ção da própria ação típica, desde que, entretanto, a único modo de colocar em perigo o bem jurídico.
subtração deva ser praticada imediatamente após
aqueles atos. Se entre tais atos, embora referidos como A doutrina tem-se orientado aqui em três senti-
formas qualificadas do agir, e a ação típica de subtrair dos: a) ou no sentido de tomar como decisiva a não
houver uma solução de continuidade, porque, por utilização da primeira possibilidade de salvamento 71;
exemplo, os ladrões pretendiam entrar na casa somente b) da última chance de fazê-Io 72, ou c) ainda do perigo
no dia seguinte, o fato de matarem o cachorro, despeja- concreto para o bem jurídico, produzido pelo atraso na
rem ácido nas grades ou provocarem um curto-circuito prática da ação apta a impedir a lesão 73.
ainda não constitui início da execução do furto. ,
I Parece que a melhor solução será dada por uma
27.2.6. Independentemente da teoria que se variante objetiva da proposta seguida por WESSELS 74:
adote, se um determinado ato vier referido na lei como se o perigo para o bem jurídico só ocorrerá mais tarde,
elemento de qualificação, ou forma agravada, o que o início da execução não pode se dar com a não utili-
deve valer é a relação direta entre esse ato e a imediata zação da primeira chance de salvamento, mas, sim,
realização da ação típica. Aqui, praticamente, o pró- com a não utilização da última: quando o perigo entrar
prio legislador descreve o ato, que poderá ou não ser
ato de execução, dependendo de sua relação para com 70JESCHECK- Tratado, p. 471; ROXIN - Tatentsch1u~ und Anfang der Aus-
fiihrung, in Juristische Schu1ung, 1979, p. 1; WESSELS- Strafrecht, AT, 1992,
a realização da ação típica. Se o ato, previsto como
forma qualificada, for praticado dentro do plano de ~l' 1H82RZ·
E BERG - D'le K ausa 1'"ltat b'elm unec h ten U nter 1assungs d e1'k ' M0-
1 t, lU
natsschrift fur Deutsches Recht, 1971. p. 881.
imediatamente após ser realizada a ação típica, tal ato 72 ARMINKAUFMAt"lN - Die Dogmatik der Unter1assungsdelikte, 1959, p. 210;
já constitui início de execução do delito. Esta é a posi- WELZEL - Derecho Penal A1emán, tradução de Bustos Ramirez e Yafíez Pé-
rez, 1970, p. 305.
73 JESCHECK- Tratado, p. 581.
74 WESSELS- Strafrecht, AT, p. 238.
94 TAVARES- CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 95

em sua fase aguda. Assim, se o filho cai nos trilhos, dolosas, praticados por omissão e não o crime de ex-
mas o trem só passará por ali dentro de uma hora, a posição ou abandono de recém-nascido (art. 134), que
omissão do salvamento imediato não configura ainda só se configura com o preenchimento, além do dolo de
um início de execução. Este só se verificará quando o perigo, de um elemento subjetivo especial, que é a fi-
trem já estiver efetivamente prestes a passar. nalidade de ocultar desonra própria. Neste último
caso, tendo em vista justamente essa finalidade espe-
27.2.8. Por outro lado, há de se distinguir aqui cial, o legislador considerou o ato de abandono como
entre tentativa acabada e tentativa inacabada. Só esta delito autônomo de perigo, isto, entretanto, sem des-
última é que deve submeter-se a tal raciocínio, pois o cartar a hipótese de que esse mesmo ato por si mesmo
desdobramento posterior do fato depende da omissão já constitua início de execução do homicídio ou das
do próprio sujeito. Na tentativa acabada, na qual a se- lesões corporais, dependendo do dolo do sujeito.
qüência do fato está à própria sorte dos acontecimen-
tos, a execução terá início a partir do momento em que
o sujeito não se vale da primeira chance, deixando que
a causalidade siga normalmente seu curso. Por exem-
plo, se mãe deixa de alimentar seu filho recém- 28. DOLO E ERRO
nascido, o início da execução ocorrerá quando a falta
de alimentação já tenha provocado danos à sua saúde, 28.1. Os crimes omissivos apresentam ainda
de modo que deva ela imediatamente realimentá-Io, uma particularidade no tocante ao dolo. Diferentemen-
mas deixe passar essa chance. Antes disso, não haveria te dos crimes comissivos, onde o dolo deve orientar-se
início da execução, porque o perigo da realização do à realização da ação típica, nos crimes omissivos o
resultado ainda não se havia manifestado. dolo se expressa como a decisão acerca da inação, com
a consciência de que o sujeito poderia agir para evitar
Ao invés, se a mãe abandona na rua o recém- o resultado. Não basta, por conseguinte, para reconhe-
nascido, deixando-o à sua própria sorte, com este ato cer-se o dolo a mera consciência da situação funda-
de abandono já se inicia a execução, pois, a partir daí, mentadora do dever de agir, ou o conhecimento do seu
passa ela a não ter qualquer domínio sobre a causali- poder de fato para realizar a ação omitida, como queria
dade, estando desde logo presente o perigo da ocor- WELZEL75. Mais do que isto, será necessário demons-
rência do resultado. Estamos aqui analisando aspectos
da execução de homicídio doloso ou lesões corporais 75 WELZEL - Derecho Penal Alemán, p. 282.
96 TA VARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 97

