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9. Prazer, angistia, raiva e couraca muscular Na pratica da andlise do cardter, descobrimos que a couraga fun- ciona sob a forma de atitudes musculares cronicas e fixas. Em primei- ro lugar, sobressai a identidade dessas varias fungées; elas podem ser compreendidas com base em um tnico principio, a saber, 0 do en- couracamento da periferia do sistema biopsiquico. A economia sexual aborda esses problemas do ponto de vista da fungao psiquica da couraga, e, a esse respeito, tem algo a dizer. Ela tem origem na necessidade pratica de restabelecer a liberdade de mo- vimento vegetativo do paciente. Além desses dois afetos primarios, sexualidade e angistia, temos um lerceiro, a raiva, ou, mais precisamente, 0 6dio. Como nos dois primeiros, aqui também devemos supor que, em expressdes como. “ferver de raiva” ou “raiva devoradora”, para descrever a raiva nao descarregada, a linguagem cotidiana reflita um processo biofisiolégico real, Acreditamos que seja possivel compreender toda a variedade de afetos com base nesses és afetos bisicos, a partir dos quais se po- dem deduzir mesmo os impulsos afetivos mais complicados. Porém, é preciso provar se, até que ponto, o afeto de raiva pode ser deduzi- do das vicissitudes dos dois primeiros impulsos afetivos. Descobrimos que a excitacdo sexual e a angtistia podem ser en- tendidas como duas direcdes de corrente opostas. Como se relaciona a funcdo do édio com os dois afetos primarios? Vamos partir do estudo clinico da couraga do cardler. Esse con- 12, Para dar um exemplo mais conereto, posso citar a fusdo de dois gametas. Po- de-se apenas conjeturar quanto a profunda relagio com as sensacdes ongasticas de der- retimento. 13, Nota, 1945: A importincia decisiva da compreensio econémico-sexual das idéias de “estourar’, “morrer”, “derreter’ etc., 86 foi realmente revelada entre 1936-1940, quando, com base nessa hipétese, descobriram-se os bions ¢ a energia fisica na atmos. fera, Sabemos, hoje, que o medo neurdtico de estourar expressa a expansio orgonética inibida do Diossistema. 313, ceito foi criado para dar uma compreensio dinamica e econdmica acerca da fungado basica do carater. De acordo com o ponto de vista econdmico-sexual, o ego assume uma forma definida a partir do con- flito entre a pulsdo (essencialmente necessidade libidinal) e 0 medo de castigo. Para conseguir realizar a restrigdo das pulsdes exigida pelo mundo moderno e ser capaz de lidar com a estase de energia que re- sulta dessa inibicao, o ego tem de passar por uma alterac4o, O pro- cesso a que nos referimos, embora falemos dele em termos absolutos, é definitivamente de natureza causal. O ego, isto é, a parte do indivi- duo exposta ao perigo, torna-se rigido quando esté continuamente sujeito ao mesmo conflito, ou a conflitos semelhantes, entre a neces- sidade e o mundo externo gerador de medo. Nesse processo, adquire um modo de reacdo crénico, que funciona automaticamente, ou seja, seu “carater”, E como se a personalidade afetiva se encouracasse, co- mo se a concha dura que ela desenvolve fosse destinada‘a desviar e a enfraquecer os golpes do mundo externo bem como os clamores das necessidades internas. Esse encouragamento torna a pessoa menos sensivel ao desprazer, mas também restringe sua motilidade agressiva e libidinal, reduzindo assim a capacidade de realizacio e de prazer. Dizemos que o ego ficou menos flexivel e mais rigido; e que a capa- cidade de regular a economia de energia depende da extensao do en- couragamento. Consideramos a poténcia orgdstica como um meio de medir essa capacidade, dado que ela é uma expressao direta da moti- lidade vegetativa. O encouragamento do cardter requer energia, por- que € sustentado pelo consumo continuo de forgas libidinais ou ve- getativas que, de outro modo (no caso de sua inibicdo motora), pro- duziriam angustia. E assim que a couraga do carater cumpre sua fun- cdo de absorver e consumir energia vegetativa. Quando a couraga do cardter é desfeita pela andlise do cardter, a agressividade fixada geralmente vem a superficie em primeiro lugar. Mas a ligagao da agressividade ou da angustia, tantas vezes mencio- nada, é representada de maneira concreta? Se, mais tarde, no decorrer da andlise do carater, conseguimos li- berar a agressividade ligada na couraga, 0 resultado sera a liberag’o da angiistia. Portanto, a angustia pode ser “transformada” em agres- sAo, e a agressdo, em angtistia. A relacao entre angistia e agressivida- de