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Arthur

Koestler
Jano
MELHORAMENTOS
Arthur Koestler

Jano
Uma Sinopse

Tradução de
Nestor Deola e Ayako Deola

MELHORAMENTOS

3
Capa de
Alcy Linares

Título do original em língua inglesa: JANUS — A Summing Up


1978 Arthur Koestler
Publicada por Hutchinson & Co Ltd., Londres

Todos os direitos reservados


Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel
Caixa Postal 8120, São Paulo

Nx-XII- 1981

Nos pedidos telegráficos basta citar o cód. 7-02-04-059

4
Contracapa

Jano
Uma Sinopse

Tendo abandonado a política há vinte e cinco anos,


nesse tempo Arthur Koestler escreveu inúmeras obras.
Neste livro faz uma sinopse de toda a experiência haurida
em seus estudos sobre a "evolução, criatividade e patologia
da mente humana". O autor parte da física subatômica e
chega à metafísica, numa síntese coerente e compreensiva.
JANO é uma obra imprescindível para quantos têm
interesse pelo comportamento e pelos fatos que envolvem a
história da humanidade — as massas, os grupos e o
comportamento individual, por vezes despersonalizado,
diante de conquistas e sinistros!

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JANO
UMA SINOPSE

Homem algum é uma ilha; cada qual é um "hólon".


Semelhantes a Jano, o deus romano de dois rostos opostos, os
"hólons" possuem a dupla tendência de, ao mesmo tempo, se
portarem como todos quase independentes, afirmando suas
individualidades, e agirem como partes integradas de "todos"
maiores, na escala de hierarquias da existência. Por conseguinte,
um homem é, a um só tempo, um ser único e também parte de
um grupo social, que, por sua vez, é parte de um grupo maior, e
assim por diante. Koestler mostra que este antagonismo entre
tendências auto-afirmativas e integrativas é uma característica
universal da vida. A ordem e a tranqüilidade só podem imperar
quando ambas as tendências se mantêm em perfeito equilíbrio.
Se uma delas domina a outra, desfaz-se esta delicada harmonia e
surgem situações patológicas de vários tipos. Essas
considerações aparentemente abstratas revelam-se de
fundamental importância quando aplicadas ao comportamento
emotivo — o "elemento paranóico" existente em nossa espécie,
que já provocou tanta devastação em sua história e agora a
ameaça de destruição. No entanto, Koestler acredita que o deus
de dois rostos pode guiar-nos para um diagnóstico acertado,
oferecendo assim uma "alternativa para o desespero".
Jano é uma sinopse e também uma continuação das obras
escritas por Koestler nos últimos vinte e cinco anos, depois de
ter abandonado a política, dedicando-se às ciências da vida —
ou, mais exatamente, à "evolução, criatividade e patologia da
mente humana". As vivências adquiridas durante esta longa
jornada aparecem aqui reunidas numa síntese coerente e
compreensiva, e na última parte do livro o Autor nos oferece
uma atordoante "espiadela pelo buraco da fechadura", partindo
da física subatômica e chegando até a metafísica. Ele mostra
que, à luz da nova cosmologia, a cosmovisão estritamente
determinista e mecanicista do século passado, que domina ainda
6
muitos campos da ciência contemporânea, tornou-se um
anacronismo vitoriano. Está para ruir o modelo perfeito do
universo, criado no séc. XIX. Além disso, considerando que a
própria matéria foi desmaterializada pelos físicos, o
materialismo não pode mais apresentar-se como filosofia
científica.

7
A Daphne

8
Sumário
Nota do Autor .................................... 13
Prólogo: O Novo Calendário ........................ 15

PARTE I: ESBOÇO DE UM SISTEMA

I A Holarquia................................. 37
II Para Além de Eros e Tânatos................... 70
III As Três Dimensões da Emoção................. 83
IV Ad Majorem Gloriam .......................... 90
V Uma Alternativa para o Desespero ............. 111

PARTE II: A MENTE CRIATIVA

VI Humor e Espírito ............................ 123


VII A Arte da Descoberta ........................ 145
VIII As Descobertas da Arte....................... 151

PARTE III: EVOLUÇÃO CRIATIVA

IX Cidadelas em Ruínas ......................... 179


X Lamarck Revisitado.......................... 207
XI Estratégias e Propósito na Evolução ............ 219

PARTE IV: NOVOS HORIZONTES

XII Livre-Arbítrio num Contexto Hierárquico ....... 243


XIII Física e Metafísica ........................... 255
XIV Uma Espiadela pelo Buraco da Fechadura....... 287
9
APÊNDICES
Apêndice I Em adição ao Atomismo e ao Holismo
— O Conceito de Hólon ................ 300
Apêndice II Uma Experiência de Percepção.......... 325
Apêndice III Notas sobre o Sistema Nervoso Autônomo 330
Apêndice IV OVNIs — Um Festival de Disparates ..... 332
Referências....................................... 341
Bibliografia....................................... 351

10
AGRADECIMENTOS

Sou grato aos editores da Enciclopédia Britânica (15»


edição, 1974) por me permitirem citar importantes trechos de
meu artigo "Humour and Wit" (Humor e Malícia), publicado
nessa edição.
Desejo agradecer aos editores de Mind in Nature: Essays on
the Interface of Science and Philosophy, J. B. Cobb Jr. e D. R.
Griffin (University Press of America, Washington, 1977) a
permissão de utilizar passagens de meu ensaio "Free Will in a
Hierarchic Context" (Livre Vontade num Contexto Hierárquico),
que faz parte dessa obra.
Quero também expressar meus agradecimentos aos seguintes
autores pela autorização de utilizar excertos de suas obras: Prof.
Charles H. Gibbs-Smith, do Smithsonian Institute, Washington,
e Guardião Emérito do Victoria and Albert Museum, Londres,
em Flying Saucer Review (julho/agosto, 1970); Prof. Holger
Hyden, Universidade de Gothenburg, em Control of the Mind
(McGraw-Hill, Nova York, 1961); Prof. Stanley Milgram,
Obedience to Authority: An Experimental View (Harper and
Row, Nova York, e Tavistock, Londres, 1974) e em Dialogue
(Washington, 1975); Dr. Lewis Thomas, The Lives of a Cell
(Viking Press, Nova York, 1974).
Por fim, manifesto minha gratidão à Sra. Joan St. George
Saunders, do Writer's and Speaker's Research, por sua
inestimável colaboração neste livro, como também nos
anteriores.
NOTA DO AUTOR

Este livro é uma sinopse (e também continuação) de livros


publicados durante os últimos vinte e cinco anos, desde que
deixei de escrever romances e ensaios políticos, dedicando-me
às ciências da vida, isto é, à evolução, criatividade e patologia
da mente humana.
Tal sinopse apresenta suas dificuldades. Quando o autor
coloca um sumário no final de uma tese científica ou de um
capítulo de um livro, pode ele presumir que o leitor ainda retém
vivo na mente o conteúdo exposto. O mesmo não ocorre neste
caso, onde tentei destilar a essência de vários livros, que o leitor
pode ter lido há alguns anos, se é que o fez. Por conseguinte, eu
jamais teria certeza de quanto poderia pressupor entendido, e
senti-me forçado a repetir minhas idéias com certa freqüência.
Vez por outra, o leitor poderá ter a sensação do déjà vu — ou
déjà lu — nas passagens em que inseri algumas linhas ou
mesmo parágrafos inteiros de obras anteriores.
Quero sobretudo mostrar que essas idéias concorrem para a
formação de um sistema abrangente, que rejeita o materialismo
e lança uma nova luz sobre a situação humana. Se isto parecer
demasiado ambicioso, seja-me permitido citar o Prefácio de The
Act of Creation:
Não alimento ilusões a respeito das perspectivas da teoria
que estou propondo. Será inevitável que os novos progressos do
conhecimento demonstrem as falhas dessa teoria em vários ou
até na maioria de seus aspectos. Para o momento, espero que ela
realmente contenha uma minúscula parcela de verdade.

Londres, setembro de 1977.


PRÓLOGO: O NOVO CALENDÁRIO
1

Se me pedissem para mencionar a data mais importante da história


e pré-história da raça humana, eu responderia sem a mínima hesitação:
o dia 6 de agosto de 1945. A razão é simples. Desde o alvorecer da
consciência até o dia 6 de agosto de 1945, o homem precisou conviver
com a perspectiva de sua morte como indivíduo. A partir do dia em
que a primeira bomba atômica sobrepujou o brilho do Sol em
Hiroshima, a humanidade como um todo deve conviver com a
perspectiva de sua extinção como espécie.
Aprendemos a aceitar a efemeridade da existência pessoal, ao
mesmo tempo em que tínhamos como certa a potencial imortalidade
da raça humana. Essa crença deixou de ser válida. Precisamos rever
nossos axiomas.
A tarefa não é fácil. Antes de uma idéia se firmar na mente,
existem períodos de incubação. A doutrina de Copérnico, que tão
drasticamente degradou o status do homem no Universo, demorou
quase um século para penetrar na consciência dos europeus. A nova
degradação de nossa espécie para o status de mortalidade é muito
mais difícil de digerir.
De fato, tem-se a impressão de que a novidade dessa perspectiva
já se desgastou mesmo antes de ter sido adequadamente absorvida. O
nome Hiroshima já se tornou um clichê histórico, como o célebre
"Boston Tea Party". Retornamos a um estado de pseudonormalidade.
Apenas uma diminuta minoria tem consciência do seguinte fato: a
partir do instante em que abriu a caixa nuclear de Pandora, nossa
espécie tem vivido com os dias contados.
Cada época teve suas cassandras, conquanto a humanidade tenha
conseguido sobreviver a suas sinistras profecias. Entretanto, esta
confortante reflexão já não é válida, pois em nenhuma época anterior
tribo ou nação alguma possuiu o instrumental necessário para tornar
15
este planeta inadequado para a vida. Elas só podiam infligir danos
limitados a seus inimigos — e assim o fizeram sempre que se lhes
apresentou uma oportunidade. Agora, as nações podem tomar toda a
biosfera como refém. Um Hitler, nascido vinte anos mais tarde,
provavelmente teria feito isso, provocando uma Götterdämmerung
(catástrofe) nuclear.
Infelizmente, uma invenção, uma vez realizada, não pode ser
desinventada. A arma nuclear veio para ficar; integrou-se na condição
humana. O homem terá que viver com ela permanentemente: não
apenas durante a próxima crise de confrontação e a seguinte, não
apenas durante a próxima década ou o próximo século, mas para
sempre, isto é, por todo o tempo em que a humanidade sobreviver.
Mas tudo leva a crer que isso não será por tempo muito longo.
Duas razões principais alicerçam esta conclusão. A primeira delas
é técnica: à medida que os instrumentos da guerra nuclear se tornam
mais potentes e mais fáceis de construir, torna-se inevitável sua
disseminação tanto entre as nações jovens e imaturas como entre as
nações antigas e arrogantes, ficando impraticável o controle global de
sua produção. Num futuro previsível, essas armas serão fabricadas e
estocadas em grandes quantidades, pelo mundo inteiro, por nações de
todas as cores e ideologias, e a probabilidade de que a centelha que
inicia a reação em cadeia será ateada cedo ou tarde, deliberada ou
acidentalmente, aumentará na mesma proporção, até se aproximar, a
longo prazo, da certeza. Pode-se comparar tal situação a uma
aglomeração de jovens delinqüentes presos numa sala repleta de
material inflamável, aos quais se dá uma caixa de fósforos — com a
piedosa recomendação de não brincarem com fogo.
A segunda razão principal que aponta para uma curta
probabilidade de vida para o Homo sapiens na era pós-Hiroshima é o
elemento paranóico revelado pelos registros de seu passado. Um
observador imparcial, vindo de um planeta mais evoluído, que
pudesse abranger de um só relance a história humana desde a caverna
de Cro-Magnon até Auschwitz, certamente chegaria à conclusão de
que a nossa raça, embora seja admirável sob alguns aspectos, é sob a
maioria dos aspectos um produto biológico muito deteriorado. Além
disso, as conseqüências de sua enfermidade mental sobrepujam em
muito suas realizações culturais, se consideradas as oportunidades
criadas pela prolongada existência. O som mais persistente que ecoa
ao longo da história do homem é o rufar dos tambores de guerra.
Guerras tribais, guerras religiosas, guerras civis, guerras dinásticas,
guerras nacionais, guerras revolucionárias, guerras coloniais, guerras
de conquista e de libertação, guerras para prevenir e para terminar
todas as guerras seguem-se umas às outras numa cadeia de repetição
compulsiva a perder-se nas brumas do passado, persistindo fundadas
razões para crer que essa cadeia se estenderá para o futuro. Durante os
primeiros vinte anos da era pós-Hiroshima, entre os anos 0 e 20 p. H.
— ou 1946-1966 segundo o nosso ultrapassado calendário — o
Pentágono1 registrou quarenta guerras combatidas com armas
convencionais. E pelo menos em duas ocasiões— Berlim em 1950 e
Cuba em 1962 — chegamos à iminência de uma guerra nuclear. Se
deixarmos à parte o conforto de piedosos pensamentos, devemos
supor que os focos de potenciais conflitos continuarão a se acumular
pelo globo terrestre, como regiões de alta pressão num mapa
meteorológico. E a única salvaguarda precária contra a escalada de
conflitos locais para guerras totais e retaliações mútuas dependerá
sempre, por sua própria natureza, do autocontrole ou temeridade de
falíveis homens-chaves e de regimes fanáticos. A roleta russa é um
jogo que não pode ser tentado durante muito tempo.
O mais impressivo indício da patologia de nossa espécie
manifesta-se no contraste entre suas incomparáveis proezas
tecnológicas e sua também incomparável incompetência em resolver
seus problemas sociais. Conseguimos controlar os movimentos de
satélites colocados na órbita de distantes planetas, mas não
conseguimos ainda controlar a situação da Irlanda do Norte. O homem
pode sair da Terra e descer na Lua, mas não pode transpor a fronteira
entre Berlim Oriental e Ocidental. Prometeu parte rumo às estrelas,
com um sorriso hipócrita nos lábios e um símbolo totêmico nas mãos.

Nada mencionei ainda sobre os adicionais terrores da guerra


bioquímica, nem sobre a explosão populacional, a poluição etc. que,
embora abriguem em seu bojo sérias ameaças, distraíram de modo
inadequado a atenção do público do fato central e mais importante, a
saber, que a partir do ano de 1945 nossa espécie adquiriu o diabólico
poder de aniquilar a si mesma, e que, a julgar pelo seu passado, é
muito provável que ela use tal poder em alguma das novas crises, num
futuro não muito distante. Como resultado, ocorreria a transformação
da astronave Terra num novo Flying Dutchman (o navio fantasma),
vagando por entre as estrelas com sua tripulação morta.
Se esta é a perspectiva mais provável, qual a razão para continuar
nossos esporádicos esforços para salvar os pandas e evitar que nossos
rios se transformem em cloacas? Ou juntar provisões para nossos
netos? Ou, se realmente é assim, qual a razão para continuar a
escrever este livro? Não se trata apenas de uma pergunta retórica,
como o demonstra a generalizada sensação de desencanto existente
entre os jovens. Mas existem pelo menos duas respostas satisfatórias
para esse problema.
A primeira está contida nas duas palavras "como se",
transformadas por Hans Vaihinger num sistema filosófico de
reconhecida influência: "A Filosofia do Como Se"2. Em resumo
significa que ao homem não cabe outra escolha senão viver por
"ficções": como se o mundo ilusório dos sentidos representasse a
Realidade última; como se ele possuísse uma vontade livre que o torna
responsável por suas ações; como se existisse um Deus para premiar o
comportamento virtuoso, e assim por diante. Da mesma forma, o
indivíduo deve viver como se não estivesse condenado à morte, e a
humanidade deve planejar seu futuro como se os seus dias não
estivessem contados. Somente por força dessas ficções a mente do
homem edificou um universo habitável, enriquecendo-o com um
significado positivo*.
*Não se deve confundir a filosofia de Vaihinger (1852-1933) nem com o
Fenomenismo nem com o Pragmatismo Americano, apesar das afinidades com esses
sistemas.