trar-se que o sujeito inclua na sua decisão a não execu- Ademais, para que lhe seja exigida a atuação, deve co-
ção da ação possíve176• Esta é uma exigência, inclusi- nhecer qual conduta deva realizar dentro das ativida-
ve, que deflui dos próprios termos do art. 18, I do Có- des possíveis, por exemplo, lançar o salva-vidas, ati-
digo Penal, que não prescinde do elemento volitivo na rar-se na água, pedir socorro à autoridade, usar o extin-
configuração do dolo e que deve ser tomado em conta tor de incêndio, etc., conjugadamentecom a represen-
igualmente nos delitos omissivos. tação acerca de que com essa conduta específica e
possível será evitado ou impedido o resultado. Neste
Além disso, deve conhecer o omitente todas as último caso, agrega-se à sua representação o fato de
circunstâncias que compõem a chamada situação típi- que sem sua atuação estarão diminuídas as chances de
ca e, nos crimes omissivos impróprios, ainda dados que o resultado seja evitado ou impedido. No que toca
fáticos que fundamentam sua posição de garantidor. aos supostos da posição de garantidor, há que se dis-
Isto quer dizer que, nos delitos omissivos impróprios, tinguir o seguinte: a) não precisa o omitente conhecer
deve integrar a representação do omitente a ocorrência a norma legal ou contratual que lhe imponha o especial
do resultado, a modalidade de conduta necessária a dever de proteção, basta que conheça a relação fática
impedir o resultado, a possibilidade de sua atuação, a que lhe dá substrato (relação de parentesco, relação
evitabilidade do resultado em virtude de sua, atividade profissional, relação especial de proteção etc.), b) se se
e a subsistência de uma relação, legal ou ccmtratual- houver comprometido faticamente a exercer a prote-
mente prevista, ou faticamente assumida de proteção ção, deve ter conhecimento de que a assumiu e c) se
do bem jurídico e ainda a prática de uma conduta ante- produziu com sua atuação anterior o risco da ocorrên-
ce dente arrIsca
. da77 . cia do resultado, deve igualmente saber que sua atua-
ção era contrária ao dever e portanto arriscada. Caso
28.2: Relativamente à ocorrência do resultado, o não estejam presentes esses dados na representação do
omitente deve saber, diante das circunstâncias objeti- agente, inexistirá delito omissivo doloso, restando lu-
vas que são apresentadas, que o resultado típico gar apenas à sua configuração culposa, se prevista em
(morte, lesão, privação de liberdade etc.) irá acontecer. lei. Não precisa ser abrangida pelo dolo a afirmação da
identidade valorativa entre a omissão e a ação. Essa
76 Assim também, ALCIDESMUNHOZNETIO - Os Crimes Omissi vos no Bra- identidade não constitui propriamente um elemento do
sil, RDP, 33, p. 27 e HELENOFRAGOSO- Crimes Omissivos no Direito Brasi- tipo de injusto, mas seu anexo, com vistas a justificar a
leiro, RDP, 33, p. 47.
77 NAUCKE_ Strafrecht, Eine Einführung, 1991, p. 308, além desses elemen- sua punibilidade em face do princípio da legalidade,
tos, ainda inclui no momento intelectivo do dolo a exigibilidade da ação de quando não expressamente previsto.
salvamento, que para ele faz parte do tipo de injusto.
.....
r
98 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 99

