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A CEIA DO SENHOR

— Thomas Watson

Traduzido do original inglês: The Lord’s Supper

Os Puritanos © 2015.

1.a Edição em Português – Junho de 2015.


1.a Edição digital em Português – Julho de 2015.

É proibida a reprodução total ou parcial desta


publicação sem a autorização por escrito do editor,
exceto citações em resenhas.

EDITOR: Manoel Canuto TRADUTOR: Valter Graciano


Martins REVISORES: Márcio Santana Sobrinho e
Waldemir Magalhães DESIGNER: Heraldo Almeida
Gravura da capa: “A Scottish Sacrament” (óleo sobre
tela) do pintor Henry John Dobson (1858-1928) que
retrata a administração da Ceia do Senhor em uma
igreja presbiteriana escocesa. A pintura está agora na
Galeria de Arte Cartwright Hall, em Bradford,
Inglaterra.

os-puritanos.com
Sumário
Capa

Créditos

EPÍSTOLA AO LEITOR

APRESENTAÇÃO DO EDITOR DA VERSÃO EM INGLÊS

O MISTÉRIO DA CEIA DO SENHOR


I. O autor do sacramento é Jesus Cristo
II. O tempo em que Cristo instituiu o sacramento
III. O modo da instituição, no qual há quatro coisas a serem
observadas:

A CONSAGRAÇÃO DOS ELEMENTOS


1. Sua amargura para ele: “Ele foi moído.”
2. Considere sua doçura para nós: “Tão logo foi feito, se nos
tornou benéfico.”
IV. Os hóspedes convidados à Ceia do Senhor (os
participantes)

OS BENEFÍCIOS DA CEIA DO SENHOR


1. É absurda, porquanto é contrária (i) à Escritura
2. Esta opinião de transubstanciação é ímpia; como
transparece em duas coisas:

O AMOR DE CRISTO EXIBIDO NO SACRAMENTO


1. Contemple o amor de Deus o Pai em dar Cristo para ser
partido por nós
2. Contemple o espantoso amor de Cristo

O CORPO PARTIDO DE CRISTO


O corpo de Cristo foi partido?
O precioso corpo de Cristo foi partido por nós? Deixemo-nos
afetar com a imensa bondade de Cristo
Jesus Cristo nos é espiritualmente exibido no sacramento?
Então demos-lhe o máximo valor e estima

O SANGUE DE CRISTO
1. O sangue de Cristo é um sangue reconciliador
2. O sangue de Cristo é um sangue vivificante
3. O sangue de Cristo é um sangue purificador
4. O sangue de Cristo é um sangue que enternece
5. O sangue de Cristo é um sangue que refrigera
6. O sangue de Cristo é um sangue que conforta
7. O sangue de Cristo é um sangue que conquista o céu

AUTOEXAME
1. Com o coração devidamente examinado:
2. Devemos achegar-nos com um coração sério
3. Devemos achegar-nos com um coração inteligente
4. Devemos achegar-nos ao sacramento com corações
solícitos
5. Devemos achegar-nos a esta ordenança bem preparados,
achegando-nos com um coração penitente, “cuja alma tem
sido traspassada, ainda que não seja com espada” (Agostinho)
6. Devemos vir com um coração sincero
7. Devemos achegar-nos com um coração abrasado de amor
por Cristo

VERDADEIRA E FALSA FÉ
1. A fé tem mais dos benefícios de Cristo agregados a si
porque ela é a graça mais simples
1. Uma fé hipócrita é facilmente perceptível
2. A fé hipócrita estremece quando vem a provação
3. A fé hipócrita faz pouco caso da fé verdadeira
4. Uma fé hipócrita tem uma mão incapaz
5. Uma fé hipócrita é impura
6. A fé hipócrita é uma fé morta, não degusta a seiva ou a
doçura de Cristo

OBJEÇÕES CONTRA O ACHEGAR-SE AO SACRAMENTO


1. Lembra a paixão de Cristo. “Memoriam passionis meae
animis vestris recolite” [Trazendo de volta à vossa mente a
memória de minha paixão]
2. Lembra os gloriosos benefícios que recebemos do corpo
partido de Cristo

GRATIDÃO A DEUS
1. Demonstremos nossa gratidão a Cristo com coragem
2. Demonstremos nossa gratidão a Cristo pelos frutos
3. Demonstremos nossa gratidão a Cristo pelo zelo
4. Demonstremos nossa gratidão pela sujeição universal a
Cristo

CONSOLAÇÃO PARA OS CRENTES E ADVERTÊNCIAS PARA OS


INCRÉDULOS
1. Apresentemos Cristo por meio de nossas palavras celestiais
2. Apresentemos Cristo por meio de nossos afetos celestiais
3. Apresentemos Cristo por meio de nossa conversação
celestial (Fp 3.20)

Mídias

Nossos livros
#

EPÍSTOLA AO LEITOR

Leitor cristão,
uando contemplo a santidade e solenidade do
Q bendito sacramento, outra coisa não me ocorre
senão certa punção em meu espírito, e vejo em mim
a obrigação de manter este mistério na mais elevada
veneração. Os elementos do pão e vinho são em si
mesmos comuns, mas sob estas representações
simbólicas jazem ocultas excelências divinas. Eis
aqui a melhor das guloseimas: Deus nos convida à
sua festa. Eis aqui o fruto da Árvore da Vida; eis
aqui a “casa do banquete” onde a bandeira da livre
graça é gloriosamente exibida: “Levou-me à casa do
banquete, e seu estandarte sobre mim era o amor”
(Ct 2.4).
No sacramento vemos Cristo partido diante de
nós, e seu corpo partido é o único conforto para o
coração alquebrado. Enquanto nos assentamos em
torno desta mesa, o precioso condimento de Cristo
exala sua fragrância de mérito e graça. O
sacramento é tanto uma ordenança curadora quanto
seladora. Aqui nosso Salvador conduz seu povo ao
Monte da Transfiguração e lhes dá um vislumbre do
paraíso. Quão bem-vindo deve ser este jubileu da
alma, no qual Cristo se manifesta no esplendor de
sua beleza e traça douradas linhas de amor no centro
do coração crente.
Oh! Que chamas de devoção deveriam arder
em nosso coração! Quão ágeis e lépidos deveríamos
ser, subindo com asas de querubins, quando somos
capacitados a encontrar o Príncipe da Glória, que
traz em sua boca o ramo de oliveira de paz e cujos
ósculos deixam uma marca celestial impressa na
alma. O propósito deste discurso que se segue é
exercitar santos ardores de alma quanto à
participação neste sacramento.
Não se deve pensar que é suficiente ser
exteriormente devoto junto à mesa de Deus,
achegando-se a ele com os lábios, quando o coração
está longe dele: “este povo se aproxima de mim, e
com sua boca, e com seus lábios me honra, mas seu
coração se afasta para longe de mim e seu temor
para comigo consiste só em mandamentos de
homens, em que foi instruído; portanto, eis que
continuarei a fazer uma obra maravilhosa no meio
deste povo, uma obra maravilhosa e um assombro;
porque a sabedoria de seus lábios perecerá, e o
entendimento de seus prudentes se esconderá” (Is
29.13-14). O que é isto senão que Efraim se achega
a Deus com mentiras (Os 11.12)? Os que se
achegam a Deus com meras exibições, ele lhes
despedirá com meros sinais. Os que prestam a Deus
apenas uma obediência rasa terão de contentar-se
com uma casca de conforto.
A espiritualidade é a vida do culto. Se nos
achegamos ao sacramento em devida ordem,
veremos aquele a quem nossas almas amam:
“Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim
coma deste pão e beba deste cálice” (1Co 11.28).
O Senhor nos dará aqui um antegozo, e
reservará a fruição da glória para o reino celestial.
Que isto seja efetuado é a oração deste que é vosso
na obra do evangelho,
Thomas Watson
Londres, 1665.
#

APRESENTAÇÃO DO EDITOR
DA VERSÃO EM INGLÊS

sta rara obra foi originalmente publicada em


E 1665 com o título The Holy Eucharist, ou The
Mystery of the Lord’s Supper Briefly Explained.
Ainda que sucinto, ele é digno de perfilar com
outros escritos de Thomas Watson republicados pela
Trust.[1]
Para Watson, a Ceia do Senhor era um espelho
no qual contemplamos os sofrimentos e morte de
Cristo, e era, em certos aspectos, um meio de graça
mais excelente do que a pregação da Palavra: “Um
sacramento é um sermão visível. E nisto o
sacramento sobressai à Palavra pregada. A Palavra é
uma trombeta que proclama Cristo; o sacramento é
um espelho que o representa... Deus, para ajudar
nossa fé, não só nos dá a Palavra audível, mas
também um sinal visível.”
Ele cria que o sacramento era uma inestimável
dádiva do Salvador à igreja, em cujo correto uso a
fé do povo de Deus é confirmada e fortalecida e
suas almas recebem grande benefício.
Ele cria que se devem evitar dois extremos. Um
deles é a doutrina da transubstanciação, a qual vai de
encontro tanto à Escritura quanto à razão e profana
a instituição da Ceia feita por Cristo. O outro é o
erro dos que consideravam a Ceia apenas como uma
sombra vazia sem nenhuma eficácia intrínseca para
os crentes: “Por que a Ceia do Senhor é chamada ‘a
comunhão do corpo de Cristo’ (1Co 10.16), senão
porque na celebração correta dela temos doce
comunhão com Cristo? (...) Fazer do sacramento
apenas uma representação de Cristo é apequenar o
sacramento, o que redunda em pouco conforto.”
Esse ponto de vista se fundamenta no ensino de
Calvino que considerava o sacramento um meio de
graça pelo qual, através da fé, Cristo opera
eficazmente no crente.
Alguns protestantes podem estar dispostos a
dissentir desta posição, mas ninguém que ama a
nosso Senhor Jesus Cristo deixará de ser tocado e
abençoado pelo ardor e devoção ao Salvador que se
encontram na exposição de Watson.
Os editores desejam agradecer ao Sr. Roger N.
McDermott que transcreveu cuidadosamente a obra
de Watson de uma cópia da Bodleian Library,
Oxford, e ajudou a prepará-la para sua publicação.
O EDITOR
Edinburgh
Janeiro de 2004
[1] A Body of Divinity, The Ten Commandments, e The Lord’s
Prayer, que, juntos, formam o Watson’s Body of Practical
Divinity, e, na série de brochuras puritanas, All Things for Good,
The Doctrine of Repentance, The Godly Man’s Picture e The
Great Gain of Godliness.
O MISTÉRIO DA
CEIA DO SENHOR

“Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e,


abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos,
dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A
seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o
deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos;
porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova]
aliança, derramado em favor de muitos, para
remissão de pecados” (Mt 26.26-28).

estas palavras, temos a instituição da Ceia do


N Senhor. Os gregos chamam o sacramento de
musterion: um mistério. Há nela um mistério de
maravilha e um mistério de misericórdia. “A
celebração da Ceia do Senhor é a comemoração da
maior bênção que o mundo já desfrutou”, diz
Crisóstomo.[2] Um sacramento é um sermão visível.
E nisto o sacramento sobressai à Palavra pregada. A
Palavra é uma trombeta que proclama Cristo; o
sacramento é um espelho que o representa.
PERGUNTA: Mas, por que o sacramento da Ceia
do Senhor foi instituído? Acaso a Palavra não é
suficiente para conduzir-nos ao céu?
RESPOSTA: A Palavra é para a implantação da
fé; o sacramento é para a confirmação da fé. A
Palavra nos conduz a Cristo; o sacramento nos
edifica nele. A palavra é a fonte em que somos
batizados com o Espírito Santo; o sacramento é a
mesa onde somos alimentados e nutridos. O Senhor
condescende à nossa fraqueza. Se fôssemos
formados somente de espírito, não haveria
necessidade de pão e vinho; todavia, somos criaturas
compostas. Por isso Deus, para socorrer nossa fé,
não só nos dá uma Palavra audível, mas também um
sinal visível. “Et sensus fovetur, et fides firmatur” [O
sentido é alimentado e a fé é fortalecida]. Recorro
aqui à palavra de nosso Salvador: “Se não virdes
sinais e milagres, não crereis” (Jo 4.48). “Por
sermos alimentados por coisas externas, Deus
aumenta em nós a fé por meio desses símbolos”
(Gualter).[3]
Aquilo que entra pelos nossos olhos opera em
nós mais do que aquilo que entra pelos ouvidos.
Uma grave cena de morte nos afeta mais do que
uma oração. Assim, quando vemos Cristo partido no
pão, como se fosse crucificado diante de nós, isso
afeta mais nosso coração do que a mera pregação da
cruz.
E assim passo ao texto de Mateus 26.26-28
para dar início a estes cinco particulares em
referência ao sacramento: 1. O autor; 2. O tempo; 3.
O modo; 4. Os participantes (hóspedes); e 5. Os
benefícios.
I. O autor do sacramento é Jesus Cristo
“Jesus tomou o pão.” Instituir sacramentos pertence
por direito a Cristo, e é o ornamento de sua coroa.
Somente aquele que pode outorgar graça pode
instituir os sacramentos, os quais são o selo da
graça. Sendo Cristo o fundador do sacramento, ele
lhe concede glória e esplendor. Quando um rei faz
uma festa, ele lhe adiciona mais pompa e
magnificência. “Jesus tomou o pão”, aquele cujo
Nome é acima de todo nome (Fp 2.9); Deus bendito
para todo o sempre.
II. O tempo em que Cristo instituiu o
sacramento
Quanto ao tempo em que Cristo instituiu o
sacramento, podemos observar duas circunstâncias:
a. Isso se deu quando haviam ceado (Lc 22.20:
“depois de cear”); ceia que continha mistério, para
mostrar que a meta do sacramento é ser
principalmente um banquete espiritual; não visa a
empanturrar os sentidos, e sim a suprir as graças.
Isso se deu “depois de cear”.
b. A outra circunstância de tempo é que Cristo
instituiu o sacramento pouco antes de seus
sofrimentos. “O Senhor Jesus, na noite em que foi
traído, tomou o pão” (1Co 11.23). Ele tinha plena
ciência dos problemas que sobreviriam aos seus
discípulos; a perplexidade deles não seria pouca por
ver seu Senhor e Mestre crucificado; e logo depois
teriam de beber com ele um cálice amargo; por isso,
para armá-los contra tal momento e animar-lhes o
espírito, naquela mesma noite em que foi traído ele
lhes dá seu corpo e sangue no sacramento.
Isto pode nos sugerir que em toda aflição
mental, especialmente ante a aproximação do perigo,
é necessário que recorramos à Ceia do Senhor. O
sacramento é, respectivamente, um antídoto contra o
temor, e a restauração da fé. “Na noite em que foi
traído, ele tomou o pão” (1Co 11.23).
III. O modo da instituição, no qual há
quatro coisas a serem observadas:
i. O ato de tomar o pão;
ii. O ato de abençoá-lo;
iii. O ato de parti-lo;
iv. O ato de administrar o cálice.

