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11 © Tempo Os crist@os-novos no Brasil colonial: reflexées sobre a questao do marranismo” Anita Novinsky™ Os estudos dedicados a hist6ria sefardita e a0 marranismo tém prolife- rado consideravelmente nos ditimos anos. O quinty centeudsio da expulsao dos judeus da Espanha (1492-1992) estimulou historiadores de varios paises a mergulhar mais profundamente na historia dos judeus sefarditas da Penin- sula Ibérica durante a Idade Média e na Epoca Moderna, buscando as razdes que levaram Espanha e Portugal, paises tradicionalmente conhecidos por sua tolerncia em relagao a outras culturas, a adotarem politicas anti-semitas to extremadas ¢ violentas, que preconizam o anti-semitismo difundido no sé- culo XX. As origens da Inquisigao espanhola € portuguesa, a perseguigao ¢ 0 pretendido exterminio gradual dos judeus, 0 papel dos conversos ou cristios- novos na expansao européia, a sistematica dispersio dos cristos-noves por- tugueses quase que pelo mundo todo, sua vida secreta ¢ a extraordindria re- sisténcia de seus descendentes em aceitarem 0 catolicismo tém sido objeto de excelentes trabalhos. Bascados em fontes arquivisticas, eles tem cada vez * Versio em inglés deste artigo foi publicada em Studies on the History of Portuguese Jews from Their Expulsion in 1497 trhough Their Dispersion, 2000, Co-edited by Israel Katz.and M, Mitchell Serels, Sepher-Hermon Press, Inc. forthe American Society of Sephardic Studies, New York. Professora do Departamento de Hist6ria da USP, Tempo, Rio de Janeiro, n* 11, pp. 67-75 67 Dossié mais contribufdo para o nosso conhecimento sobre esse ainda obscuro capitulo da hist6ria judaica e oferecido novas perspectivas para futuras investigagdes. No entanto, enormes lacunas ainda persistem, especialmente no que toca as Américas, onde a vida e o destino dos cristdios novos foram completa- mente negligenciados pela historiografia sefardita. Dentre os numerosos tra- balhos publicados sobre os sefarditas, nos titimos anos, citamos, como exem- plo, a colecdo de ensaios, em dois volumes, publicada em Israel, com 0 titulo de The Sephardi Legacy (Beinart, 1992), na qual quase todas as referéncias ao Novo Mundo dizem respeito exclusivamente & América espanhola. E sur- preendente que nao haja ali um tnico estudo especificamente relacionado a0 Brasil, sobre o qual pesquisas consideraveis ja foram realizadas ¢ publicadas em livros e revistas cientificas.! O fendmeno dos conversos no Novo Mundo foi muito diferente da his- téria da conversao na Europa, visto que seguiu diversas etapas. Em primeiro lugar, devemos apontar que foi um fendmeno extremamente original, que se desenvolveu num mei multicultural, ao contrario das sociedades mais uniformes ¢ racistas européias. Os conversos, cristdos-novos ou anusim (mar ranos) sofreram variadas influéncias no Nove Mundo, desenvolvendo uma diversidade de atitudes ¢ comportamentos que diferiam enormemente de seu passado original. Para citar um exemplo, lembramos que os violentos ¢ brutais aventureiros, conhecidos como dandeirantes, que, no sul do Brasil, atravessaram florestas, assassinaram indios, expulsaram jesuftas ¢ deram con- formagio ao territério brasileiro eram, em grande nimero, cristéos-novos. Gulturalmente falando, fizeram uma migragio inteiramente diversa dos ju- deus sefarditas que se estabeleceram na Ivilia, na Holanda € no leste do Mediterranco. Eram, também, diferentes dos senhores de engenho do nor deste brasileiro. E importante, como ponto de partida, explicar meu conceito de marrano € de marranismo, que difere do que é dado pela maioria dos