A segunda resposta decorre do simples fato de estarmos ainda


trabalhando com probabilidades e não com certezas, embora nossa
espécie viva agora com os dias marcados, como já vem ocorrendo há
décadas, e os sinais indiquem que ela está marchando para a catástrofe
final. Persiste sempre a esperança do inesperado e do imprevisível. A
partir do ano zero do novo calendário, o homem está carregando uma
bomba-relógio presa ao pescoço, e há de ouvir o seu tique-taque —
ora mais forte, ora mais fraco, ora mais forte outra vez — até que ela
estoure, ou que o homem consiga desarmá-la. O tempo se torna cada
vez mais escasso, a história acelera-se em ritmo loucamente alucinante
e a razão nos afirma que diminuem sempre mais as possibilidades de
se realizar com êxito a operação de desarmar a bomba, antes que seja
demasiado tarde. Podemos apenas agir como se ainda houvesse tempo
suficiente para executar essa operação.
Mas tal operação há de exigir uma atitude mais radical que as
resoluções da ONU, as conferências para o desarmamento e os apelos
para uma ingênua racionalidade. Tais apelos sempre encontraram
ouvidos moucos, já desde os tempos dos profetas hebreus, pela
simples razão de que o Homo sapiens não é um ser razoável — pois se
o fosse, jamais teria transformado sua história em tamanho descalabro
sanguinolento. Aliás, não há o mínimo indício de que o homem tenha
iniciado o processo de se tornar razoável.
3

O primeiro passo em direção a uma possível terapia consiste num


correto diagnóstico a respeito do que houve de errado com nossa
espécie. Incontáveis foram as tentativas de fazer tal diagnóstico,
invocando a Queda Original, ou o "desejo de morte" de Freud, ou o
"imperativo territorial" dos etologistas contemporâneos. Mas nenhuma
delas alcançou grande êxito, porque não partiu da hipótese de que o
Homo sapiens pode ser uma espécie biológica anômala, um fracasso
da evolução, afetado por uma desordem endêmica que torna essa
espécie diferente de todas as outras espécies animais — assim como a
linguagem, a ciência e a arte a tornam distinta num sentido positivo.
No entanto, precisamente esta incômoda hipótese fornece o ponto de
partida para o presente livro.
A evolução cometeu muitos erros. Julian Huxley a compara a um
labirinto com grande número de becos sem saída, que levam à
estagnação ou à extinção. Para cada espécie existente centenas de
outras pereceram no passado. O acervo de fósseis é uma cesta de lixo
repleta de modelos descartados pelo Desenhista Chefe. Tanto a
evidência colhida nos registros da história humana como a
apresentada pelas atuais pesquisas sobre o cérebro, indicam com muita
clareza que algo saiu errado em algum lugar durante os últimos
estágios explosivos da evolução biológica do Homo sapiens. E que
existe uma falha, algum erro de construção, potencialmente fatal,
ocorrido em nosso equipamento original — mais especificamente, nos
circuitos de nosso sistema nervoso — que explicaria o traço de
paranóia que perpassa toda a nossa história. Esta é a hipótese
horrenda, mas plausível, que deve ser levada em consideração por
qualquer pesquisa séria sobre a condição do homem. Os mais
intuitivos diagnosticadores — os poetas — jamais cessaram de nos
afirmar que o homem é mau e sempre foi assim. Mas os antropólogos,
os psiquiatras e os estudiosos da evolução não levam os poetas a sério
e continuam inabaláveis diante da evidência que lhes salta aos olhos.
Esta relutância em enfrentar a realidade é, sem dúvida, um sintoma
bastante significativo. Poder-se-ia objetar que não se pode exigir que
um louco tenha consciência de sua própria loucura. A resposta é: ele
pode, pois não é inteiramente louco o tempo todo. Em seus períodos
de lucidez, os esquizofrênicos têm escrito relatos surpreendentemente
claros sobre a própria enfermidade.
Tentarei agora apresentar uma lista sumária de alguns dos
principais sintomas patológicos evidenciados pela desastrosa história
de nossa espécie e, em seguida, utilizarei esses sintomas para discutir
suas possíveis causas. Reduzi a lista de sintomas a quatro itens
principais*.
*Esta seção baseia-se em The Ghost in the Machine (O Fantasma da Máquina) e
seu resumo feito num trabalho apresentado no Fourteenth Nobel Symposium ("The
Urge to Self-Destruction", reimpresso em The Heel of Achilles).

1. Um dos primeiros capítulos do Gênesis narra um episódio que


inspirou muitos quadros célebres. Trata-se da cena em que Abraão
amarra seu próprio filho sobre uma pilha de lenha e se prepara para
degolá-lo e queimá-lo, provando com esse sacrifício seu profundo
amor a Deus. Desde os primórdios da história deparamos um
fenômeno estarrecedor, para o qual os antropólogos têm prestado
muito pouca atenção: o sacrifício humano, o ritual de matar crianças,
virgens, reis e heróis com o fito de aplacar e agradar a deuses
inventados durante os pesadelos noturnos. Era um ritual onipresente,
que persistiu desde a aurora pré-histórica até o auge das civilizações
pré-colombianas e, em algumas partes do globo, até o início de nosso
século. Dos habitantes das ilhas do Mar do Sul aos povos dos
pântanos escandinavos, dos etruscos aos astecas, tais práticas surgiram
independentemente nas mais variadas culturas, como manifestações de
uma delusória tendência existente na psique humana, para a qual
aparentemente sempre esteve e está propensa a espécie toda.
Menosprezar tal fato como sendo uma sinistra curiosidade do passado,
como geralmente se faz, significa ignorar a universalidade do
fenômeno, as informações que ele nos fornece a respeito do elemento
paranóico embutido na formação mental do homem, bem como a
importância do fato para a situação atual do ser humano.
2. O Homo sapiens é praticamente o único ser do reino animal
carente de salvaguardas instintivas contra a matança de seres da
mesma espécie, isto é, de membros de sua própria espécie. A "Lei das
Selvas" só conhece um único motivo legítimo para matar: a
necessidade de alimentação. E isto apenas sob a condição de que o
predador e a presa pertençam a espécies diferentes. No seio da mesma
espécie, a competição e o conflito entre indivíduos ou grupos
resolvem-se por simbólicas posturas de ameaça ou por cerimoniosos
duelos que terminam com a fuga ou gesto de rendição de um dos
oponentes, raramente provocando ferimentos mortais. As forças
inibidoras — tabus instintivos — contra a morte ou os ferimentos
graves causados a seres da mesma espécie são tão fortes na maioria
dos animais — inclusive nos primatas — como os instintos da fome,
do sexo ou do medo. O homem é o único (afora alguns controvertidos
fenômenos observados entre ratos e formigas) a praticar a matança de
seres de sua espécie, em escala individual e coletiva, de maneira
espontânea ou organizada, por motivos que variam desde os ciúmes
sexuais até sofismas de doutrinas metafísicas. O permanente estado de
guerra entre coirmãos é uma característica básica da índole humana.
Ademais, é adornado pela aplicação da tortura nas suas mais variadas
formas, a começar pela crucifixão, indo até a morte na cadeira
elétrica*.
*"A tortura é hoje em dia um instrumento de repressão política tão difundido que
podemos falar da existência de "Estados de Tortura" como uma realidade política de
nossos tempos. A virulência tornou-se epidêmica e não conhece nenhuma fronteira
ideológica, racial ou econômica. Em mais de trinta países, a tortura é
sistematicamente aplicada para extrair confissões, conseguir informações, castigar a
discordância e eliminar a oposição à política repressiva do governo. A tortura foi
institucionalizada..." (Victor Jokel, Diretor da Anistia Britânica, em "Epidemic:
Torture", Anistia Internacional, Londres n.d., c. 1975.)
3. O terceiro sintoma está intimamente ligado aos dois anteriores:
manifesta-se pela crônica e quase esquizofrênica ruptura entre a razão
e a emoção, entre as faculdades racionais do homem e suas crenças
irracionais, dominadas pelos sentimentos.
4. Finalmente, existe uma estarrecedora disparidade, já
mencionada, entre as curvas de crescimento da ciência e tecnologia,
de um lado, e da conduta ética, de outro; ou, para colocar o problema
de modo diferente, entre os poderes do intelecto humano aplicado ao
domínio do ambiente e sua incapacidade para manter relações
harmoniosas no seio da família, da nação e da espécie como um todo.
Aproximadamente há dois milênios e meio passados, no séc. VI a.C,
os gregos se lançaram na aventura científica que posteriormente nos
levou até a Lua. Esta é, sem dúvida, uma impressionante curva de
crescimento. Mas o séc. VI a.C. também presenciou o surgimento do
Taoísmo, Confucionismo e Budismo — enquanto o séc. XX d.C.
gerou o Hitlerismo, o Stalinismo e o Maoísmo.
Aqui não há nenhuma curva de crescimento visível. Eis como
Bertalanffy aborda o problema:
O que se chama de progresso humano é uma questão
puramente intelectual... no entanto, não se percebe grande
desenvolvimento na parte moral. É difícil dizer se os modernos
métodos de guerra são preferíveis às grandes pedras utilizadas
pelos homens de Neandertal para esmagar a cabeça de seus
irmãos. Por outro lado, é óbvio que os padrões morais de Lao-
tse e Buda em nada perdem para os nossos. O córtex cerebral
do homem contém cerca de 10 bilhões de neurônios que
tornaram possível o progresso, partindo do machado de pedra
para chegar aos aviões e às bombas atômicas, da mitologia
primitiva até a teoria dos quanta. Não existe desenvolvimento
correspondente na parte instintiva que leve os homens a
melhorar seus caminhos. Por essa razão, as exortações morais,
proferidas no decorrer dos séculos pelos fundadores de
religiões e pelos grandes líderes da humanidade, sempre se
revelaram desconcertantemente ineficientes3.
A lista de sintomas poderia ser aumentada. Contudo, penso que os
mencionados por mim demonstram a essência da condição humana.
Naturalmente, eles se inter-relacionam. Por isso, o sacrifício de seres
humanos pode ser visto como uma subcategoria da separação
esquizofrênica entre razão e sentimento, e o contraste entre as curvas
de crescimento das realizações tecnológicas e morais pode ser
considerado como ulterior conseqüência disso.

Até o momento, restringimo-nos ao campo dos fatos, registrados


pelos relatos históricos e pelas pesquisas dos antropólogos sobre a pré-
história. Ao desviarmos nossa atenção dos sintomas para as causas,
deveremos recorrer a hipóteses mais ou menos especulativas, que por
sua vez também estão inter-relacionadas, embora pertençam a
diferentes disciplinas, a saber, a neurofisiologia, a antropologia e a
psicologia.
A hipótese neurofisiológica provém da assim chamada teoria das
emoções de Papez-MacLean, baseada em cerca de 30 anos de pesquisa
experimental*. Analisei-a detalhadamente em The Ghost in the
Machine, razão pela qual aqui me restringirei a um sucinto esboço,
evitando entrar em detalhes fisiológicos.
* O Dr. Paul D. MacLean é chefe do Laboratory of Brain Evolution and
Behavior, National Institute of Mental Health, Bethesda, Maryland.

A teoria se baseia nas diferenças fundamentais de anatomia e


função existentes entre as estruturas arcaicas do cérebro que o homem
compartilha com os répteis e os mamíferos inferiores, e o neocórtex
especificamente humano que a evolução sobrepôs àquelas estruturas
— sem, contudo, garantir uma adequada coordenação. O resultado
desse grave erro da evolução é uma difícil coexistência, que
freqüentemente degenera em sério conflito, entre as profundas
estruturas ancestrais do cérebro, relacionadas sobretudo com o
comportamento instintivo e emocional, e o neocórtex que forneceu ao
homem a linguagem e o pensamento lógico e simbólico. MacLean
resumiu, de modo excepcionalmente pitoresco, num estudo técnico, a
situação resultante:
O homem conta, na condição que a Natureza lhe outorgou,
essencialmente com três cérebros que, apesar das grandes
diferenças de estrutura, devem funcionar juntos e comunicar-se
entre si. O mais velho desses cérebros é basicamente réptil. O
segundo foi herdado dos mamíferos inferiores e o terceiro é um
desenvolvimento mamífero posterior que... tornou o homem
especificamente homem. Falando alegoricamente desses três
cérebros dentro de um único cérebro, podemos imaginar que o
psicanalista, ao pedir ao paciente para se deitar no divã, está
solicitando-lhe que se acomode ao lado de um cavalo e de um
crocodilo4.
Se nós substituirmos o paciente individual por toda a humanidade
e o divã do psicanalista pelo palco da história, obteremos um quadro
grotesco, mas essencialmente fidedigno, da condição humana.
Numa série mais recente de palestras sobre neurofisiologia,
MacLean apresentou outra metáfora:
Na atual linguagem popular, esses três cérebros podem ser
imaginados como computadores biológicos, possuindo cada qual
sua forma peculiar de subjetividade e sua própria inteligência, seu
senso particular de tempo e espaço e sua própria memória, motor e
outras funções...5

O cérebro "réptil" e o "paleomamífero" juntos formam o assim


chamado sistema límbico, ao qual, por amor à simplicidade,
chamaremos de "cérebro antigo", que se contrapõe ao neocórtex, o
"tampão pensante" especificamente humano. Todavia, enquanto as
estruturas antediluvianas da parte mais central de nosso cérebro, que
controla os instintos, as paixões e as tendências biológicas, quase não
foram tocadas pelos ágeis dedos da evolução, o neocórtex dos
homínidas se expandiu nos últimos 500 mil anos, numa velocidade
explosiva sem precedentes na história da evolução — de tal forma que
alguns anatomistas chegam a compará-lo a um crescimento tumoroso.
Essa explosão cerebral ocorrida na segunda metade da Era
Pleistocena parece ter acompanhado o tipo de curva exponencial que
recentemente se tornou tão familiar para todos nós — explosão
demográfica, explosão da informação etc. — e aqui pode haver mais
do que uma analogia superficial, visto que essas curvas refletem o
fenômeno da aceleração da história em vários domínios. Mas, as
explosões não produzem resultados harmoniosos. Nesse caso, o
resultado parece ter sido o de que o rápido desenvolvimento do
tampão pensante, que enriqueceu o homem com seu poder de
raciocínio, não permitiu que esta parte do cérebro se integrasse e
coordenasse adequadamente com as antigas estruturas emocionais, às
quais foi sobreposta com velocidade sem precedentes. As tênues
ligações neurológicas entre o neocórtex e as arcaicas estruturas do
cérebro central são aparentemente inadequadas.
Assim, a explosão cerebral deu origem a uma espécie
mentalmente desequilibrada em que o velho cérebro e o novo cérebro,
a emoção e o intelecto, a fé e a razão vivem em permanente atrito. De
um lado, o pálido rol de pensamento racional, de lógica, suspenso por
um tênue fio, despedaçado com demasiada facilidade; de outro, a
avassaladora fúria de crenças irracionais apaixonadamente defendidas,
que se refletem nos holocaustos da história passada e presente.
Se a demonstração neurofisiológica não nos tivesse ensinado o
contrário, teríamos esperado que ela nos revelasse um processo
evolutivo que gradualmente transformou o velho cérebro primitivo em
um instrumento mais sofisticado — assim como transformou as
brânquias em pulmões, ou os membros anteriores dos répteis
ancestrais nas asas dos pássaros, nas nadadeiras das baleias, nas mãos
dos homens. Mas, ao invés de transformar o velho cérebro em novo, a
evolução sobrepôs uma nova estrutura superior a uma antiga, com
funções parcialmente justapostas, sem fornecer ao novo cérebro um
poder claramente estabelecido de controlar o velho cérebro.
Expondo o fato com crueza: a evolução deixou alguns parafusos
soltos entre o neocórtex e o hipotálamo. MacLean criou o termo
esquizofisiologia para essa falha endêmica no sistema nervoso do
homem. Ele a define como:

... uma dicotomia na função do córtex filogeneticamente


velho e novo, a qual pode esclarecer as diferenças entre o
comportamento emocional e intelectual. Enquanto nossas
funções intelectuais são produzidas pela parte mais nova e
muito mais desenvolvida do cérebro, nosso comportamento
afetivo continua a ser dominado por um sistema
relativamente rude e primitivo, por estruturas arcaicas do
cérebro, cuja forma fundamental sofreu apenas diminutas
modificações durante todo o curso da evolução, desde o rato
até o homem6.