é andloga a relacdo entre angustia e excitacdo sexual? Nao é facil responder a essa questdo. Para comegar, nossas investigacdes clinicas revelam diversos fa- tos peculiares. A inibigdo da agressividade e a couraca psiquica an- dam de maos dadas com um ténus aumentado; sendo que as vezes ha até uma rigidez na musculatura das extremidades e do tronco. Pa- cientes com bloqueio afetivo deitam-se no divi duros como taébuas, 314 totalmente rigidos e iméveis. Nao é facil conseguir uma alteracdo nes- se tipo de tensao muscular. Se o analista tenta persuadir o paciente a relaxar, a tenséo muscular € substituida por inquietagdo. Em outros casos, observamos que os pacientes fazem varios movimentos invo- luntérios, cuja inibigao imediatamente produz sentimentos de angtis- tia. Foi a partir dessas observagdes que Ferenczi se inspirou para de- senvolver sua “técnica de interferéncia ativa”. Ele percebeu que o blo- queio das reagSes musculares crénicas aumenta a estase. Concorda- mos com isso, mas achamos que se pode deduzir mais dessas obser- vagdes do que a mera ocorréncia de mudangas quantitativas na exci- tacdo, Trata-se na verdade de uma identidade funcional entre couraga do carater e hipertonia ou rigidez muscular. Todo aumento de tonus muscular e enrijecimento 6 uma indicagdo de que uma excitagao ve- getativa, angtistia ou sensacdo sexual foi bloqueada e ligada. Quando surgem sensages genitais, alguns pacientes conseguem elimina-las ou enfraquecé-las por meio de agitacéo motora, O mesmo se pode dizer da absorgéo dos sentimentos de angiistia. A esse respeito, recor- damo-nos da grande importancia da agitagdo motora, na infancia, co- mo meio de descarregar energia. Observa-se, muitas vezes, que ha uma diferenga no estado de ten- sao muscular antes e depois de se solucionar um recalque severo. Em geral, quando os pacientes estéo em estado de resisténcia, isto é, quan- do uma idéia ou uma mog&o pulsional é barrada da consciéncia, eles sentem uma tensdo no couro cabeluclo, na parte superior das coxas, na musculatura das nadegas etc. Quando conseguem superar essa resis- (€ncia por si mesmos ou pela interpretagdo correta do analista, sentem- se subitamente aliviados, Numa situac4o dessas, uma paciente disse, certa vez: “B como se eu tivesse experimentado uma satisfaco sexual”, Sabemos que toda recordacao do contetido de uma idéia recalca- da produz também um alivio psiquico, Contudo, esse alivio nao cons- titui uma cura, como julgam os leigos, Como se produz esse alivio? Sempre defendemos que ele é produzido por uma descarga de ener- gia psiquica previamente ligada, Deixemos de lado o alivio e a sensa- (do de satisfacao que acompanham cada nova realizagdo. A tensio psiquica e 0 alivio néo podem existir sem uma representacdo somiati- ca, porque a tensio € o relaxamento sao estados biofisicos. Até agora, aparentemente, apenas transferimos esses conceitos para a esfera psi- quica. Agora, precisamos provar que tinhamos razdo ao fazé-lo, Mas seria errado falar na “transferéncia” de “conceitos fisiologicos para a esfera psiquica, porque o que temos em mente nao é uma analogia, e sim uma identidade real: a unidade da funcao psiquica e somatica. Todo neurético é muscularmente disténico e toda cura se mani- festa diretamente num “relaxamento” ou numa melhora do ténus 315 muscular. Esse processo pode ser melhor observado no cardter com- pulsivo, Sua rigidez muscular expressa-se em desajeitamento, movi- mentos sem ritmo, especialmente no ato sexual, falta de expressio mimica, musculatura facial tipicamente retesada, que muitas vezes da- The uma certa semelhanga com uma mascara. Também é comum a es- se tipo de carater uma ruga que se estende desde acima da asa do nariz até o canto da boca, bem como uma certa rigidez na expresso dos olhos, por causa do enrijecimento da musculatura palpebral. A musculatura das nadegas esta quase sempre tensa, O carter compul- sivo tipico desenvolve uma rigidez muscular geral; em outros pacien- tes essa rigidez se combina com uma flacidez Chipoténus) de outras Areas musculares, 0 que, contudo, nao reflete relaxamento. Isso € co- mum nos caracteres passivo-femininos. E depois ha, evicentemente, a rigidez do estupor catat6nico, que acompanha o completo encouraga- mento psiquico. Em geral, isso é explicado como perturbagées das inervag6es extrapitamidais. Nao duvidamos de que os tratos nervosos correspondentes estio sempre envolvidos nas mudangas do ténus muscular, Nessa inervac&o, contudo, de novo percebemos