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cultura 0 legado de Mestre Pastinha na Capoeira angola e na educacao Os valores e ligdes daquele que é considerado 0 pioneiro em pensar a capoeira como instrumenta pedagégico Pal dade Maas hat Os ensinamentos dos mestres de capoeira angola se inserem num modelo educativo caracteristico da cultura popular de matriz africana, em que a adesto a um grupo representa a incor- poracio de valores ancestrais @ oerwolvimentona constru- fo de trincheiras simblicas de resistencia afro-brasileira ‘a0 processo de homogeneiza- (80 ocidentalizante promovido pela indiistria cultural. A vivén- cia titual do jogo da capoeira angola, longe de apresentar apenas 0 conhecimento de uma técnica de equilibrio, resistencia, flexibiidade e dominio corporal possibilita uma insercéo numa cosmoviso primitiva, que em cada volta a0 mundo traz mais licées e reflexes sobre a grande roda da vida. Reverenciado pela maioria dos ca- poeiristas como o maior guardiio da capoeira angola, Mestre Vicente Fer- reira Pastinha (1889-1981) foi o pro- tagonista de um importante processo de transformagio da capoeira. A cria- Mestre Pastinha concebe a capoeira como um caminho para a perfeicao 0 da “luta regional baiana” por Mes- tre Bimba (Manuel dos Reis Machado) nadécada de 30 permitiu a legalizacao da capoeira, em um periodo marcado pelo nacionalismo varguistae pela at caulacio socio-politico cultural represen: tada pelo 2° Congresso Afro-Brasieir. (Os mais-velhos da capoeiragem traci- cional baiana, entretanto, como rea¢ao a “invencao da tradicao” (no dizer de Eric Hobsbawm) da capoeira regional, vista como violenta, ocidentalizante e descaracterizada, respaldam Mestre Pastinha como guardido do patrim@nio cultural afro-brasileiro cristaizado na capoeira angola. Apesar de Mestre Bimba ter sido o primeiro a fundar oficialmente uma academia de capoeira (1937), Mestre Past nha foi o primeiro a fundar uma escola de capoeira (Centro Esportivo de Capoeira Angola Ceca, 1941),a pensar a capoeira como um instrumento pedagé- gico, de alto teor filosofico, e é isso que transparece em seus manuscritos. Sua escolha pela comunidade da capoeira tradi cional, que resistia a proliferacao da capoeira madema, da moda, a uta regional baiana, nao foi ape- nas pelo seu conhecimento téc nico e dominio corporal. Co: mo Mestre Pastinha conta, ele estava afastado hd quase 30 anos da pratica sistematica e cot diana da capoeiragem. A.sua escola para “mestrar” a capoeira tradicional briana, que passou entéo a ser chamada de capoeira angola, foi pelo seu arau cde mestria, pelo seu alto conhecimento expirtual e flos6fico, pelo seu caréter de educador. E é assim que ele mesmo se define: “E o educador da capoeira tipo Angola originado pelos negros da velha Africa” (Fonte: Mestre Pastinha, Manuscritos e Desenhos de Mestre Pas- tinha, Sakador: Coleco Sao Salomiéo). ‘Tradicao vem do latim traditio, do verbo tradire, que significa entregar, transmitir, passar adiante. E 6 por meio da transmissdo oral, de geracdo Mestre Bina 40. que se perpetua a ca: poeira angola pastiniana, nao em re feréncia a uma historia recente criad: na Ladeira do Pelourinho n° 19, mas a tuma sistematizacao de saberes ant gos. e a um recorte nesses saberes, justamente de Salvador (BA) diferentes formacées de bateria. e di ferentes pensamentos sobre a capoei ss, Havia na cidad ra tradicional baiana. A fundacéo do Ceca visou a perpetuacio de uma sas linhas. ancorado no saber dos mais velhos, representados pelo gru po do Gengibirra. Foi um moment de fensao entre tradicao ¢ ruptura, e auras do filosofo. Gerd Bor im: ~...tradicao ¢ ruptura se espe iham reciprocamente dos dois t ea dialética mos esclarece a quanto an squina que & a histéria do nosso tempc damos nessa grande Das ruas para a escola Até entao, o ensino da capoeira era feito por oitiva, por abservacio, em lugares pablicos e muitas vezes sob a influéncia do aleool. Mestre Waldemar dda Paixdo (que mantinha em seu bar- racao uma das todas mais famosas de Salvador) conta como comecou a apoeira, em 1936: “Eles 1a Periperi, aquela roda da- nada, Foi quando eu peguei a apren aprender vinham p, der com eles. Eu era rapazinho, Con prava duzentos réis de vinho tinto, a quele copo branco de alca, ek va e dizia: “pegue na boca de minha calea!” Eu levava calca dele e e ra pegar na boca da virava aquela cam: balhota desgracada e ja cobri > rab de arraia. Quando eu ia levantando ele dizia: ‘nao levante nao, la vai cutro!’ Os alunos dele jogavam com a gente come quea gente ja era bom”. (Fonte: Abreu. Frede. O Barraciio do mestre Wal Salvador: Zarabatana, 2003) Nos Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha, uma edicao dos ve- hos cademos do Mestre put por Dr, Angelo Decanio, o Mest tuma adverténcia explicita contra o usc do alcool; “Temos ‘sicas, cantos @ jogos ginasticos que devemos velar introduza 0 uso do alcool em suas cabecas: porque em sua liber dade é um bem que nao deve perder 0 teu sangue Capoeira é Também em seu livro ngola, de 1964, adverte E, para de em uma chula (louvacao} Roda cultura Ao fundar uma linha de sucessé discipular que se articula em tomo da escola de capoeira angola como local privilegiado para a transmissio dé ensinamentos ancestrais. calcados na oralidade, Mestre Pastinha busca um do univers afastament fas nuas ¢ dos bares. com nente associados & valentia e a violencia, Envolvidos em desordens pitblicas _conllitos nas ruas da Cidade salvador, empunhando suas facas ¢ navalha: eram 0s capoeiras baianos das trés primeiras decadas republi canas os notorios valentes”. afirma J sivaldo Pires (contramestre Bel) tes ambientes de boemia e marginalt dade. capoeiras famosos como Mineiro, Pedro Pomteta, Chico Tres Pe dacos, Besouro Mangangi. Salome e mittos outros se envolviam em cons tantes conflitos com a lei raro es pancando e botand policiais encarregados de enquadraslos para corer os Mestre Pastinha se refere a eles en seu livro: “O némero de capoeiras que ganharam fama ¢ Alguns, cujos nomes aqui se enc vase a dei tram e que, por razdes dbvias deixo sem destaque. foram, em seu temp motivos de terror. Suas historias. por ie Capovra Angola na Praca da Replica, no cento da capital pauista a 7 cultura E por meio da transmissao oral que se perpetua a capoeira angola pastiniana muitos homens de idade avancadas lembradas, devem estar registradas nos arquivos policiais, Eram individuos de mau caréter que se valiam da capoeira para dar vazio ao instinto agressivo’ A “luta regional baiana’, posterior- mente conhecida como “capoeira re gional”, hoje hegeménica nas acade- mias de ginastica, espetaculos turist: se meios de comunicacao de massa, (oi criada em um contexto de lutas de ringue, de desafios que Mestre Bimba fazia a lutadores de outros esportes Sendo assim, também mereceu criti cas do velho Mestre. por mostrar-se em muitos aspectos violenta: "Eu co- no um velho caposirista, sentiame mal com o fumo que a capoeira se destinava, nao mais falavam em ca poeira angola: s6 regional, os mestres ja nao eram famosos, aninhavam so os dias de domingos. de qualquer for ma que desejavam, porém 5 em cor Feraeaio tigirem os seus erros de estarem sub- jugado pelos caprichos da regional.) Hoje vejo reduzido, os capoeitistas perderam suas forcas de vontade, nao procuram o fundamento, s6 querem aprender a propria violéncia” Ensinamentos Mais do que uma mera pratica cor poral, Mestre Pastinha concebe a ca poeira como um caminho para a per feicao. para o fim dos erros. um ins: trumento para o aperfeicoamento do ser humano. Em relacao ao processo de aprendizagem da capoeira, Mestre Pastinha aponta para a necessidade de um ensino que realmente eduque 0 diseipulos, com disciplina e escla recimento, embora pressuponha se- aredos ¢ mistérios nao entregues “de bandeja": “Todos mestres deve ter co- mhecimento das regras, e maior nt mero nao tem conhecimento. Eu co heco mestres que sabem tanto quan: to eu, mas nao ensinam. Todo mundo sabe que 0 gato ensinou a onca, € 0 que ia acontecendo?” A historia do “pulo do gato” (um mo: vimento de capoeira, segundo alguns: infelizmente nao nos fot possivel en- contrar quem o ensinasse) é corrente Acaowa epi aside comet de ita deine. errtcaa po Mest Pasta entre os capoeiristas. Dizem que a onca procurou 0 gato e propos que fossem amigos dali em diante, e que ele Ihe ensinasse seus pulos e manhas, com © que © gato concordou. Depois de aprender “tudo”. entretanto, a on- a mudou