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Arqueologia da passagem ao ato! Joel Birman. Paradoxo Iniciarei este percurso pela exposicio de uma historia real que se inscreve, no limite retérico, entre uma narrativa clinica e um in- quérito policial. Propositalmente, eu o farei de forma condensada e fragmentada, para destacar apenas as suas linhas de forga funda- mentais e sublinhar, de maneira impressionista, os tragos principais de seu personagem central. Pretendo, assim, evidenciar o que me interessa para introduzir uma discussao sobre a problematica da passagem ao ato. Suponho também que vocés conhegam bem essa modalidade de narrativa em suas linhas gerais, apesar de nao estarem devidamente informados sobre suas particularidades, nem tampouco sobre seu personagem principal. Isso porque essa forma de narrativa se tornou um tanto banal, em decorréncia de sua repeti¢ao freqiiente em nossa experiéncia social, cantada em prosa ¢ verso pela midia escrita e tele- visiva. Trata-se, portanto, de uma narrativa naturalizada pelo viés do _fait divers, Nem por isso, no entanto, deixa-nos de inquietar, em razao da explosio de violéncia que expressa seu personagem, de maneira literal e caricata. A crueldade, aqui posta em ato, é a fonte primordial horror que nos provoca ¢ perturba de forma vertiginosa. Texto apresentado originalmente em conferéncia realizada na Universidade de Paris I, na Ecole Doctorale de Histoire Médiévale, em janeiro de 2006. 11 Assim, vejamos. Um homem anda sem parar, sem destino, a esmo, ausente de qualquer referéncia segura no mundo. Pare sem dinheiro ¢ trabalho, vive de pequenos expedientes is ocasio e, principalmente, de favores daqueles que dele se apiedam. Alguns meses antes, Contudo, esse andarilho possufa um trabalho. ha nao lhe oferecia uma renda confortavel, possibilitava-lhe eas uma existéncia no limite da dignidade. Ele era alguém, mesmo assim. Tinha pertencimento social e companheiros de infortinio, apesar i sua precariedade. Além disso, mantinha uma relagao com aoe mulher, apesar da pobreza ¢ dos conflitos que marcavam a vida do casal, i Do dia para noite, perdeu o emprego, sem ter qualquer respon- sabilidade pessoal para que isso ocorresse, em razao de ea gas rotineiras e esperadas no mercado de trabalho, ene porque era um trabalhador sem qualificagao e especialidade. a tempo depois, sua mulher também o abandonou, pois os conilitos entre ele: s aumentaram demais, acentuando a precariedade existente. Ento, sem qualquer esperanga e expectativa, saiu pelo mundo, se diregao ¢ destino. ‘ ers Sujo ¢ mal-cheiroso em decorréncia de sua miséria, é fre- quentemente humilhado pelas pessoas com quem cruza mie ruas ¢ estradas, Mal-acolhido, nosso Ppersonagem se situa no limite da sobrevivéncia. Um dia, contudo, ocorre algo inesperado. Uma crianga se aproxima ingenuamente dele, com curiosidade e muito interesse. Ela quer saber algo sobre ele, nao se sentindo repelida por seus andrajos ¢ sujeira. A menina lhe acaricia e lhe oferece flores além de lhe dar comida. Nosso personagem recebe essas dadivas com admiracao € espanto, sem deixar de se surpreender com 0 que havia de inesperado no encontro. Sentia-se reconhecido pela crianga em sua condigao humana, mas nio podia oe ° que se passava, pois nada fazia sentido. if Subitamente, algo estranho acontece com ele, que nio sabe iizer bem do que se tratava. Creio que vocés podem adivinhar o que ocorre. O personagem em questao mata a menina, sem que 12 Psicanalisar hoje tenha havido qualquer motivo aparente que justificasse seu ato, » contrario, O assassinato se caracteriza por uma enorme violéncia, enfatizando ainda mais o que ha de terrificante nessa narrativa ¢ a inquietude que ela nos provoca. Nosso personagem foi detido pela policia, sem pretender fugir ou oferecer resisténcia 4 prisio. Confessou seu crime hediondo, mas nao tentou justificd-lo em nenhum momento. Foi julgado condenado em um tribunal, que lhe enviou a uma prisao especial para enfermos mentais, onde vive ha alguns anos. Nesta, mantém- se tranqiilo, sendo considerado pela equipe da instituigao prisional alguém com bom comportamento. Nio foi considerado psicético, pois nao apresentou um discurso delirante. A avaliagdo final da enquete psiquidtrica julgou que se tratava de um borderline, em razio do que havia de bizarro em seu comportamento e, sobretudo, de incompreenstvel em seu ato cri- minoso. Por isso, foi enviado para uma prisdo especial para enfermos mentais. Nessa prisio, foi acompanhado regularmente durante cinco anos por um psicanalista, que queria ajuda-lo a encontrar as razoes que lhe teriam impulsionado ao crime. Mesmo assim, ¢ apesar de gua boa vontade em colaborar, nao foi possivel reconstituir os rastros psiquicos