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Capitulo Ciéncia, tecnologia e valores Essa pintura do século XVII, de artista desconhecido, pode ser representativa das questdes sobre a manipulagao das células e das variagdes genéticas por retratar duas irmas gémeas que apresentam as mesmas feigdes e caracteristicas. Ha no canto inferior esquerdo dessa pintura a seguinte e curiosa inscrigao: “Duas irmas da familia Cholmondeley que nasceram no mesmo dia, se casaram no mesmo dia e tiveram filho no mesmo dia”. As possibitidades das novas cigncias, como a engenharia genética, de interferir na criagao da vida humana nos impoem a necessidade de revisar todos os valores, principalmente os £3 Que caminho devo tomar? Lewis Carrol era professor de matemética na Universidade de Oxford quando creveu 0 seguinte em Alice no pats da maravithas: ‘0 Cheshire... quer fazer o favor de me dizer qual € 0 caminho que eu devo tomar? depende muito do lugar para onde voce quer ir — disse 0 Gato, —Nao me interessa muito para onde...— disse Alice. _— Nao tem importancia entdo 0 caminho que voce tomar — disse 0 Gato. —... contanto que eu chegue a algum lugar — acrescentou Alice como urna explicagao. — Ah, disso pode ter certeza — disse 0 Gato — desde que caminhe bastante.” ‘A resposta do Gato tem sido frequentemente citada para exprimir a opiniao de que os cientistas nao sabem para onde o conhecimento esta levando a humanidade e, além disso, nao se importam muito. Diz-se que a ciéncia nao pode oferecer objetivos sociais porque 0s seus valores sao intelectuais e no éticos.[..] Mas & provavel que a ciéncia possa contribuir para formular valores e, assim, estabelecer objetivos, tornando o homem mais consciente das consequéncias de seus atos. A necessidade de ‘conhecimento das consequéncias, no ato de tomar decisdes, estd implicita na observacio do Gato de {que Alice chegaria certamente a algum lugar se ‘caminhasse bastante. Desde que esse algum lugar poderia revelar-se bem indesejavel, é melhor fazer escolhas conscientes do lugar para onde se quer ir Com base no texto de René Dubos, professor de biomedicina ambiental, iniciamos este capitulo com fa seguinte reflexio: a ciéncia ndo é um saber neu- ‘ro, desinteressado, puramente intelectual, & mar- gem do questionamento social e politico acerca dos fins de suas pesquisas. D Senso comum e ciéncia O senso comum é o conhecimento que ajuda a nos situarmos no cotidiano, para compreendélo e agir sobre ele. Mais propriamente, poderiamos dizer que se trata de um conjunto de crengas, j4 que esse conhecimento quase sempre o recebemos pela tra- digo, de modo espontineo e nao critico. Mas nao 86. Trata-se também do esforgo que fazemos para resolver os problemas que surgem no dia a dia, bus- cando solugées muitas vezes bastante criativas. E bem verdade que, em diversas situagées, a cién- cia precisou se posicionar contra 0 que era consi- derado evidente por essas crencas, por exemplo, quando se achava natural que a Terra estivesse imé- vel e 0 Sol girasse em torno dela. No entanto, nao hd como desprezar esse conhecimento tio univer- sal nem desconsiderar o grande volume de saberes j4 construfdos ao longo da histéria humana e cuja aplicagio se mostrou fecunda. > Alguns exemplos ‘Vamos distinguir 0 senso comum da ciéncia,? examinando a especificidade de cada um por meio de exemplos. + Descobrir pelo senso comum que a roda facilita o transporte de cargas néo significa saber expli car as forcas de friegio; conhecer 0 uso medi- cinal de certas ervas nio quer dizer identificar suas propriedades ou compreender como se dd sua ago no organismo. + O camponés sabe plantar e colher conforme aprendeu com seus pais, usando téenicas her- dadas de seu grupo social, as quais so trans- formadas lentamente em decorréncia dos acon- tecimentos casuais com os quais esse grupo se depara. Mas, se em determinado momento a adubagem deixa de proporcionar os efeitos desejados, ele nao sabe identificar os motivos. Suas crengas, baseadas em habitos rotineiros, valem enquanto hé éxito, mas é com o conhe- cimento cientifico que se obtém elementos para corrigir condutas e adapté-las a novas situagdes. + Pelo senso comum, sabemos que a agua se congela quando a temperatura abaixa “o sufi- ciente’. A impreciséo caracteristica desse tipo de conhecimento é evitada pela ciéncia, que se baseia em uma medicdo precisa. Além disso, cla pode verificar a variedade de condigdes em que ocorre a solidificagao dos liquidos, seja 0 caso da dgua, do leite, da cerveja, da vodka (que néo congela nos freezers domésticos), e tem condi- des de explicar ainda por que um pogo congela 0 oceano nao. © Caracteristicas distintas A partir desses exemplos, podemos examinar algumas