A hipótese de que esse tipo de esquizofisiologia é parte de nossa


herança genética, visto ter sido moldado na espécie humana, poderia
ser de suma utilidade para explicar alguns dos sintomas patológicos
mencionados anteriormente. O conflito crônico entre o pensamento
racional e as crenças irracionais, o decorrente traço paranóico visível
em nossa história, o contraste entre as curvas de crescimento da
ciência e da ética tornar-se-iam pelo menos compreensíveis, podendo
ser expressos em termos fisiológicos. E qualquer condição que pode
ser expressa em termos fisiológicos deverá ser, em última instância,
sensível a remédios — fato que discutiremos mais adiante. Por ora,
ressaltemos apenas que a origem do fracasso evolutivo que provocou a
disposição esquizofisiológica do homem parece residir na rápida e
quase brutal superposição (em vez de transformação) do neocórtex
sobre as estruturas ancestrais e, em decorrência, a insuficiente
coordenação entre o novo cérebro e o velho, agravada por um
inadequado controle do primeiro sobre o segundo.
Ao concluir esta seção, gostaria de frisar mais uma vez que, para o
pesquisador da evolução, não é em absoluto improvável a suposição
de que o equipamento nativo do homem, embora superior ao de
qualquer outra espécie animal, possui apesar disso alguma grave falha
no circuito desse mais precioso e delicado instrumento que é o sistema
nervoso. Quando o biólogo fala de "asneiras" da evolução, não
pretende com isso repreender a evolução por haver falhado na
obtenção de algum ideal teórico, mas quer apenas ressaltar algo muito
simples e preciso: algum evidente desvio dos próprios padrões de
eficiência construtiva da Natureza, que priva um órgão de sua
eficiência — como as monstruosas galhadas dos alces irlandeses, já
extintos. As tartarugas e os besouros estão bem protegidos por suas
couraças, mas estas os tornam tão pesados na parte superior que, se
caírem de costas durante um combate ou por um simples infortúnio,
não conseguirão se reerguer, ficando assim condenados à morte —
uma grotesca falha de construção que Kafka transformou num
símbolo da condição humana.
Mas os maiores erros ocorreram na evolução dos vários tipos de
cérebro. Assim, o cérebro dos invertebrados desenvolveu-se ao redor
do tubo digestivo, de tal maneira que, se a massa neural tentasse
crescer e expandir-se, o tubo digestivo ficaria cada vez mais
comprimido (como ocorreu com as aranhas e os escorpiões, que só
conseguem fazer passar líquidos pelo seu esôfago e por isso se
tornaram sugadores de sangue). Em The Origin of Vertebrates,
Gaskell comentou:

Na época em que os vertebrados começaram a aparecer, a


direção e o progresso da variação nos artrópodes estavam
rumando para um terrível dilema, por causa da maneira como o
cérebro era atravessado pelo esôfago — a capacidade de ingerir
alimentos sem a necessária inteligência para consegui-los, ou
suficiente inteligência para captar alimentos sem o poder de
consumi-los7.

E outro grande biólogo, Wood Jones:

Portanto, aqui está o fim do progresso na construção do


cérebro entre os invertebrados... Os invertebrados cometeram
um erro fatal quando começaram a construir seus cérebros ao
redor do esôfago. Fracassou sua tentativa de desenvolver
cérebros grandes... Deve-se começar tudo de novo8.

O novo início foi realizado pelos vertebrados. Mas uma das


principais divisões dos vertebrados, os marsupiais australianos (que,
diversamente de nós, placentários, carregam seus filhotes prematuros
em bolsas), novamente entraram num beco sem saída. Falta a seu
cérebro um componente vital, o corpus callosum — um proeminente
nervo que, nos placentários, liga o hemisfério cerebral direito ao
esquerdo*. Pesquisa muito recente sobre o cérebro descobriu uma
divisão fundamental de funções nos dois hemisférios que se
*Mais exatamente, as áreas funcionais mais altas (não olfativas).
complementam um ao outro de modo semelhante a Yin e Yang.
Obviamente, os dois hemisférios devem trabalhar em harmonia para o
animal (ou o homem) poder fruir plenamente os benefícios de seu
potencial. Por conseguinte, a ausência de um corpus callosum
significa coordenação inadequada entre as duas metades do cérebro
— uma frase que nos soa muito familiar. Essa pode ser a principal
razão por que a evolução dos marsupiais — embora tenha produzido
várias espécies que apresentam profundas semelhanças com seus
primos placentários — finalmente estancou, na escala evolutiva, ao
nível do urso coala.
Pretendo retornar mais adiante ao tão negligenciado quanto
fascinante assunto dos marsupiais. No atual contexto, eles e os
artrópodes, bem como outros exemplos, podem servir de amostras
elucidativas que tornam mais fácil aceitar a possibilidade de que
também o Homo sapiens pode ser vítima de uma construção
defeituosa do cérebro. Nós, graças a Deus, possuímos um sólido
corpus callosum que integra horizontalmente a parte direita com a
esquerda. Mas, em sentido vertical, da sede do pensamento criativo
para as esponjosas profundidades do instinto e da paixão, nem tudo
está em perfeita ordem. A evidência alcançada em laboratórios
fisiológicos, o trágico acervo da história geral e as triviais anomalias
de nosso comportamento cotidiano, tudo aponta para a mesma
conclusão.

Outra maneira de analisar a situação do homem parte do fato de


que a criança deve suportar um período mais longo de incapacidade e
total dependência de seus pais do que os filhotes de qualquer outra
espécie. O berço é um confinamento mais oprimente que a bolsa do
canguru. Pode-se facilmente imaginar que essa experiência prematura
de dependência deixa marcas indeléveis, sendo responsável, ao menos
em parte, pela predisposição do homem de submeter-se à autoridade
exercida por indivíduos ou grupos, bem como por sua
sugestionabilidade às doutrinas e imperativos morais. A lavagem
cerebral começa no berço.
A primeira sugestão feita pelo hipnotizador a seu cliente é que este
se mantenha totalmente aberto às sugestões hipnóticas. O cliente está
sendo condicionado para tornar-se suscetível ao condicionamento. A
indefesa criança é submetida a semelhante processo. É transformada
num apto recipiente de crenças pré-fabricadas*.
"Konrad Lorenz fala de "cunhagem" (imprinting), afirmando que a idade crítica
da receptividade é a imediatamente posterior a puberdade'. Parece que ele não
compreendeu que no homem, ao contrário do que ocorre com seus grous, á
susceptibilidade para cunhagem se estende do berço à sepultura.
Para a grande maioria dos homens ao longo da história, o sistema
de crenças que eles aceitaram, pelo qual estavam preparados para
viver e para morrer, não foi por eles elaborado ou escolhido; foi-lhes
impingido pelo acaso do nascimento. Pro pátria mori dulce et
decorum est (É doce e digno morrer pela pátria), seja qual for a pátria
onde a cegonha deixa a pessoa cair. O raciocínio crítico exerceu, se é
que o fez, apenas um papel secundário no processo de adotar uma fé,
um código de ética, uma Weltanschauung; no processo de se tornar
um fervoroso cruzado cristão, um fanático maometano engajado na
Guerra Santa, um Roundehead (puritano inglês) ou um templário. Os
contínuos desastres registrados na história humana originam-se
principalmente da excessiva capacidade e ânsia do homem para
identificar-se com uma tribo, nação, igreja ou causa, esposando o seu
credo com muito entusiasmo mas sem o mínimo senso crítico, mesmo
quando os preceitos desse credo são contrários à razão, desprovidos de
interesse próprio ou prejudiciais aos direitos de autopreservação.
Somos assim arrastados à antiquada conclusão de que o problema
de nossa espécie não é um excesso de agressividade, mas uma
excessiva capacidade para devotamento fanático. Mesmo uma
superficial olhadela para a história há de convencer-nos de que os
crimes individuais cometidos por motivos egoístas desempenham um
papel bastante irrisório na tragédia humana, se comparados ao número
de pessoas massacradas pela desprendida lealdade à própria tribo,
nação, dinastia, igreja, ou ideologia política, ad maiorem gloriam Dei
(para a maior glória de Deus). A ênfase recai sobre desprendida.
Exceção feita para uma pequena minoria de mercenários ou de
pessoas sádicas, as guerras não são feitas para obter ganhos pessoais,
mas por lealdade e devotamento ao rei, ao país, ou à causa. Em todas
as culturas, incluindo a nossa, os homicídios cometidos por razões
pessoais constituem uma raridade estatística. Os homicídios praticados
por motivos não egoístas, com risco da própria vida, são o fenômeno
dominante- na história.
A esta altura, devo inserir duas breves observações polêmicas:
A primeira: quando Freud proclamou ex cathedra que as guerras
são provocadas por instintos de agressão reprimidos, que tentam
extravasar-se, o povo inclinou-se a acreditar nele, pois isso o fazia
sentir-se culpado. Mas Freud não apresentou um fragmento sequer de
evidência histórica ou psicológica a favor de sua afirmativa. Qualquer
um que tenha servido nas fileiras de um exército pode testemunhar
que os sentimentos de agressão contra o inimigo dificilmente
desempenham algum papel nas lúgubres rotinas do desencadeamento
de uma guerra. Os soldados não odeiam. Vivem assustados,
entediados, famintos de sexo, com saudades de casa. Lutam com
resignação porque não têm outra escolha, ou com entusiasmo pela
causa do rei ou da pátria, da verdadeira religião, de um motivo justo
— não movidos pelo ódio, mas pela lealdade. Repetindo mais uma
vez: a tragédia do homem não reside no excesso de agressividade, mas
no excesso de devotamento.
A segunda observação polêmica diz respeito a outra teoria que
recentemente se tornou popular entre os antropólogos, pretendendo
que a origem da guerra deve ser atribuída à instintiva necessidade que
algumas espécies de animais têm de defender a qualquer custo seu
próprio pedaço de terra ou de mar — o assim chamado "imperativo
territorial". A mim se me afigura tão pouco convincente quanto a
hipótese de Freud. As guerras do homem, com raras exceções, não
foram desencadeadas por causa da posse individual de territórios. Na
realidade, o homem que parte para a guerra deixa a casa que deve
defender e dispara seus tiros muito longe dela. E o que o leva a fazer
isso não é a necessidade vital de defender sua porção individual de
terras aráveis e pradarias, mas seu devotamento a símbolos derivados
das tradições tribais, dos mandamentos divinos e dos slogans
políticos. Não se fazem guerras por causa de territórios, mas por causa
de palavras.
6
Essa idéia nos leva ao próximo item de nosso levantamento das
possíveis causas da atual situação do homem. A mais mortífera das
armas humanas é a linguagem. O homem é tão suscetível de ser
hipnotizado por slogans, quanto é indefeso às doenças infecciosas.
Mas quando surge uma epidemia o espírito de grupo assume o
comando. E segue as próprias regras, bem diferentes das regras de
conduta dos indivíduos. Quando uma pessoa se identifica com um
grupo, sua capacidade de raciocínio diminui e suas paixões se
intensificam por uma espécie de ressonância ou realimentação
positiva. O indivíduo não é um assassino, mas o grupo é. E, por se
identificar com o grupo, o indivíduo se transforma num assassino.
Essa é a infernal dialética refletida na história das guerras do homem,
das perseguições, dos genocídios. E o principal catalisador dessa
transformação é o poder hipnótico da palavra. As palavras de Adolf
Hitler foram os mais poderosos agentes de destruição em sua época.
Muito antes de se inventar a imprensa, as palavras do Profeta
escolhido de Alá provocaram uma emotiva reação em cadeia que
sacudiu o mundo, desde a Ásia Central até as costas do Atlântico. Sem
palavras, não haveria poesia — nem guerra. A linguagem se constitui
no principal fator de nossa superioridade em relação aos irmãos
animais — e, em razão de seu explosivo potencial emotivo, numa
constante ameaça à sobrevivência.
Esse ponto aparentemente paradoxal é ilustrado por recentes
observações de campo feitas em grupos de macacos japoneses, as
quais revelaram que diferentes tribos de uma espécie podem
desenvolver hábitos surpreendentemente diferentes — poderíamos
quase dizer diferentes culturas. Algumas tribos começaram a lavar as
batatas no rio antes de comê-las, outras não. Às vezes, um grupo
migratório de lavadores de batatas encontrava outro de não lavadores,
e cada grupo observava o estranho comportamento do outro, com
evidente espanto. Mas, ao contrário dos habitantes de Liliput que
empreenderam santas cruzadas por causa da divergência sobre que
lado escolher para se quebrar o ovo, os macacos lavadores de batatas
não declaram guerra contra os não lavadores porque as pobres,
criaturas não possuem uma linguagem que os capacite a dogmatizar
que a lavação das batatas é um mandamento divino e o fato de comê-
las sem lavar é uma heresia mortal.
Obviamente, a maneira mais rápida de abolir a guerra seria abolir
a linguagem. O próprio Jesus parece ter tido plena consciência disso
quando afirmou: "Que a vossa maneira de falar seja 'sim, sim, não,
não', pois tudo o mais vem do demônio". E, em certo sentido, a
humanidade renunciou à linguagem há muito tempo, se por linguagem
significarmos um método de comunicação comum a toda a espécie. A
Torre de Babel é um símbolo eterno. Outras espécies possuem um
único método de comunicação — sinais, sons, ou secreção de odores
— entendida por todos os membros dessa espécie. Quando um cão
são-bernardo encontra um poodle, ambos se entendem mutuamente,
sem necessitar de um intérprete, apesar de terem aparências bem
diversas. O Homo sapiens, por sua vez, está dividido em cerca de 3
mil grupos de linguagem. Cada língua — e, por conseguinte, cada
30
dialeto — atua como força coesiva dentro do grupo e como força
divisória entre os grupos. Essa é uma das razões por que as forças de
separação, em nossa história, são muito mais poderosas que as forças
de coesão. Os homens demonstram uma variedade muito maior de
aparências físicas e comportamentos que qualquer outra espécie
(excetuando-se os produtos de criação artificial). E o dom da
linguagem, ao invés de sobrepujar essas diferenças, levanta novas
barreiras e reforça os contrastes. Possuímos satélites de comunicação
que podem transmitir uma mensagem a toda a população do planeta,
mas não contamos com uma língua franca que possa tornar essa
mensagem universalmente compreensível. Parece muito estranho que,
exceto um pequeno grupo de valentes esperantistas, nem a UNESCO,
nem qualquer outra organização internacional tenha descoberto até
agora que a maneira mais simples de promover o entendimento será a
de promover uma língua que seja compreendida por todos.
7
Em seu livro Unpopular Essays, Bertrand Russell apresenta um
fato pitoresco:

F. W. H. Myers, convertido pelo espiritualismo à crença numa


vida futura, perguntou a uma senhora, que havia recentemente
perdido a filha, o que teria acontecido, na opinião da mãe, à alma
da falecida. A mãe respondeu: "Bem, suponho que ela esteja
gozando a bem-aventurança eterna. Mas eu gostaria que você não
tocasse nesse assunto tão desagradável...10".