do ato criminal, Com efeito, ele nao sabia dizer 0 que lhe conduvira ao ato fatal. Havia muitos vazios e buracos em sua meméria, de modo que lhe era impossivel captar 0 movimento paradoxal pelo qual havia sido tomado, pelo qual havia assassinado com violéncia inesperada a tinica pessoa que fra gentil com ele, no apenas durante os tiltimos anos de sua vida, mas, talvez, em toda a sua existéncia. Existia, enfim, algo de inapreensivel nessa experiéncia-limite. Pode-se, de todo modo, supor que algo relativo ao masoquismo esteja em jogo nesse caso. Com efeito, nosso personagem talvez esti vesse impossibilitado de receber algo bom de alguém, especialmente se isso lhe fosse oferecido generosamente, ja que nao seria digno de recebé-lo. Teria sido, ent&o, o proprio objeto de sua autopunigao e, com isso, conduzido a realizar justamente 0 oposto do que se espera Arqueologia da passagem ao ato 1s ria de alguém que vivesse uma experiéncia como essa. Assim, o que caracteriza a totalidade da experiéncia desse personagem é o paradoxo, nessa desproporgao flagrante entre a generosidade e a gentileza, de um lado, ¢ a violéncia e 0 crime, do outro. Vazio e auséncia de reconhecimento E possivel fazer varios comentarios sobre essa historia, afinal o per- sonagem em pauta se inscreve em um conjunto de pessoas que nos é bastante conhecido na atualidade. Qual é esse conjunto? Aquele que se constitui por pessoas cuja existéncia, de forma quase absoluta, nao faz qualquer sentido. O que marca a vida dessas pessoas ¢ 0 vazio, De fato, tanto dos pontos de vista do amor e do trabalho quanto de uma atividade social significativa, essas pessoas se caracterizam por um vazio existencial. Nao existe qualquer engajamento, de maneira que arotina vaga de seus percursos delincia a sombra pregnante da morte social. A Unica preocupagio que regula suas vidas é a sobrevivéncia material, no sentido estrito. O deserto afetivo marca sua existéncia regulada por uma auséncia absoluta de reconhecimento. Nosso personagem levava uma existéncia pacata até o momen- to do crime cometido de forma inesperada. Onde se originou a explosao de violéncia que culminou no ato fatal, dada a aparente serenidade de sua vida mediocre? Nao existe resposta para isso, considerados os vazios de sua memiéria ¢ de seu pensamento cons- tatados pela investiga¢ao psicanalitica a que foi submetido na prisio. Nesta, seu comportamento é exemplar, e ele, como em sua vida anterior ao crime, no manifesta qualquer agressividade e rebeldia, podendo-se dizer que os paradoxos se multiplicam em cascata na caracterizagao de sua existéncia. No que concerne a sua aparente tranqiiilidade, como fundo da violéncia de seu ato criminal, 0 personagem em questao se contrapde a um outro criminoso brasileiro, Chico Picadinho, que foi assim 14 Psicanalisar hoje chamado pela marca inconfundivel que havia em seus crimes, qual seja, a de cortar em pequenos pedagos os corpos de suas vitimas, ivansformadas em carne para agougue em toda a sua rudeza. Chico Vicadinho era um tipo inquieto e angustiado, e sua forma de ser vontinuou apés a sua prisao € 0 seu julgamento: ironizava os psi- célogos que lhe interrogavam e queriam tecer lacos significativos entre o estilo de seus crimes e suas experiéncias infantis, contudo, apesar da continuidade entre a forma de ser de Chico Picadinho e 4 violéncia de seu crime, o vazio e a auséncia de reconhecimento também marcavam sua existéncia de maneira atroz. Pode-se afirmar, portanto, que ¢ a indignidade que caracteriza de forma flagrante a existéncia de tais personagens, nos quais 0 vazio © a auséncia de reconhecimento se declinam em uma existéncia marcada pela mediocridade. Os crimes que realizaram brutalmente sto a Unica coisa que os deixou em evidéncia, trazendo alguma no- toriedade para sua pobre existéncia. Mesmo que de forma negativa « moralmente condendvel, 0 ato criminoso espetacular lhes confere slyum reconhecimento e atrai o olhar dos outros sobre eles, ou seja, ‘yma centelha de luminosidade, ainda que momentanea e efémera, {inalmente se irradia em torno deles, Em seguida, contudo, apos © ansbdlio mididtico e a condenagao radical, a obscuridade volta a gZ dominar inteiramente, e para sempre, as suas vidas. Vic as infames [yata-ne aqui de vidas indignas de serem vividas. Eis o minimo que w pode dizer sobre a biografia desses personagens. Em relagao dliveta com essa indignidade e com a auséncia de reconhecimento ingulariza a existéncia dessas figuras, Foucault os caracterizou como personagens infames, Ao evidenciar esse significante, conju- wou a auséneia de fama em suas vidas a notoriedade negativa que que eceberam apés seus crimes. Avquealogia ta passage ao

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