i. O ato de tomar o pão: “Jesus tomou o


pão.”
PERGUNTA: O que está implícito na frase
“tomou o pão”?
RESPOSTA: O ato de Cristo tomar o pão do uso
comum implicava um duplo mistério:
a. Significava que Deus, em seu decreto eterno,
separou Cristo para a obra de nossa redenção. Ele
era o kechorismenos, separado dos pecadores (Hb
7.26).
b. O ato de Cristo separar os elementos do pão
e do vinho comuns revelava que ele não se destina à
nutrição de pessoas comuns. Deve ser divinamente
purificado aquele que toca estas santas coisas de
Deus. Devem ser exteriormente separados do
mundo e interiormente santificados pelo Espírito.
PERGUNTA: Por que Cristo tomou o pão, em vez
de outro elemento?
RESPOSTA: Porque o pão o prefigura. Cristo foi
tipificado (a) pelo pão da proposição: “Também fez
Salomão todos os objetos que convinham à casa do
SENHOR; o altar de ouro, e a mesa de ouro, sobre a
qual estavam os pães da proposição” (1Rs 7.48); (b)
pelo pão que Melquisedeque ofereceu a Abraão. “E
Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho”
(Gn 14.18); e (c) pelo pão que o anjo trouxe a
Elias. “E olhou, e eis que à sua cabeceira estava um
pão cozido sobre as brasas” (1Rs 19.6). Portanto,
Cristo tomou o pão em correspondência ao tipo.
Cristo tomou o pão também por causa da
analogia; pão o lembra bem de perto: “Eu sou o pão
da vida” (Jo 6.48). Há uma tríplice semelhança:
a. O pão é útil
Outros confortos servem mais ao deleite que à
utilidade. A música deleita aos ouvidos; as cores, aos
olhos; mas o pão é o arrimo da vida. Portanto,
Cristo é proveitoso. Não há subsistência sem ele:
“quem de mim se alimenta por mim viverá” (Jo
6.57).
b. O pão satisfaz
Se uma pessoa tem fome e você lhe traz flores
ou quadros, tais coisas não satisfazem; mas o pão
satisfaz plenamente. Assim Jesus Cristo, o pão da
alma, satisfaz; ele satisfaz os olhos com beleza, o
coração com dulçor, a consciência com paz.
c. O pão fortalece
“O pão que fortalece o coração do homem” (Sl
104.15, ACRF). Assim Cristo, o pão da alma,
transmite vigor. Ele nos fortalece contra as
tentações, comunica vigor para realizar e suportar
trabalho. Ele é como o pão que o anjo levou ao
profeta: “Levantou-se, pois, e comeu e bebeu; e
com a força daquela comida caminhou quarenta dias
e quarenta noites até Horebe, o monte de Deus”
(1Rs 19.8).
ii. A segunda coisa na instituição é Cristo
abençoando o pão
Ele o abençoou: “Pela bênção de Cristo, o pão
comum adquiriu uso santo” (Gualter).[4] Esta foi a
consagração dos elementos. Cristo, por sua bênção,
os santificou e fez deles símbolos de seu corpo e
sangue: “Consagrar significa tornar solenes coisas
em si mesmas indiferentes aos mistérios religiosos,
tal como o sacramento do corpo e sangue de Cristo”
(Chamier, De Eucharistia).[5] Nossa análise disto
continua no próximo capítulo.
[2] João Crisóstomo (347-407), “a boca de ouro”; bispo de
Constantinopla e notável pregador.
[3] Quia externis ducimur, hisce symbolis fidem in nobis adauget
Deus. Rudolf Gualter (1519-86) foi um reformador suíço e
sucessor de Bullinger em Zurique.
[4] Benedictione Christi panis communis in sacrum mutatus est.
[5] Consecratio vocabulum est solenne significans id quo per se
aliena sunt a mysteriis religiosis, sint sacramenta corporis et
sanguinis Christi. A referência é a uma obra de Daniel Chamier
publicada em Genebra em 1626.
A CONSAGRAÇÃO DOS
ELEMENTOS

“Jesus tomou o pão e, abençoando-o... E, tomando


o cálice, dando graças” (Mt 26.26-27).

a consagração dos elementos celebrada por


N Cristo podem ser vistas três coisas:
a. Cristo, ao abençoar os elementos, abriu aos
apóstolos a natureza do sacramento. Ao fazer isso,
ele solucionou este mistério. Cristo revelou-lhes que,
tão seguramente como receberam fisicamente os
elementos, assim seguramente o receberam
espiritualmente no coração.
b. O ato de Cristo abençoar os elementos
significava sua oração por uma bênção sobre a
ordenança. Ele orou para que estes símbolos de pão
e vinho, através da bênção e operação do Espírito
Santo, santificassem os eleitos e lhes selassem todas
as mercês e privilégios espirituais.
c. O ato de Cristo abençoar os elementos
constituiu sua ação de graças. “[Dar graças] foi
sempre o costume dos judeus, como transparece dos
escritores Talmúdicos, antes de tomar o alimento ou
o vinho” (Josefo).[6] Por isso, no grego: Eucharistia
— “Ele deu graças.”
Cristo deu graças porque Deus o Pai tinha, nas
infinitas riquezas de sua graça, dado seu Filho para
expiar os pecados do mundo. E se Cristo deu graças,
quanto mais nós devemos render graças! Se ele, que
havia de derramar seu sangue, deu graças, quanto
mais devemos nós, que havemos de bebê-lo, dar
graças!
Cristo deu graças porque Deus deu estes
elementos de pão e vinho, não só para que fossem
sinais, mas também selos de nossa redenção. Como
o selo serve para ratificar uma transferência de terra,
assim o sacramento, como um selo espiritual, serve
para comunicar Cristo e o céu a quem dignamente o
recebe.
iii. A terceira coisa na instituição é o ato de
partir o pão
“E o partiu.” Isto prefigurava a morte e a paixão
de Cristo, com todos os tormentos de seu corpo e
alma: “ao Senhor agradou moêlo” (Is 53.10).
Quando condimentos são moídos, então exalam
suave aroma. Assim, quando Cristo foi moído na
cruz, ele nos exalou a mais doce fragrância. O corpo
de Cristo, sendo crucificado, foi a quebra de um
invólucro de precioso unguento, o qual encheu céu e
terra com seu perfume.
PERGUNTA: Mas, por que o corpo de Cristo foi
partido? Qual foi a causa de seu sofrimento?
RESPOSTA: Seguramente, não por haver nele
alguma falta: “será morto o Ungido e já não estará”
(Dn 9.26). No original hebraico: “Ele será cortado, e
não haverá nada nele.” Não está nele a razão porque
deve sofrer. O sumo sacerdote, quando entrava no
tabernáculo, primeiro oferecia “por si mesmo” (Hb
9.7); ainda que portasse sua mitra, a lâmina de ouro
e usasse vestes santas, mesmo assim não era puro
nem inocente; ele tinha de oferecer sacrifício por si
mesmo, tanto quanto pelo povo. Mas Jesus Cristo, o
grande Sumo Sacerdote, embora tenha oferecido
um sacrifício sangrento, todavia não foi por si
mesmo.
PERGUNTA: Por que, pois, seu bendito corpo foi
partido?
RESPOSTA: Foi por nossos pecados. “Tu te
afligiste, Senhor, não por tuas feridas, e sim pelas
minhas” (Ambrósio).[7] “Mas ele foi ferido por
nossas transgressões” (Is 53.5). A palavra hebraica
para ferido tem uma ênfase dupla; pode significar
que ele foi traspassado como que por um dardo:
perforatus; ou que foi profanado: profanatus. Ele
foi usado como alguma coisa comum, vil; e isso em
nosso favor: “Ele foi ferido por nossas
transgressões.” “Um peca e outro é punido”
(Lutero).[8] De modo que, se a questão fosse posta
diante de nós, como uma vez a Cristo, “Profetiza:
quem te feriu?” (Lc 22.64), poderíamos responder
imediatamente: Foram nossos pecados que o
feriram. Nosso orgulho fez Cristo usar uma coroa de
espinhos. Como disse Zípora a Moisés, “Tu és para
mim um esposo sanguinário” (Êx 4.25); então Cristo
poderia dizer à sua igreja: Tu tens sido para mim
uma esposa sanguinária; tu me custaste meu próprio
sangue.
PERGUNTA: Mas como poderia Cristo sofrer,
sendo Deus? A deidade é insensível.
RESPOSTA: Cristo sofreu somente em sua
natureza humana, não na divina. Damasceno[9] o
explica fazendo uso deste símile: Se alguém derrama
água sobre o ferro em brasa, o fogo sofre pela água
e é extinto, mas o ferro não sofre. Assim a natureza
humana de Cristo podia sofrer a morte, mas a
natureza divina não é culpável de qualquer paixão.
Quando Cristo estava, na natureza humana,
sofrendo, ele foi, na natureza divina, triunfante.
Como nos extasiamos com o nascer do Sol da
Justiça em sua encarnação, assim podemos extasiar-
nos com a descida deste Sol em sua paixão.
PERGUNTA: Mas, se Cristo sofreu somente em
sua natureza humana, como é possível que seu
sofrimento fizesse satisfação pelo pecado?
RESPOSTA: Em razão da união hipostática,[10]
estando a natureza humana unida à divina; a
natureza humana sofreu, a divina fez satisfação. A
deidade de Cristo deu aos seus sofrimentos,
respectivamente, majestade e eficácia. Cristo foi
Sacrifício, Sacerdote e Altar. Ele foi Sacrifício,
como homem; Sacerdote, como Deus e homem;
Altar, como Deus. A propriedade do altar é
santificar a coisa oferecida nele (Mt 23.14).
Então o altar da natureza divina de Cristo
santificou o sacrifício de sua morte e a fez meritória.
Ora, concernente ao sofrimento de Cristo na
cruz, observe duas coisas:
1. Sua amargura para ele: “Ele foi moído.”
Os próprios pensamentos de seu sofrimento o
deixaram em agonia. “E, posto em agonia, orava
mais intensamente. E seu suor tornou-se em grandes
gotas de sangue, que corriam até o chão” (Lc
22.44).
Ele foi tão fulminado pela dor que seu coração
não pôde conter-se: “Minha alma está cheia de
tristeza até a morte” (Mt 26.38).
A Crucificação de Cristo foi:
a. Uma morte lenta[11]
Era melhor que Cristo sofresse uma hora do
que termos de sofrer para todo o sempre; mas sua
morte foi prolongada; ele pendeu três horas da cruz.
Ele morreu mil mortes antes de morrer uma. “A
morte envolve menos dor do que nossa espera pela
morte” (Ovídio).[12]
b. Uma morte dolorosa
Suas mãos e pés foram pregados, estando estas
partes entremeadas de nervos e, portanto, em
extremo sensíveis, tornando sua dor muitíssimo
profunda e cortante; e ter a envenenada flecha da ira
de Deus penetrando seu coração foi uma catástrofe
pavorosa, que causou vociferação e gritos na cruz:
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
(Mt 27.46; Mc 15.34). A justiça de Deus estava
agora inflamada e intensificada na mais plena
extensão. “Deus não poupou seu próprio Filho”
(Rm 8.32). Nada seria abatido da dívida. Cristo
sentiu as dores do inferno; muito embora não
localmente, pelo menos o equivalente. No
sacramento vemos esta tragédia em ação diante de
nós.
c. Uma morte ignominiosa
Cristo está in mediopositus, colocado no meio;
ele pendeu entre dois ladrões (Mt 27.38), como se
fosse o principal malfeitor. A lâmpada celestial pode
bem ter subtraído sua luz e se escondido nas trevas,
como se envergonhado de contemplar o Sol da
Justiça em um eclipse. É difícil dizer qual era maior:
o sangue da cruz ou a vergonha da cruz (Hb 12.2).
d. Uma morte maldita (Dt 21.23)
Este tipo de morte era tão execrável que
Constantino promulgou uma lei que nenhum cristão
morresse na cruz. O Senhor Jesus Cristo suportou
isto: “Foi feito maldição por nós” (Gl 3.13). Aquele
que era “Deus bendito para sempre” (Rm 9.5) se
submeteu à maldição.
2. Considere sua doçura para nós:
“Tão logo foi feito, se nos tornou benéfico.”
A chaga de Cristo é a nossa cura: “por suas
pisaduras fomos sarados” (Is 53.5). Calvino
denomina a crucificação de Cristo Cardo salutis, a
dobradiça em torno da qual gira nossa salvação. E
Lutero a denomina Fons salutis, a fonte do
evangelho aberta para refrigerar os pecadores. De
fato, o sofrimento de Cristo é consolo no leito de
morte; é um antídoto a expulsar nosso medo.
O pecado atribula? Cristo já o venceu por nós.
Junto aos dois ladrões crucificados com Cristo havia
dois outros ladrões invisíveis crucificados com ele: o
pecado e o diabo.
iv. O quarto particular na instituição da Ceia
do Senhor é a administração do cálice de Cristo:
“E tomou o cálice.” O ato de tomar o cálice
exibiu a redundância[13] do mérito de Cristo e a
profusão de nossa redenção. Cristo não usou de
parcimônia; ele deu não só o pão, mas também o
cálice. Podemos dizer com o salmista: “no Senhor
há misericórdia e nele há abundante redenção” (Sl
130.7).
Se Cristo deu o cálice, como ousam os papistas
subtraí-lo?Cortam e mutilam a ordenança. Rasuram
a Escritura e deveriam temer aquela condenação: “e,
se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro
desta profecia, Deus tirará sua parte da árvore da
vida, da cidade santa e das coisas que se acham
escritas neste livro” (Ap 22.19).
PERGUNTA: O que significa tomar o cálice de
Cristo?
RESPOSTA: O cálice é figurativo; é uma
metonímia do sujeito; o cálice é expresso pelo vinho
contido nele. Com isto Cristo significava o
derramamento de seu sangue na cruz; quando seu
sangue foi derramado, então a videira foi podada e
purgada; agora o “Lírio dos Vales” foi tingido de cor
púrpura. “Eles lhe deram um manto escarlate,
embora ele mesmo tingisse de púrpura o vestuário
de seu corpo com muito mais nobreza pelo
derramamento de seu sangue” (Bernardo).[14] Mas,
para nós, ele é o cálice da salvação. Quando Cristo
bebeu este cálice de sangue, na verdade podemos
dizer que ele bebeu à saúde do mundo inteiro. Ele
era o “precioso sangue” (1Pe 1.19). Neste sangue
vemos o pecado plenamente punido e plenamente
perdoado. E por isso a esposa de Cristo pôde dizer:
“eu te daria a beber do vinho aromático e do mosto
das minhas romãs” (Ct 8.2), quando Cristo lhe deu
de beber de seu sangue cálido, aromatizado com seu
amor e perfumado com a natureza divina.
IV. Os hóspedes convidados à Ceia do
Senhor (os participantes)
A quarta coisa diz respeito aos “hóspedes
convidados para esta Ceia”, ou às pessoas a quem
Cristo distribuiu os elementos; “Ele o deu aos
discípulos e disse: Tomai e comei.” O sacramento é
o pão dos filhos. Se um homem faz uma festa, ele
chama seus amigos. Cristo chama seus discípulos; se
achasse que havia um público melhor, certamente os
faria saber.
“Não há espaço para mais sombras” (Horácio).
[15]

“Isto é o meu corpo que é dado por vós” (Lc


22.19). Isto é, por vós “pistoi”, crentes. Cristo deu
seu corpo e sangue para os discípulos,
principalmente sob esta ideia: porque eram crentes.
Como Cristo derramou suas orações sobre os
crentes (Jo 17), assim seu sangue, foi derramado
somente para os crentes; veja quão perto o coração
de Cristo está de todos os crentes! O corpo de Cristo
foi partido na cruz e seu sangue derramado por eles
— “mas a eleição o alcançou” (Rm 11.7). Cristo
ignorou outros, e morreu intencionalmente pelos
eleitos.
Pecadores impenitentes não têm nenhum
benefício da morte de Cristo, senão um curto
indulto. Cristo é dado aos perversos em ira. Ele é
“uma rocha de ofensa” (1Pe 2.8). O sangue de
Cristo é como um óleo que sana alguns pacientes,
porém mata outros. Judas sugou morte da Árvore da
Vida. Deus pode converter pedras em pão, e um
pecador pode converter pão em pedras; o pão da
vida em pedra de tropeço.
[6] Moris semper iudaeis fuit, ut ex thalmudicis scriptoribus
apparet, ante cibum aut vinum sumptum. Josefo foi um
historiador judeu, 37-100 d.C.
[7] Doles, Domine, non tua vulnera sed mea. Ambrósio (340-97),
pai latino mais conhecido por seu caráter impoluto e habilidade de
pregação.
[8] Alius peccat, alius plectitur.
[9] João de Damasco (Damasceno), 676-760(?).
[10] Um termo usado para denotar a união entre as naturezas
divina e humana em Cristo.
[11] Non citius fuit, quam profuit.
[12] Morsque minus poenae, quam mora mortis habet (Ovídio,
Ep. Heroides, x.8/2).
[13] Isto é, superabundância, transbordamento.
[14] Stolam coccineam dederunt ei, quamvis ipse vestem corporis
sanguinaria effusione multo nobilius purpuravit. Bernardo de
Clairvaux (1090-1153), chamado por Lutero o monge mais temente
a Deus de toda a Idade Média.
[15] Non locus est pluribus umbris. Neste contexto, uma “sombra”
era um hóspede não convidado pelo anfitrião, e sim levado por
algum outro hóspede de importância como parte de sua festa.
OS BENEFÍCIOS DA CEIA DO
SENHOR

Meu sangue... é derramado... para a remissão de


pecados
(Mt 26.28)