culpabilidade, se inevitável, subordinando-se aos di-


28.3 .. Da mesma forma como ocorre com os tames contidos no art. 21. Aqui, o que pouco importa é
delitos comissivos dolosos, o erro quanto a qualquer a terminologia, se erro de mandato (ou mandamento)
desses pressupostos de fato e inclusive sobre a posição ou erro de proibição, senão sua incidência sobre a
de garantidor é erro de tipo, que exclui o dolo. O erro, antijuridicidade da conduta. Em alguns casos, não será
aqui, deve, entretanto, referir-se aos elementos do tipo fácil distinguir entre erro de tipo e erro de mandato,
de delito omissivo e não aos elementos dos seus ane- principalmente quando, como se verifica no chamado
xos. Assim, no exemplo de NAUCKE,do policial que Direito Penal Econômico, o sujeito não pode conhecer
assiste, sem nada fazer, ao espancamento de alguém, a ação que lhe é imposta e que, portanto, deve praticar,
porque acredita ser incapaz de conter a agressão, a sem conhecer previamente o dever de realizá-Ia. Neste
qual poderia voltar-se contra si mesmo, não terá seu particular, a jurisprudência alemã, por exemplo, vem
dolo excluído em face de não haver representado sua aceIttuando tratar-se de erro de tipo, exc1udente do
omissão c.omo se fora uma ação 78. Seu comportamento dolo,' o desconhecimento dos deveres de prestar decla-
deverá ser analisado, quanto ao dolo, sob o aspecto das ração ou informação ao fisco, ou de registrar estoque,
atividades realmente possíveis de impedir o resultado. ou da obrigatoriedade de informar ao censo etc.79. Esta
que lhe eram impostas. Se efetivamente acredita ele matéria não é nova no Brasil, onde a partir de 1990
que sua atuação é impossível, porque fisicamente não começaram a brotar desordenadamente tipos penais
lhe será viável, por qualquer meio, impedir ou suspen- omissivos em matéria tributária e previdenciária, nos
der o espancamento, sendo o erro inevitável, não lhe quais a omissão está vinculada necessariamente ao co-
será imputada uma conduta omissiva. Se o erro é evi- nhecimento prévio do dever de agir, por ser este mes-
tável, restará a punição por lesão corporal culposa por mo constitutivo da própria incriminação. Nesses casos,
omissão. O erro não exclui simplesmente o dolo nos o desconhecimento do dever de prestar informações ao
delitos omissivos impróprios, mas também nos delitos fisco, ou de recolher contribuições, por exemplo, não
omissivos próprios. será erro de mandato, mas erro de tipo, que exclui o
dolo.
28.4. Por outra parte, o erro sobre o dever de ga-
rantidor, como tal, é erro de mandato, que exclui a

78 NAUCKE - Strafrecht, Eine Einführung, 1991, p. 306, exclui aqui não pro-
priamente o dolo, mas o fundamento da equivalência, porque a omissão do
policial não se podia equiparar à ação. 79 CRAMER _ Strafgesetzbuch Kommentar, 24" edição, 1991, p. 246.
100 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 101

29. A INEXIGlBILlDADE DE CONDUTA DIVERSA·


substrato. Esta íntima relação entre dever e exigibili-
dade de conduta diversa é de tal modo significativa
Uma vez que nos delitos omissivos vigoram as que autores de renome como NAUCKEa inserem no
mesmas regras e os mesmos fundamentos para o juízo
próprio tipo de injusto. Na realidade, o juízo de exi-
de culpabilidade dos crimes comissivos, a doutrina
tem-se manifestado contraditoriamente no tocante à gibilidade deve ser feito, aqui, em duas etapás: no tipo
de injusto tem-se em vista a real possibilidade de reali-
possibilidade de se adotar aqui uma causa supra-legal
zar a ação mandada, e na culpabilidade a capacidade
de exculpação.
de motivação do sujeito. Nos delitos omissivos impró-
.Após a perda da importância do fundamento da prios, onde esta matéria se mostra de importância, a
culpabilidade com base no poder agir de outro modo, questão da inexigibilidade está vinculada praticamente
a decisão acerca da inexigibilidade de conduta con- à determinação do dever de garantidor, que condicio-
forme à norma deve passar necessariamente por outra na, como elemento do injusto, a própria culpabilidade.
avaliação. Na verdade, o fundamento do juízo de cen- Mas, convém salientar que aqui não são levados em
sura da culpabilidade deve residir na capacidade de conta os pressupostos materiais ou formais da posição
motivação do agente conforme às exigências da ordem de garantidor, que constituem elemento próprio da ti-
jurídica e não no seu a priori indemonstrável poder picidade, senão o domínio do sujeito acerca do acon-
agir de outro modo. Para isso, torna-se indispens5vel tecimento, ·com vistas à sua capacidade concreta de
que na emissão desse juízo se tenha em consideração o atender à imposição normativa de proteção do bem ju-
papel social do sujeito, seu comprometimento para rídico posto em perigo. O que fundamenta, portanto, a
com a defesa e proteção do bem jurídico e sua capaci- censura da culpabilidade é o j uízo se o sujeito, nas cir-
dade pessoal de internalizar os mandamentos normati- cunstâncias em que se encontrava, dominava o proces-
vos. Somente depois da análise e demonstração desses so de produção do resultado e poderia, então, motivar
pressupostos, é que será possível o exame de uma cau- seu comportamento de acordo com o mandamento
sa geral de exculpação, com base na chamada inexi- normativo. Ao mesmo tempo em que se justifica a in-
gibilidade de conduta diversa. serção dos elementos de fundamentação da posição de
garantidor com base no fato de que, naquelas hipóte-
Ao tornar concreta essa análise, podemos dizer ses, a vítima como portadora do bem jurídico se encon-
que a questão da inexigibilidade de conduta diversa trava incapacitada de exercer sua função protetiva, ao
nos delitos omissivos está essencialmente vinculada à inverso, ao sujeito será censurável a omissão da ação
natureza da norma mandamental que constitui seu legal ou juridicamente ordenada quando, apesar de