apenas uma perturbagdo geral da fungdo, que se exprime através dela. B in- genuidade acreditar que se explicou alguma coisa com a descoberta da inervagao ou de seu caminho. A rigidez psiquica na p6s-encefalite nao é “expresso” de rigidez muscular nem resulta dela. A rigidez muscular e a rigidez psiquica sdo uma unidade, sinal de uma perturbagao da motilidade etativa do sistema biolégico como um todo. E uma questio ainda ndo res- pondida se a perturbagao da inervacio extrapiramidal nao é ela pro- pria o resultado de algo agindo num nivel primario, que j4 danificou © proprio aparelho vegetativo, e no apenas os 6rgios afetados. A neurologia mecanicista, por exemplo, explica um espasmo do esfinc- ter anal com base na continua excitag4o dos nervos correspondentes. A diferenga entre os pontos de vista mecanicista-anatémico e funcio- nal pode ser facilmente demonstrada: a economia sexual entende os nervos apenas como transmissores da excitagdo vegetativa geral. © espasmo do esfincter anal, que é a causa de diversas pertur- bagées intestinais muito graves, € provocado por um medo de evacua~ ¢do adquirido na infancia. Constitui um bloqueio. Explica-lo com ba- se no prazer derivado da contenc4o dos movimentos do intestino nao parece chegar ao fundo da questdo. Berta Bornstein descreve a reten- ao das fezes numa crianca de ano e meio. Com medo de sujar o ber- go, ela ficava num permanente estado espasmédico e, 4 noite, s6 conseguia clormir sentada e encolhida, com as maos fechadas. A con- tencdo muscular das fezes é 0 protétipo do recalque em geral e seu passo inicial na zona anal. Na zona oral, o recalque se manifesta pelo 316 enrijecimento da musculatura da boca por um espasmo na muscula- tura da laringe, da garganta e do peito; na zona genital, manifesta-se como tens&o continua na musculatura pélvica. A liberacado da excitagdo vegetativa de sua fixagdo nas tensdes da musculatura da cabeca, garganta, maxilares, laringe etc., 6 um dos re- quisitos indispensdveis para a elimina¢go das fixacdes orais em geral. De acordo com nossas experiéncias em andlise do carater, nem a re- corda¢ao das experiéncias e dos desejag orais nem a discussio da an- gtstia genital podem ter 9 mesmo valor terapéutico, Sem a liberagao da excitagao, o paciente recorda, mas po sente as excitacdes, que geralmente estio muito bem escondidas. Passam despercebidas, es- condendo-se em modos de comportamento que parecem constituir o jeito natural da pessoa. Os segredos mais importantes dos deslocamentos patolégicos e da ligagdo de energia vegetativa esto contidos em geral em fendme- nos como estes: voz inexpressiva, languida ou muito aguda; tensdo no labio superior ao falar; express4o Facial imével ou semelhante a uma méscara; indicios, mesmo ligeiros, da chamada “cara de bebé’; tuga imperceptivel na testa; pdlpebras caidas; tensées no couro cabe- ludo; hipersensibilidade oculta e despercebida na laringe; maneira de falar apressada, abrupta, forcada; respiraco defeituosa; ruidos ou movimentos, ao falar, que parecem ser apenas acidentais; certa ma- neira de inclinar a cabega, sacudi-la ¢ haix4-la ao olhar ete, Nao é di- ficil persuadirmo-nos de que a angtistia de contato genital sé aparece quando esses sintomas, nas regides da cabeca e do pescogo, tiverem sido descobertos e eliminados. A angiistia genital, em particular, é, na maioria dos casos, deslocada para a parte superior do corpo ¢ ligada na musculatura contraida do pescoco. © medo de uma cirurgia gine- colégica, numa jovem, expressava-se na maneira como mantinha a cabega ao deitar-se no diva. Depois de tomar consciéncia de seu jeito peculiar de manter a cabega, ela propria disse: “Estou aqui deitada como se minha cabeca estivesse pregada ao diva”. De fato, ela dava a impressio de estar presa pelo cabelo por uma forga invisivel que a impedia de se mover. O leitor perguntara, com razo, se esses conceitos nao contradi- zem outra hipétese. O aumento do ténug muscular é, evidentemente, uma fun¢3o sexual-parassimpdtica; a diminuigao do tonus e a parali- sia da musculatura, por outro lado, so uma fungao angustiosa-simpd. tica. Como € que isso se relaciona com o fato de que uma retengdo apreensiva das fezes ou uma inibic¢ao da fala, numa crianca, andam juntas com uma contragdo muscular? Ag rever a teoria relativa a esses fatos, tive de me fazer essa pergunta e, durante muito tempo, néo fui capaz de encontrar uma explicagdo. Porém, como sempre acontece a,

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