caracterfsticas pelas quais se contrapdem esses dois tipos de conhecimento. Particular/geral Do senso comum resulta um conhecimento parti- cular, restrito 2 uma pequena amostra da realidade, a partir da qual so feitas generalizagdes muitas vezes apressadas e imprecisas. Os dados observados costumam ser selecionados de maneira nao muito rigorosa. Em outras palavras, conclui-se para todos os objetos o que vale para um ou para um grupo de objetos observados. ‘Jéas conclusdes da ciéncia so gerais no sentido de que nao valem apenas para os casos observados, e sim para todos os que a eles se assemelham. Afirmagées ‘como “o peso de qualquer objeto depende do campo © DUBOS, René. 0 despertar darazdo, io Paulo: Melhoramentos/Edusp. 1972p. 165. 2 Baseado em NAGEL. Emest, a estructura dela ciencia. Buenos Ares: Paidos, 1978. p. 1526, Ciéne tecnologia e valores Capitulo 28 de gravitagaic" ou “a cor de um objeto depende da luz que ele reflete” ou ainda “a 4gua é uma substancia composta de hidrogénio e oxigénio” sio validas para todos os corpos, todos os objetos coloridas ou qual- quer porgdio de gua, e nio apenas para aqueles que foram objeto da experiéncia. A diferenga entre elas deve-se ao fato de que as afirmagées do senso comum sio assisteméticas, enquanto as explicagées da ciéncia sio sistemdticas e controldveis pela experiéncia, o que permite chegar a conclusdes gerais. Se o saber comum observa um, fato a partir do conjunto dos dados sensfveis que for- ‘mam nossa percepeio imediata, pessoal e efémera do mundo, 0 fato cientifico é um fato abstrato, iso- lado do conjunto em que se encontra normalmente inserido ¢ elevado a um grau de generalidade. ‘Mulher velha cozinhando ovos. Diego Velasquez, 1618 Nao é preciso efetuar uma investigacio clentifica para cozinhar um ovo, basta a experiencia proporcionada pelo senso comum. Fragmentario/unificador Em comparagao com a ciéncia, o conhecimento espontineo ¢ fragmentdrio, pois nao estabelece conexdes em situagdes em que essas poderiam ser verificadas. Por exemplo: pelo senso comum nio 6 possfvel perceber qualquer relacdo entre 0 orva- Iho da noite e 0 “suor” que aparece na garrafa reti- rada da geladeira; nem entre a combustao e a res- piragdo (que é uma forma de combustio discreta relacionada & queima dos alimentos no processo digestivo para obter energia). Se dermos crédito & velha histéria, é interessante lembrar as circuns- ‘tancias em que Isaac Newton teria intuido a lei da Filosofia das ciéncias 5 ‘ i gravitacdo universal, ao associar a queda de uma maga a “queda” da Lua. Alids, o cardter unificador dessa teoria nos permite associar fendmenos apa- rentemente to dispares comoo movimento da Lua, as marés, as trajetérias dos projéteis e a subida dos liquidos nos tubos delgados. Subjetivo/objetivo O senso comum ¢ frequentemente subjetivo, por- que depende do ponto de vista individual e pessoal, nao fundado no objeto, e condicionado por sen- timentos ou afirmagdes arbitrérias do sujeito. Se temos antipatia por alguém, é preciso certo esforgo para reconhecer, por exemplo, seu valor profissional. ‘Ao observar 0 comportamento de povos com cos- tumes diferentes dos nossos, tendemos a julgi-los baseados em nossos valores e consideré-los estra- nhos, ignorantes, engragados ou até despreaiveis. 0 mundo construido pela ciéncia aspira a obje- tividade, & objetivo 0 conhecimento imparcial, que independe das preferéncias individuais e que resulta da descentralizaco do sujeito que conhece, pelo confronto com outros pontos de vista, No caso das ciéncias, as conclusdes podem ser testadas por qualquer outro membro competente da comuni- dade cientifica. Ambiguidade/rigor Para ser precisa e objetiva, a ciéncia dispée de uma linguagem rigorosa cujos conceitos sao defi- nidos para evitar ambiguidades. A linguagem tor- na-se cada vez mais precisa, A medida que utiliza a matematica para transformar qualidades em quantidades. A matematizagao da ciéncia adqui- riu grande importancia no trabalho de Galileu. Ao estabelecer a lei da queda dos corpos, por exemplo, Galileu mediu o espaco percorrido e o tempo que um corpo leva para descer plano inclinado, e a0 final das observacdes registrou a lei numa formula- cao matematica. E bem verdade que o mesmo no ocorre com as ciéncias humanas, cujo componente qualitativo niio pode ser reduzido & quantidade. Algumas delas, como 6 0 caso da psicandlise, no fazem uso da matematica ou da experimentacao, embora outras teorias psicolégicas, como as comportamentalis- tas, recorram ndo sé as experiéncias em laboraté- rio como & matematica e & estatistica. (Soars sasee mas Voltaremos as ci@ncias humanas no capitulo 32,0, método das ciéncias humanas’,

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