Lmn
TAVARES - CRIMES OMISSIVOS 103
102 TAVARES - CRIMES OMISSIVOS

exercer o donúnio do fato, se insira no âmbito de pro- to não se situa no âmbito de proteção do bem jurídico
teção do bem jurídico e esteja capacitado de motivar- e, portanto, não se pode motivar de acordo com a de-
se e, pois, de atender à essa determinação. terminação da norma, não merecendo, por isso, o juízo
de censura da culpabilidade.
Sob estes fundamentos, não há como negar-se a
possibilidade da adoção de uma cláusula geral de ex-
culpação nos delitos omissivos. Basta que não se de-
monstre no caso concreto a necessária vinculação entre
o donúnio do fato e a capacidade pessoal de atender às
imposições destinadas a exercê-Io na proteção ao bem
jurídico, para que se exclua a culpabilidade, por ser
inexigíve1 ao sujeito outro comportamento. Assim, não
haverá culpabilidade naquelas hipóteses em que o su-
jeito, diante de uma situação de colisão de deveres ou
de interesses, deixa de realizar a ação mandada para
evitar lesão a bem jurídico próprio ou de terceiro pró-
xim080, como no exemplo dos pais que deixam de im-
pedir a ação de tráfico de drogas de sua filha para não
expô-Ia à prisão; ou no exemplo do sujeito que deixa
de declarar a verdade, como testemunha, para não se
submeter, ele mesmo, a um procedimento criminal
pelo fato acerca do qual está prestando depoimento; ou
no exemplo do maquinista que deve, ao mesmo tempo,
manter-se na condução do comboio em face de uma
êurva perigosa ou impedir a morte de seu filho menor,
que está prestes a cair do vagão, etc. É que nestes ca-
sos, diante da colisão de interesses ou deveres, o sujei-

RUDOLPHI - Strafgesetzbuch, Systematischer Kommentar, pré-anotação ao


,,0

~ 1.;; com reservas, MAURACH-ZIPF-G6sSEL - Derecho Penal, PG, VoI. lI, p.


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o Instituto Latino-Americano de
Cooperação Penal, integrado principalmen-
te por juristas pertencentes a países do Mer-
co$ul. tem por finalidade o estudo, a pesqui-
sa, a análise, a assessoria e consultoria pri-
vada c governamel1lal em assuntos referen-
tes à cooperação internacional no ftmbito
penal e processual penal. hem como a for-
maç80 de pessoal especi(]lizado na adminis-
tração da justiça e nos cursos profissionali-
zantes na área juridica.

Em colaboração com (] FundaciÓn


de ESLUelios para Ia Justicia - FUNDE.1US -
o Instituto desenvolve atividades relaciona-
lias ao ensino de grande qualidade ou de
qualidade total. em especial as de nível su-
perior de especializ.ação Imo el Slric/() sel1-
suo em qualquer parte do territÓrio nacional
Oll no exterior, ohjetivando também ofere-
cer llportunidades ele instruç;lo à população
c PJ()porcjonar assistência educacional a
estudantes carentes hem dotados.

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