A quinta coisa observável no texto (Mt 26.26-


V. 28) é o benefício desta Ceia, nestas palavras:
“para a remissão de pecados.” Esta é uma mercê de
primeira magnitude, o summum genus, a suprema
bênção: “Quem perdoa todas as tuas iniquidades...
quem te coroa com longanimidade” (Sl 103.3-4).
A todo aquele a quem foi concedida esta carta
régia, o nome está arrolado no Livro da Vida: “Bem-
aventurado aquele cuja transgressão é perdoada” (Sl
31.1). Sob as palavras “remissão de pecados”, por
sinédoque, estão compreendidas, na Ceia do Senhor,
todas as benesses celestiais: justificação, adoção,
glória, de cujos benefícios podemos, com
Crisóstomo, chamar de “o banquete da cruz”.
Esta doutrina do sacramento refuta a opinião
da transubstanciação. “Não é a transubstanciação
que está subentendida, nem transformação, mas a
união sacramental do sinal com a substância”
(Beza).[16] Quando Cristo diz “Isto é o meu corpo”,
os papistas afirmam que o pão, após a consagração,
se converte na substância do corpo de Cristo.
Afirmamos que o corpo de Cristo está
espiritualmente no sacramento, mas os papistas
dizem que ele está ali carnalmente; eis uma opinião
mui absurda e ímpia.
1. É absurda, porquanto é contrária (i) à
Escritura
As Escrituras asseveram que o corpo de Cristo está
local e numericamente no céu. “A quem o céu deve
receber até os tempos da restituição de todas as
coisas” (At 3.21). Se o corpo de Cristo está
circunscrito no céu, então não pode estar
materialmente na Ceia do Senhor.
É contrária (ii) à razão. Como é possível
imaginar que uma coisa seja mudada em outra
espécie, e ainda assim continuar sendo a mesma?
Que o pão no sacramento seja comunicado e
convertido em carne, e ainda continue sendo pão?
Quando a vara de Moisés se converteu numa
serpente, ela não podia ser ao mesmo tempo e
respectivamente uma vara e uma serpente. Que o
pão no sacramento seja mudado no corpo de Cristo
e ainda permanece sendo pão é uma perfeita
contradição. Se os papistas dizem que o pão se
desvanece, isto é mais apropriado numa lenda do
que em nosso credo; pois a cor, a forma e o sabor
do pão ainda permanecem.
2. Esta opinião de transubstanciação é
ímpia; como transparece em duas coisas:
i. É uma profanação do corpo de Cristo
Pois se o pão no sacramento é o corpo real de
Cristo, então ele pode ser comido não só pelos
perversos, mas também pelos répteis e vermes, os
quais haveriam de denegrir e lançar desdém sobre
Cristo e sua ordenança.
ii. Inevitavelmente, os homens prosseguem
no pecado
Pois através deste equívoco, de que o pão é o
próprio corpo de Cristo, o culto divino é dado ao
pão, o que é idolatria; como também oferecer o
sacrifício do corpo, ou a hóstia, na missa constitui
blasfêmia contra o ofício sacerdotal de Cristo, como
se seu sacrifício na cruz fosse imperfeito.
Portanto, concluo com Pedro Mártir[17] que esta
doutrina da transubstanciação deve ser repugnada e
demolida, florescendo apenas nas fantasias dos
homens, mas não germinando no campo das Santas
Escrituras.
Esta doutrina do sacramento refuta os que
consideram a Ceia do Senhor apenas como uma
figura ou sombra vazia, que lembra a morte de
Cristo, mas que não tem em si nenhuma eficácia.
Seguramente, esta gloriosa ordenança é mais que
uma efígie ou representação de Cristo. Por que a
Ceia do Senhor é chamada “a comunhão do corpo
de Cristo” (1Co 10.16), senão porque, na
celebração correta dela, temos doce comunhão com
Cristo? Nesta ordenança evangélica, Cristo não só
revela sua beleza, mas também exibe sua virtude. O
sacramento não é apenas uma figura desenhada, mas
é o leite sugado; ele nos dá um sabor antecipado de
Cristo, bem como uma antevisão dele (1Pe 2.3).
Fazer do sacramento simplesmente uma
representação de Cristo é almejar muito pouco do
mistério e receber um conforto insuficiente.
O sacramento nos diz várias coisas. Ele nos
mostra a necessidade de buscar a Ceia do Senhor.
Jesus Cristo já arcou com todos os custos para o
banquete? Então certamente devemos ser seus
convivas. “Fazei isto em memória de mim” (Lc
22.19).
Não se trata de fazermos nossa escolha, se
iremos ou não, mas esse é um dever simplesmente
indispensável: “Comamos deste pão e bebamos
deste cálice” (1Co 11.28). Estas palavras não são
apenas persuasivas, elas constituem um imperativo:
como se um rei dissesse: “Seja feito!” Negligenciar o
sacramento leva os homens a se privarem do
evangelho.
O sacramento exprime a infinita bondade em
Cristo, perfura aquele bendito vaso de seu corpo e
faz seu bendito sangue jorrar; e ao omitirmos
voluntariamente esta ordenança, na qual o troféu da
misericórdia é tão ricamente exibido e nossa
salvação tão intimamente envolvida, Cristo poderia
muito bem tomar isto como uma subvalorização dele
e interpretá-lo como não mais do que a obrigação de
manter para si mesmo o seu banquete.
Quem não observasse a Páscoa, “essa alma será
eliminada de seu povo” (Nm 9.13). Quão irado
ficou Cristo com aqueles que ficaram ausentes da
ceia referida na parábola! Acreditavam que podiam
usar de evasivas com cortesia, mas Cristo sabia
como construir sua escusa com uma recusa:
“Nenhum daqueles homens que foram convidados
provará de minha ceia” (Lc 14.24).
A rejeição da misericórdia evangélica é um
pecado tão tenebroso que Deus não fará outra coisa
senão puni-lo por menosprezo. Alguns necessitam
de uma espada flamejante para impedir seu acesso à
mesa do Senhor; e outros necessitam do azorrague
de cordas de Deus para conduzi-los a ela.
Talvez alguns digam que estão acima do
sacramento. É estranho ouvir um homem dizer que
está acima do seu alimento! Os apóstolos não
estavam acima desta ordenança, e porventura
alguém presumirá ter uma posição mais elevada que
a dos apóstolos? Que todos os entusiastas consultem
aquela Escritura: “todas as vezes que comerdes este
pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do
Senhor até que ele venha” (1Co 11.26). A morte
deve ser rememorada sacramentalmente, até que
venha o juízo.
Veja a miséria dos incrédulos: mesmo que o
Senhor tenha designado esta gloriosa ordenança de
seu corpo e sangue, eles não colhem nenhum
benefício dela. É verdade que se chegam ao
sacramento, seja para conservarem seu crédito, ou
fechar a boca da consciência, mas nada obtêm para
suas almas. Vêm vazios da graça e se vão vazios de
conforto: “Será também como um faminto que
sonha que está a comer, porém, acordando, sente-se
vazio” (Is 29.8). Assim os homens ímpios imaginam
comer do banquete espiritual, mas têm apenas um
sonho dourado: “Nada resta para o perverso, senão
uma exibição sem conteúdo” (Davenant).[18]
Ah! Eles não conseguem “discernir o corpo do
Senhor”. O maná jazia ao redor do acampamento de
Israel, mas eles não o conheciam: “Porque não
sabiam o que era” (Êx 16.15). E assim as pessoas
carnais veem os elementos externos, porém Cristo
não lhes é conhecido em suas virtudes salvíficas: há
mel na Rocha Espiritual, o qual eles nunca
degustam. Nutrem-se do pão, porém não de Cristo
no pão: “Comem o pão do Senhor, porém não o
Pão que é o Senhor.”[19] Isaque comeu o cabrito,
quando cria estar comendo cervo (Gn 27.25). Os
incrédulos se vão com a sombra do sacramento; eles
têm a casca e a palha, não a essência. Comem o
cabrito, não o cervo.
[16] Non Transbstantiatio intelligitur, vel transfusio, sed signi rei
coniunctio sacramentalis (Beza).
[17] Pietro Martire Vermigli (1499-1562), um eminente reformador
italiano.
[18] Impiis nihil restat praeter inane spectaculum. A citação
parece ser do Dr. John Davenant, 1572-1641, Bispo de Salisbury.
[19] Edunt panem Domini, non panem Dominum.
O AMOR DE CRISTO EXIBIDO
NO SACRAMENTO

Isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que


é derramado por muitos (Mt 26.28).

eja neste texto, como num espelho, o infinito


V amor exibido.
1. Contemple o amor de Deus o Pai em dar
Cristo para ser partido por nós
Que Deus penhoraria tal joia causa espanto nos
anjos: “De tal modo Deus amou o mundo que deu
seu Filho unigênito” (Jo 3.16). Este é um padrão de
amor sem paralelo; foi uma expressão mais
profunda do amor de Deus dar seu Filho para
morrer por nós do que se ele tivesse voluntariamente
nos absolvido da dívida, sem qualquer satisfação [de
nossa parte]. Quando um súdito é desleal com o seu
soberano, há no rei mais amor em dar seu próprio
filho para morrer por aquele súdito do que em
perdoar graciosamente o seu erro.
2. Contemple o espantoso amor de Cristo
Seu corpo foi partido. A cruz, diz Agostinho, foi o
púlpito em que Cristo proclamou seu amor pelo
mundo. Vejamos na cruz um santo clímax do amor
de Cristo.
i. Foi um amor maravilhoso que fez com que
Cristo, que nunca teve a víbora do pecado
picando-o, fosse reputado pecador:
aquele que odiava o pecado “se fez pecado”
(2Co 5.21); aquele que é contado entre as Pessoas
da Trindade foi “contado com os transgressores” (Is
53.12).
ii. Foi um amor maravilhoso que fez com que
Cristo sofresse a morte
“Senhor”, disse Bernardo, “tu me amaste mais
do que a ti mesmo, pois por mim renunciaste tua
vida.”[20] O imperador Trajano[21] rasgou uma parte
de seu próprio manto e enfaixou as feridas de um de
seus soldados. Cristo rasgou sua própria carne por
nós; mais do que isso, Cristo morreu como se fosse
o “maior dos pecadores” (Lutero), recebendo sobre
si o peso dos pecados de todos os homens; eis o
amor usque ad stuporem dulcis (doce ao ponto de
causar espanto). Ele deixa todos os anjos do céu
pasmos.
iii. Foi um amor maravilhoso que fez com
que Cristo morresse livremente
“Eu dou minha vida” (Jo 10.17); “[Seus atos]
não foram feitos por necessidade, e sim por escolha”
(Jerônimo).[22] Não havia lei que lhe ordenasse,
nenhuma força que lhe obrigasse. Isto é chamado
“oferecimento do corpo de Jesus Cristo” (Hb
10.10). O que poderia prendê-lo à cruz senão o elo
de ouro do amor?
iv. Foi um amor maravilhoso que fez com
que Cristo morresse por pessoas como nós. O que
somos?
Não só vaidade, mas também inimizade.
Enquanto lutávamos, ele morria; enquanto tínhamos
as armas em nossas mãos, ele tinha a lança fincada
em seu lado (Rm 5.8).
v. Foi um amor maravilhoso que fez com que
Cristo morresse por nós, quando absolutamente
nada poderia esperar de nós em nenhuma
situação
Fomos reduzidos à penúria; ficamos em tal
situação que não poderíamos merecer o amor de
Cristo nem requerê-lo; Cristo, ao morrer por nós
quando vivíamos numa situação tão baixa, foi a
própria quintessência do amor.
Um homem pode estender bondade a outro
enquanto este for apto a retribuir; mas se ele cair em
decadência, então o amor começa soçobrar e a
arrefecer. Mas quando vivíamos engolfados na
miséria, e caímos em decadência, quando perdemos
nossa beleza, maculamos nosso sangue,
desperdiçamos nossa porção, então Cristo morreu
por nós. Oh! Espantoso amor, mais profundo que
todos os nossos pensamentos!
vi. Foi um amor maravilhoso que fez com
que Cristo não voltasse atrás em seus
sofrimentos:
“Ele verá o doloroso trabalho de sua alma e
ficará satisfeito” (Is 53.11). Esta é uma metáfora que
evoca uma mãe que, ainda que enfrente penosas
dores de parto, todavia não se arrependerá delas,
quando vê o filho nascido; assim Cristo enfrentou
penoso trabalho na cruz, contudo não se arrependeu
dele, porém pensa que todo seu suor e sangue
valeram a pena, porque vê que o filho do homem
trouxe a redenção ao mundo. “Ele se sente
plenamente satisfeito com esta única recompensa de
seu trabalho. Agora repousa; agora possui profusão
de deleites.”[23] “Ele ficará satisfeito.” A palavra
hebraica significa aquele saciar que um homem
sente em um deleitoso banquete.
vii. Foi um amor maravilhoso que fez com
que Cristo morresse antes por nós e não pelos
anjos que caíram
Estes eram criaturas de uma essência mais
nobre, e com toda probabilidade poderiam ter
produzido maior profusão de glória a Deus; todavia,
o fato de Cristo passar por alto aqueles vasos de
ouro e transformar-nos, torrões de argila, em estrelas
de glória – Oh, hipérbole do amor de Cristo!
viii. Vem ainda outro passo do amor de Cristo
(pois, como as águas do santuário, ele se mostra
ainda mais sublime):
Foi ainda mais maravilhoso o fato que o amor
de Cristo não cessou na hora da morte.
Escrevemos em nossas cartas: “Seu amigo até a
morte!” Cristo, porém, escreveu em outro estilo:
“Seu amigo após a morte!” Cristo morreu uma vez,
porém ama para sempre. Ele ainda continua
testificando-nos seu afeto; ele continua construindo
e preparando mansões para nós (Jo 14.2). Ele
continua intercedendo por nós (Hb 9.24). Ele
comparece ante o tribunal como advogado em
defesa do réu. Assim que acabou de morrer, jamais
parou de amar: “Eles perfuraram o lado de Cristo
com a penetrante lança da fúria, lado esse que foi
ferido muito antes com a espada do amor”
(Bernardo).[24] Quem meditaria sobre isto sem ser
tocado pelo êxtase? Foi por isso que o apóstolo o
chamou “amor que excede todo o entendimento”
(Ef 3.19). Quando você divisar Cristo partido no
sacramento, lembre-se deste amor.
E assim vemos que amoráveis e plenários afetos
devemos nutrir por Cristo, o qual nos dá seu corpo e
sangue na Eucaristia. Se ele possuíra algo de maior
valor, no-lo teria concedido. Oh, que Cristo se
ponha ainda mais perto de nossos corações! Que ele
seja nossa Árvore da Vida e nós não aspiremos
nenhum outro fruto. Que ele seja nossa Estrela da
Manhã e que não nos regozijemos em nenhuma
outra luz.
Como a beleza de Cristo, assim sua
generosidade o faça amado por nós; ele nos deu seu
sangue como o preço e seu Espírito como a
testemunha de nosso perdão. No sacramento, Cristo
outorga todas as boas coisas. Ele tanto imputa sua
justiça como confere sua benignidade. Ele dá um
antegozo daquela ceia que será celebrada no Paraíso
de Deus.
Em resumo, na bendita Ceia, Cristo dá a si
mesmo aos crentes; e o que mais poderia dar?
Querido Salvador, “Suave é o aroma dos teus
unguentos; como o unguento derramado é o teu
nome” (Ct 1.3). Os persas cultuam o sol como seu
Deus; cultuemos o Sol da Justiça! Muito embora
Judas vendesse Cristo por trinta moedas de prata,
nós, ao contrário, não abandonemos esta Pérola sem
preço. Cristo é aquele Tubo de Ouro através do qual
corre o óleo de ouro da salvação que nos é
transmitido (cf. Zc 4.12).
[20] Dilexisti me, Domine, magis quam teipsum.
[21] Trajano, imperador romano, 98-117 d.C.
[22] Non sunt ex necessitate, sed ex voluntate. Jerônimo (340-
420), estudioso bíblico e tradutor da Bíblia Vulgata Latina.
[23] Hoc uno laboris sui praemio affatim saturatur; nunc
quiescit, nunc deliciis affluit.
[24] Foderunt latus Christi intima furoris lancea, quod iam
dudum amoris lancea fuit vulneratum.
O CORPO PARTIDO DE CRISTO