O último item de minha lista de fatores que poderiam exercer


influência na patologia de nossa espécie é a descoberta da morte, ou
melhor, sua descoberta pelo intelecto e sua rejeição pelo instinto e
pelo sentimento. Esta é, portanto, outra manifestação da cisão
existente na mente humana, perpetuando a divisão entre fé e razão. A
fé é o parceiro mais velho e mais poderoso. E quando surge o conflito,
a metade raciocinante da mente sente-se impelida a fornecer
sofisticadas racionalizações para aquietar o terror ao vazio, do
parceiro mais velho. Todavia, não só o ingênuo conceito de "bem-
aventurança eterna" (ou de castigo eterno para o condenado), mas
também as mais sofisticadas teorias parapsicológicas de sobrevivência
apresentam problemas que, aparentemente, sobrepujam a capacidade
de raciocínio de nossa espécie. Talvez haja milhões de outras culturas
em planetas milhões de anos mais velhos que o nosso, para as quais a
morte não mais representa um problema. Mas, para usar uma gíria de
computação, permanece o fato de não estarmos "programados" para a
tarefa. Ao defrontar uma tarefa para a qual não está programado, um
computador ou é reduzido ao silêncio, ou fica maluco. Parece que a
última hipótese ocorreu, com desoladora freqüência, nas mais variadas
culturas. Diante do inextricável paradoxo da consciência que emerge
do vácuo anterior ao nascimento e mergulha na escuridão posterior à
morte, suas mentes ficaram malucas e povoaram o ar com os espíritos
dos mortos, com deuses, anjos e demônios, até que a atmosfera se
tornasse saturada de presenças invisíveis, que são, quando muito,
caprichosas e imprevisíveis e, na maioria das vezes, malévolas e
vingativas. Deviam ser veneradas, lisonjeadas e aplacadas com ritos
complicadamente cruéis, incluindo o sacrifício humano, a guerra santa
e a queima dos hereges.
Durante quase dois mil anos, milhões de pessoas, também
inteligentes, foram convencidas de que a grande maioria da
humanidade, que não compartilhava seu credo específico ou não
realizava seus ritos, era consumida pelas chamas durante toda a
eternidade, por determinação de um deus amoroso. Semelhantes
fantasias grotescas eram compartilhadas coletivamente por outras
culturas, testemunhando a universalidade da tendência paranóica da
raça.
Mais uma vez, porém, existe a outra face da medalha. A recusa em
acreditar que tudo terminava com a morte fez surgir as pirâmides no
deserto, criou um conjunto de valores éticos e se transformou na
principal fonte de inspiração para as criações artísticas. Se a palavra
"morte" não existisse em nosso vocabulário, as maiores obras da
literatura não teriam sido escritas. A criatividade e a patologia do
homem são duas faces da mesma medalha, cunhada no mesmo molde
da evolução.
8

Resumindo, a desastrosa história de nossa espécie mostra a


futilidade de qualquer tentativa de diagnóstico que não leve em conta
a possibilidade de que o Homo sapiens seja uma vítima de um dos
inúmeros erros da evolução. O exemplo dos artrópodes e marsupiais,
entre outros, mostra que tais erros ocorrem de fato e podem afetar
adversamente a evolução do cérebro.
Enumerei alguns sintomas evidentes da desordem mental que
parece ser endêmica em nossa espécie: a) os onipresentes ritos de
sacrifícios humanos no alvorecer da pré-história; b) a interminável
realização de guerras entre a mesma espécie que, embora no início
pudessem causar apenas danos limitados, chegam agora a pôr em
perigo todo o planeta; c) a paranóica cisão entre o pensamento
racional e as crenças irracionais, baseadas no sentimento; d) o
contraste entre a genial capacidade humana de conquistar a Natureza e
a inépcia do homem em resolver seus próprios problemas —
simbolizadas pela nova fronteira aberta na Lua e pelos campos de
minas espalhados através da Europa.
É importante sublinhar mais uma vez que esses fenômenos
patológicos são específica e unicamente humanos, não sendo
encontrados em nenhuma outra espécie. Por conseguinte, parece muito
lógico que nossa procura de explicações deva também se concentrar
sobretudo naqueles atributos do Homo sapiens que são
exclusivamente humanos e não compartilhados pelo resto do reino
animal. Contudo, por mais óbvia que seja essa conclusão, ela vai
contra a corrente reducionista que impera em nossos dias.
"Reducionismo" é a crença filosófica de que todas as atividades
humanas podem ser "reduzidas" a — isto é, explicadas por —
respostas comportamentais de animais inferiores, como os cães de
Pavlov, os ratos e pombos de Skinner, os grous de Lorenz e os
macacos calvos de Morris, e de que, por sua vez, essas respostas
podem ser reduzidas às leis físicas que governam a matéria inanimada.
Sem dúvida, Pavlov ou Lorenz contribuíram com novas luzes para a
compreensão da natureza humana, mas apenas sob esses aspectos, por
sinal elementares, não específicos da natureza humana, os quais nós
dividimos com os cães, ratos ou gansos, enquanto os aspectos
específica e exclusivamente humanos, que definem a peculiaridade de
nossa espécie, são esquecidos ou negligenciados. E, visto que essas
características ímpares se manifestam tanto na criatividade quanto na
patologia do homem, os cientistas de convicção reducionista não
podem se arvorar em diagnosticadores competentes, assim como não
podem pretender ser críticos de arte. Esse o motivo por que a atual
situação científica fracassou tão lamentavelmente na tentativa de
definir a condição do homem. Se ele é realmente um autômato, não há
razão para colocar um estetoscópio em seu peito.
Portanto, repito novamente: se os sintomas de nossa patologia são
específicos da espécie, isto é, exclusivamente humanos, então as
explicações para eles devem ser procuradas no mesmo nível
exclusivo. Tal conclusão não se inspira na arrogância, mas na
evidência fornecida pelos registros históricos. Os caminhos para uma
diagnose, por mim sucintamente delineados, foram: a) o crescimento
explosivo do neocórtex humano e seu insuficiente controle sobre o
cérebro mais antigo; b) a prolongada incapacidade da criança e sua
conseqüente sujeição passiva à autoridade; c) o duplo papel da
linguagem, como incitadora da populaça e como construtora de
barreiras étnicas; d) finalmente, a descoberta da morte e, em
decorrência, o desnorteante medo dela. Cada um desses fatores será
detalhadamente discutido mais adiante.
Não parece tarefa impossível neutralizar essas tendências
patogênicas. A medicina já descobriu remédios para certos tipos de
psicoses esquizofrênicas e maníaco-depressivas. Portanto, não será
utópico acreditar que ela descobrirá uma combinação de enzimas
benévolas que forneçam ao neocórtex a força para impor um veto
contra as loucuras do cérebro antigo, corrijam os gritantes erros da
evolução, reconciliem o sentimento com a razão, e catalisem a
convulsiva transformação do maníaco em homem. Ainda outras
sendas esperam para serem exploradas e podem conduzir à salvação
no momento oportuno, contanto que tudo seja feito com a devida
urgência, inspirada na mensagem do novo calendário — e num
diagnóstico exato da natureza do homem, baseado num novo enfoque
das ciências da vida.
Os próximos capítulos se ocupam de alguns aspectos desse novo
enfoque, o qual nos últimos anos começou a emergir dos áridos
desertos da filosofia reducionista. Por conseguinte, abandonaremos
agora a patologia do homem, saindo da desordem para descortinar o
agradável panorama da ordem e da criatividade mental. À medida que
prosseguirmos e, eventualmente, assim o espero, elaborarmos um
esquema coerente, retornaremos outras vezes a algumas das questões
levantadas nas páginas precedentes.
PARTE I

Esboço de um Sistema

I
A Holarquia
1

Beyond Reductionism — New Perspectives in the Life Sciences


(Além do Reducionismo — Novas Perspectivas para as Ciências da
Vida) foi o título de um simpósio que tive o prazer e o privilégio de
organizar em 1968, o qual posteriormente provocou muitas
controvérsias*. Um dos participantes, o Prof. Viktor Frankl, animou
as reuniões apresentando alguns exemplos típicos de reducionismo em
psiquiatria, extraídos de conhecidos livros e periódicos. Assim, por
exemplo:
Muitos artistas já abandonaram o consultório de um
psiquiatra enfurecidos com as interpretações segundo as quais
eles pintam para superar, mediante a livre criação de manchas,
um severo controle dos movimentos intestinais. ...

*É mais conhecido como o "Simpósio de Alpbach", nome derivado da localidade


alpina em que se realizou. Os participantes foram: Ludwig von Bertalanffy (Professor
Catedrático. Universidade Estadual de Nova York. em Buffalo). Jerome S. Bruner
(Diretor. Centro de Estudos Cognitivos, Universidade de Harvard). Blanche Bruner
(Centro de Estudos Cognitivos, Universidade de Harvard). Viktor E. Frankl
(Professor de Psiquiatria e Neurologia. Universidade de Viena). F. A. Hayek
(Professor de Economia, Universidade de Freiberg, Alemanha), Holger Hyden
(Professor e Diretor do Instituto de Neurobiologia e Histologia, Universidade de
Gothenburg, Suécia), Bärbel Inhelder (Professor de Psicologia do Desenvolvimento,
Universidade de Genebra). Seymour S. Kety (Professor de Psiquiatria, Universidade
de Harvard), Arthur Koestler (Escritor, Londres), Paul D. MacLean (Diretor do
Laboratório de Evolução do Cérebro e Comportamento, NIMH, Bethesda, Maryland).
David McNeill (Professor de Psicologia. Universidade de Chicago). Jean Piaget
(Professor de Psicologia Experimental, Universidade de Genebra), J. R. Smythies,
(Docente de Psiquiatria, Universidade de Edinburgh). W. H. Thorpe, (Diretor do
Subdepartamento de Comportamento Animal, Departamento de Zoologia,
Universidade de Cambridge), C. H. Waddington (Professor e Presidente do
Departamento de Genética, Universidade de Edinburgh), Paul A. Weiss (Membro
Emérito e Professor, Universidade Rockefeller. Nova York).
Somos levados a acreditar que a obra de Goethe nada mais
é senão o resultado de fixações pré-genitais. A luta de Goethe
não visa realmente à conquista de um ideal, da beleza e dos
valores, mas à superação de um embaraçoso problema de
ejaculação prematura....¹

Na verdade, é bem possível que alguma motivação sexual (ou


mesmo escatológica) exerça certa influência sobre a obra de um
artista. No entanto, é absurdo proclamar que a arte "nada mais é"
senão a sexualidade inibida em seus objetivos, simplesmente porque
isto daria como provada a questão sobre o que torna a arte de Goethe
uma obra de gênio, não incluindo a de outros ejaculadores prematuros.
A tentativa reducionista de explicar a criação artística pela ação de
hormônios sexuais é fútil porque tal ação, embora biologicamente
importante, não nos leva sequer a suspeitar a existência de critérios
estéticos aplicáveis a uma obra de arte. Esses critérios pertencem ao
nível dos processos mentais conscientes, que não podem ser reduzidos
ao nível dos processos biológicos sem perderem, no curso de
semelhante operação, seus atributos especificamente mentais. A
psiquiatria reducionista é um anfitrião procustiano para o exausto
peregrino.
É fácil caçoar daqueles modernos freudianos ortodoxos que
reduziram a uma pobre caricatura os ensinamentos do mestre.
Contudo, em outros campos, a falácia reducionista se infiltra mais
discretamente, torna-se menos óbvia e por isso mais insidiosa. Os cães
de Pavlov, os ratos de Skinner, os grous de Lorenz, todos eles
serviram durante certo período como elegantes paradigmas da
condição humana. O mais conhecido livro de Desmond Morris, The
Naked Ape (O Macaco Nu), principia com a afirmação de que o
homem é um macaco sem pêlos, "autodenominado Homo sapiens...
Eu sou um zoólogo e o macaco nu é um animal. Portanto, ele é uma
presa fácil para minha pena". Outra passagem do livro de Morris
ilustra os extremos a que pode levar o enfoque zoomorfista:
Os interiores das casas ou cabanas podem ser decorados
com grande profusão de ornamentos, quinquilharias, e
objetos pessoais. Isso geralmente se explica como sendo um
esforço para tornar o lugar "mais agradável". Na realidade,
isso é o equivalente exato do hábito de outra espécie
territorial de depositar seu cheiro pessoal sobre um marco
próximo à sua toca. Quando se põe um nome numa porta ou
se pendura um quadro numa parede, simplesmente se está
levantando a perna sobre elas e deixando ali a marca pessoal,
para usar, por exemplo, as comparações de um cachorro ou
de um lobo2.

Num nível mais sério (embora a passagem citada deva obviamente


ser tomada com toda a seriedade), deparamos com dois expressivos
redutos da ortodoxia reducionista. O primeiro é a teoria neodarwinista
(ou "sintética"), segundo a qual a evolução é o resultado de "nada
mais" que mutações casuais aproveitadas pela seleção natural —
doutrina recentemente atacada por veementes críticas*, mas que
apesar de tudo ainda é ensinada como verdade evangélica. O outro
reduto é a psicologia behaviorista da escola de Watson e Skinner, a
qual sustenta que todo o comportamento humano pode ser "explicado,
previsto e controlado" por métodos aprovados no condicionamento de
ratos e pombos. "Valores e significados nada mais são que
mecanismos de defesa e formas de reação" — eis outra citação típica
que Frankl extraiu de um livro behaviorista.
*Ver mais adiante, a Parte III.
Com sua persistência em negar um lugar para valores, significados
e propósitos na interação de forças cegas, a atitude reducionista
projetou sua sombra para além das fronteiras da ciência, afetando todo
o nosso ambiente cultural e até político. Sua filosofia pode ser
condensada por uma citação extraída de um recente manual de
colégio, onde o homem é definido como "nada mais que um complexo
mecanismo bioquímico, movido por um sistema de combustão que
fornece energia a computadores providos de prodigiosa capacidade de
estocagem para reter informação codificada"3.
Ora, a falácia reducionista reside, não no fato de comparar o
homem a um "mecanismo movido por um sistema de combustão",
mas no fato de declarar que ele "nada mais" é senão tal mecanismo e
que suas atividades consistem em "nada mais" que uma cadeia de
respostas condicionadas, encontradas também nos ratos. Pois é, sem
dúvida, perfeitamente legítimo, e até indispensável, que o cientista
procure analisar fenômenos complexos, reduzindo-os a seus elementos
constitutivos, contanto que mantenha sempre na mente o fato de que
no decurso da análise perde-se algo essencial, porque o todo é mais
que a simples soma de suas partes, e seus atributos como um todo são
mais complexos que os atributos de suas partes. Por conseguinte, a
análise de fenômenos complexos elucida apenas certo segmento ou
aspecto do quadro geral e não nos autoriza a dizer que tal fenômeno é
"nada mais" que isto ou aquilo. No entanto, esse "nada-mais-ismo",
como tem sido chamado, continua sendo a cosmovisão — explícita ou
implícita — da ortodoxia reducionista. Se devêssemos tomá-la ao pé
da letra, o homem poderia ser definido, em última análise, como um
ser formado por nada mais que 90% de água e 10% de minerais —
uma afirmativa que, sem dúvida, é exata, embora não muito útil.

Todavia, o reducionismo provou ser um método muito bem


sucedido dentro de seus limites de aplicabilidade nas ciências exatas,
ao passo que sua antítese, o holismo, de fato nunca progrediu muito. O
holismo pode ser definido pela afirmação de que o todo é mais que a
soma de suas partes. O termo foi criado por Jan Smuts, na década de
1920, num famoso livro4 que, por algum tempo, gozou de grande
popularidade. Mas o holismo jamais alcançou prestígio na ciência
acadêmica* — em parte porque se opunha ao Zeitgeist (espírito da
época), em parte porque representava, talvez, uma tendência mais
filosófica do que empírica e não se prestava a testes de laboratório.
•Exceto indiretamente, pela psicologia do Gestalt.

De fato, tanto o reducionismo como o holismo, se tomados como


guias únicos, levam a um beco sem saída. "Uma rosa é uma rosa, é
uma rosa" pode ser tomada como uma afirmação holística, mas não
nos diz, a respeito da rosa, nada mais do que nos dizem as fórmulas de
seus componentes químicos. Para a nossa pesquisa necessitamos de
uma terceira perspectiva, além do reducionismo e do holismo, que
incorpore os aspectos válidos de ambos. E deve partir do problema
aparentemente abstrato, mas fundamental, das relações entre o todo e
suas partes — qualquer "todo", seja o Universo ou a sociedade
humana, e qualquer "parte", seja um átomo ou um ser humano. Isso
pode parecer um modo estranho, para não dizer perverso, de se chegar
a um diagnóstico da situação do homem. Mas, assim o espero, o leitor
eventualmente há de compreender que o aparente desvio ocasionado
pelas considerações teóricas neste capítulo pode se tornar o caminho
mais curto para sair do labirinto.