historiadores. A fim de compreender a hist6ria sefardita no Brasil, devemos extrapolar 0 es "Entre as publicagies dedicadas aos cristios-novos, que se estabeleceram em vérias regides do Brasil, estio J. G. Salvados, Os Gristdas-Novos ¢ 0 Gomércio no Atldntico Meridionat, Sto Pau- lo, Pioneira/Ministério da Educagio, 1978, ¢ Os Magnatas do Tréfico Negreiro, Sao Paulo, Pio- neira/Universidade de Sao Paulo, 1991; E. C. de Mello, O Nome eo Sangue, Sto Paulo, Com- panhia das Letras, 1989; A. Novinsky, Cristdas-Novos na Bahia, 2 ed., Sao Paulo, Perspectiva, 1992, © “Cristios-Novos no Brasil. Uma Nova Visio do Mundo”, Guy Martinier (ed.), Argai- ‘vor do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Mélanges offerts Fréderie Mauro, Lisboa-Patis, Cen- tro Cultural Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 387-97. 68 Os cristitos-novos no Brasil colonial: reflexdes sobre a questo do marranismo treito conceito tradicional de marranismo, que o identifica com eriptojudatsmo. ‘Também devemos introduzir um conceito muito mais claro do marranismo na assim chamada questo controversa sobre “O que & ser judeu2” Um exame das fontes primérias relativas aos cristios-novos no Brasil me permitiu revisar 0 conceito tradicional de marranismo e me aproximou do conceito de “submarranismo”, proposto recentemente pelo filésofo fran- cés Edgar Morin. Morin, que compreendeu a complexidade e a fecundidade éspagne, de Henti Méchoulin,? afirmou: “o que me ligou ao matranismo (...)” foi a experiéncia do marranismo quando escreveu o prefiicio para Les Juifs d's psicolégica complexa, que traz consigo uma dupla indentidade, dilacerante © eventualmente criadora, fermento da superagio dos dogmas das duas reli- gides, resultando numa postura interrogativa ¢ critica, 4 moda de Montaigne, © na busca de novos fundamentos, como em Spinoza.? Os marranos eram “nao-judeus” judeus € judeus “ndo-judeus”. Per tenciam a um grupo que os exclufa e eram excluidos do grupo ao qual per- tenciam, como o préprio Morin.* A experiéneia marrana podia ter ocorrido a qualquer tempo ¢ em qualquer lugar. Desenvolvi esse mesmo conceito, quan- do escrevi meu ensaio sobre “O Homem Dividido”’, Contudo, 0 conceito de (pés-marranismo — utilizado por Morin — também lembra o caso do poeta Heinrich Heine, publicado recentemente num artigo de Philipp E. Veit." Heine permaneceu marrano por toda a vida. Como outros marranos do im- pério lusocolonial, teve que se adaptar a um mundo a que niio pertencia Mesmo sem praticar a religiao judaica, nem compreender a real esséncia do “o outro”, os judaismo, numa sociedade que considerava os judeus como marranes desenvolveram, psicologicamente, uma certa idéia do “nosso”. Como Heine, muitos marranos julgavam o judaismo como 0 fazem homens modernos, nZio como uma religigo ou uma fé, sendo no sentido muito mais largo de “visio de mundo”, Essa id¢ia de marranismo resultou da diversidade * Edgar Morin, “Preface”, Henci Méchoulin (ed..), Les Juifed’ Espagne, Histoired une Diaspora, 1492-1992, Patis, Ed. Liana Lévi, 1992, pp. iv. 3 Idem, 9. 151. *O texto de Morin diz: “Bis, portanto, minha idencidade: son um judeu nio-juden, um nao- judeu judeu. Pertengo a quem nao pertencia e ndo pertencia a quem pertencesse", idem, p. 140. 5 Gristaos novos na Bakia, op. eit pp. \AA-162. Philipp E Veit, “Heine: The Marrano Pose”, Monatschefie, 1974, 66/2, Madison University ‘of Wisconsin, pp. 145-56. Sou grata ao Sr. Wygal Lossin, de Jerusalém, que me fez dirigir a atengio para o marranismo de Heinrich Heine, ¢ por me ceder uma eépia desse artigo. oo

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