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MARIA ZAMBRANO A METAFORA DO CORACAO E OUTROS ESCRITOS re EDigio TRADUGAO DE José BenTO ASS{RIO & ALVIM A METAFORA DO CORAGAO. (fragmento) Disidndo bom 0 Logos — elsribuisda am pels tas entonbas Enpepoctes A vida das metdforas Nao 56 de pio vive © homem, isto & nfo sé de Cincia ¢ Técnica, Tam- bém poderia dizer-se que no s6 de Filosofia, mas tal coisa, a0 falarse das metéforas, no tem sentido, porque @ Filosofia mais pura desenvolveu-se n0 espago tragedo por uma metifora, a de visio ¢ da luz intoligivel. ‘Uma das mais tristes indigncias do tempo actual é a de metiforas vivas actuantes; essas gue se imprimem no fnimo das gentes e moldam a sua vida. A poesia, especialmente «a puran, fabricou meior nimero de metsforas que nunce, mas nfo parece que entre elas se tenha destacado alguma com forsa suficiente para selar a vida informe dos homens. E estas metiforas a que nos refetimos nio sio os felizes achedos da poesia ou da literatura, mas uma des- sas revelages que estio na base de uma cultura, e que a representam. Maneira de apresentagio de uma realidade que nto pode fazé-lo de modo directo; pre- senga do que néo pode exprimir-se directamente, nem alcangar com o incfével, ‘inica forma em que certas realidades podem tornar-se visiveis aos torpes olhos umanos Por uma metéfora habitualmente entende.se uma forma imprecisa de pen- samento, Dentro da poesia tem-selhe concedido, especialmente desde Paul Valéry, todo o seu valor Mas a metifora desempenhou na cultura uma fungio mis profunda, ¢ anterior, que est na raiz da metéfora usada na poesia. £ a funsio de defini uma realidade inabarcavel pela rezo, mas propfcia a ser captada de outro modo, E é também a sobrevivencia de algo anterior so pensamento, pegada ‘num tempo sagtado, ¢, portanto, uma forma de continuidade com tempos € 20 MARIA ZAMBRANO -mentalidades passadas, coisa to necesséria numa cultura racionalista. E a ver- dade € que, nos seus momentos de ma.or esplendos, « Razéo nada teve que emer perante estas metéforas a que podemos chamar fundamentais. Ou tal- vez, 20 dizer cultura, tenhamos a imagem de uma unidade entre a mais pura ratio e esses outros modos de conhecimento, entre os quais se destace este das metéforas. A visio do cougio Ao lado da grande metifora da aluz intelectual» viveu outra de destino bem diferente: a sua continuidade no parece terse mantido, de tal maneire que temos de langar mao de uma outra metélora: a do rio eujas éguas se escondem absorvidas pelo tempo, para voltar a aparecer; nada mais parecido com a areie. devoradora da dgua, que a passage do tempo que, 3s vezes, parece encobrit moitas coisas que motreram ¢ que continuam a sua vida secretamente, quase clandestinamente, com uima continuidade que podecfamos chamarinfrahistrica Durante épocas inteiras no alcanga o nivel visivel do histérico; se se recor- dam, podem parecer ecos arcaicos, curiosidades, arqueologia. Se aparecem a0 vivo, é com a modesta vida do folclore, forma de existéncia andnima, dispersa € nio sistemética, em periodos come este da cultura ocidental, em que o visi vel € tio esmagador que some na sombre mais epaca o que com ela nao con- corda. E assim se explica que, coexistindo com 0 mais perfeito conhecimento histérico © arqueolégico que existin até hoje, seja tio pobre 0 reporiério de «formas», de ideits ou crengas vivas e de metéfores poéticas actuantes, ¢ se consume a vida em parcialidede tio mesquinha, Umas destas metéforas, nada actual, refere-se a uma certa forma de vida € conhecimento. Se a ouitra, que parece vencé-la ¢ até suplantéla um dia na sua histéria, pazece inactual, esta ainda o é mais. Tkata-se de uma