Isto é o meu corpo (Mt 26.26)

corpo partido de Cristo, que nos é exibido no


O sacramento, nos inspira a refletir:
O corpo de Cristo foi partido?
Então podemos visualizar o odioso pecado no
espelho vermelho dos sofrimentos de Cristo. Na
verdade, o pecado deve ser abominado por haver
expulsado Adão do Paraíso e lançado anjos no
inferno. O pecado é o interruptor da paz; é como
um incendiário na família, o qual põe esposo e
esposa em desavença; faz Deus ficar contra nós. O
pecado é o ventre de nossas dores e o túmulo de
nossos confortos.
Mas aquilo que pode mais que tudo desfigurar
o rosto do pecado e fazê-lo parecer horripilante, é
que ele crucificou nosso Senhor; ele se tornou um
véu para a glória de Cristo e fez jorrar seu sangue.
Se uma mulher viu a espada que matou seu
marido, quão odiosa ela será à vista dela! Acaso
consideraríamos leve aquele pecado que fez a alma
de Cristo “profundamente triste até a morte” (Mc
14.34)? Acaso nos seria motivo de júbilo aquilo que
fez o Senhor Jesus Cristo “um homem de dores” (Is
53.3)? Acaso ele não clamou: “Deus meu, Deus
meu, por que me abandonaste?” (Mt 27.46)? Acaso
esqueceríamos aquele pecado que fez Cristo
esquecer-se de si mesmo? Oh, que olhemos para o
pecado com profunda indignação!
Quando uma tentação vem trazer pecado,
digamos como Davi: “Guarda-me, Senhor, de fazer
tal coisa; beberia eu o sangue dos homens que foram
com risco de sua vida?” (2Sm 23.17). Então,
digamos, acaso não é este pecado que derramou o
sangue de Cristo? Que nossos corações se encham
de fúria contra o pecado. Quando os senadores de
Roma exibiram ao povo o manto ensanguentado de
César, o povo se enfureceu contra aqueles que o
mataram. O pecado dilacerou o alvo manto da carne
de Cristo e o tingiu da cor carmesim; busquemos ser
vingados de nossos pecados. Sob a lei, se um boi
chifrasse um homem, de modo que morresse, esse
boi tinha de ser morto (Êx 21.28). O pecado
traspassou e escorneou nosso Salvador: que ele seja
morto. Que lamentável seria se ainda tivesse direito
a viver aquilo que não permitiu que Cristo vivesse!
Façamos este uso de seu sofrimento na cruz,
para aprendermos a não nos maravilharmos muito se
nos depararmos com tribulações no mundo. Cristo
sofreu quando “não conheceu nenhum pecado”?
Acaso achamos estranho o sofrer de quem nada
sabe senão pecar? Cristo sentiu a ira de Deus?
Acaso é exagero sentirmos a ira dos homens? A
Cabeça seria coroada de espinhos e os membros
jazeriam entre rosas? Desfrutaríamos de nossos
braceletes e diamantes enquanto Cristo sentiu a
lança e os pregos perfurando seu coração? De fato
os que são culpados devem esperar os açoites, mas
aquele que era inocente não pôde sair livre.
Um emprego adicional da doutrina do
sacramento é o exercício da exortação. Ocupar-nos-
emos das seções desta matéria em boa parte do que
vem a seguir.
O precioso corpo de Cristo foi partido por
nós? Deixemo-nos afetar com a imensa
bondade de Cristo
Quem pode esmagar estes carvões em brasa sem
que seu coração arda? Quem não bradaria com
Inácio:[25] “Cristo, meu amor, foi crucificado!”? Se
um amigo morresse por nós, nosso coração não
seria profundamente afetado por sua bondade? Que
o Deus do céu morresse por nós, como esta
estupenda mercê não nos influenciaria com a
máxima ternura?
O corpo de Cristo partido é suficiente para
quebrantar o coração mais empedernido. Na paixão
de nosso Senhor, as próprias pedras foram fendidas:
“fenderam-se as pedras” (Mt 27.51). Aquele que
não sentir-se afetado por isto tem um coração mais
duro que as pedras. Se Saul não deixou de perceber
a mercê de Davi em poupar sua vida (1Sm 24.16),
como poderíamos não nos deixar afetar pela
benignidade de Cristo, que poupou nossa vida com a
perda da sua? Oremos para que, assim como Cristo
foi “cruci-fixus”, também sejamos “cordi-fixus” –
como ele foi “cravado” na cruz, igualmente seja ele
“cravado” em nosso coração.
Jesus Cristo nos é espiritualmente exibido
no sacramento? Então demos-lhe o máximo
valor e estima
Valorizemos o corpo de Cristo. Cada partícula deste
pão da vida é precioso: “Minha carne é verdadeira
comida” (Jo 6.55). É “o excelente Pão que
transcende a substância”, no dizer de Cipriano.[26]
O maná foi um vívido tipo e emblema do corpo
de Cristo. O maná era doce: “era como semente de
coentro branco, e seu sabor como bolos de mel” (Êx
16.31). Era um alimento delicioso; por isso foi
chamado “comida dos anjos” (Sl 78.25), por sua
excelência. Assim Cristo, o Maná Sacramental, é
doce às almas dos crentes: “seu fruto é doce ao meu
paladar” (Ct 2.3). Tudo em Cristo é doce – seu
Nome é doce, suas virtudes são doces. Este “Maná”
adoça “as águas de Mara”.
Não só isso, a carne de Cristo excede o maná:
i. O maná era uma comida, porém não
somente física
Se os israelitas ficassem doentes, o maná não
poderia curá-los; mas este bendito maná do corpo de
Cristo é não só alimento, mas também medicina. “O
corpo de Cristo é medicina para os doentes”
(Bernardo).[27]
Cristo traz “cura em suas asas” (Ml 4.2). Ele
cura o olho cego e o coração empedernido. Leve
esta medicina para bem perto de seu coração e você
será curado de todos os destemperos espirituais.
ii. O maná era corruptível
Ele cessou quando Israel entrou em Canaã; mas
este bendito maná do corpo de Cristo jamais
cessará. Os santos se alimentarão com infinito
deleite e satisfação da alma, em Cristo, para toda a
eternidade. Os júbilos celestiais cessariam se este
maná cessasse.
O maná foi posto na arca em um vaso de ouro,
para que fosse preservado ali. Assim o bendito maná
do corpo de Cristo, sendo posto no vaso de ouro da
natureza divina, é depositado na arca celestial para
os santos festejarem para sempre. Então, podemos
dizer que o bendito corpo de Cristo “é verdadeira
comida”.
“Na plenitude do corpo de Cristo, que desce da
cruz, encontramos a pérola da salvação.”[28]
[25] Bispo de Antioquia do século II martirizado em Roma.
[26] Panis eximius et supersubstantialis. Cipriano foi pai e mártir
da igreja no século III, Bispo de Cartago, 249-258.
[27] Corpus Christi aegris medicina.
[28] Fosso agro corporis Christi, margarita salutis invenitur.
O SANGUE DE CRISTO

Porque isto é o meu sangue, o sangue da nova


aliança, que é derramado por muitos, para
remissão dos pecados (Mt 26.28).

alorizemos o sangue de Cristo no sacramento.


V Ele é “verdadeira bebida” (Jo 6.55). “O cacho
de uva de meu corpo foi levado para o lagar da cruz
para tua salvação, e dele foi espremido o novo vinho
de tua redenção” (Bernardo).[29] Eis o Nectar e
Ambrosia[30] do qual o próprio Deus se deleita em
degustar. Isto é tanto um bálsamo quanto um
perfume. Para que ponhamos um valor mais elevado
no sangue de Cristo, nele mostrarei sete virtudes
sobrenaturais.
1. O sangue de Cristo é um sangue
reconciliador
“A vós também, que noutro tempo éreis estranhos, e
inimigos no entendimento pelas vossas obras más,
agora, contudo, vos reconciliou no corpo de sua
carne, pela morte, para vos apresentar santos
perante Ele, e irrepreensíveis, e inculpáveis” (Cl
1.21-22). No mesmo instante em que a mensagem
chegou a Davi, de que “Urias foi morto” (2Sm
11.21), a ira de Davi foi aplacada. No mesmo
instante em que o sangue de Cristo foi derramado, a
ira de Deus foi pacificada. O sangue de Cristo é “o
sangue da expiação”.
Mais ainda, ele é não só um sacrifício, mas
também “uma propiciação” (1Jo 2.2), o que denota
conduzir-nos ao favor de Deus. Uma coisa é um
traidor ser perdoado, outra é ele ser introduzido ao
favor. O pecado nos separa de Deus, o sangue de
Cristo nos une a Deus. Se possuíssemos tanta graça
como possuem os anjos, ainda assim não
poderíamos ter comprado nossa reconciliação. Se
oferecêssemos milhões de sacrifícios, se
enxugássemos rios de lágrimas, isto jamais teria
apaziguado a ira da Deidade; somente o sangue de
Cristo pode agraciar-nos com o favor de Deus e
levá-lo a olhar-nos com um aspecto sorridente.
Quando Cristo morreu, o véu do templo rasgou-se;
isto não era destituído de mistério, para mostrar que,
através do sangue de Cristo, o véu de nossos
pecados é rasgado, o qual se interpunha entre Deus
e nós.
2. O sangue de Cristo é um sangue
vivificante
“Quem... bebe o meu sangue tem a vida eterna” (Jo
6.54); e ambos geram vida e previnem a morte – “a
vida da carne está no sangue” (Lv 17.11). Com toda
certeza, a vida de nossa alma está no sangue de
Cristo. Quando contraímos a morte do coração
somos como vinho que já perdeu suas essências, o
sangue de Cristo possui um poder que eleva e nos
imprime vivacidade, fazendo-nos vivos e ativos em
nossos movimentos. “Subirão com asas como
águias” (Is 40.31).
3. O sangue de Cristo é um sangue
purificador
“Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito
eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus,
purificará a nossa consciência das obras mortas,
para servirmos ao Deus vivo” (Hb 9.14). Como o
mérito do sangue de Cristo pacifica a Deus, assim a
virtude dele nos purifica. Ele é o banho do Rei do
Céu. É o lavacrum animae (o lugar de lavagem da
alma), um lavabo em que lavar-se. Ele lava o
coração carmesim de um pecador fazendo-o branco
como o leite: “O sangue de Jesus Cristo, seu Filho,
nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7). A Palavra de
Deus é um espelho translúcido que exibe nossas
mazelas; e o sangue de Cristo é a fonte que as lava
(Zc 13.1).
Mas este sangue não lavará se estiver misturado
com algo mais. A água não limpará a menos que
esteja misturada com sabão ou cânfora; mas se
misturarmos algo com o sangue de Cristo, sejam os
méritos dos santos, ou a oração dos anjos, ele não
lavará.
Que o sangue de Cristo seja puro e sem
mistura, e não haverá mancha que não lave. Ele
purgou a embriaguez de Noé e o incesto de Ló.
Na verdade, existe uma mancha que é tão negra
que o sangue de Cristo não pode lavar, a saber, o
pecado contra o Espírito Santo; não que a virtude do
sangue de Cristo não seja suficiente para lavar; mas
aquele que peca contra o Espírito de Cristo não será
lavado; esse condena o sangue de Cristo “e o pisa
sob a planta de seus pés” (Hb 10.29).
4. O sangue de Cristo é um sangue que
enternece
Nada existe tão duro que não possa ser amolecido se
for embebido em seu sangue; ele amolecerá uma
pedra. A água amolecerá a terra, muito embora não
amoleça uma pedra, mas o sangue de Cristo
amolece uma pedra, ele abranda um coração de
pedra. “O qual converteu o rochedo em lago de
águas e o seixo em fonte de água” (Sl 114.8). O
coração que antes era como um pedaço cortado de
uma rocha, sendo embebido no sangue de Cristo se
torna tenro e as águas do arrependimento fluem
dele.
Assim se deu com o coração do carcereiro que
se dissolveu e se tornou terno quando “o sangue da
aspersão” o atingiu! “Senhor, que devo fazer para
ser salvo?” (At 16.30). Agora seu coração era como
cera derretida. Agora Deus podia pôr sobre ele a
impressão de seu selo.
5. O sangue de Cristo é um sangue que
refrigera
i. Refrigera o coração em pecado
Naturalmente, o coração é dominado por um
calor destemperado; necessariamente, ele está sendo
“posto no fogo do inferno”. Queima em sua luxúria
e paixão; o sangue de Cristo abranda esse calor e
apaga a chama do pecado.
ii. Refrigera o calor da consciência
No tempo de deserção, a consciência arde com
o calor do desprazer de Deus; agora o sangue de
Cristo, aspergido na consciência, a refrigera e
pacifica. E, neste sentido, Cristo é comparado a
“rios de água” (Is 32.2). Quando o coração arde e se
acha em agonia, o sangue de Cristo é como água
lançada no fogo: ele tem a virtude de extinguir o
fogo e trazer refrigério.
6. O sangue de Cristo é um sangue que
conforta
Ele é bom contra desvanecimentos. O sangue de
Cristo é melhor que o vinho; ainda que o vinho
alegre o coração de um homem que está bem, não
alegrará seu coração quando ele assume o aspecto
da pedra[31] ou quando as angústias da morte já se
encontram nele; mas o sangue de Cristo alegrará o
coração em momentos como esses. Ele é melhor na
aflição. Cura o tremor do coração. Uma consciência
aspergida com o sangue de Cristo pode, como o
rouxinol, cantar com um espinho em seu peito. O
sangue de Cristo pode transformar uma prisão em
palácio. Ele transformou as chamas dos mártires em
leitos de rosas: “Os mártires são feridos e se
regozijam; morrem e contemplam o triunfo. Por
quê? Porque, embebidos no sangue da cruz, não
temem a morte, mas esperam por ela.”[32]
O sangue de Cristo ministra conforto no
momento da morte. Como disse certa vez um
homem santo em seu leito mortuário, quando lhe
trouxeram um cardeal: “Nenhum cardeal se compara
ao sangue de Cristo.”
7. O sangue de Cristo é um sangue que
conquista o céu
“Através do lado de Cristo, ele nos abriu a vereda
para o céu” (Bernardo).[33] Israel atravessou o Mar
Vermelho rumo a Canaã. Assim, através do Mar
Vermelho do sangue de Cristo, entramos na Canaã
celestial. “Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar
no santuário, pelo sangue de Jesus” (Hb 10.19).
Nossos pecados fecharam o céu. O sangue de Cristo
é a chave que nos abre o portão do paraíso. “Pela
árvore do conhecimento, morremos; pelo madeiro
da cruz, ressuscitamos.”[34] Daí Teodoreto[35] chamar
a cruz de “Árvore da Salvação”, porque o sangue
que goteja da cruz destila salvação.
Portanto, valorizemos o sangue de Cristo e com
Paulo determinemos: “Porque nada me propus saber
entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado”
(1Co 2.2). As coroas dos reis são apenas cruzes,
mas a coroa de Cristo é a única coroa.
[29] Ego botrus carnis pro salute tua portatus sum ad torcularem
crucis, inde eliquatum est mustum tuae redemptionis.
[30] Na mitologia grega, os alimentos dos deuses.
[31] Um episódio de dor resultante de cálculos renais ou biliares.
[32] Feriuntur martyres, gaudent; moriuntur, et ecce triumphant;
quare? Quia, sanguine crucis perfusi, non mortem metuunt, sed
sperant.
[33] Per latus Christi nobis patefecit in coelum introitum.
[34] Morimur per lignum scientiae, orimur per lignum crucis.
[35] Um comentarista da Bíblia e historiador eclesiástico do
século V .
AUTOEXAME

Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim


coma deste pão e beba deste cálice (1Co 11.28).

risto nos oferece seu corpo e sangue na Ceia?


