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3 ee SUGESTOES PARA UM JOVEM PESQUISADOR O estudioso da mem6ria geralmente entrevista idosos dos quais se espera o rico testemunho de outras épocas. O entrevistador precisa receber uma formagio especial e compreender 0 depoimento como um trabalho do idoso. Pou- cos pesquisadores me parecem ter formagiio para tanto. A experiéncia de muitos anos de orientagdo me permite cha- mar a atengao sobre alguns pontos: sao o dia-a-dia das oficinas escuras da investigacao, esses fundos de quintal onde se trabalha duro, mas onde ninguém vai depois que a casa esté arrumada. e Antes do encontro com 0 depoente, convém recolher o ma- ximo de informagGes sobre o assunto em pauta para formu- lar questdes que o estimulem a responder. Uma consulta as publicagées: jornais, revistas, musicas, livros, imagens, ane- dotas, enfim tudo o que teré feito o narrador vibrar na época que desejamos estudar. ¢ Se o local do encontro for a casa do depoente, estaremos mergulhados na sua atmosfera familiar e beneficiados pela sua hospitalidade. 59 TEMPO VIVO DA MEMORIA Ja tivemos a experiéncia de entrar na casa de um profissio- nal qualquer e notar a mudanga de atitude em relagio 4 do es- crit6rio ou oficina. Ali se discutiam pregos e servigos. Aqui se oferecem café e cordialidade. Porém, na casa haverd interferéncia de familiares, 0 que pode enriquecer a entrevista, mas pode também prejudica-la inibindo o narrador. E de muito bom alvitre sair com ele, caminhar 0 seu lado nos lugares em que os episédios lembrados ocorreram (ruas, fabricas, bairros cuja transformagio assistiu...) Uma senhora que entrevistei levou-me a conhecer sua velha amiga, e a conversa entre as duas me foi proveitosa e agradavel. e A pré-entrevista, que a metodologia chama “estudo explo- ratério”, é essencial, nao sé porque ela nos ensina a fazer e a refazer o futuro roteiro da entrevista. Desse encontro pré- vio é que se podem extrair questGes na linguagem usual do depoente, detectando temas promissores. A pré-entrevista abre caminhos insuspeitados para a investigacgao. e A entrevista ideal é aquela que permite a formagio de lagos de amizade; tenhamos sempre na lembranga que a relagio nao deveria ser efémera. Ela envolve responsabilidade pelo outro e deve durar quan- to dura uma amizade'. Da qualidade do vinculo vai depender a qualidade da en- trevista. 1. Oscar Lewis revelou sobre a familia Sanchez: “Foi essencialmente um senti- mento de amizade que os levou a me contarem sua vida”. Amizade, diz Guima- ries Rosa, é conversar desarmado. O entrevistador ird para a entrevista desar- mado de signos de classe, de status, de instrugao. 60 SUGESTOES PARA UM JOVEM PESQUISADOR Se nao fosse assim, a entrevista teria algo semelhante ao fe- ndmeno da mais-valia, uma apropriagao indébita do tempo e do félego do outro. Narrador e ouvinte irao participar de uma aventura comum € provarao, no final, um sentimento de gratid&o pelo que ocor- reu: 0 ouvinte, pelo que aprendeu; o narrador, pelo justo orgu- Tho de ter um passado tio digno de rememorar quanto o das pessoas ditas importantes”. Ambos sairo transformados pela convivéncia, dotada de uma qualidade tinica de atengaio. Ambos sofrem o peso de este- redtipos, de uma consciéncia possivel de classe, e precisam sa- ber lidar com esses fatores no curso da entrevista. As vezes falta ao pesquisador maturidade afetiva ou mesmo formagao histérica para compreender a maneira de ser do de- poente. Somos, em geral, prisioneiros de nossas representagGes, mas somos também desafiados a transpor esse limite acompa- nhando o ritmo da pesquisa. e Teremos que transpor, as vezes, enorme distancia temporal entre o fato narrado e 0 acontecido, experiéncia sempre difi- cil devido as transformag6es ocorridas, sobretudo nas men- talidades. O passado, a rigor, é uma alteridade absoluta, que s6 se tor- na cognoscivel mediante a voz do narrador. ¢ Para empreendermos tal aventura, util € nos munirmos co- mo os etndlogos de um diario de campo, onde iremos regis- trando dtividas e dificuldades. Nossas falhas, longe de serem um entrave, irao, se compreendidas, aplainar 0 caminho dos estudiosos que nos agradecerao por té-las apontado. 2. Aqui, convém repetir a frase de Alain, mestre de Simone Wei portantes no tém importancia”. : “As pessoas im- 61

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