3
Quero iniciar com uma pergunta decepcionantemente simples: que
pretendemos nós expressar, com exatidão, pelas familiares palavras
"parte" e "todo"? "Parte" contém o significado de algo fragmentário e
incompleto que, por si só, não pode exigir uma existência autônoma.
Por outro lado, um "todo" é considerado algo completo em si mesmo,
que não necessita de ulterior explicação. No entanto, contrariando
esses hábitos de pensamento profundamente enraizados em nós e seus
reflexos em algumas escolas filosóficas, "partes" e "todos", num
sentido absoluto, não existem em parte alguma, nem no terreno dos
organismos vivos, nem nas organizações sociais, nem no universo em
geral.
Um organismo vivo não é um simples agregado de partes
elementares, e suas atividades não podem ser reduzidas a elementares
"átomos de comportamento" formando uma cadeia de respostas
condicionadas. Em seus aspectos corporais, o organismo é um todo
constituído de subtodos", tais como o sistema circulatório, o sistema
digestivo etc., que por sua vez se ramificam em subtodos de uma
ordem inferior, tais como os órgãos e tecidos — e assim descendo
para as células individuais e para as organelas no interior das células.
Em outras palavras, a estrutura e o comportamento de um organismo
não podem ser explicados por, ou "reduzidos a" elementares processos
físico-químicos. Consistem numa hierarquia bem definida e
estratificada de subtodos que pode ser satisfatoriamente diagramada
como uma pirâmide ou uma árvore invertida, onde os subtodos
formam os nódulos e as linhas de ramificação simbolizam canais de
comunicação e controle. Ver o diagrama das páginas 42 e 43.
O primeiro ponto a ser enfatizado é que todo membro desta
hierarquia, em qualquer nível, é um subtodo ou "hólon" de pleno
direito — uma estrutura estável e integrada, equipada com
mecanismos auto-regulatórios e detentora de considerável grau de
autonomia ou governo próprio. Células, músculos, nervos, órgãos,
todos possuem seus ritmos intrínsecos e padrões de atividade, muitas
vezes manifestados espontaneamente, sem necessidade de estímulos
externos. Subordinam-se como partes aos centros mais elevados da
hierarquia, mas ao mesmo tempo funcionam como todos quase
autônomos. Eles possuem as faces de Jano. A face voltada para cima,
em direção aos níveis mais elevados, é a de uma parte dependente.
Mas a face voltada para baixo, em direção a seus próprios
constituintes, é a de um todo dotado de considerável auto-suficiência.
O coração, por exemplo, possui seus próprios marcapassos — na
verdade, vários marcapassos, capazes de substituírem uns aos outros,
quando a necessidade o exigir. Outros órgãos maiores estão equipados
com diferentes tipos de mecanismos coordenadores e controles de
regeneração. Sua autonomia fica demonstrada, de modo convincente,
pelas operações de transplante. No início de nosso século, Alexis
Carrell mostrou que um minúsculo pedaço de tecido, extraído do
coração de um embrião de galinha e colocado numa solução nutritiva,
conseguia pulsar durante anos. A partir de então, órgãos inteiros
provaram que eram capazes de funcionar como todos quase
independentes, quando extraídos do corpo e guardados in vitro, ou
transplantados para outro corpo. E, à medida que descemos os degraus
da hierarquia até o mais baixo nível observável por meio do
microscópio eletrônico, chegamos às estruturas infracelulares — as
organelas — que não são nem "simples" nem "elementares", mas
sistemas de incipiente complexidade. Cada uma dessas minúsculas
partes de uma célula funciona como um todo autônomo de pleno
direito, e cada uma aparentemente obedece a um código de regras
embutido nela. Um tipo, ou tribo, de organelas cuida do crescimento
da célula, outro providencia seu suprimento de energia, sua
reprodução, comunicação e assim por diante. Os mitocôndrios, por
exemplo, são usinas elétricas que extraem energia dos nutrientes por
intermédio de uma cadeia de reações químicas que envolvem cerca de
cinqüenta etapas diferentes. E uma única célula pode ter até cinco mil
dessas usinas. As atividades dos mitocôndrios podem ser ligadas ou
desligadas por controles existentes em níveis mais altos. Mas, uma vez
postas em ação, elas seguirão seu próprio código de regras. Os
mitocôndrios cooperam com outras organelas para manter a célula
feliz. Contudo, cada mitocôndrio possui, ao mesmo tempo, uma regra
dentro de si, uma unidade autônoma que há de afirmar sua
individualidade mesmo quando a célula ao redor estiver morrendo.

A ciência está apenas começando a se livrar dos preconceitos


mecanicistas do séc. XIX — o mundo concebido como uma mesa de
bilhar repleta de átomos colidentes — e a compreender que a
organização hierárquica é um princípio fundamental da natureza viva;
que esta organização é "a característica essencial e distintiva da vida"
(Pattee)5 e é "um fenômeno real, apresentado a nós pelo objeto
biológico e não pela ficção de uma mente especulativa" (P. Weiss)6. É
ao mesmo tempo um instrumento conceitual que, em certas ocasiões,
atua como um Abre-te Sésamo. Todos os complexos processos e
estruturas com um caráter relativamente estável apresentam
organização hierárquica, não importando se consideramos sistemas
galácticos, organismos vivos e suas atividades, ou organizações
sociais. O diagrama em forma de árvore, com seus diferentes níveis,
pode ser usado para representar o desmembramento evolutivo da
espécie na "árvore da vida", ou a gradativa diferenciação de tecidos e
a integração de funções no desenvolvimento do embrião. Os
anatomistas utilizam esse diagrama para ilustrar a hierarquia
locomotora dos membros, juntas, músculos individuais, e assim
descendo até as fibras, fibrilas e filamentos das proteínas contrácteis.
Os etologistas o usam para esquematizar as várias sub-rotinas e os
padrões de atividade contidos em ações instintivas tão complexas
como a de um pássaro construindo seu ninho. Mas é também um
instrumento indispensável para a nova escola de psicolingüística
iniciada por Chomsky. É igualmente indispensável para a
compreensão do processo pelo qual os caóticos estímulos que
bombardeiam nossos órgãos sensoriais são filtrados e classificados em
sua ascensão, pelo sistema nervoso, até a consciência. Finalmente, a
árvore ramificada ilustra a ordenação hierárquica do conhecimento no
índice de assuntos dos catálogos das bibliotecas — e os registros da
memória pessoal dentro de nossos crânios.
A universal aplicabilidade do modelo hierárquico pode levantar a
suspeita de que ele seja desprovido de lógica. Espero mostrar que não
é bem assim e que a procura de propriedades fundamentais ou leis,
que todas essas diferentes hierarquias têm em comum, resulta em mais
que um simples jogo de analogias superficiais — ou em mero
passatempo. Antes, merece ser chamado de exercício sobre a Teoria
Geral dos Sistemas — essa escola interdisciplinar relativamente
recente fundada por von Bertalanffy, cuja meta é construir modelos
teóricos e descobrir princípios gerais que sejam universalmente
aplicáveis a sistemas biológicos, sociais e simbólicos de qualquer
espécie. Em outras palavras, uma procura de denominadores comuns,
no fluxo dos fenômenos, e da unidade na diversidade.
Como escreveu Joseph Needham já no início de 1936:
A hierarquia de relações, a começar pela estrutura molecular
dos compostos de carbono até o equilíbrio das espécies e dos
todos ecológicos, será talvez a idéia dominante do futuro7.
Anteriormente, Lloyd Morgan, C. D. Broad e J. Woodger entre
outros já haviam destacado a importância de se reconhecer "níveis de
organização" hierarquicamente ordenados, bem como o aparecimento,
em cada nível mais elevado, de novas "relações organizacionais" entre
(sub)todos de maior complexidade, cujas propriedades não podem ser
reduzidas a um nível inferior, nem dele deduzidas. Citando novamente
Needham:
Se adotamos o quadro geral do Universo como uma série
de níveis de organização e complexidade, apresentando cada
nível propriedades específicas de estrutura e comportamento,
as quais, embora dependentes das propriedades dos
elementos constitutivos, só aparecem quando estes são
combinados num todo superior, vemos que existem leis
qualitativamente diferentes imperando em cada nível8.
Mas essa visão de muitos níveis contrariava o materialista
Zeitgeist, porque significava que as leis biológicas que governam a
vida são qualitativamente diferentes das leis da física que governam a
matéria inanimada e, em conseqüência, a vida não pode ser "reduzida"
a cega dança dos átomos. De modo semelhante, significava que a
mentalidade do homem é qualitativamente diferente das respostas
condicionadas dos cães de Pavlov ou dos ratos de Skinner, as quais a
escola dominante em psicologia considerava como os paradigmas do
comportamento humano. Por mais que a palavra "hierarquia" soasse
inofensiva, passou a ser considerada subversiva. E nem mesmo foi
incluída no índice de muitos manuais modernos de psicologia ou
biologia.
Apesar de tudo, sempre ressoaram vozes no deserto, insistindo em
que o conceito de organização hierárquica é uma indispensável
condição prévia — uma conditio sine qua non — para qualquer
tentativa metódica de conseguir unidade na diversidade das ciências,
podendo inclusive levar a uma coerente filosofia da Natureza que, no
momento, se destaca pela ausência.
A esse coro da minoria uniu-se também a fraca voz deste autor,
expressa em vários livros nos quais "a onipresente hierarquia"9
desempenha um papel importante e, muitas vezes, dominante. Postas
junto, as passagens mais expressivas formariam um manual bastante
completo sobre a ordem hierárquica (que algum dia talvez seja
publicado). Mas não é este o objetivo do presente livro. Como já foi
afirmado, o enfoque hierárquico é um instrumento conceitual — não
um fim em si mesmo, mas uma chave capaz de abrir algumas
fechaduras de segredo da Natureza que teimosamente resistem a
outros métodos*.
*Cf. também Jevons: "A hierarquia da organização, visto que realmente forma
uma ponte entre as partes e o todo, é um dos conceitos positivamente vitais e centrais
da biologia"¹¹.

No entanto, antes de tentar usar a chave, torna-se necessário ter


uma visão de como ela funciona. Este capítulo pretende apresentar
alguns dos princípios básicos do pensamento hierárquico, com o
intuito de fornecer uma plataforma ou uma pista para os próximos
vôos mais especulativos.

5
Quero tornar a dizer: se analisarmos qualquer forma de
organização social estável, a começar de uma família de insetos até o
Pentágono, descobriremos que ela é hierarquicamente estruturada. O
mesmo se aplica ao organismo individual e, com menor evidência, a
suas habilidades inatas e adquiridas. No entanto, para provar a
validade e o significado do modelo, deve-se demonstrar a existência
de princípios específicos e leis que se aplicam (a) a todos os níveis de
determinada hierarquia e (b) a hierarquias de campos diferentes — em
outras palavras, que definam o termo "ordem hierárquica". Alguns
desses princípios podem parecer muito evidentes, outros, porém,
abstratos; tomados juntos, formam os degraus para uma nova maneira
de abordar alguns velhos problemas.
Alguém afirmou que "uma boa terminologia é meio caminho
andado". Para se livrarem do tradicional uso incorreto das palavras
"todo" e "parte", muitos são impelidos a empregar termos desajeitados
como "subtodo", ou "parte-todo", "subestruturas", "subqualidades",
"subconjuntos" e assim por diante. Com o objetivo de evitar tais
expressões dissonantes, eu propus, há alguns anos10, um novo termo
para designar essas entidades com face de Jano existentes nos níveis
intermediários de qualquer hierarquia, que podem ser descritas ora
como todos e ora como partes, dependendo do modo como são vistas:
ou de "cima", ou "de baixo". O termo por mim proposto foi "hólon",
derivado do grego holos (todo), com o sufixo on que, como em próton
ou nêutron, sugere a idéia de partícula ou parte.
Parece que o hólon veio satisfazer uma verdadeira necessidade,
pois está gradualmente se firmando na terminologia de vários ramos
da ciência, desde a biologia até a teoria da comunicação. Foi para mim
uma grande satisfação descobrir que o termo também está se firmando
na língua francesa. No livro muito comentado do Prof. Raymond
Ruyer La Gnose de Princeton12, há um capítulo intitulado "Les
accolades domaniales et les holons" — com a seguinte nota de rodapé:
"Se não me engano, a palavra foi criada por Koestler". Palavras novas
são como os parvenus: a partir do momento em que suas origens são
esquecidas, alcançam êxito.
Infelizmente, o próprio termo "hierarquia" é muito pouco atrativo
e com freqüência provoca forte resistência emocional. Está carregado
de associações militares e eclesiásticas, ou evoca a "picante
hierarquia" do curral, causando assim a impressão de uma estrutura
rígida e autoritária, ao passo que, na presente teoria, uma hierarquia é
formada por hólons autônomos, com governo próprio, dotados com
variáveis graus de flexibilidade e liberdade. Encorajado pela amigável
aceitação do hólon, usarei ocasionalmente os termos "holárquico" e
"holarquia", mas tomando cuidado para não exagerar na insistência.
6

Vimos que os hólons biológicos, partindo dos organismos e


descendo até as organelas, são entidades auto-reguladoras que
manifestam tanto as independentes propriedades dos todos como as
dependentes propriedades das partes. Esta é a primeira das
características gerais de todos os tipos de holarquias a ser destacada.
Podemos chamá-la de princípio de Jano. Nas hierarquias sociais isso é
muito evidente: cada hólon social — indivíduo, família, clã, tribo,
nação etc. é um todo coerente em relação a suas partes constitutivas,
mas ao mesmo tempo é parte de uma entidade social mais ampla. Uma
sociedade sem estrutura holárquica seria tão caótica quanto os
fortuitos movimentos das moléculas de gás que colidem entre si e
ricocheteiam em todas as direções*.
*Entretanto, a situação fica um tanto conturbada pelo fato de sociedades complexas
serem estruturadas por várias hierarquias entrelaçadas. Ver adiante a seção 12.
A organização hierárquica de nossas atividades práticas não é tão
óbvia, à primeira vista. A habilidade de dirigir um carro não consiste
na ativação constante dos músculos individuais pelo cérebro do
motorista, mas no acionamento de sub-rotinas como acelerar, frear,
manobrar, mudar as marchas etc., cada uma representando um padrão
de atividades quase autônomo — um hólon comportamental que
chega a ser tão autoconfiante que, tendo alguém aprendido uma vez a
dirigir determinado carro, pode dirigir qualquer tipo de carro.
Ora, tomemos a habilidade de comunicar idéias por intermédio da
fala. A seqüência das operações começa no vértice da hierarquia com
a intenção de transmitir a idéia ou mensagem. Mas a idéia é
geralmente de natureza pré-verbal: pode ser uma imagem visual, um
sentimento, uma vaga impressão. É-nos muito familiar a frustrante
experiência de sabermos o que queremos dizer, mas não sabermos
como expressá-lo. E isso não se refere apenas à procura da palavra
certa, mas, antes disso, à estruturação da mensagem pretendida e sua
disposição numa ordem seqüencial, à composição da mensagem de
acordo com as regras sintáticas e gramaticais e, finalmente, à ativação
de padrões coordenados de contrações musculares da língua e das
cordas vocais. Portanto, falar envolve a gradativa concretização,
elaboração e articulação de conteúdos mentais originariamente
inarticulados. Embora essas operações se realizem uma após outra
com grande rapidez e, em grande parte, automaticamente, de tal
maneira que nem sempre temos delas consciência, elas não deixam de
exigir uma sucessão de diferentes atividades em diferentes níveis da
hierarquia mental. E cada um desses níveis possui suas próprias leis:
as leis da enunciação, as regras da gramática e da sintaxe, os cânones
da semântica etc.
Do ponto de vista do ouvinte, a seqüência das operações é inversa.
Começa no nível inferior — a habilidade perceptiva de reconhecer
fonemas (sons falados) nas vibrações do ar que atingem os tímpanos,
amalgamando-os em morfemas (sílabas, prefixos etc.) e assim por
diante, ao longo das palavras e sentenças, reconstituindo finalmente a
mensagem do interlocutor no ápice da hierarquia.
Notemos que em parte alguma, na caminhada para cima ou para
baixo através da holarquia lingüística, havemos de encontrar rígidos e
indivisíveis "átomos de linguagem". Cada uma das entidades nos
vários níveis — fonemas, morfemas, palavras, sentenças — é um todo
em relação a suas partes, e é também uma parte subordinada de uma
entidade mais complexa, no próximo nível superior. Por exemplo, um
morfema como/men/ é um hólon lingüístico que pode ter várias
aplicações — mental, menção, mentor, mensagem etc., e o significado
particular que ele há de assumir depende do contexto do nível
superior.
Os psicolingüistas utilizam a árvore ramificada como um modelo
adequado para esse gradativo processo de manifestar em termos
explícitos um pensamento implícito, de transformar as potencialidades
de uma idéia amorfa em efetivos padrões motores das cordas vocais.
Esse admirável processo tem sido comparado à ontogênese — o
desenvolvimento do embrião: primeiro, temos o ovo fertilizado que
contém todas as potencialidades que definem o produto final, a
"idéia", por assim dizer, do futuro indivíduo. A seguir, esses
potenciais se "concretizam" em sucessivos estágios de diferenciação.
Pode-se também compará-lo ao processo pelo qual é executada uma
ação militar: A ordem "O Oitavo Exército avançará em direção a
Tobruk", emitida do vértice da hierarquia pelo general comandante, é
concretizada, articulada e explicitada mais detalhadamente em cada
um dos sucessivos escalões inferiores.
De modo geral, a execução de qualquer ação intencional, seja
instintiva, como a construção de ninhos dos pássaros, seja adquirida,
como a maioria das habilidades humanas, segue o mesmo padrão de
externar uma intenção geral pela gradual ativação ou
desencadeamento de hólons funcionais— sub-rotinas — em níveis
sucessivamente inferiores da hierarquia. Essa regra se aplica
universalmente a todos os tipos de "hierarquias de saída", não
importando se o "produto" é um ser humano, uma sentença falada em
inglês, a execução de uma sonata ao piano ou o ato de amarrar os
cadarços dos sapatos. (Veremos mais tarde que, em relação às
"hierarquias de entrada", ocorre a seqüência inversa.)
7
O próximo ponto a merecer destaque é o fato de cada nível de
qualquer tipo de hierarquia ser governado por um conjunto de regras
invariáveis, fixas, que garantem a coerência, a estabilidade, bem como
a estrutura e o funcionamento específicos de seus hólons constitutivos.
Assim, na hierarquia da linguagem, encontramos em níveis sucessivos
as regras que governam as atividades das cordas vocais, as leis
gramaticais e, acima delas, toda uma hierarquia semântica relacionada
ao significado. Os códigos que governam o comportamento de hólons
sociais, garantindo-lhes coerência, são leis escritas e não escritas,
tradições, conjuntos de crenças, costumes. O desenvolvimento do
embrião é governado pelo "código genético". Se considerarmos as
atividades instintivas, a teia tecida pela aranha, o ninho construído
pelo minúsculo chapim, a cerimônia que precede o acasalamento dos
grous, todas essas atividades seguem padrões fixos, peculiares a cada
espécie, produzidos de acordo com certas "regras do jogo". Nas
operações simbólicas, os hólons são conjuntos cognitivos governados
por determinadas leis, e recebem os mais variados nomes, como
"quadros de referência", "contextos associativos", "universos do
discurso", "algoritmos" etc., possuindo cada qual sua "gramática"
específica ou cânone. Chegamos, assim, a uma definição
experimental: o termo "hólon" pode ser aplicado a qualquer
subsistema estrutural ou funcional de uma hierarquia biológica, social
ou cognitiva, que manifesta comportamento governado por leis e/ ou
constância estrutural de Gestalt*. Por conseguinte, as organelas e
órgãos semelhantes são hólons evolutivos; os "padrões fixos de ação"
e as sub-rotinas das habilidades adquiridas são hólons
comportamentais; fonemas, morfemas, palavras, frases são hólons
lingüísticos; indivíduos, famílias, tribos, nações são hólons sociais**.
*O "ou" é necessário, para incluir configurações em hierarquias simbólicas, que
não manifestam "comportamento" no sentido comum.
**Vários autores apontaram certas afinidades entre o conceito de hólon e o de
"org", criado por Ralph Gerard. Por exemplo, D. Wilson, em Hierarchical Structures:
"Koestler (1967), para designar essas entidades "com face de Jano", cria o termo
hólon... Notamos que Gerard usa o termo org para expressar o mesmo conceito
(Gerard, 1957)." Isso, naturalmente, encerra uma velada acusação de plágio. As duas
seguintes citações extraídas de Gerard indicam as semelhanças e diferenças entre seu
termo org e o hólon (os grifos são meus): "Aqueles sistemas ou entidades materiais
que são indivíduos em determinado nível, mas compostos por unidades subordinadas,
orgs de nível inferior...13" A limitação a "sistemas materiais" torna-se mais explícita
na segunda citação, onde ele define o org como "aquela subclasse de sistemas
composta por sistemas materiais, na qual a matéria faz parte do quadro; isso exclui,
por exemplo, os sistemas formais"14. Portanto, o termo org não pode ser aplicado a
hierarquias comportamentais, ou lingüísticas, ou cognitivas, onde o conceito hólon já
demonstrou ser de extrema utilidade. Orgs, segundo a definição de Gerard,
representam uma subcategoria de hólons, limitados aos sistemas materiais.

