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Giorgio Agamben O fogo e o relato Ensaios sobre criac4o, escrita, arte e livros Tradugao Andrea Santurbano e Patricia Peterle O fogo e o relato No final de seu livro sobre a mistica judaica, Scholem conta a seguinte histéria, que lhe fora transmitida por Yosef Agnon: Quando Baal Schem, fundador do hassidismo, tinha uma ta- refa dificil pela frente, ia a certo lugar no bosque, acendia um fogo, fazia uma prece, ¢ 0 que ele queria se realizava. Quando, uma geragio depois, o Maguid de Mesritsch” viu-se diante do mesmo problema, foi ao mesmo lugar do bosque ¢ disse: “Ja ndo sabemos acender o fogo, mas podemos proferir as preces”, ¢ tudo aconteceu segundo seus desejos. Passada mais uma ge- racéo, o Rabi Moshe Leib de Sassov viu-se na mesma situagéo, foi ao bosque € disse: “Jé nao sabemos acender 0 fogo, nem sabemos as preces, mas conhecemos 0 local no bosque, ¢ isso deve ser suficiente”; ¢, de fato, foi suficiente. Mas, passada ou- tra geracao, 0 Rabi Israel de Rijn, precisando enfrentar a mes- ma dificuldade, ficou em seu palacio, sentado em sua poltrona * Ou Rabi Dov Baer ben Avraham, sucessor de Baal Schem. (N. E.) 28 O fogo co relato ‘J4 nao sabemos acender 0 fogo, nao somos dourada, e disse: capaves de declamar as preces, nem conhecemos o local do bos- que, mas podemos narrar a historia de tudo isso”. E, mais uma vez, isso foi suficiente.' E possivel ler essa anedova como uma alegoria da literatura. A humanidade, ao longo de sua histéria, afasta-se cada vez mais das fontes do mistério e perde, pouco a pouco, a lembranga daquilo que a tradigio the ensinara sobre o fogo, 0 lugar ea férmula — mas disso tudo os homens ainda podem narrar a histéria. O que resta do mistério é a literatura ¢ “isso” — co- menta sorrindo o rabino — “deve ser suficiente”. O sentido desse “deve ser suficiente”, porém, nao é tao facil de apreender, e talvez o destino da literatura dependa justamente de como se entenda isso. Pois, se for entendido simplesmente no sentido; de que a perda do fogo, do lugar e da formula é, de qualquer modo, um progresso ¢ que 0 fruto desse progresso — a secu- larizacao — é a libertagao do relato de suas fontes miticas ¢ a constitui¢ao da literatura — que se tornou auténoma € adulta — numa esfera separada, a cultura, entéo esse “deve ser sufi ciente” torna-se deveras enigmatico. Deve ser suficiente — mas para qué? Dé para acreditar que seria possivel satisfazer-se com um relato que perdeu a relagdo com 0 fogo? "Gershom Scholem, Le grandi correnti della mistica ebraica (trad. G. Russo, Te rim, Einaudi, 1993), p. 353 [ed. bras.: As grandes correntes da misicajudaia Dora Ruhman et al., Sao Paulo, Perspectiva, 1972, p: 350) Wi.

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