de idéia ¢ atacou o gato. crente de que teria ali o seu jantar. O gato entao deu um pulo que ela nunca tinha visto, pondo-se em um lugar a salvo de ataques. A onca entao repli cou: “Compadre, este pulo voce nao me ensinou’. Ao que ele respondeu Ta vendo? Se eu tivesse ensinado, onde estaria agora?” (Os capoeiristas do tempo passado tém manhas, jogo no corpo: os mes- tres do passado estao ai. the acompa- nhando com observacao, e nao ver regras, por qué?! E que os mestres s6 ensinam jogar, e nao dao explicacdo: e a capoeira vem amofinando-se quando no passado ela era violenta. muitos mestres africanos e outros nos chamavam atencio, quando nao esta va no ritmo, explicavam com decén cia e davam-nos educacdo dentro do esporte da capoeira. esta @ a razao que todos que vieram do passado tem jogo de corpo e ritmo. Os mestres reservam segredos, mas nao negam a explicacdo Aa cultura Aqui Mestre Pastinha mostra mais Jue nunca a atualidade d flexdes. O discurso d poeira porte. cada vez mais adotado por adeptos da capoeira regional. nas academias preten: introduzem a capoeira de ginastica e musculacao. dem levérla para as escolas sob o olhar squardo da Educacio Fisica ¢ 50 puté-la nas Olimpic do momentos propicios as art: las, esta culacées institucionais. O sistema CREF /CONFEF apresenta os irutos deste 2 impo: a0 da obrigatoriedade di fiploma de Edt agao Fisica no de cape Muitos dos modernos gru pos de capoe forma do mestres cada vez m ss atletas patas que privilegiam o tra ment ducativo, se im: @ agindo co: mo os Mestre Pastinb pacac Ocomportamento qu tem uma preocu: ‘om a serenidade. a paciéncia. mento para o jog pressup5e um caminhar sempre para a frente. © Mestre aponta ainda 0 seu caminho de libertagao: “ja se libertou a capoeira das garras da ignc rancia, & > cumprimento do nosso dever Educacao de Mestre Estud nsamentc > de um > a funda penetrar no se elaborada visto de mun 0 de primeira escola de capoeira angola d Bahia edo mundo. Ao pressupor ques tes de ordem etica e moral como cum F imento do deve, humildade e pack ossirias dentro do pro- cesso de aprendizagem da capoeira, Sov a pt @ tai da 3585/88. ur cn 0 Canta Federal os Constie Reps de | piss to a. & pate des paso | +O | Edwagi Fie en | veces a nga, cap ele enxerga a capoeira angola nao ape- 3s como um poderoso instrun educativ ento a trabalhar corpo e ment mo um caminho para a auto- realizacao e para a evolucdo espiritual Uma questao que tem despertadc preocupacao entre os mestres, pes: quisadores e militantes da cultura po: pular afro-brasileira é em que medida ‘ registro impresso de uma sabedoria ue se transmite tradicionalmente com base na oralidade turpacao, um falseamento destes ensinamentos. O processo de apropriacac Jeste conhecimento tradi: ional pelos pesquis ademicos. detentores do ciscurso cientifico autorize formagio | do, os transfor | na por vezes m autoridades constituias nestes assuntos. que tém mais acesso ao mercado (por meio de palestras, cur verdadeiros quardides d ‘nosso patriménio cultural, Muitos mes- res so reverenciados, mas tém dif culdades concretas de sobrevivencia no dia-a-dia, como Mestre Pastinha ja alertava em 1980, seu peniitimo ar Mestre Pasinta considera @ caposia um insirunento para © aperteigoamento do ser tumana de vide quem pre de projetos come ada precisa A cape isa sou eu”. A articulacac 1 que estabelece posentadoria para os igos mest da cultura popular (bandeira de luta da Associacao Brasileira de Capoeira Angola— ABCA\e outros que ti beneficios e retornos os mesires e suas comunidades de ori gem deve ser um compro! co pal isso polit 5 que trabalham com cult: Em um momento em que se discute producao de materiais didaticos paradidatic > ensino da cultura nas escolas, em Lei 10.639/03. toma-se fundamental trazer dimento a produgdes dos verdadeiros mestres di im olhar académico. Neste sentidc concepedes e pensamentas do Mest Pastinha devem servir de referéncia nara o ensit dizagem da -apoeira nas escolas, dentro de uma stica afro-brasileira, tradicional, calca da na memoria ¢ na oralidade. ml (*) Paulo Andrade Magalhaes Filho Teel de capoea ang pl Aso. uta Eu Su Anglo ¢ memo d Set de ania Ctra do MST a Bai

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