C Então, com que solene preparação deveríamos
achegar-nos a uma ordenança tão sublime! Não é
suficiente fazer o que Deus designou, mas como ele
designou. “Preparai o coração ao Senhor” (1Sm
7.3). Primeiramente, o músico afina bem seu
instrumento antes de tangê-lo. Primeiramente, o
coração deve estar preparado e bem afinado antes
de ir ao encontro de Deus nesta solene ordenança do
sacramento. Acautelemo-nos da temeridade e
irreverência. Se não chegarmos bem preparados,
não beberemos, mas derramaremos o sangue de
Cristo: “qualquer que comer este pão ou beber o
cálice do Senhor indignamente, será culpado do
corpo e do sangue do Senhor” (1Co 11.27). Isto é,
diz Teófilo,[36] será julgado alguém que derrama o
sangue de Cristo. Lemos sobre o cálice do vinho do
furor na mão de Deus (Jr 25.15). Aquele que se
achega à Ceia do Senhor sem o devido preparo
converte o cálice do sacramento no “cálice da fúria”;
“Transforma o cálice do sangue no cálice da ira.”[37]
Oh, com que reverência e devoção devemos
recorrer a estes santos mistérios! Os santos são
chamados “vasos... preparados” (Rm 9.23). Estes
vasos devem estar sempre bem preparados,
porquanto se destinam a conter o precioso e santo
sangue de Cristo. O pecador condenado é o
primeiro preparado. Os homens não vão para o
inferno sem algum tipo de preparação. Eles são
“vasos... preparados para a destruição” (Rm 9.22).
Se esses vasos cheios de ira estão preparados, muito
mais preparados devem estar os que recebem Cristo
no sacramento. Vistamo-nos diante do espelho
bíblico antes de nos achegarmos à mesa do Senhor;
e, como a esposa do Cordeiro, estejamos prontos
(Ap 19.7).
PERGUNTA: Como devemos estar corretamente
qualificados e preparados para a Ceia do Senhor?
RESPOSTA: Se estivermos com os corações
preparados, devemos comparecer:
1. Com o coração devidamente examinado:
“Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim
coma deste pão e beba deste cálice” (1Co 11.28).
Não basta que outros pensem que estamos prontos
para vir, devemos examinar a nós mesmos. A
palavra grega para examinar, dokimazo, é uma
metáfora tomada do ourives que, curiosamente, testa
seus metais. Assim, antes de virmos à mesa do
Senhor, temos de fazer em nós mesmos um exame
perscrutador e crítico pela Palavra.
O autoexame, sendo um ato reflexivo, é difícil:
“É mais fácil justificar um vício do que expulsá-lo”
(Sêneca).[38] É difícil olhar para dentro de si e ver a
face de sua própria alma. O olho pode ver tudo,
menos a si mesmo.
Mas esta obra probatória é necessária:
i. Se não nos examinarmos, permanecemos
na incerteza sobre nosso estado espiritual
Não sabemos se estamos interessados na aliança
ou se temos direito ao selo.
ii. Deus nos examinará
A pergunta do dono da festa soou dolorosa:
“Amigo, como entraste aqui, não tendo veste
nupcial?” (Mt 22.12). Então será terrível quando
Deus disser a um homem: “Como você chegou à
minha mesa com o coração orgulhoso, fútil e
incrédulo? O que você veio fazer aqui com seus
pecados? Você está contaminando minhas coisas
santas.” Portanto, quanta necessidade há de se fazer
um exame do coração antes de achegar-se à mesa do
Senhor!
Visualizemos nossos pecados para que sejam
mortificados; nossas carências, para que sejam
supridas; nossas dignidades, para que sejam
consolidadas. “Ele a ninguém convida para que
examine outros, mas a si mesmo, instaurando um
tribunal privado e uma convicção sem testemunha”
(Crisóstomo).
2. Devemos achegar-nos com um coração
sério
Nosso espírito é frágil e leviano; é como um navio
sem lastro, que flutua sobre as águas, porém sem
velas. Vagamos nos santos deveres e nos deixamos
levar por vãs excursões, mesmo quando estamos
lidando com Deus e estamos engajados em questões
de vida e morte. Aquilo que poderia consolidar
nosso coração e firmá-lo com seriedade é considerar
que os olhos de Deus estão agora postos
especialmente sobre nós, quando nos achegamos à
sua mesa. “O rei entrou a observar os convivas” (Mt
22.11). Deus conhece cada comungante, e se vê em
nós alguma leviandade e indecência de compostura,
indigna de sua presença, ficará profundamente
desgostoso e nos expulsará com a culpa pelo sangue
de Cristo, em vez de seu conforto.
3. Devemos achegar-nos com um coração
inteligente
Deve haver uma competente medida de
conhecimento, para que possamos “discernir o
corpo do Senhor”. Como devemos “orar com o
entendimento” (1Co 14.15), assim devemos
comungar à mesa do Senhor com entendimento.
Caso nos falte conhecimento, não podemos
prestar um “culto racional” (Rm 12.1). Os que não
conhecem o mistério, não sentem o conforto.
Devemos conhecer Deus o Pai em seus atributos,
Deus o Filho em seus ofícios, Deus o Espírito Santo
em suas graças. Há quem diga que possui bom
coração, contudo é carente de conhecimento;
podemos também chamar isso de bons olhos aos
quais falta visão.
4. Devemos achegar-nos ao sacramento
com corações solícitos
Diríamos, com Cristo, “Desejei muito comer
convosco esta páscoa” (Lc 22.15). Se Deus prepara
uma festa, devemos comparecer com apetite. Por
que Deus desaprovou seu povo de outrora senão
para punir sua apatia e provocar seu apetite? À
semelhança de Davi que suspirou pela água do poço
de Belém (2Sm 23.15), assim devemos suspirar por
Cristo no sacramento. Desejos são as velas da alma
que são hasteadas para receber a brisa de uma
benesse celestial. Para ajudar os santos desejos em
suas aspirações:
i. Consideremos a magnificência e realeza
desta Ceia:
Ela é um banquete celestial. “O SENHOR dos
Exércitos dará neste monte a todos os povos um
banquete de coisas gordurosas, uma festa com
vinhos velhos, pratos gordurosos com tutanos e
vinhos velhos bem clarificados” (Is 25.6). “Estes são
os suaves deleites; aqui se bebem os rios de mel, as
gotas do bálsamo celestial” (Bernardo).[39] Eis o suco
daquela uva que vem da videira verdadeira. Sob
estes elementos do pão e vinho Cristo e todas as
suas benesses nos são exibidos. O sacramento é
abunde aromatum [ricamente aromático], um
recipiente e celeiro de bênçãos celestiais. Aqui se
põem diante de nós vida, paz e salvação! Todas as
dulcia fercula [doces iguarias] do céu são servidas
nesta festa.
ii. Para provocar o apetite, consideremos que
necessidade temos deste repasto espiritual
O anjo persuadiu a Elias a tomar um pouco de
pão e a botija de água, para que não desfalecesse em
sua jornada: “Levanta-te e come, porque o caminho
te será sobremodo longo” (1Rs 19.7). Portanto,
realmente temos uma grande jornada da terra para o
céu, daí termos necessidade de nos prover para o
caminho. Quantos pecados a nos subjugar! Quantos
deveres a cumprir! Quantas necessidades a suprir!
Quantas graças a consolidar! Quantos adversários a
enfrentar! De modo que, não nos abatendo pelo
caminho, nos alimentando do corpo e sangue do
Senhor, nossa “juventude se renove como a da
águia” (Sl 103.5).
iii. Consideremos a prontidão de Cristo em
dispensar-nos as divinas benesses nesta
ordenança
Jesus Cristo não é uma “fonte selada”, e sim
“uma fonte corrente”. Temos apenas que clamar, e
ele nos saciará. Temos apenas que ter sede, e ele nos
abrirá a torneira. “Quem tem sede venha; e quem
quiser, tome de graça da água da vida” (Ap 22.17).
Como as nuvens têm a propensão natural de gotejar
sua umidade sobre a terra, assim Cristo há de jorrar
suas graciosas virtudes e influências na alma.
iv. Nesta Ceia não há perigo de excesso
Com frequência, outras festas enfrentam
excessos. Esta Ceia não é assim. Quanto mais
tomamos do pão da vida, mais saudáveis somos e
mais alcançamos a perfeição espiritual. Aqui,
plenitude não aumenta extravagâncias, e sim
confortos; nas coisas espirituais não há extremos.
Ainda que uma gota do sangue de Cristo seja
dulcíssima, ele é ainda muito melhor, mais
profundo, mais doce: “bebei abundantemente, ó
amado” (Ct 5.1). No original, temos: “Que vos
embriagueis com meu amor.”
v. Não sabemos quanto tempo esta festa pode
durar
Enquanto o maná durar, portemos nosso
recipiente. Nem sempre Deus manterá a toalha na
mesa. Se uma pessoa perde seu apetite, ele
convocará o inimigo para remover o banquete.
vi. Nutrirmo-nos de Cristo sacramentalmente
será um bom preparo para os sofrimentos
O pão da vida nos ajudará a nos nutrirmos do
pão da aflição. O “cálice da bênção” nos capacitará
a beber do cálice da perseguição. O sangue de Cristo
é um vinho que contém em si o bom aroma, e está
cheio de vitalidade. Por isso Cipriano nos informa
que, quando os cristãos primitivos tinham de
comparecer perante os tiranos cruéis, costumavam
receber o sacramento e, então, se levantavam da
mesa do Senhor como leões respirando o fogo da
coragem celestial (tanquam leones ignem spiritus)!
Que as seguintes considerações sejam também
condimento a aguçar nosso apetite à mesa do
Senhor. Deus se deleita em ver-nos famintos
nutrindo-nos do pão da vida.
5. Devemos achegar-nos a esta ordenança
bem preparados, achegando-nos com um
coração penitente, “cuja alma tem sido
traspassada, ainda que não seja com
espada” (Agostinho)
A páscoa tinha de ser comida com “ervas amargas”.
Temos de trazer nossa “mirra” de arrependimento
que, muito embora nos seja amarga, é doce para
Cristo: “e olharão para aquele a quem traspassaram;
pranteá-lo-ão” (Zc 12.10). Um Cristo partido tem de
ser recebido com um coração quebrantado. Se
temos pecado com Pedro, então choremos com
Pedro. Nossos olhos têm de inundar-se com
lágrimas e nosso coração tem de estar embebido nas
salmouras do arrependimento. Digamos: “Senhor
Jesus, ainda que eu não traga suaves especiarias e
perfume para teu corpo, como fez Maria, contudo,
lavarei teus pés com minhas lágrimas.” Quanto mais
amargura degustamos no pecado, mas doçura
degustaremos em Cristo.
6. Devemos vir com um coração sincero
As tribos de Israel, sofrendo aperturas
oportunamente, careciam de algumas purificações
legais; contudo, porque o coração deles eram
sincero, e vinham com anseio de encontrar-se com
Deus na páscoa, por isso o Senhor curou o povo
(2Cr 30.19). Os maus intentos despojarão as boas
ações. Um arqueiro tanto pode errar o alvo olhando
de soslaio como atirando a curta distância. Qual é
nosso desígnio quando nos achegamos ao
sacramento? Finis nobilitat opus (o fim faz
conhecida a obra). É para que tenhamos mais vitória
sobre nossas corrupções e sejamos mais
confirmados em santidade? Então Deus nos será
bondoso e nos sarará. A sinceridade, como o
verdadeiro ouro, terá alguns pigmentos permitidos
para sua delicadeza.
7. Devemos achegar-nos com um coração
abrasado de amor por Cristo
A esposa sentia-se em chamas de amor: “porque
desfaleço de amor” (Ct 5.2). Demos a Cristo a
beber o vinho de nosso amor e pranteemos se não o
pudermos amar ainda mais. Queremos ter a
exultante presença de Cristo na Ceia? Encontremo-
lo com fortes apreços de afeto. Basílio[40] compara o
amor ao suave unguento: Cristo se deleita aspirando
este perfume. O discípulo que amou mais, Cristo o
tomou em seu seio. Habitus sine exercitio similis est
taciturnae lyrae [Uma disposição que não é posta
em prática se assemelha a uma lira silenciosa].
[36] Bispo de Antioquia no final do século II.
[37] Calicem sanguinis mutat in calicem furoris.
[38] Malumus vitium excusare quam excutere.
[39] Hae sunt suaves delitiae, hic bibuntur flumina mellis,
liquores balsami coelestis.
[40] Basílio o Grande (329-79), um dos pais capadócios. Ele se
opôs veementemente ao arianismo quando bispo de Cesareia.
VERDADEIRA E FALSA FÉ

“Examine-se o homem a si mesmo, e assim coma


deste pão e beba deste vinho” (1Co 11.28)