Chamaremos de código ou cânon ao conjunto de regras fixas que


governam a estrutura ou a função de um hólon. No entanto, devemos
realçar de imediato que esse cânon, embora imponha restrições*** e
controles às atividades do hólon, não elimina por completo sua
liberdade, deixando espaço para estratégias mais ou menos flexíveis,
guiadas pelas contingências do ambiente. De início, tal distinção entre
códigos fixos (invariáveis) e estratégias flexíveis (variáveis) pode
parecer um tanto abstrata, mas é fundamental para todo o
comportamento intencional. Alguns exemplos ilustrarão melhor o que
pretendo afirmar.
***"Restrição" é um termo científico bastante infeliz (reminiscência da camisa
de força), relativo às regras"que governam a atividade organizada.

As atividades executadas por uma aranha comum na construção da


teia, são controladas por um cânon fixo hereditário (o qual prescreve
que os fios radiais devem sempre secionar os laterais em ângulos
iguais, formando assim um polígono regular). Mas a aranha tem
liberdade para fixar sua teia em três, quatro ou mais pontos de apoio
— para escolher sua estratégia de acordo com a situação do terreno.
Outras atividades instintivas — os pássaros construindo seus ninhos,
as abelhas fabricando suas colméias, os bichos-da-seda tecendo seus
casulos — todas apresentam essa dupla característica de seguir um
código invariável ou um livro de regras que contém o protótipo do
produto acabado, mas usando, ao mesmo tempo, surpreendente
quantidade de estratégias variadas para alcançar seu objetivo.
Passando das atividades instintivas da humilde aranha para as
sofisticadas habilidades humanas, como o jogo de xadrez, aí também
deparamos com um código de regras fixas que definem os
movimentos permitidos, embora a escolha do movimento real seja
deixada ao enxadrista, cuja estratégia se orienta pelas circunstâncias
— a distribuição das peças no tabuleiro. A linguagem, como já vimos,
é governada por vários cânones em diferentes níveis, a começar pela
semântica, passando pela gramática, até chegar à fonologia, mas em
cada um desses níveis o locutor dispõe de grande variedade de
escolhas estratégicas: desde a escolha e a disposição do material a ser
transmitido, passando pela formulação de tópicos e sentenças, pela
escolha de metáforas e adjetivos, até chegar à enunciação dando-se
ênfase à escolha particular das vogais. Tais considerações também se
aplicam ao pianista que improvisa variações sobre um tema. Nesse
caso, a "regra do jogo" fixa é o padrão melódico proposto, mas o
artista conta com um campo quase infinito para fazer suas escolhas
estratégicas sobre o fraseado musical, o ritmo, o tempo ou a
transposição para uma escala diferente*. As atividades de um
advogado são muito diferentes das de um pianista, mas o advogado
também opera dentro de regras fixas, determinadas por estatutos e
precedentes, embora disponha de uma grande variedade de estratégias
para interpretar e aplicar a lei.
*Incidentalmente, a transposição de um tema musical para uma escala diferente
do piano, onde a seqüência dos movimentos dos dedos é totalmente diversa, resulta
numa categórica refutação da teoria behaviorista da resposta-em-cadeia.

9
Em ontogênese — desenvolvimento do embrião — a distinção
entre "regras" e "estratégias" é menos clara à primeira vista e exige
uma explicação mais detalhada.
Nesse caso, o ápice da hierarquia é o ovo fertilizado; o eixo da
árvore invertida representa o tempo, e os hólons dos sucessivos níveis
inferiores representam os sucessivos estágios na diferenciação dos
tecidos em órgãos. O crescimento do embrião, de uma disforme bolha
para uma forma "esboçada" e daí por vários estágios de crescente
articulação, tem sido comparado ao modo pelo qual um escultor
entalha uma imagem num bloco de madeira — ou, como já menciona-
mos, ao modo de "expressar" uma idéia amorfa por meio de fonemas.
A "idéia" que deve ser expressa em ontogenia está contida no
código genético, mantido na dupla hélice do ácido nucléico, nos
cromossomos. São necessárias 56 gerações de células para produzir
um ser humano de uma única célula de um ovo fertilizado. As células
do embrião em desenvolvimento possuem todas a mesma origem e
apresentam o mesmo conjunto de cromossomos, isto é, as mesmas
tendências hereditárias. Apesar disso, evoluem para produtos tão
diversos como células musculares, células renais, células cerebrais,
unhas dos dedos. Como pode ocorrer tal diversificação, se todas as
células são governadas pelo mesmo conjunto de leis, pelo mesmo
cânon hereditário?
Essa é uma pergunta a que, segundo afirmação recente de W. H.
Thorpe, "estamos ainda muito longe de poder responder"15. Mas
podemos ao menos tentar analisá-la por uma tosca analogia.
Imaginemos os cromossomos representados pelo teclado de um
enorme piano — um piano verdadeiramente gigantesco, com alguns
bilhões de teclas. Então, cada tecla representará um gene ou disposi-
ção hereditária. Cada uma das células do corpo contém em seu núcleo
um teclado completo. Mas cada célula especializada recebe permissão
para tocar só uma corda ou emitir só um tom, de acordo com sua
especialidade — e o resto do teclado é definitivamente lacrado*.
*Esse processo de lacração também se realiza gradativamente, à medida que a
árvore hierárquica se ramifica em tecidos mais e mais especializados. Ver The Ghost
in lhe Machine, Cap. IX e, adiante, a Parte III.
Entretanto, essa analogia apresenta, de imediato, um novo
problema: quis custodiei ipsos custodes — quem ou que entidade
decide qual tecla a célula deve acionar em certo estágio, e quais teclas
devem ser lacradas? Exatamente nesse ponto, entra novamente em
cena a distinção básica entre códigos fixos e estratégias adaptáveis.
O código genético, que estabelece as "regras do jogo" da
ontogenia, localiza-se no núcleo de cada célula. O núcleo é envolvido
por uma membrana permeável, que o separa do circundante corpo da
célula, constituído por um fluido viscoso - o citoplasma - e por varia-
das tribos de organelas. O corpo da célula, por sua vez, permanece
envolto por outra membrana permeável, cercada por substâncias
fluidas e outras células, formando um tecido. Este, por seu turno, está
em contato com outros tecidos. Em outras palavras, o código genético
existente no núcleo celular age segundo uma hierarquia de ambientes,
semelhante a um jogo de caixas chinesas embutidas uma na outra.
Tipos distintos de células (células cerebrais, células renais etc.)
diferem um do outro pela estrutura e química de seus corpos celulares.
Essas diferenças derivam das complexas interações que ocorrem entre
o teclado genético dos cromossomos, o próprio corpo da célula e seu
ambiente externo. Este último contém fatores físico-químicos de tão
grande complexidade que Waddington criou para ele a expressão
"epigenetic landscape" (paisagem epigenética). Nessa paisagem, a
célula em evolução se movimenta como um explorador em território
desconhecido. Segundo outro geneticista, James Bonner, cada célula
embrionária deve ser capaz de "testar" as células vizinhas "para
descobrir diferença ou semelhança, e de muitos outros modos"16. A
informação obtida é então transmitida — realimentada — por meio do
corpo da célula, para os cromossomos, e determina que cordas do
teclado devem ser tocadas e quais devem ser lacradas temporária ou
definitivamente; ou, para expressar-me de outra maneira, que regras
do jogo devem ser aplicadas para obter os melhores resultados. Vem
daí o significativo título do importante livro de Waddington sobre
biologia teórica: The Strategy of the Genes17.
Assim, o futuro da célula depende, em última análise, de sua
posição no embrião em desenvolvimento, fato que determina a
estratégia dos genes da célula. Isso tem sido confirmado cabalmente
pela embriologia experimental: a adulteração da estrutura espacial do
embrião em suas primeiras fases de desenvolvimento provoca
mudanças no destino de todo o conjunto de células. Se, nessa fase
inicial, a futura cauda do embrião de uma salamandra for
transplantada para o local onde deveria haver uma perna, ela se
desenvolverá não como cauda, mas como perna — certamente um
exemplo drástico de estratégia flexível dentro das regras ditadas pelo
código genético. Num estágio mais avançado de diferenciação, os
tecidos que formam os rudimentos de futuros órgãos adultos — os
"germes de órgãos" ou "campos morfogenéticos" — comportam-se
como hólons autônomos que se auto-regulam por conta própria. Se,
nesse estágio, for retirada a metade do tecido do campo, a parte
remanescente formará não meio órgão, mas um órgão completo. Se o
globo ocular em fase de desenvolvimento for dividido em várias
partes, cada fragmento formará um olho menor, mas perfeitamente
normal.
Existe uma significativa analogia entre o comportamento dos
embriões nesse estágio avançado e o manifestado na primeira fase, a
blastular, quando se assemelham a uma minúscula bola de células.
Quando é retirada a metade da blástula de uma rã, a outra metade se
desenvolve numa rã normal, de tamanho menor, e não em meia rã; e
se uma blástula humana for dividida por acidente, o resultado será o
desenvolvimento de gêmeos ou até de quadrigêmeos. Dessa forma, os
hólons que, naquele estágio anterior, se comportam como partes do
organismo potencialmente completo manifestam as mesmas
características auto-reguladoras dos hólons que, em nível inferior (e
posterior) da hierarquia do desenvolvimento, são partes de um órgão
potencial. Em ambos os casos (e no decorrer das fases intermediárias),
os hólons obedecem a regras estabelecidas em seu código genético,
mas conservam liberdade suficiente para seguir um ou outro rumo de
desenvolvimento, guiados pelas contingências de seu ambiente.
Essas propriedades auto-reguladoras dos hólons existentes no
embrião em desenvolvimento garantem que o produto final sairá de
acordo com as normas, sejam quais forem os perigos ocasionais
surgidos durante o crescimento. Considerando os milhões e milhões
de células que se dividem, se diferenciam e se movem, devemos
concluir que não há dois embriões, nem mesmo gêmeos autênticos,
que se formem de maneira exatamente igual. Os mecanismos auto-
reguladores que corrigem afastamentos das normas e garantem, por
assim dizer, o resultado final têm sido comparados aos sistemas de
regeneração homeostática existentes no organismo adulto — e por
isso os biólogos falam de "homeostase do desenvolvimento". O futuro
indivíduo está potencialmente predeterminado nos cromossomos do
ovo fertilizado. Mas, para transformar esse protótipo no produto
acabado, é necessário que trilhões de células especiais sejam
produzidas e moldadas numa estrutura integrada. Seria absurdo
admitir que os genes de um único ovo fertilizado pudessem conter
dentro de si soluções para todas as contingências particulares que cada
uma de suas 56 gerações de células irmãs pode enfrentar no decorrer
do processo. Contudo, o problema se torna um pouco menos confuso
se substituímos o conceito de "protótipo genético", que implica um
plano a ser rigorosamente copiado, pelo conceito de um cânon de
regras genéticas que, embora fixas, deixam espaço para escolhas
alternativas, isto é, estratégias adaptáveis, orientadas por informações
e indicadores do ambiente.
Certa vez, Needham escreveu uma frase a respeito do "esforço da
blástula para crescer e se tornar uma galinha". Podemos chamar as
estratégias que levam a obter esse êxito de "habilidades pré-natais" do
organismo. Afinal, o desenvolvimento do embrião e a posterior
maturação do recém-nascido até se tornar adulto são processos
contínuos; e devemos supor que as habilidades pré-natais e pós-natais
tenham em comum certos princípios básicos, não só entre si mas
também com outros tipos de processos hierárquicos.
A presente seção não pretende descrever o desenvolvimento
embrionário, mas apenas um aspecto dele, a combinação de regras
fixas e estratégias variáveis, que encontramos também nas habilidades
instintivas (como a construção do ninho etc.) e no comportamento
adquirido (como a linguagem etc.). Parece que a vida, em todas as
suas manifestações, desde a morfogênese até o pensamento simbólico,
é governada por regras do jogo que lhe garantem ordem e
estabilidade, mas ao mesmo tempo lhe permitem flexibilidade. E essas
regras, inatas ou adquiridas, são apresentadas em forma de código
para os vários níveis da hierarquia, a começar pelo código genético
até chegar às estruturas do sistema nervoso associado ao pensamento
simbólico.
10

Ontogenia e filogenia, o desenvolvimento do indivíduo e a


evolução da espécie, são as duas principais hierarquias do vir-a-ser. A
filogenia será debatida na Parte III, mas torna-se necessário antecipar
algumas considerações no presente contexto de "regras e estratégias".
Os fabricantes de automóveis sabem que seria um contra-senso
criar um novo modelo partindo de zero. Aproveitam subconjuntos já
existentes — motores, baterias, sistemas de direção etc. — cada um
dos quais tendo sido desenvolvido por longa experiência anterior, e só
introduzem pequenas modificações em alguns desses itens. A
evolução segue uma estratégia semelhante. Comparemos as rodas
dianteiras do último modelo com as de um carro bem antigo ou as de
uma carroça — baseiam-se nos mesmos princípios. Comparemos a
anatomia dos membros anteriores dos répteis, pássaros, baleias e do
homem — mostram o mesmo desenho estrutural de ossos, músculos,
nervos e vasos sangüíneos e, conseqüentemente, são chamados órgãos
"homólogos".
As funções das pernas, asas, nadadeiras e dos braços são tão
diferentes que se poderia supor que tivessem desenhos bem distintos.
No entanto, são apenas modificações, adaptações estratégicas de uma
estrutura já existente — o membro anterior do comum ancestral réptil.
A Natureza, depois de registrar a patente de um componente ou
processo vital, agarra-se a ele com surpreendente tenacidade: o órgão
ou aparelho tornou-se um estável hólon evolutivo. É como se a
Natureza se sentisse compelida a proporcionar unidade na variedade.
Geoffroy de St. Hilaire, um dos pioneiros da moderna biologia,
escreveu em 1818: "Os vertebrados são construídos segundo um plano
uniforme — por exemplo, os membros anteriores podem ser
modificados para correr, subir, nadar ou voar, conquanto a disposição
dos ossos continue a mesma"18. A disposição básica faz parte do
invariável cânon evolutivo. Sua utilização para nadar ou para voar
depende da estratégia evolutiva.
Esse princípio vale ao longo de toda a linha, em todos os níveis da
hierarquia evolutiva, chegando até o das organelas dentro da célula e o
das cadeias de ADN* nos cromossomos. Os mesmos modelos
padronizados de organelas funcionam nas células de ratos e de
homens; o mesmo mecanismo de catraca que utiliza uma proteína
contrátil opera o movimento da ameba e o dos dedos do pianista; as
mesmas quatro moléculas químicas constituem o alfabeto básico em
que se codifica toda a hereditariedade dos reinos animal e vegetal —
apenas as palavras e frases por elas formadas são diferentes para cada
criatura.
*Sigla do ácido desoxirribonucléico. Em inglês se escreve DNA. (N. dos T.)
Se a evolução, para criar novidades, devesse a cada momento
recomeçar tudo da "lama primitiva", os quatro bilhões de anos da
história da Terra não teriam sido suficientes para produzir nem mesmo
uma ameba. Num escrito muito conhecido sobre estruturas
hierárquicas, H. G. Simon chegou à seguinte conclusão: "Sistemas
complexos hão de evoluir de sistemas simples com muito maior
rapidez se houver formas intermediárias estáveis do que se as não
houver. No primeiro caso, as formas complexas resultantes serão
hierárquicas. Basta inverter o argumento para obtermos a explicação
da visível predominância de hierarquias entre os complexos sistemas
que a Natureza nos apresenta. Entre as possíveis formas complexas, as
hierarquias são as únicas a dispor de tempo para evoluir"19.
Não sabemos que formas de vida existem em outros planetas, mas
podemos presumir com toda a segurança que a vida, onde quer que
exista, está organizada hierarquicamente.