metéfora em que a luz desempenha um papel importante, a luz e a viséo, mas referidas 4 outro érgio diferente do pensamento, a esse esquecido, relegedo ao folclore: © conagio. Seré uma simples metéfora a «visio pelo coragion? A metéfora da visio intelectual tem sido — ninguém poder negi-lo — a definicio de uma forma — até agora @ mais decisiva e fondamertal — de conhecimento. Poderemos assar 20 largo junto a esta grande metéfora para que seja, conforme patece, mais estranhe, mais dada a0 equivoco, mais misteriosa e audaz? Nio terd exis- tido uma forma de conhecimento ou visio que, de maneita mais ott menos fiel A METAFORA DO CORACAO 21 corresponda a esta poética expressic? Nao seria demasiado dificil o intento, se aceitamos desde 0 comego uma metéfora, 2 que implica o nome dessa vis- cera secreta e delatora: coragio. A sua histéria mostra altos ¢ baixos maiores que @ razio, A razfo, embora ligada a um érgio fisiolégico, o eétebro, no con- siste nele. O coragio no sabemos exactamente o que fiz na vida psfquica; se faz algo, € téo agarrado a ele que mio se afasta como 0 pensamento do eérebto, do qual, apesar de todas as tentativas de paralelismo psicofisiolégicas, anda tio desprendido, O coragio tem sido tudo, até Juget do pensamento em Aristéte- les, tudo poeticamente € nas religides; continua a sélo ainda pare as cristuras iletradas, especialmente em algumas latitudes, como nas costas do mar por exce: lencia, do Meditersineo (que bem poderia ser o leito em que vive permanente- mente, onde se retire como nium terreno familiar onde nunca hé-de ser repelido. Recinto sagrado perante qualguer invasio). Subiu & superficie da Histéria nos dois Romantismos europeus: 0 do «Outono da Idade Média» ¢ 0 diltime, a que pertence o nome. Foi neles uma entidade aceite, esplandescente, Récmula mégica e figura irradiante, algo assim como o dogma ceatral. Tal exaltagio antes 0 pre- judicou, pois, a0 chegar a hora do desaparecimento de tais romantismos, foi 1 entidade mais implacavelmente condenada 20 desterro, mais rapidamente cexpulsa da area visfvel da vida culta. Teve os seus génios, que brilharam com splendor e fogo diferentes dos outros; ¢ teve, além da visio, outras metiforas, tal como a do fogo E na realidade 2 do «corpo em chamas» foi 2 que os dois romantismas usaram com preferéncia. E como @ fungio prépria do cora- io, mas nio em sua vida modesta, ali onde desde sempre se lhe defxa lugar, mas na sua exaltagdo delirante, Na sue assungio arrebatada, como se somente assim pudesse mostrar-se 4 vista ¢ obter um lugar, como se na cultura ociden tal o que em verdade signifique nio pudesse ser aceite a nfo ser neste arreba- ramento, nesta precipitagio para cima, em sua auséneia chamejante, Como se fosse preciso que o énimo do homem ocidental estivesse no aperto de um deses perado culto a alguma divindade esquecida, por exemplo ao fogo, no a um fogo césmico, mas de indole simulteneamente humana e sobre-humana, Estd aparentado e poder.se-d confundis,&s veres, com a adoragio de outra coisa mais obscura ainda no seu sentido mais misterioso e intermitente: © sangue. © san- gue teve também os setis adoradotes, mas ni Zoram arrebatados, mas ébrios. Uma das mais espléndidas é Santa Catarina de Sena, adoradora do sangue de Cristo, de quem ela diz estar embriagada. O sangue, como o vinho, embriaga E bebido, consumido, transfundido. B metéfora, em suma, de comunhio, de uum culto dionisfaco, de embriaguez vital, em que se transfunde uma vide divine a qiem a bebe; metéfora de uma sede infinita, uma sede por esséncia inextin gulvel. Se se manifestou em cultos ¢ em amores de alguns santos e misticos,

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