xercitemos os olhos da fé. A fé tem olhos de


E águia: ela penetra as coisas a uma grande
distância do sentido, vê as coisas profundas de
Deus. Ela contempla Jesus que foi levantado na
cruz. Se a serpente de bronze não fosse
contemplada, não haveria nela nenhuma virtude; ela
não curaria um israelita cego: assim, muito embora
Cristo já tenha sido levantado no madeiro da cruz,
não salvará os que não olham para ele. Olhe para
Cristo com olhos crentes, e um dia você o verá com
olhos glorificados.
Exercitemos também a boca da fé. Quid par est
dentrem et ventrem? Crede et manducasti [O que é
apropriado para a boca e o ventre? Crer e comer]
(Agostinho). Eis o pão partido. Adão morreu,
comendo; nós vivemos, comendo. No sacramento, o
Cristo pleno nos é servido, as naturezas, divina e
humana. Todos os tipos de virtudes vêm dele:
mortificação, abrandamento, conforto. Oh, então
nutramo-nos dele! Esta graça da fé é a grande graça
que é posta em ação no sacramento.
PERGUNTA: Mas a virtude está simplesmente na
fé?
RESPOSTA: Não na fé considerada meramente
como uma graça, mas quando tem a ver com o
objeto. A virtude não está na fé, e sim em Cristo. Se
um anel tem em si uma pedra preciosa que deterá o
sangue, dizemos que o anel detém o sangue; mas a
virtude não está meramente no anel, e sim na pedra
incrustada nele. Assim a fé é o anel, Cristo é a pedra
preciosa; tudo o que a fé faz é provar os méritos de
Cristo em benefício da alma e então esta é
justificada; a virtude não está na fé, e sim em Cristo.
PERGUNTA: Mas, por que a fé leva mais de
Cristo no sacramento do que qualquer outra graça?
RESPOSTA: Porque a fé é a graça mais receptiva;
ela é o recipiente de ouro enriquecido. E assim a fé,
recebendo do mérito de Cristo e enchendo a alma
com toda a plenitude de Deus, necessita ser uma
graça enriquecida. No corpo há veias que
absorvemos nutrientes que entram no estômago; a fé
é aquela veia que absorve aquilo que vem da virtude
de Cristo, por isso ela é chamada uma “fé preciosa”
(2Pe 1.1).
1. A fé tem mais dos benefícios de Cristo
agregados a si porque ela é a graça mais
simples
Se o arrependimento pudesse adquirir a justificação
de Cristo, um homem estaria pronto a dizer: “Isto
foi por minhas lágrimas.” Mas a fé é humilde, é uma
mão vazia, e que mérito poderia haver nisso? Um
pobre que estende sua mão merece uma esmola?
Se devemos apresentar-nos devidamente
preparados para o sacramento, então que
venhamos com um coração humilde. Vemos Cristo
se humilhando na morte; e um Cristo humilde
deveria ser recebido comum coração orgulhoso?
“Ele honrou o Pai, não para que fosse desonrado;
mas, ao contrário, para que admiremo-lo e
aprendamos dos seus atos que ele é um genuíno
Filho que honra seu Pai mais que todos juntos”
(Crisóstomo).
Que a visão da glória de Deus e a visão do
pecado nos humilhem. Cristo era humilde, ele que
era pureza plena? E somos orgulhosos, nós que
somos leprosos? Oh, que venhamos com o senso de
nossa própria vileza! Quão humilde seria aquele que
recebesse uma esmola de livre graça!
Jesus Cristo é o “lírio dos vales” (Ct 2.1), não
das montanhas. A humildade nunca foi perdedora.
Quanto mais vazio for o cântaro, e mais fundo for o
poço, mais água comportam; então, quanto mais
vazia é de si mesma a alma, e mais baixo se sujeita à
humildade, mais ela captado poço da salvação. Deus
virá a um coração humilde para recebê-lo (Is 57.15).
Isso não é parte do templo de Cristo que não é
construído com um teto baixo.
Devemos achegar-nos com corações
celestiais.O mistério do sacramento é celestial;
então, o que um verme rastejante faz aqui? Não está
devidamente preparado para nutrir-se do corpo e
sangue de Cristo aquele que, como a serpente,
lambe pó. O sacramento é chamado koinonia,
“comunhão” (1Co 10.16).Que comunhão pode um
homem terreno ter com Cristo? Primeiro, deve
haver conformidade, para que haja comunhão:
aquele que é terreno não possui maior semelhança
com Cristo do que a que uma nuvem de pó possui
com uma estrela. Um homem terreno faz do mundo
seu deus. Então que tal homem não pense em
receber outro Deus no sacramento. Oh, cultivemos
atitudes celestiais e subamos com a asa da graça!
Devemos achegar-nos com um coração crente.
Cristo deu o sacramento aos apóstolos
principalmente por serem crentes. Os que se
achegam sem fé se vão sem fruto. Nem é suficiente
ter o hábito da fé, mas temos de nos exercitar, nos
empenhar com ações vigorosas de fé nesta
ordenança.
De modo que, em virtude da fé ser humilde e
dar a Cristo e a livre graça toda a glória, Deus põe
grande honra sobre ela; esta é a graça a que
pertencem Cristo e todos os seus méritos.
Portanto, acima de todas as graças, a fé opera
no sacramento. “Pela fé sugamos o sangue de Cristo
e penetramos nossa língua nas feridas de nosso
Redentor” (Cipriano).[41]
A fé sai em busca de todas as provisões. Este é
o balde que tira água do poço da vida.
No mundo, porém, existe uma fé bastarda.
Plínio[42] nos conta sobre uma pedra de Cipriano que
em cor e resplendor se assemelha ao diamante,
porém não é genuína, pois se quebra com o martelo.
E assim há uma fé falsa que emite centelhas e faz
exibição aos olhos do mundo, porém não é genuína;
ela se quebra com o martelo da perseguição.
Portanto, para prevenir equívocos, para que não
sejamos enganados pensando que cremos segundo
nossa presunção, eu lhe darei seis diferenças entre
uma fé sincera, que é a flor do Espírito, e uma fé
hipócrita, que é fruto de fantasia.
1. Uma fé hipócrita é facilmente perceptível
Ela é como a semente da parábola, a qual germinou
“de repente” (Mc 4.5). Uma fé falsa brota sem
quaisquer convicções e submissão da alma. Isaque
indagou [de seu filho]: “Como é isto, que tão cedo a
achaste [a caça], meu filho?” (Gn 27.20); assim,
como é possível que tal homem adquirisse fé tão
depressa? Seguramente, ela é de uma natureza
diferente da genuína, e depressa se desvanecerá.
“Solent praecocia subito flaccescere” [As coisas
que maduram prematuramente em geral apodrecem
subitamente]. Mas a fé verdadeira, sendo uma planta
de outras paragens [estrangeira] e de uma essência
celestial, dificilmente aparece; ela custa muitos
suspiros e lágrimas (At 2.37). Esta infância espiritual
não nasce sem dores.
2. A fé hipócrita estremece quando vem a
provação
O hipócrita gostaria antes que sua fé fosse enaltecida
em vez de examinada. Ele não pode suportar uma
prova bíblica mais do que um metal falsificado pode
suportar a pedra de toque.
Ele é como um homem que tem roubado os
bens de sua casa e não tem nenhuma disposição de
permitir que sua casa seja inspecionada. Enquanto a
fé verdadeira se dispõe a enfrentar uma prova:
“Examina-me, Senhor, e prova-me; esquadrinha
meus rins e meu coração” (Sl 26.2). Davi não teve
medode ser examinado por um júri; não, ainda que
o próprio Deus fosse um do júri. As boas
mercadorias nunca se esquivam da luz.
3. A fé hipócrita faz pouco caso da fé
verdadeira
O hipócrita ouve outros falarem do louvor da fé,
mas ele indaga onde jaz a virtude dela. Ele olha para
a fé como uma droga ou alguma mercadoria vil que
não se pode vender; ele abandonará toda a fé que
tem por uma moeda de prata, e pode ser que ele
ainda estime extremamente o prêmio. Mas aquele
homem que possui fé verdadeira, esse lhe dá valor
supremo; ele conta esta graça entre as joias. “Plus
fulget fides quam aurum” [A fé brilha mais que o
ouro] (Agostinho).
O que o incorpora a Cristo, senão a fé? O que o
põe no estado de filiação, senão a fé (Gl 4.26). Oh,
preciosa fé! O crente não troca seu “escudo da fé”
por uma coroa de ouro.
4. Uma fé hipócrita tem uma mão incapaz
Com uma mão, ela tomaria Cristo, porém não o faz;
com a outra, ela renuncia a Cristo. Ela tomaria
Cristo por amor à segurança, porém não se dá a ele
em rendição. Entretanto, “subiata quicunque parte
integrante tollitur totum” [Ao remover qualquer
parte essencial, você está removendo a totalidade].
Enquanto isso, a fé verdadeira é imparcial – toma
Cristo como Salvador e se submete a ele como
Príncipe. Cristo diz: “Eu te doto com meu corpo e
meu sangue”; e a fé diz: “Eu te adoro com minha
alma”.
5. Uma fé hipócrita é impura
O hipócrita diz que crê, todavia prossegue no
pecado. Ele adere ao credo, porém não aos
mandamentos. Ele crê, contudo toma o nome de
Deus em vão: “Pai meu, tu és o amigo da minha
mocidade?... Sim, assim me falas, mas cometes
maldade a mais não poder” (Jr 3.4-5).
Tais impostores chamariam Deus “meu Pai”,
contudo pecaram tão decisivamente quanto
puderam. Pois um diz que tem fé, contudo vive no
pecado; é como se um homem dissesse que
desfrutava de saúde enquanto seus órgãos vitais
perecem. Mas a fé verdadeira está jungida à
santidade: “Guardando o mistério da fé numa
consciência pura” (1Tm 3.9). A joia da fé é sempre
depositada na vitrine de uma boa consciência. A
mulher que tocou em Cristo pela fé sentiu uma
virtude curadora vinda dele. Ainda que a fé não
remova totalmente o pecado, contudo o subjuga.
6. A fé hipócrita é uma fé morta, não
degusta a seiva ou a doçura de Cristo
O hipócrita degusta algo no vinho e no azeite; ele
acha contentamento nos deleites carnais e lascivos
do mundo, porém não a doçura de uma promessa; o
próprio Espírito Santo não lhe traz alento.
Essa é uma fé morta que não sente nenhum
sabor. Mas a fé verdadeira acha profunda delícia nas
coisas celestiais. A Palavra é mais doce que o favo
de mel (Sl 19.10). O amor de Cristo é melhor que o
vinho (Ct 1.2). Assim, notamos certa diferença entre
a fé verdadeira e a espúria. Quantos não imaginaram
que haviam obtido o filho vivo da fé, quando se
provou que o que tinham era um filho morto.
Acautelemo-nos da presunção, mas
acalentemos a fé. A fé aplica Cristo e faz uma
conjunção de seu corpo e sangue. “Tu vens a Cristo
não pela carne, e sim pelo coração; eu apreendo
Cristo não com a boca, e sim com a fé”
(Agostinho).[43] Esta Ceia se destinava
principalmente aos crentes (Lc 22.19). O sangue de
Cristo para o descrente é como aqua vitae [água
viva] na boca de um homem morto: perde toda a
sua virtude.
Devemos achegar-nos à mesa do Senhor com
um coração generoso. “Lançai fora o velho
fermento... não com o velho fermento, nem com o
fermento da maldade e da malícia” (1Co 5.7-8). O
fermento da malícia leveda para nós a ordenança.
Ainda que venhamos com lágrimas amargas, ainda
assim podemos não estar com espíritos amargos. A
Ceia do Senhor é “ágape”: festa de amor (Inácio). O
sangue de Cristo foi derramado para reconciliar-nos
não só com Deus, mas também uns com os outros.
O corpo de Cristo foi quebrado para desfazer as
brechas entre cristãos. Que triste é o fato que os que
professam comer a carne de Cristo no sacramento
rasguem a carne uns dos outros! “Todo aquele que
odeia a seu irmão é homicida” (1Jo 3.15). Aquele
que se achega à mesa do Senhor nutrindo ódio é um
Judas para Cristo e um Caim para seu irmão. Que
benefício pode tal pessoa receber no sacramento,
cujo coração está envenenado com malícia?
Se alguém sorve peçonha e ainda assim
aparenta ser cordial, com certeza tal cordialidade
não o fará bom. Os que se deixam envenenar pelo
rancor e malícia não se fazem melhores com
cordialidade no sacramento. O que não se achega ao
sacramento com um coração generoso nada usufrui
de Deus, pois “Deus é amor” (1Jo 4.8).
Esse tal nada sabe do evangelho em seu caráter
salvífico, pois este é o “evangelho da graça” (Ef
6.15). Ele nada possui da sabedoria que vem do céu,
pois a graça “primeiramente é pura, depois pacífica,
moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons
frutos” (Tg 3.17).
Oh, que os cristãos sejam, no dizer de Inácio,
“radicados e cimentados juntos no amor”! Acaso os
demônios unirão e os santos dividirão? É isso que
apreendemos de Cristo? Porventura o Senhor Jesus
não nos tem amado até a morte? Que maior
opróbrio pode sobrevir à amorável Cabeça do que
os seus membros se ferindo reciprocamente? Que o
bom Senhor apague o fogo da contenda e acenda o
fogo do amor e amizade em nosso coração!
Devemos achegar-nos ali com um coração
súplice. Cada ordenança, assim como cada criatura,
é “santificada pela... oração” (1Tm 4.5). “Oratio
mutat elementum in alimentum” [A oração converte
o elemento em alimento]. Quando enviamos ao céu
a pomba da oração, ela traz uma folha de oliveira
em sua boca.
Devemos orar para que Deus enriqueça sua
ordenança com sua presença; para que ele faça o
sacramento eficaz a todos aqueles fins e propósitos
santos para os quais foi designado; para que seja a
festa de nossas graças e o funeral de nossas
corrupções; para que não seja somente um sinal a
representar, mas um instrumento que comunica
Cristo a nós, e seja um selo que nos assegure de
nossa adoção [união] celestial. Se tivermos a
gordura e a doçura desta ordenança, então enviemos
oração adiante, como um precursor, a anunciar uma
benesse.
Muitos parecem tão distraídos com cuidados
mundanos que não conseguem poupar tempo algum
para a oração preceder o sacramento. Acaso
acreditam que a árvore da bênção gotejará seu fruto
em sua boca quando nunca o comeram pela oração?
Deus não expõe seus mistérios de qualquer
maneira,nem os lança aos que não os buscam (Ez
36.37).
Não é suficiente orar, mas é preciso que se ore
com fervor e intensidade de alma. Jacó lutou em
oração (Gn 32.24). Orações frias, como
pretendentes frios, nunca prosperam. Oração deve
incluir suspiros e gemidos (Rm 8.26). Deve ser feita
“no Espírito Santo” (Jd 20). Aquele que pretende
falar com Deus, diz Ambrósio, deve falar-lhe em seu
próprio idioma, o qual ele entende, isto é, no idioma
de seu Espírito.
E, finalmente, devemos achegar-nos à mesa do
Senhor com um coração abnegado. Quando
estivermos preparados da melhor maneira possível,
acautelemo-nos de não depositar confiança em
nossas preparações. “Assim também vós, quando
fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos
servos inúteis, porque fizemos somente o que
devíamos fazer” (Lc 17.10). Use o dever, porém
não o idolatre. Devemos usar os deveres que nos
preparam para Cristo, mas não façamos de nossos
deveres um Cristo. O dever é a vereda de ouro por
onde caminhamos, mas não uma muleta de prata em
que nos apoiamos.
Ah, que são todas as nossas preparações? Deus
pode ver um buraco em nossas melhores roupas. “Ai
do homem, se o examinares e o pesares”
(Agostinho).[44] “Todas as nossas justiças são trapos
de imundícia” (Is 64.6).
Quando estivermos preparados, quando
esperarmos na mercê de Deus, então que nos
neguemos como merecedores de sua justiça. Se
nossos mais santos serviços não forem aspergidos
pelo sangue de Cristo, não serão melhores do que os
pecados mais notáveis; e, como a carta para Urias,
trarão em si o motivo de nossa morte. Cumpramos
como dever, mas confiemos nossa aceitação aCristo
e à livre graça. Sejamos como a pomba enviada por
Noé: ela fez uso de suas asas para voar, porém, para
sua segurança, confiou na arca.
Vimos como devemos ser qualificados para
termos acesso à mesa do Senhor. E, assim, ao nos
achegarmos, encontraremos os amplexos da
misericórdia. Teremos não só uma representação,
mas também uma participação de Cristo no
sacramento; levaremos não só panis [pão], mas
também salutaris [saúde]; estaremos “cheios de
toda plenitude de Deus” (Ef 3.19).
[41] Per fidem Christi sanguinem sugimus et inter redemptoris
nostri vulnera linguam figimus.
[42] Plínio o Velho (23-79 d.C.), autor de uma vasta História
Natural. Ele morreu observando a erupção do Monte Vesúvio no
ano de 79 d.C.
[43] Accedis ad Christum non carne sed corde, edisco Christum
non dente sed fide.
[44] Vae homini si eum trutina discutias, etc.
OBJEÇÕES CONTRA
O ACHEGAR-SE AO
SACRAMENTO

“E, chegando-se o povo ao bosque, eis que corria


mel; porém ninguém chegou a mão à boca, porque
o povo temia a conjuração” (1Sm 14.26).