11

Menosprezo pelo conceito hierárquico e fracasso em estabelecer


uma distinção categórica entre regras e estratégias de comportamento
causaram muita confusão na psicologia teórica*. Visto que sua
principal preocupação, durante os últimos 50 anos, tem sido o estudo
de ratos em espaços fechados ("caixas de Skinner"), esse fracasso não
surpreende, em absoluto. No entanto, qualquer espectador de um jogo
de futebol ou de xadrez percebe de imediato que cada jogador obedece
a regras que determinam o que ele pode fazer, e utiliza suas
habilidades estratégicas para decidir o que há de fazer. Em outras
palavras, o código define as regras do jogo, a estratégia decide o
curso do jogo. Os exemplos citados na seção anterior demonstram que
essa distinção categórica entre regras e estratégias é universalmente
aplicável a habilidades inatas e adquiridas, às hierarquias que
constituem a coerência social, bem como às hierarquias do vir-a-ser.
*É interessante frisar a forte relutância dos psicólogos teóricos — mesmo
daqueles que superaram as mais rudes formas da teoria behaviorista E- R [Estímulo-
Resposta] — em enfrentar a realidade. Por isso, o Prof. G. Miller escreve num artigo
sobre a psicolingüística: "Porque os psicólogos aprenderam a apreciar as
complexidades da linguagem, torna-se cada vez mais remota a perspectiva de reduzi-
la às leis do comportamento estudadas com tanto afinco nos animais inferiores [ele se
refere aos ratos de Skinner]. Temos sido forçados com grande insistência a aceitar
uma posição que os não psicólogos provavelmente adotam como certa, a saber, que a
linguagem é um comportamento governado por regras e caracterizado por enorme
flexibilidade e liberdade de escolha. Por mais óbvia que possa parecer essa conclusão,
traz consigo importantes implicações para qualquer teoria científica da linguagem. Se
as regras contêm os conceitos de certo e errado, elas introduzem um aspecto
normativo que sempre foi evitado nas ciências naturais... Admitir que a linguagem
segue regras parece significar sua exclusão do rol dos fenômenos acessíveis à
investigação científica"20. Que estranha noção dos objetivos e métodos da
"investigação científica"!
Obviamente, a natureza do código que regula o comportamento
varia de acordo com a natureza e o nível da respectiva hierarquia.
Alguns códigos são inatos — como o código genético, ou os códigos
que governam as atividades instintivas dos animais; outros são
adquiridos por aprendizagem — como o código cinético atuante no
circuito de meu sistema nervoso, que me capacita a andar de bicicleta
sem cair, ou o código cognitivo que define as regras do jogo de
xadrez.
Desviemos agora nossa atenção dos códigos para as estratégias.
Repetindo mais uma vez: o código define os movimentos permitidos,
a estratégia decide sobre a escolha do movimento real. A próxima
pergunta é: como são feitas essas escolhas? Podemos afirmar que a
escolha do enxadrista é "livre" — no sentido de não ser determinada
pelo livro de regras. De fato, é astronômico o número de escolhas com
que se defronta um jogador no curso de uma partida de 40
movimentos (calculando-se as possíveis variações que cada
movimento pode provocar dois lances à frente). Mas, apesar de ser
"livre" a sua escolha, no sentido dado acima de não ser determinada
pelas regras, ela certamente não é fortuita. O enxadrista procura optar
por um "bom" movimento que o levará mais próximo à vitória, e
evitar um movimento errado. Mas o livro de regras nada conhece a
respeito de "bons" e "maus" movimentos. Ele é, por assim dizer,
eticamente neutro. O que orienta o enxadrista na escolha de um
esperado "bom" lance são os preceitos estratégicos de uma
complexidade muito maior — situados num nível muito mais elevado
da hierarquia cognitiva — do que as simples regras do jogo. As regras,
uma criança pode aprendê-las em meia hora, enquanto a estratégia é
destilada da experiência anterior, do estudo de partidas magistrais, da
leitura de livros especializados sobre teoria enxadrista. De modo geral,
encontramos, nos níveis sucessivamente mais elevados da hierarquia
que aumenta de complexidade, padrões mais flexíveis e menos
previsíveis de atividade com maiores graus de liberdade (maior
variedade de escolhas estratégicas). E, vice-versa, cada atividade
complexa, como a de escrever uma carta, subdivide-se em
subabilidades que, nos níveis sucessivamente inferiores da hierarquia,
se tornam cada vez mais mecânicas, estereotipadas e previsíveis*. É
ampla a escolha inicial dos assuntos a serem tratados na carta; o
próximo passo, a construção das frases, ainda oferece um grande
número de alternativas estratégicas, embora seja bastante cerceado
pelas regras de gramática; as regras de ortografia são fixas, sem
deixarem espaço para estratégias flexíveis; e as contrações musculares
que comprimem as teclas da máquina de escrever são completamente
automatizadas.
*Cf. os "padrões fixos de ação" dos etólogos.

Se descermos ainda mais, até a base da hierarquia, chegaremos aos


processos viscerais que são auto-regulados, controlados por
dispositivos homeostáticos de realimentação. Naturalmente, esses
deixam pouco espaço para escolhas estratégicas. No entanto, meu eu
consciente pode influenciar até certo ponto o funcionamento
automático, normalmente inconsciente, de meu sistema respiratório,
seja retendo a respiração, seja aplicando alguma técnica iogue.
Portanto, a distinção entre regras e estratégias continua válida, em
princípio, mesmo nesse nível fisiológico básico. Mas a importância
dessa distinção tornar-se-á plenamente evidente só em capítulos
posteriores, quando a aplicarmos em problemas tão fundamentais
como a teoria da evolução, livre arbítrio versus determinismo, e a
patologia e criatividade da mente humana.
12