esus Cristo já preparou seu banquete


J evangélico? Ele é, respectivamente, o anfitrião e
o banquete? Então que os pobres cristãos em dúvida
se animem para se achegar à mesa do Senhor.
Satanás criaria obstáculo ao sacramento, como fez
Saul ao povo impedindo-o de comer mel (1Sm
14.26). Mas, será que há alguma alma que se
humilha e se deixa esmagar pelo pecado, cujo
coração suspire secretamente por Cristo, mas,
mesmo assim, permanece temeroso e não ousa
aproximar-se destes santos mistérios? Então que eu
encoraje aquela alma a vir: “Tem bom ânimo,
levanta-te” (Mc 10.49).
OBJEÇÃO 1: Mas eu sou pecador e indigno, e
por que me envolveria com coisas tão santas?
RESPOSTA: Por quem Cristo morreu, senão por
tal criatura? “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar
pecadores” (1Tm 1.15). Ele tomou sobre si os
nossos pecados, bem como a nossa natureza.
“Certamente, ele tomou sobre si as nossas tristezas”
(Is 53.4). No hebraico lê-se nossas enfermidades.
Lança teus pecados, diz Lutero, sobre Cristo, e
então eles já não são teus, e sim dele.[45] Nossos
pecados devem nos humilhar, mas não devem nos
afastar de Cristo; quanto mais enfermos, mais
devemos descer ao Poço de Siloé.
A quem Cristo convida para a ceia, senão os
pobres, os coxos e os aleijados (Lc 14.21)? Isto é,
aqueles que se veem indignos e fogem para o
santuário de Cristo. O sacerdote tinha que tomar um
ramo de hissopo e mergulhá-lo no sangue e aspergi-
lo sobre o leproso (Lv 14.7). Você que tem em si a
lepra do pecado, e como um leproso sente nojo de si
mesmo, o precioso sangue de Cristo é aspergido
sobre você.
OBJEÇÃO 2: Mas eu tenho pecado
presunçosamente contra a misericórdia. Tenho
contraído culpa depois de ter-me achegado à mesa
do Senhor; será que o sangue de Cristo não é para
mim?
RESPOSTA: Deveras é grave usar mal a
misericórdia: esse foi o agravo do pecado de
Salomão; seu coração se afastou do Senhor, “o qual
lhe apareceu duas vezes” (1Rs 11.9). Pecados
presunçosos abrem a boca da consciência para
incriminar e fecham a boca do Espírito de Deus para
não falar de paz. Não abandone sua âncora, erga os
olhos para o sangue de Cristo; ele pode perdoar
pecados contra a misericórdia. Acaso não pecou
Noé contra a misericórdia, o qual, ainda que fosse
tão miraculosamente preservado do dilúvio,
contudo, assim que saiu da arca, se embriagou?
Não pecou Davi contra a misericórdia quando,
depois de Deus fazê-lo rei, conspurcou sua alma
com luxúria e seu manto com sangue? Todavia,
ambos os seus pecados foram lavados naquela fonte
que foi aberta diante de Judá (Zc 13.1).
Acaso os discípulos não trataram Cristo
perversamente no momento de seu sofrimento?
Pedro o negou e todos os demais abandonaram suas
insígnias: “Então todos os discípulos o abandonaram
e fugiram” (Mt 26.56). Todavia, Cristo não tirou
vantagem da fraqueza deles, nem desistiu deles, mas
lhes envia jubilosas notícias de sua ressurreição (Mt
27.7); e de sua ascensão: “mas vai ter com meus
irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai,
para meu Deus e vosso Deus” (Jo 20.17).
E para que Pedro não pensasse que já não era
do número dos que não se interessavam pelo amor
de Cristo, este enviou-lhe uma mensagem especial,
pelo anjo, para confortá-lo: “Mas ide, dizei a seus
discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para
a Galileia; lá o vereis, como vo-lo disse” (Mc 16.7).
De modo que, onde nosso coração é sincero, e
nossos desvios são mais provenientes de um defeito
em nossa força do que em nossa vontade, o Senhor
Jesus não tirará vantagem de cada falha, mas
gotejará seu sangue em nós, o qual tem em si uma
voz que “fala melhor do que o de Abel” (Hb 12.24).
OBJEÇÃO 3: Mas descubro tal desvanecimento
e fragilidade em minha alma que não ouso
achegar-me à mesa do Senhor.
RESPOSTA: Mas você tem a necessidade de
prosseguir: “usa de um pouco de vinho por causa...
de tuas frequentes enfermidades” (1Tm 5.23). Não
seria estranho um homem argumentar assim: “Meu
corpo é frágil e declinante, por isso não irei ao
médico”? Ao contrário, teria de ir. Nossa fraqueza
nos impele a Cristo; seu sangue é mortífero para o
pecado e vital para uma disposição positiva.
Você afirma que tem defeitos em sua alma; se
não tivesse nenhum, não teria havido necessidade de
Mediador, nem Cristo teria uma obra a fazer.
Portanto, abandone sua objeção incrédula,
disponha-se a vir a esta bendita Ceia. Então
descobrirá que Cristo continua doando-lhe suas
doces influências, e sua disposição positiva vicejará
como a erva.
OBJEÇÃO 4: Mas achego-me com frequência a
esta ordenança, e não encontro bom resultado e o
conforto não enche meu coração.
RESPOSTA: Deus só pode satisfazê-lo numa
ordenança quando você a discernir. Cristo estava
com Maria, contudo ela não sabia que era ele. Você
pensa que Cristo não o satisfaz em sua mesa só
porque você não recebe o devido conforto.
i. Ainda que ele não o encha de conforto, ele
pode enchê-lo de força
Cremos que não temos resposta de Deus em
nosso servir, a menos que ele nos encha de alegria.
Mas Deus pode manifestar sua presença seja para
fortalecimento ou para conforto. Se tivermos o
poder celestial para derrotar nossas corrupções, e
para andarmos mais perto e perenemente com Deus,
então esta é uma resposta dele. “E eu os fortalecerei
no Senhor, e andarão em seu nome” (Zc 10.12).
Oh, cristão, se você não tem o braço de Deus a
envolvê-lo, mas se tem seu braço a fortalecê-lo, este
é o fruto de uma ordenança.
ii.Se Deus não enche seu coração de alegria,
mas enche seus olhos de lágrimas, este é o
encontro dele com você em sua mesa
Quando você visualiza Cristo partido na cruz, e
pondera sobre o amor dele e sua ingratidão, isso faz
o orvalho começar cair, e seus olhos se assemelham
às “piscinas do Hesbom” (Ct 7.4) transbordantes de
água. Este é o gracioso encontro de Deus com você
no sacramento. Bendito é o seu nome por isso. É
um sinal, e o Sol da Justiça já nasceu sobre nós
quando nosso coração de bronze se derrete em
lágrimas por causa do pecado.
iii. Se seus confortos são poucos, mas se as
ações de sua fé são muitas, esta é a manifestação
de sua presença na Ceia
Os emblemas sensíveis do amor de Deus são
subtraídos, mas as venturas da alma estão no sangue
de Cristo; ela crê que se achega a ele e ele sustentará
firme o cetro de ouro (Jo 6.37). Esta gloriosa ação
da fé, e a tranquilidade interior que a fé desenvolve,
é o bendito retorno de uma ordenança. “Tornará a
apiedar-se de nós; sujeitará nossas iniquidades, e
lançarás todos os seus pecados nas profundezas do
mar” (Mq 7.19). Os confortos da igreja estavam
obscurecidos, mas sua fé se manifesta como o sol de
uma nuvem. “Porque me viste, creste? Bem-
aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.29).
OBJEÇÃO 5: Mas não consigo achar no
sacramento nenhuma dessas coisas; meu coração
está morto e fechado; não tenho como voltar.
RESPOSTA: Espere a resposta de Deus na
ordenança. Ele não prometeu saciar a alma?
“Promissa Dei cadunt in debitum” [As promessas
de Deus lhe constituem uma obrigação]. “Pois
fartou a alma sedenta e encheu de bens a alma
faminta” (Sl 107.9). Se não com entusiasmo,
contudo com bondade; a alma deve estar cheia, do
contrário, como pode a promessa cumprir-se?
Cristão, Deus falou, portanto espere. Você não
crerá em Deus, a menos que ouça uma voz do céu?
O Senhor lhe deu sua promessa; e acaso não é uma
segurança maior ter um recibo na mão do que
apenas a palavra da boca? Contentemo-nos em
esperar por algum tempo, e a misericórdia virá. As
mercês de Deus na Escritura não são chamadas
mercês expeditas, mas são “mercês seguras” (Is
55.3).
Acaso Cristo já não nos deu seu corpo e
sangue? Então, quando nos encontramos diante
desta ordenança evangélica, lembremo-nos do
Senhor Jesus ali. O sacramento é uma ordenança
que lembra Cristo: “fazei isto... em memória de
mim” (1Co 11.25). Deus designou esta festa
espiritual para preservar a viva memória da morte de
nosso Salvador. O dia do sacramento é um dia de
comemoração.
1. Lembra a paixão de Cristo. “Memoriam
passionis meae animis vestris recolite”
[Trazendo de volta à vossa mente a memória
de minha paixão]
“Lembra-te da minha aflição e do meu pranto, do
abismo de fel” (Lm 319). Posso alterar um pouco as
palavras: “Lembrando o vinagre e o fel.” Se o maná
teve de ser guardado na arca para que a memória
dele fosse preservada, como a morte e o sofrimento
de Cristo não deveriam ser mantidos em nossa
mente como um memorial, quando nos encontramos
à mesa do Senhor?
2. Lembra os gloriosos benefícios que
recebemos do corpo partido de Cristo
Frequentemente, nos lembramos daquelas coisas
que nos são vantajosas. O corpo partido de Cristo é
um anteparo que se interpõe entre nós e o fogo da
ira de Deus. Ao ser partido o corpo de Cristo, a
cabeça da serpente é esmagada. Quando Cristo é
partido na cruz, uma caixa de joias preciosas é
aberta: agora temos acesso a Deus com ousadia.
O sangue derramado na cruz abriu uma via para
o trono da graça. Agora fomos feitos filhos e
herdeiros; e ser herdeiro da promessa é melhor que
ser herdeiro de uma coroa [humana]. Cristo, ao
morrer, nos fez parentes próximos da bendita
Trindade; somos candidatos e expectadores da
glória. A via sangrenta da cruz é nossa via lactea,
nossa bendita via para o céu. Jesus Cristo bebeu o
fel para que bebêssemos os doces mananciais de
Canaã. Sua cruz ficou cravejada, para que nossa
coroa fosse completamente coberta de joias. E assim
podemos lembrar Cristo no bendito sacramento.
Mas não basta uma mera lembrança da morte
de Cristo. Aquele que tem uma ternura natural de
espírito pode sentir-se afetado pela história da paixão
de Cristo; mas esta lembrança de Cristo tem em si
pouco conforto. Lembremo-nos de Cristo no
sacramento de uma maneira correta:
i. Lembremo-nos da morte de Cristo com
alegria
“Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na
cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6.14).
Quando vemos Cristo no sacramento, crucificado
ante nossos olhos, podemos contemplá-lo naquela
postura enquanto estava na cruz, estendendo seus
benditos braços para receber-nos. Oh, que motivo
de triunfo e aclamação é este! Mesmo que nos
recordemos de nossos pecados com tristeza, todavia
devemos lembrar-nos dos sofrimentos de Cristo com
alegria. Choremos aqueles pecados pelos quais ele
derramou seu sangue, contudo, alegremo-nos
naquele sangue que lava nossos pecados.
ii. Recordemos de tal modo a morte de Cristo
que nos conformemos a ela
“Sendo feito conforme à sua morte” (Fp 3.10).
Então, lembremo-nos da morte de Cristo
corretamente, na qual morremos com ele; nosso
orgulho e paixão foram mortos. A morte de Cristo
por nós faz morrer o pecado em nós; então
lembremo-nos corretamente da crucificação de
Cristo: quando somos crucificados com ele, estamos
mortos para os prazeres e preferências do mundo.
“O mundo está crucificado para mim e eu para o
mundo” (Gl 6.14).
Se Jesus Cristo já nos deu esta alma festiva
para o fortalecimento de nossa disposição,
labutemos para sentir alguma virtude fluindo para
nós desta ordenança. Que o sacramento não seja
uma mama sem leite. Seria estranho se um homem
não recebesse de seu alimento nenhuma nutrição.
Para este sacramento, seria um descrédito se não
obtivéssemos aumento de graça. A pobreza entraria
em nossa alma num “banquete de coisas
gordurosas”? Cristo nos dá seu corpo e sangue para
o aumento da fé; ele espera que colhamos algum
proveito e rendimento, e que nossa fraqueza, nossa
fé diminuta, floresça em uma grande fé: “Oh
mulher, grande é tua fé!” (Mt 15.28). Seria bom
examinar se, após nossa frequente celebração de sua
Santa Ceia, temos atingido uma “grande fé”.
PERGUNTA: Como posso saber se possuo esta
grande fé?
RESPOSTA: Para a solução disto, estabelecerei
seis eminentes sinais de uma “grande fé”; e se
pudermos mostrar pelo menos um deles, já teremos
feito boa proficiência no sacramento.
1.Uma grande fé pode confiar em Deus sem
penhor ou garantia
Ela pode contar com a providência na deficiência
das provisões externas. “Ainda que a figueira não
floresça, nem haja fruto na vide; o produto da
oliveira minta, e os campos não produzam
mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do
aprisco, e nos currais não haja gado, todavia eu me
alegro no Senhor, exulto no Deus de minha
salvação” (Hc 3.17-18).
Um incrédulo deve ter algo para alimentar seus
sentidos ou render o espírito. Quando ele está no
fim de suas riquezas, se sente no fim de suas
faculdades. A fé não pergunta se Deus fará provisão,
ainda que não veja de onde virão as provisões.
“Fides famem non formidat” [A fé não teme a
fome]. Deus lhe pôs o seu selo: “verdadeiramente
serás alimentado” (Sl 37.3). A fé põe sua obrigação
em ação: “Senhor”, diz a fé, “tu alimentarás as aves
do céu e não me alimentarás? Sofrerei carência
quando meu Pai possui a provisão?”
O bom cristão, com a vara da fé, fere a rocha
celestial, e algum dinheiro e azeite entram em cena
para a provisão de suas presentes necessidades.
2. Uma grande fé é aquela que opera prodígios
Ela pode fazer aquelas coisas que excedem o poder
da natureza. Uma grande fé pode abrir o céu, pode
vencer o mundo (1Jo 5.4); pode coibir a tendência
para o pecado (2Sm 22.24); pode preferir a glória
de Deus em vez do interesse secular (Rm 9.1); pode
alegrar-se na aflição (1Ts 1.6).
Pode refrear a intemperança da paixão; pode
resplandecer no hemisfério de suas relações; pode
realizar os deveres de uma maneira mais refinada e
sublimada, misturando amor com dever, os quais a
adoçam e fazem com que ela se mostre mais
prazerosa. Ela pode antecipar a glória: “Fides
attingit inaccessa, prospicit novissima” [A fé
alcança o que é inatingível e antecipa as últimas
coisas]. Ela une as coisas que se encontram à
máxima distância. A fonte mestra da fé se eleva mais
alto que a natureza. Um homem, pelo poder da
natureza, tem tanta força quanto tem o ferro para
nadar ou a terra para ascender.
3. Uma grande fé é firme e estável
A fé fraca é com frequência abalada com temores e
dúvidas. Uma grande fé é como um carvalho que
espalha suas raízes e não é levado facilmente pelo
vento (Cl 2.7). Uma grande fé é como a âncora ou
cabo de um navio que o torna seguro e inabalável no
meio das tempestades. O cristão que é robustecido
com esta fé heroica é estabelecido nos mistérios da
religião. O Espírito de Deus gravou tão solidamente
as verdades celestiais em seu coração que remover
os santos princípios daquele que o absorveu equivale
a remover o sol do firmamento. Eis aqui uma coluna
do templo (Ap 3.12).
4. Uma grande fé pode confiar em um Deus irado
Ela crê no amor de Deus mesmo que enfrente sua
reprovação (Jo 2.4). Uma fé vigorosa, ainda que
seja rejeitada e rechaçada, virá outra vez e insistirá
diante de Deus com santa obstinação. A mulher
cananeia foi três vezes repelida por Cristo; contudo,
sem considerar que ele lhe negava, voltando
animada com novos argumentos, fazia novas
investidas diante dele, até que, por fim, pelo poder
da fé, ela o venceu: “Ó mulher, grande é tua fé; que
se faça segundo a tua vontade” (Mt 15.28). A chave
de sua fé abriu as entranhas de Cristo e então ela
pôde ter o que queria dele. Quando uma vez
conquistou seu coração, pôde possuir também seu
tesouro.
5. Uma grande fé pode nadar contra a maré
Ela pode transpor, respectivamente, o sentido e a
razão. A razão corrupta diz, como Pedro, “apieda-te
de ti, Senhor” (Mt 16.22); a fé diz: É preferível
sofrer a pecar. A razão busca segurança; a fé porá
em risco a segurança para preservar a santidade. Um
crente pode velejar rumo ao céu, ainda que a onda
da razão e o vento da tentação sejam contra ele.
Enquanto caminhava ao encontro do sacrifício
de seu filho, Abraão não convocou a razão como
conselheira. Quando Deus disse: “Oferece teu filho
Isaque”, isso seria suficiente para deixar perplexo
não só a sabedoria carnal, mas até mesmo a própria
fé. Pois aqui os mandamentos de Deus pareciam
colidir. Em um mandamento, o Senhor disse: “Não
matarás”; e eis aqui um mandamento totalmente
adverso: “Oferece teu filho.” De modo que Abraão,
ao obedecer a um mandamento, era como se
desobedecesse a outro.
Além disso, Isaque era o filho da promessa; o
Messias havia de vir da linhagem de Isaque (Hb
11.18). E se ele fosse eliminado, de onde viria ao
mundo um Mediador? Aqui havia bastante para
atribular e confundir este santo patriarca, contudo a
fé de Abraão desata todos estes nós e a faca
sangrenta está preparada.
Abraão creu que, quando Deus o mandou, isso
não era homicídio, e sim sacrifício; e que o Senhor,
ao fazer a promessa de que a geração de Cristo viria
dos lombos de Isaque, e que essa promessa não
cairia por terra, era capaz de suscitar descendência
das cinzas de Isaque. Eis aqui uma grande fé, para a
qual o próprio Deus ofereceu um troféu de honra:
“Por mim mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto
fizeste esta ação, e não me negaste teu filho, teu
único filho, que deveras te abençoarei e multiplicarei
grandemente a tua descendência...” (Gn 22.16,17).
6. Uma grande fé pode suportar grandes delongas
Ainda que Deus não dê uma resposta imediata à
oração, a fé crê que terá a resposta no devido
tempo. Uma fé fraca logo desiste; e se não recebe a
misericórdia imediatamente, começa a desfalecer;
enquanto que, o que possui uma fé forte e vibrante,
“não se apressará” (Is 28.16). Uma grande fé se
contenta em descansar em Deus. A fé permutará
com Deus o tempo. “Senhor”, diz a fé, “Se eu não
tiver a mercê que quero agora, continuarei
confiando; eu sei que meu dinheiro está em boas
mãos; haverá de vir uma resposta de paz. Talvez a
mercê ainda não esteja sazonada, ou talvez eu ainda
não esteja maduro para a mercê. Senhor, faças
como parecer bem aos teus olhos.”
A fé sabe que as viagens mais tediosas têm os
regressos mais ricos; e quanto mais longa for a
expectativa pela mercê, mais doce será sua fruição:
“Quo longius defertur cor suavius laetatur”
[Quanto mais o coração continua esperando, mais
deleitosamente se regozija].
Eis aqui uma fé gloriosa. Se tivermos uma fé
como esta para mostrar, então esse é um bendito
fruto de nosso diálogo sacramental com Deus. Eu,
porém, não desestimulo crentes infantis. Se sua
disposição não chegar ao tamanho e proporção de
uma grande fé, mas se ela for do tipo adequado,
então achará aceitação. O Deus que nos convida a
receber aquele que é “fraco na fé” (Rm 14.1), não
irá rejeitá-lo. Se sua fé não alcançou a estatura de
um cedro, sendo antes uma “cana esmagada”, é boa
o suficiente para ser quebrada (Mt 12.20). Uma fé
fraca pode apegar-se a um Cristo forte. Uma mão
paralítica pode unir-se em matrimônio.
Que os cristãos, pois, não descansem em
medidas inferiores de graça, mas aspirem graus mais
elevados. Quanto mais forte for nossa fé, mais firme
é nossa união com Cristo e mais doce influência
extrairemos dele.
É isto que honra o bendito sacramento, quando
podemos mostrar um aumento de graça; e, sendo
fortes na fé, produzimos glória a Deus (Rm 4.20).
[45] Aspice peccata tua humeris Christi imposita, tum dices,
peccata mea, non sunt mea, sed aliena.
10
GRATIDÃO A DEUS

“Oferecer-te-ei sacrifícios de louvor, e invocarei o


nome do SENHOR” (Sl 116.17).

omo Jesus Cristo providenciou esse bendito


C banquete para nós? É verdade que ele não nos
trata como estrangeiros, mas nos alimenta em seu
próprio seio, com seu próprio sangue? Então
tentemos corresponder ao grande amor de Cristo.
É verdade que nunca conseguimos
corresponder perfeitamente ao seu amor; todavia,
demonstremos nossa gratidão. Não podemos fazer
nada satisfatoriamente, mas podemos fazer algo
gratamente. Cristo se deu por nós em oferta pelo
pecado, então nos demos nós mesmos a ele como
oferenda de gratidão. Se um homem redime outro
de uma dívida, acaso o redimido será ingrato? Quão
profundamente estamos agradecidos a Cristo, ele
que nos redimiu do inferno!
“Quando eu lhe tiver dado tudo o que sou, tudo
o que possuo, o que é uma fagulha para o sol, uma
gota para o rio e um grão para o celeiro? Nada
tenho além de duas míseras migalhas, corpo e alma”
(Bernardo).[46] E devemos demonstrar nossa gratidão
de duas maneiras.
1. Demonstremos nossa gratidão a Cristo
com coragem
Cristo nos deu um exemplo; ele não temia o
homem, porém “suportou a cruz” e “desprezou o
opróbrio”. Que nossa coragem seja como o aço,
estando prontos a sofrer por Cristo, o que é,
segundo Crisóstomo, ser batizado com o batismo de
sangue. Cristo suportou por nós a ira de Deus e não
haveríamos de suportar por ele a ira dos homens?
Nossa glória é enfrentar a luta de Cristo. “Se pelo
nome de Cristo sois vituperados, bem-aventurados
sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e
de Deus” (1Pe 4.14). “Não é possível que o homem
siga o curso da virtude sem se expor à tristeza,
tribulação e tentações, pois como pode escapar
aquele que está transitando pelo caminho áspero e
estreito?” (Crisóstomo).
Oremos pela fornalha da graça, a fim de sermos
como aqueles três filhos: “E, se não, fica sabendo ó
rei que não serviremos a teus deuses nem
adoraremos a estátua de ouro que levantaste” (Dn
3.18). Antes ser queimado do que ser dobrado. Oh,
que o espírito como o que estava em Cipriano nos
faça sobreviver! Quando o Procônsul Galério tentou
dissuadi-lo da religião, e disse: “Consule tibi”
[Consulta a tua segurança], ele replicou: “Numa
causa tão justa, não há necessidade de consulta.”
Quando a sentença de morte foi lida, Cipriano
replicou: “Deo gratias” [Graças a Deus!]. Não
sabemos a que momento pode vir a tentação. Mas
recordemos bem que o corpo de Cristo foi partido,
seu sangue, derramado; não temos derramado por
ele nosso sangue, como ele derramou o seu por nós.
2. Demonstremos nossa gratidão a Cristo
pelos frutos
Não sejamos uma árvore seca, mas, pela graça de
Cristo, demonstremos ser ramo frutífero
(Ambrósio).[47] Produzamos os açucarados frutos da
paciência, da disposição celestial e das boas obras.
Isso significa viver não para nós mesmos, mas para
aquele que morreu e ressuscitou por nós (2Co 5.15).
Se alegrarmos o coração de Cristo e não o fizermos
sentir-se pesaroso por seus sofrimentos, então
seremos férteis na obediência. Os sábios do oriente
não só adoraram a Cristo, mas também lhe
ofereceram dádivas, “ouro, incenso e mirra” (Mt
2.11).
Ofereçamos a Cristo os melhores frutos de
nossa hortaliça; entreguemos a ele nosso amor, essa
flor deleitosa. Os santos não são somente
comparados a estrelas por seu conhecimento, mas
também a árvores aromáticas por sua fertilidade.
Cristo se deleitou nos seios de sua esposa, porque
eles eram como que “cachos de uvas” (Ct 7.7). O
sangue de Cristo, recebido de uma maneira
espiritual, se assemelha à “água do ciúme”, a qual
tinha a virtude de matar e de fazer frutífero (Nm
5.27-28). O sangue de Cristo mata o pecado e faz o
coração frutificar em graça.
3. Demonstremos nossa gratidão a Cristo
pelo zelo
Quão zeloso foi Cristo por nossa redenção! O zelo
converte um santo em serafim. Um verdadeiro
cristão tem um duplo batismo: de água e de fogo.
Ele é batizado com o fogo do zelo. “Zelus est
gradus intensus purae affectionis” [O zelo é um
grau intenso de pura afeição]. Sejamos zelosos pelo
nome e culto de Cristo. O zelo é intensificado pela
oposição; ele traça seu caminho através das rochas.
O zelo ama ainda mais a verdade quando enfrenta
desdita e ódio. “Já é tempo SENHOR, para intervires,
pois a tua lei está sendo violada. Amo os teus
mandamentos mais do que o ouro, e mais do que o
ouro refinado” (Sl 119.126-127).
Quão pouca gratidão demonstra a Cristo quem
não tem zelo por sua honra e interesse! São como
Efraim: “Efraim é um pão não revirado” (Os 7.8):
assava de um lado e ficava cru do outro. Cristo
abomina ainda mais um temperamento morno (Ap
3.15). Ele sente aversão por tais mestres.
Os que escrevem sobre a situação da Inglaterra
dizem que ela está assentada entre as zonas quentes
e frias; o clima nem é muito quente nem muito frio.
Gostaria que este não fosse o temperamento do
povo, e que nosso coração não fossem de acordo
com o clima em que vivemos. Que o Senhor faça
com que o fogo do santo zelo esteja sempre
queimando no altar de nosso coração!
4. Demonstremos nossa gratidão pela
sujeição universal a Cristo
Isto torna a Ceia do Senhor, em um sentido
espiritual, uma festa de dedicação, quando
renovamos nossos votos e nos consagramos ao
serviço de Deus. “Ó Senhor, deveras sou teu servo;
teu servo, filho de tua serva; quebraste as minhas
cadeias” (Sl 116.16). Senhor, tudo o que tenho é
teu. Minha cabeça será tua para estudar para ti;
minhas mãos serão tuas para trabalhar para ti; meu
coração será teu para adorar-te; minha língua será
tua para louvar-te!
[46] Cum ei donavero quicquid sum, quicquid possum, non est
tanquam scintilla ad solem, gutta ad fluvium, granum ad
acervum? Non habeo nisi minuta duo, corpus et animam. [Uma
alusão à história das moedinhas da viúva (Mc 12.41-44; Lc 21.1-
4).]
[47] Lignum aridum factus, sed per gratiam Christi pomifera
arbor pullulasti.
11
CONSOLAÇÃO PARA OS
CRENTES E ADVERTÊNCIAS
PARA OS INCRÉDULOS

Para vós outros, portanto, os que credes, é a


preciosidade; mas, para os descrentes, a pedra que
os construtores rejeitaram, essa veio a ser a
principal pedra angular, e pedra de tropeço e
rocha de ofensa. São estes os que tropeçam na
palavra, sendo desobedientes, para o que também
foram postos (1Pe 2.7-8).

e Jesus Cristo providenciou uma ordenança


S como é o sacramento, andemos de acordo com
ele. Já recebemos Cristo em nosso coração?
Provemo-lo mediante nossa atitude celestial.
1. Apresentemos Cristo por meio de nossas
palavras celestiais
Falemos “a linguagem de Canaã”. Quando o
Espírito Santo veio sobre os apóstolos, estes falaram
em outras línguas (At 2.4). Enquanto falarmos as
palavras de graça e sobriedade, nossos lábios exalam
o cheiro suave do perfume e destilam gotas de mel.
2. Apresentemos Cristo por meio de nossos
afetos celestiais
Que nossos gemidos e suspiros por Deus subam
como nuvem de incenso: “Pensai nas coisas que são
de cima, não nas que são da terra” (Cl 3.2).
Façamos com nossos afetos o que os lavradores
fazem com seus grãos; se o grão for depositado em
um lugar úmido, corre o risco de apodrecer.
Portanto, ele tem de ser posto em um lugar mais alto
para que seja mantido em bom estado. Assim nossos
afetos, se forem postos na terra, correm o risco de
corromper-se e perder o sabor. Por isso, temos de
estar em um lugar mais alto, acima do mundo, para
que sejamos preservados puros. Suspirar pelas
descobertas mais plenas de Deus é desejar “alcançar
a ressurreição dos mortos” (Fp 3.11). Quanto mais
nossos afetos forem elevados ao céu, mais doce
alegria sentiremos. Quanto mais alto as cotovias
voarem, mais doce é o seu canto.
3. Apresentemos Cristo por meio de nossa
conversação celestial (Fp 3.20)
Os hipócritas podem, num espasmo da consciência,
nutrir alguns bons afetos, porém são como um jato
de calor no rosto que vem e se vai. Mas a essência
de nossa vida tem de ser santa. Temos de transpirar
certo tipo de santidade angelical; como se dá com
uma moeda: ela traz não só a imagem do soberano
dentro do círculo; mas seu sobrescrito do lado de
fora. E assim não basta ter a imagem de Cristo no
coração, mas também é necessário ter o sobrescrito
do lado de fora; algo de Cristo tem de ser escrito na
vida.
A vida escandalosa de muitos comungantes
constitui um opróbrio para o sacramento, e tenta
outros ao ateísmo. Quão odioso é o fato que tais
mãos, que têm recebido os elementos consagrados,
aceitem subornos! Que os olhos, que se enchem de
lágrimas à mesa do Senhor, mais tarde se encham de
inveja! Que os dentes que têm mordido o santo pão
esmaguem também ao pobre! Que os lábios que têm
tocado o cálice sacramental osculem uma prostituta!
“Eles lavam as mãos, porém os feitos ficam por
lavar” (Bernardo).[48] Que aquela boca que bebeu o
vinho consagrado se encha de juramentos! Que os
que parecem deificar a Cristo na Eucaristia o
conspurquem em seus membros! Numa palavra, que
os que pretendem comer o corpo de Cristo e beber
seu sangue, na Igreja, “comam o pão da
perversidade e bebam o vinho da violência”, em
suas próprias casas (Pv 4.17). Esses são como os
italianos de quem tenho lido, que no sacramento se
mostram tão devotos, como se cressem que Deus
está no pão; mas na vida são tão profanos como se
não cressem que Deus está no céu.
Pessoas assim são capazes de fazer o mundo
pensar que o evangelho é mera fantasia ou uma
fraude religiosa. O que eu lhes diria? Eles, como
Judas, recebem o diabo no bocado de pão e não são
melhores que os que crucificaram o Senhor da
glória. “Tripudiam o Senhor sob a planta de seus pés
e poluem o sangue que extraem da mais doce
videira” (Bernardo).[49] Como seu pecado é
hediondo, assim sua punição será na mesma
proporção. “porque o que come e bebe
indignamente, come e bebe para sua própria
condenação, não discernindo o corpo do Senhor”
(1Co 11.29). Se uma das virgens vestais que se
consagravam à religião fosse deflorada, os romanos
a condenavam a ser sepultada viva (Plutarco).[50] Os
que têm sobre si um voto sacramental, porém mais
tarde defloram a virgindade da alma mediante
pecados escandalosos, Deus os sepultará vivos nas
chamas do inferno.
Oh, que tão eminente e majestosa santidade
lance chispas nas vidas dos comungantes para que
outros digam: “Estes têm andado com Jesus!”, e que
a consciência deles jaza sob o poder desta
convicção: que o sacramento tem em si uma virtude
que confirma e transforma!
Um uso ulterior da instituição do sacramento é
o de confortar o povo de Deus.
1. Do corpo partido de Cristo, e seu sangue
derramado, extraiamos este conforto: que ele foi
um glorioso sacrifício

i. Foi um sacrifício de mérito infinito


Fora apenas um anjo que sofreu, ou fora Cristo
um mero homem – como alguns blasfemamente
sonham: “Beberam na opinião ebionita concernente
à mera humanidade” (Tertuliano)[51] – então
poderíamos desesperar-nos da salvação. Mas sofreu
por nós aquele que era tanto Deus quanto homem.
Portanto, o apóstolo o chama expressamente
“Sanguis Dei” – o sangue de Deus (At 20.28). É o
homem que peca; é o Deus que morre. Esta é uma
soberana cordialidade para os crentes. Cristo tendo
derramado seu sangue, é agora a justiça de Deus
perfeitamente satisfeita. Deus ficou infinitamente
mais satisfeito com os sofrimentos de Cristo no
monte Calvário do que se morrêssemos no inferno e
enfrentássemos sua ira para sempre. O sangue de
Cristo apagou a chama da fúria divina. E agora o
que temeríamos? Todos os nossos inimigos são
reconciliados ou subjugados; Deus é um inimigo
reconciliado, e o pecado é um inimigo subjugado.
“Quem lançará acusação contra os eleitos de
Deus?... É Cristo que morreu” (Rm 8.33-34). Está
registrado que, quando certa vez Satanás apareceu a
Lutero, e pensava que ele ficaria amedrontado,
Lutero lhe mostrou aquela Escritura: “E porei
inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e
a sua semente; esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás
o calcanhar” (Gn 3.15), com isso Satanás
desapareceu. Então, quando o diabo nos acusar,
mostremos-lhe a cruz de Cristo. Quando ele trouxer
seu pincel e começar a pintar nossos pecados com
todas as cores, apresentemos-lhe a esponja do
sangue de Cristo que os apagará outra vez. Todas as
obrigações são canceladas; tudo quanto de que a lei
nos acusava é desconsiderado. O escrito de dívida é
cancelado pelo sangue do Cordeiro.

ii. Foi um sacrifício de duração eterna


O benefício dele é perpetuado. “Não por meio
de sangue de bodes e de bezerros, mas por seu
próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma
vez por todas, tendo obtido eterna redenção” (Hb
9.12). “O apóstolo tem em mente que o sacrifício de
Cristo é sempre válido para verdadeira e perene
paz.”[52] Portanto, lemos que Cristo é “sacerdote
para todo o sempre” (Hb 5.6), porque a virtude e a
consolação de seu sacrifício permanece para sempre.
2. O sangue de Cristo, uma vez derramado, dá
aos crentes o direito de reivindicarem todos os
privilégios celestiais
Serão ratificados pela morte do testador. “Um
testamento tem força onde houve morte” (Hb 9.17).
No texto podemos observar que Cristo chama seu
sangue “o sangue do Novo Testamento”: “Sanguis
quo foedus solenniter sancitur” [O sangue pelo qual
a aliança é solenemente ratificada] (Grotius).[53]
Cristo deixou aos santos uma vontade ou testamento
bem como ricos legados: perdão dos pecados, graça
e glória. As Escrituras são os rolos nos quais estes
legados se acham registrados. O sangue de Cristo é
o selo da vontade.
Sendo este sangue derramado, os cristãos
podem tomar posse destes legados; “Senhor, perdoa
os meus pecados, Cristo já morreu para meu perdão.
Dá-me graça, pois Cristo já a comprou com seu
sangue.” Tendo o Testador morrido, a vontade entra
em vigor. Cristão, porventura você não se enche de
alegria? Acaso você já não possui o céu? No
entanto, você já está confirmado por uma Vontade
em um Testamento. O homem que não tem um
documento selado, transferindo terras e prédios,
depois de passar uns poucos anos, ainda que
atualmente conte com pouca ajuda, contudo se
conforta quando contempla seu documento selado,
com esperanças daquilo que virá. E assim, ainda que
no momento não desfrutemos de privilégios de
consolação e glorificação, contudo, podemos alegrar
nosso coração com isto: “a Escritura está selada”, a
Vontade e o Testamento estão ratificados pelo
sangue derramado de Cristo.
3. O sangue de Cristo já foi derramado? Eis uma
consolação em face da morte
Um Salvador moribundo adocica as dores da morte.
Seu Senhor já foi crucificado? Desfrute de bom
conforto, pois Cristo, ao morrer, já venceu a morte.
Ele já cortou o cadeado do pecado, onde jaz a força
da morte. Cristo já arrancou os dentes deste leão.
Ele já arrancou o aguilhão da morte, para que ela
não ferroe a consciência do crente. “Onde estão, ó
morte, as tuas pragas?” (Os 13.14). Cristo desarmou
a morte e tirou todas as suas armas mortais; de
modo que, ainda quando fira, não pode picar um
crente. Cristo extraiu a peçonha da morte, e mais
ainda, fez da morte uma amiga. “Cristo despojou o
aguilhão da morte e quebrou seu poder, e agora
consuma a abolição do pecado e a passagem para
uma vida melhor.” [54]
Este “cavalo amarelo” (Ap 6.8) carrega um
filho de Deus de sua casa para a casa de seu Pai. A
fé dá uma propriedade celestial; a morte dá uma
posse. Que doce consolação podemos extrair da
crucificação de nosso Senhor! Seu precioso sangue
faz a face pálida da morte de compleição rubra e
bela.
O uso final da doutrina do sacramento consiste
em advertir o pecador não arrependido.
Este é um lado escuro da nuvem a todas as
pessoas profanas que vivem e morrem no pecado.
Elas não têm parte no sangue de Cristo. Sua
condição será pior do que se Cristo não morresse!
Cristo, que é a pedra ímã que atrai os eleitos ao céu,
será a pedra de moinho que afundará os perversos
no mais profundo inferno.
Há uma companhia de pecadores que
desconsidera o sangue de Cristo e jura por ele;
saibam os tais que este sangue há de clamar contra
eles. Têm de sentir a mesma ira que Cristo sentiu na
cruz; e porque não podem suportá-la imediatamente,
terão de suportá-la por toda a eternidade (2Ts 1.9).
Tão inconcebivelmente torturante será isto, que os
condenados não sabem como suportá-lo e nem
mesmo como evitá-lo.
Os pecadores não creem nisto até ser tarde
demais. A toupeira é cega durante toda sua vida;
contudo, no dizer de Plínio, ela começa a ver
quando morre: “Ao morrer, o homem começa a
abrir os olhos que estiveram fechados enquanto
vivia.”[55] Os perversos, enquanto vivem, são
cegados pelo ouro deste mundo (2Co 4.4). Mas
quando estão morrendo, os olhos de sua consciência
começarão a abrir-se e verão a ira de Deus,
chamejante diante de seus olhos; essa visão será um
doloroso prólogo a uma eterna tragédia.
[48] Sunt lotis manibus, sed illotis operibus.
[49] Conculcant Dominum, et sanguinem dulcissimae vitis ducunt
pollutum.
[50] Plutarco de Queroneia (46-120 d.C.). Na antiguidade romana,
um número de virgens se devotavam a manter uma chama em
honra da deusa Vesta. Seus votos envolviam a castidade.
[51] Tertuliano (c. 150-220), primeiro dos Pais latinos. Watson cita
de sua obra Contra Praxeas.
[52] Innuit apostolus, Christi sacrificium ad veram, semper que
mansuram valuisse.
[53] Hugo Grotius (1583-1645), jurista e teólogo holandês.
[54] Mortis aculeum retudit Christus, et vim infregit, iamque fit
peccati abolitio, et ad vitam meliorem transitio.
[55] Oculos incipit aperire moriendo quos clausos habuit vivendo.
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