Como já mencionei, o objetivo deste capítulo não é o de


apresentar um manual de hierarquias, mas o de apresentar algumas
idéias sobre o arcabouço conceitual em que se baseia essa pesquisa e
transmitir ao leitor a "sensação" do pensamento hierárquico, em
oposição às dominantes correntes reducionista e mecanicista. Para
concluir esta visão panorâmica, devo mencionar, embora brevemente,
mais alguns princípios que todos os sistemas hierárquicos possuem em
comum.
Acima de qualquer discussão está a idéia de que as hierarquias não
operam num vácuo, mas interagem umas com as outras. Esse fato
elementar deu origem a muita confusão. Se observarmos uma cerca
viva bem viçosa ao redor de um jardim, a rica folhagem dos ramos
entrelaçados poderá fazer-nos esquecer de que os galhos nascem de
arbustos diferentes. Os arbustos são estruturas verticais, arborizantes.
Os ramos entrelaçados formam redes horizontais, em numerosos
níveis. Sem as plantas individuais, não existiria entrelaçamento, nem
rede. Sem a rede, cada planta permaneceria isolada, e não existiria
cerca viva, nem integração de funções. "Arborização" e "reticulação"
(formação de rede) são princípios complementares na arquitetura de
organismos e sociedades. O sistema circulatório controlado pelo
coração e o sistema respiratório controlado pelos pulmões funcionam
como hierarquias semi-autônomas, auto-reguladoras, mas interagem
em vários níveis. Nos índices de assuntos, em nossas bibliotecas, os
ramos são entrelaçados por referências cruzadas. Nas hierarquias
cognitivas — universos de discurso — a arborização se reflete na
denotação "vertical" (classificação) de conceitos e a reticulação, em
suas conotações "horizontais", em redes associativas.
A complementaridade de arborização e reticulação fornece
importantes subsídios ao complexo problema referente à maneira
como funciona a memória*.
*A seção seguinte apresenta um sumário de The Act of Creation, livro II, cap. X,
do O Fantasma da Máquina, caps. V e VI, e do trabalho apresentado no Harvard
Medical School Symposium, sobre "A Patologia da Memória"21.
13
Em Kidnapped (Raptado), célebre romance de Stevenson, o
personagem Alan Breck observa casualmente: "Eu possuo uma grande
memória para esquecer, David". Ele fala por todos nós e não apenas
pelos afetados por afasia ou senilidade. Por mais doloroso que seja,
devemos admitir que uma grande parte de nossas memórias se
assemelha à borra depositada no fundo de um copo de vinho, aos
desidratados sedimentos de experiências cujo aroma se evolou — ou,
para mudar de metáfora, ela se parece a resumos poeirentos de fatos
passados, guardados nas estantes de um arquivo fracamente
iluminado. Felizmente, isto se aplica apenas a um tipo ou categoria de
lembranças, que chamarei de memória abstrativa. Mas existe outra
categoria, resultante de nossa capacidade de recordar episódios
passados, ou cenas, ou detalhes de cenas, com uma vividez quase
alucinatória. A essa chamarei de tipo luminoso de memória, e
pretendo argumentar que a "memória abstrativa" e a "memória
luminosa" formam diferentes classes de fenômenos, baseadas em
diferentes mecanismos neurais.
Em primeiro lugar, tomemos a memória abstrativa. O volume do
que podemos relembrar da história de nossa vida, bem como do
conhecimento acumulado nesse percurso, pertence ao tipo abstrativo.
No linguajar comum, a palavra "abstrato" apresenta duas
conotações principais: primeiro, "abstrato" é o oposto de "concreto",
no sentido de se referir a um conceito geral e não a um caso particular.
Em segundo lugar, um abstract é a condensação da essência de um
documento mais extenso. A memória é abstrativa em ambos os
sentidos. Eu vejo um programa de televisão. As palavras exatas de
cada ator são esquecidas dentro de alguns segundos. Retenho apenas
seu significado abstrato. Na manhã seguinte, consigo lembrar somente
a seqüência das cenas que formavam o enredo. Um mês depois, tudo o
que eu posso recordar é que se tratava da fuga de um gângster. Algo
muito semelhante ocorre com os resíduos mnêmicos de livros lidos e
de capítulos inteiros da história da própria vida. A experiência original
foi despida de detalhes, esqueletizada, reduzida a um resumo incolor,
antes de ser confinada no arquivo da memória. A natureza desse
arquivo ainda continua um completo mistério na pesquisa sobre o
cérebro, mas é óbvio que, se o conhecimento e a experiência
arquivados podem ser recuperados, devem estar ordenados de acordo
com o princípio hierárquico — à semelhança de uma enciclopédia ou
um índice de assuntos de uma biblioteca, com títulos e subtítulos e
também com abundância de referências cruzadas, para facilitar o
processo de recuperação (onde os títulos representam a arborização e
os subtítulos, a reticulação da estrutura hierárquica). Se insistirmos
demais em aprofundar a metáfora de uma biblioteca representando os
arquivos de nossa memória, chegaremos a conclusões bastante
deprimentes. Afora os incontáveis volumes que são condenados à
destruição ou a completo esquecimento, existe uma hierarquia de
bibliotecários em ação, que incansavelmente condensam longos textos
em breves resumos e, em seguida, fazem resumos dos resumos.
Esse processo de peneirar e resumir começa, na verdade, muito
antes de uma experiência vivida ser colocada no arquivo da memória.
Em cada estação repetidora existente na hierarquia da percepção, por
onde deve necessariamente passar antes de ser admitida na
consciência, a mensagem sensorial é analisada, classificada e despida
dos detalhes irrelevantes*.
*O psicólogo distingue, nos níveis inferiores da hierarquia, resistência lateral,
habituação e controle eferente dos receptores; nos níveis superiores, os mecanismos
responsáveis pelos fenômenos da constância visual e auditiva, bem como os
dispositivos de análise e filtragem que produzem os padrões de conhecimento e nos
capacitam a abstrair os universais.
Isso nos capacita a reconhecer a letra R num rabisco quase ilegível
como sendo "a mesma coisa" que um enorme R impresso numa
manchete de jornal. Tal fato decorre de um sofisticado processo de
análise que despreza todos os detalhes e abstrai apenas o desenho
geométrico básico — a "erridade" do R — como algo digno de ser
transmitido aos escalões superiores. O sinal pode agora ser transmitido
num simples código, como uma mensagem em alfabeto Morse, que
contém toda a informação essencial — "é um R" — de forma
condensada, esqueletizada. Mas a riqueza do detalhe caligráfico está,
portanto, irrecuperavelmente perdida, assim como as inflexões da voz
humana se perdem na mensagem em Morse. A triste observação
"minha memória é igual a uma peneira" deve originar-se de uma visão
intuitiva desses dispositivos de filtragem que operam ao longo dos
canais de alimentação e dos canais de armazenamento do sistema
nervoso.
Entretanto, como já temos visto, até os poucos escolhidos dentre a
multidão de estímulos potenciais que incessantemente bombardeia
nossos órgãos receptores, os poucos que conseguiram passar por todos
esses filtros seletivos e atingiram o status de eventos conscientemente
percebidos devem submeter-se a subseqüentes processos rigorosos de
desnudamento antes de serem admitidos ao arquivo permanente da
memória. E, com o passar do tempo, hão de sofrer ulteriores
deteriorações. A memória é um exemplo típico da lei do decréscimo
dos retornos.
É inevitável esse empobrecimento regressivo da experiência
vivida. A memória "abstrativa" implica o sacrifício das
particularidades. Se, ao invés de abstrair conceitos gerais, como "R"
ou "árvore" ou "cachorro", nossas memórias consistissem numa
coleção de todas as nossas experiências particulares de RR e árvores e
cachorros acumuladas no passado — um depósito de diapositivos e
fitas magnéticas —, elas não passariam de uma confusão caótica,
inteiramente inúteis para a orientação mental, pois jamais seríamos
capazes de identificar um R ou entender uma sentença falada. Sem
ordem e classificação hierárquicas, a memória seria um caos (ou o
papaguear de seqüências aprendidas por rotina e reforçadas por
condicionamento, que é o modelo behaviorista — ou a caricatura —
da recordação).
Torno a repetir: a perda de particularidades na memória abstrativa
é inevitável. Felizmente, este não é o quadro completo, pois existem
vários fatores de compensação que, ao menos em parte,
contrabalançam a perda.
Em primeiro lugar, o processo abstrativo mediante a aprendizagem
pela experiência, pode adquirir um nível mais elevado de sofisticação.
Para o leigo, qualquer vinho tinto apresenta o mesmo sabor e todos os
japoneses têm feições idênticas. Mas ele pode aprender a sobrepor
filtros perceptivos mais delicados aos mais rudes, assim como
Constable* treinou muito até conseguir distinguir os diversos tipos de
nuvens e classificá-las em subcategorias. Desse modo nós aprendemos
a abstrair nuanças cada vez mais diminutas, a fazer com que as árvores
das hierarquias de percepção, por assim dizer, lancem novos rebentos.
*Pintor inglês (1776 - 1837), considerado um dos precursores do paisagismo
moderno. (N. dos T.)
Além disso, é importante frisar que a memória abstrativa não se
baseia apenas numa única hierarquia, mas em muitas hierarquias
entrelaçadas, relativas a diferentes campos sensitivos, tais como a
visão, a audição, o olfato. Menos óbvio é o fato de poderem existir
várias hierarquias distintas, com diferentes critérios de relevância,
operando na mesma modalidade sensorial. Consigo reconhecer uma
melodia, seja qual for o instrumento que a produz; mas também
consigo reconhecer o som de um instrumento, a despeito da melodia
nele executada. Portanto, devemos presumir que o tema melódico e o
som do instrumento (o timbre) são abstraídos e arquivados
independentemente por hierarquias filtrantes distintas, existentes na
mesma modalidade sensorial, mas possuidoras de diferentes critérios
de relevância. Uma abstrai a melodia e despreza o timbre, a outra
abstrai o timbre de um instrumento e despreza a melodia como sendo
irrelevante. Assim, nem todo detalhe descartado como irrelevante por
um sistema de filtragem está irremediavelmente perdido porque pode
ter sido retido e arquivado por outra hierarquia filtrante com diferentes
critérios de relevância.
Portanto, a recordação de uma experiência se tornaria possível
pela cooperação de várias hierarquias entrelaçadas, que podem
significar diferentes modalidades sensoriais como, por exemplo, visão
e audição ou olfato, ou diferentes ramificações dentro da mesma
modalidade. Pode-se relembrar as palavras da ária "Your Tiny Hand is
Frozen", mesmo havendo esquecido a melodia. Ou pode-se reter na
memória a melodia após haver esquecido as palavras. Além disso,
pode-se reconhecer o timbre característico da voz de Caruso gravada
num disco, a despeito das palavras e da música que ele está cantando.
Mas, se dois desses aspectos, ou mesmo os três, foram abstraídos e
arquivados, a recordação da experiência original apresentará maiores
dimensões e será mais completa.
Em alguns aspectos, o processo poderia ser comparado à
impressão em policromia, feita pela superposição de vários clichês de
cores diferentes. A pintura a ser reproduzida — a experiência original
— é fotografada por diferentes filtros de cores em chapas azuis,
vermelhas e amarelas, cada qual retendo apenas aqueles detalhes que
lhe são "relevantes", isto é, os que aparecem em sua própria cor, e
desprezando todos os outros detalhes. A seguir, as chapas são
recombinadas numa reconstrução mais ou menos fiel do objeto
original. Portanto, cada hierarquia possui, por assim dizer, uma "cor"
diferente, sendo que a cor simboliza seus critérios de relevância. Qual
das hierarquias formadoras da memória estará ativa em determinado
momento depende, naturalmente, dos interesses gerais da pessoa e de
seu estado mental naquele momento.
Embora essa hipótese represente um afastamento radical dos
conceitos de memória defendidos seja pela escola behaviorista seja
pela gestaltista, podemos encontrar alguns modestos indícios de sua
evidência numa série de experiências realizadas em cooperação com o
Prof. J. J. Jenkins, no laboratório psicológico da Universidade de
Stanford*. E muitos outros testes podem ser elaborados nessa linha,
sem grandes dificuldades.
*Ver Apêndice II. Trata-se de um artigo de cunho bastante técnico, de provável
interesse para os psicólogos experimentais, podendo ser ignorado pelo leitor comum,
sem maiores prejuízos. A essência do experimento consistia em mostrar a cada pessoa
testada, durante apenas uma fração de segundo (por meio de um aparelho chamado
taquistoscópio), um número formado por sete ou oito dígitos e então fazê-la tentar
repetir a seqüência. Os resultados de várias centenas de experiências mostram que um
número muito significativo de erros (aproximadamente 50%) consistiu em a pessoa
identificar corretamente todos os algarismos dados na seqüência, mas invertendo a
ordem de dois ou três dígitos vizinhos. Isso parece confirmar que a identificação de
dígitos individuais e a determinação de sua ordem seqüencial são executadas por
diferentes ramos da hierarquia perceptiva.
14
A hipótese da "impressão policromada" pode fornecer parte da
explicação para os complexos fenômenos da memória e da
recordação, mas baseia-se unicamente no tipo abstrativo de memória,
o qual por si só não consegue explicar a extrema vividez do tipo
luminoso de memória mencionado no início desta seção. É um método
de retenção baseado em princípios que aparentam ser exatamente o
oposto aos da formação da memória nas hierarquias abstrativas.
Caracteriza-se pela recordação de cenas ou detalhes com limpidez
quase alucinatória. Esses pormenores se parecem mais com close-ups
fotográficos, em contraposição ao panorama aéreo da memória
abstrativa, visto através de um nevoeiro. A ênfase recai sobre o
detalhe, que pode ser um fragmento arrancado de seu contexto, que
sobreviveu à deterioração do todo ao qual já pertenceu outrora, como
a solitária mecha de cabelos na múmia ressequida de uma princesa
egípcia. Esse fragmento pode ser auditivo — um verso de um poema
já esquecido, ou uma observação casual de um estranho ouvida num
ônibus; ou visual — uma verruga no queixo da babá, um aceno de
mão de alguém que lança um último adeus da janela do trem prestes a
partir; ou pode até referir-se ao gosto e olfato, como a célebre
madeleine de Proust (o folhado francês, não a moça). Embora, do
ponto de vista racional, muitas vezes pareçam triviais, essas imagens
luminosas acrescentam sabor e firmeza à memória e possuem um
misterioso poder evocativo. Tal fato sugere que, apesar de serem
irrelevantes segundo critérios lógicos, possuem algum significado
emotivo especial (em nível consciente ou inconsciente) que provoca a
sua retenção.
Ninguém, nem mesmo um técnico de computadores, pensa o
tempo todo em termos de hierarquias abstrativas. A imaginação floreia
a maior parte de nossas percepções, havendo indícios de que nossas
reações emotivas também obedecem a uma hierarquia de níveis —
inclusive estruturas antigas do cérebro, que são filogeneticamente
mais velhas que as estruturas relacionadas com as conceitualizações
abstratas. Pode-se considerar que, na formação das "memórias
luminosas", esses níveis mais antigos na hierarquia exercem um papel
dominante.
Existem mais algumas considerações em favor de tal hipótese.
Primeira: do ponto de vista do neurofisiólogo, ela encontra um grande
apoio na teoria das emoções* apresentada por Papez-MacLean.
Segunda: do ponto de vista do teórico da comunicação, a memória
abstrativa generaliza e esquematiza, ao passo que a memória luminosa
particulariza e concretiza — e este é um método muito mais primitivo
de armazenar informação**. Terceira: do ponto de vista do psicólogo,
a memória abstrativa estaria relacionada à aprendizagem introspectiva
e a memória luminosa, a um processo semelhante à impressão. Mas a
impressão, nos grous de Konrad Lorenz, fica limitada a um período
crítico de poucas horas e, aparentemente, resulta num sinal impresso
muito rústico e vago. A nível humano, a impressão pode assumir a
forma de imagem eidética. Segundo Jaensch22 e Kluever23, um
considerável número de crianças possuem a faculdade eidética — são
capazes de "projetar", com exatidão fotográfica, sobre uma tela vazia,
uma imagem colorida de um quadro anteriormente apresentado a elas,
e de repetir isso após longos intervalos, algumas vezes mesmo após
anos. As experiências de Penfield e Roberts24, evocando o que se diz
ser a total recordação de cenas passadas, utilizando estímulos elétricos
aplicados nos lóbulos temporais do paciente, podem ser um fenômeno
correlato.
*Ver o Prólogo.
**Na moderna teoria da comunicação, o termo "informação é usado num sentido
mais abrangente que no linguajar comum. Informação inclui qualquer coisa, desde a
cor e o gosto de uma maçã até a Nona Sinfonia de Beethoven. Entradas irrelevantes
não transmitem informação alguma e são chamadas de "ruído" — por analogia às
interferências numa linha telefônica.
Contudo, apesar de ser aparentemente muito comum em crianças,
a memória eidética tende a desvanecer-se com o surgimento da
puberdade, tornando-se rara entre os adultos. As crianças e os
primitivos vivem num mundo de imagens visuais. No romance The
Inheritors, o autor, William Golding, faz seus neandertalenses
dizerem, ao invés de "Pensei em algo", "Tenho uma imagem em
minha cabeça". A maneira eidética de uma criança "imprimir"
imagens na mente pode representar um método filogenética e
ontogeneticamente mais antigo de formação da memória — método
que se perde quando o pensamento abstrativo e conceitual se torna
dominante.
Resumindo, a memória abstrativa, operando mediante múltiplas
hierarquias entrelaçadas, despoja as entradas, reduzindo-as aos dados
essenciais, de acordo com os critérios de relevância de cada
hierarquia. Recordar a experiência significa adornar novamente a
informação retida. Isso é possível, até certo ponto, por causa da
cooperação prestada pelas hierarquias envolvidas, pois cada uma delas
contribui com aqueles aspectos que julgou dignos de serem
preservados. O processo é comparável à superposição de clichês
coloridos, na arte de imprimir. Além disso, existem as memórias
"luminosas" de detalhes vividos que podem, inclusive, ser fragmentos
de imagens eidéticas e possuem forte carga emotiva. Esse exercício de
recriar o passado resulta numa espécie de colagem, com olhos de
vidro e uma mecha de cabelos verdadeiros grudada no quadro
nebuloso e estilizado.
15
Quando perguntaram à centopéia qual a ordem exata em que
movia suas cem pernas, ela ficou paralisada e acabou morrendo de
fome porque jamais pensara antes em tal problema e havia deixado
suas pernas cuidarem de si mesmas. Quando se forma um plano
naquele nível superior da hierarquia que nós chamamos de ego
consciente — como, por exemplo, o de amarrar os próprios sapatos ou
de acender um cigarro — não se ativam diretamente as contrações de
músculos individuais, mas desencadeia-se um padrão coordenado de
impulsos — hólons funcionais — que põe em ação subpadrões, e
assim por diante. Mas isso pode ser feito funcionando apenas uma
etapa de cada vez. Normalmente, os escalões superiores da hierarquia
não entram em contato direto com os inferiores e vice-versa.
Brigadeiros não dirigem sua atenção a soldados individuais; se assim
o fizessem, a operação se tornaria um caos. Os sinais devem ser
transmitidos pelos "canais regulamentares", como são chamados no
exército, isto é, degrau por degrau para cima ou para baixo nos níveis
da hierarquia.
Essa afirmação pode parecer trivial, mas ignorá-la acarreta vários
tipos de penalidade. O curto-circuito provocado em níveis
intermediários pelo ato de concentrar a atenção consciente em
atividades que, de ordinário, se processam automaticamente leva, em
geral, à situação da centopéia, refletida por sintomas que variam desde
a incômoda situação chamada de comportamento "autoconsciente" até
distúrbios tais como a impotência, a gaguez ou os espasmos do cólon.
Viktor Frankl, o fundador da "logoterapia", para denominar distúrbios
dessa espécie criou o termo "hiper-reflexão25.
Por outro lado, as antigas práticas de Hatha Yoga e algumas
técnicas congêneres, tão em voga no momento, visam ao controle
deliberado dos processos viscerais e neurais (inclusive das ondas alfa
do cérebro), mediante a meditação auxiliada por dispositivos de
bioregeneração. Mas, em condições normais, a "regra do degrau-por-
degrau" é válida para todos os tipos de hierarquia — da ontogenia e
filogenia até as instituições sociais e o processamento das entradas
sensoriais em sua gradativa ascensão, dos órgãos receptores para a
consciência.
16
Repetidas vezes me referi ao "ápice" da hierarquia. Algumas
hierarquias possuem realmente um ápice ou vértice bem definido e um
nível inferior preciso — por exemplo, um pequeno estabelecimento
comercial, com um único dono e um grupo fixo de empregados. Mas
as grandes holarquias da existência, quer sociais, quer biológicas ou
cosmológicas, tendem a se apresentar "em aberto" em uma ou em
ambas as direções. Um químico de laboratório, ao analisar um
composto químico, está engajado numa operação gradativa em que o
ápice de sua árvore — a amostra em análise — está no nível molecular
da hierarquia, ramificando-se nos radicais químicos, que se ramificam
em átomos. Mas, de um ponto de vista mais amplo, que abrange
também os processos subatômicos, aquilo que se apresenta ao químico
como uma árvore completa passa a ser apenas uma simples
ramificação de uma hierarquia mais abrangente. Assim como os
hólons são, por definição, subtodos, assim também as ramificações de
uma hierarquia são todas sub-hierarquias, e tratá-las como "todos" ou
como "partes" depende tão-somente da tarefa que se quer realizar. O
químico não precisa se preocupar com as assim chamadas partículas
elementares que, segundo a observação feita por alguém, apresentam a
desconcertante tendência de não permanecerem elementares por muito
tempo e, em última análise — ou penúltima análise — parecem
consistir em padrões de concentração de energia, ou tensões na
espuma universal do espaço-tempo. Nosso químico de laboratório
pode tranqüilamente ignorar todos os progressos surrealistas da
moderna física dos quanta. Mas não deve em absoluto esquecer — sob
pena de sofrer desidratação mental — que sua minúscula árvore
hierárquica abrange apenas um número muito limitado de níveis, nas
grandes hierarquias "em aberto" do ser.
O mesmo se aplica, no lado oposto da escala, ao astrônomo
ocupado com a disposição esferas-dentro-de-esferas dos sistemas
solares, galáxias, conjuntos galácticos e com a possibilidade de
universos paralelos no hiperespaço.
À guisa de sumário, eu gostaria de chamar a atenção do leitor para
o Apêndice I "Além do Atomismo e do Holismo — O Conceito de
Hólon". Este é o texto publicado de um ensaio apresentado no
Simpósio Alpbach, que pretende apresentar de forma concisa as
propriedades características de sistemas hierárquicos abertos
analisadas nesse capítulo (e também algumas outras propriedades que
serão estudadas mais adiante).
II

PARA ALÉM DE EROS E TÂNATOS


1

Pretendo agora analisar mais uma característica universal da


ordem holárquica, cuja importância é tão fundamental que merece um
capítulo especial.
Como já vimos, os hólons que constituem um organismo vivo ou
um corpo social são entidades semelhantes a Jano: a face voltada para
os níveis superiores da holarquia representa a parte subordinada a um
sistema mais amplo; a face voltada para os níveis inferiores encarna
um todo quase autônomo, de plenos direitos.
Isso significa que todo hólon possui duas tendências ou
potencialidades opostas: uma tendência integrativa para funcionar
como parte de um todo maior e uma tendência auto-assertiva para
preservar sua autonomia individual.
Nas holarquias sociais encontra-se a mais evidente manifestação
dessa polaridade básica. Aí, a autonomia dos hólons constituintes é
ciosamente guardada e afirmada em cada nível — desde os direitos do
indivíduo até os de clã ou tribo, desde os departamentos
administrativos até os governos locais, desde as minorias étnicas até
as nações soberanas. Cada hólon social possui dentro de si uma
tendência para preservar e defender sua identidade corporativa. Essa
tendência auto-assertiva é indispensável para manter a
individualidade dos hólons em todos os níveis, bem como a da
hierarquia como um todo. Sem ela, a estrutura social fundir-se-ia
numa geléia amorfa, ou degeneraria numa tirania monolítica. De
ambas as hipóteses encontramos fartos exemplos na História.
Ao mesmo tempo, o hólon depende de um mais amplo sistema que
o comporta, e dentro dele deve funcionar como parte integrada. Sua
tendência integrativa ou autotranscendente, resultante da parceria do
hólon, deve manter sob controle sua tendência auto-assertiva. Em
circunstâncias favoráveis, as duas tendências básicas — auto-
afirmação e integração — estão mais ou menos equilibradas, e o
hólon vive numa espécie de equilíbrio dinâmico dentro do todo — as
duas faces de Jano complementam-se mutuamente. Sob condições
desfavoráveis, rompe-se o equilíbrio, com terríveis conseqüências.
Chegamos assim à polaridade básica existente entre a tendência
auto-assertiva e a tendência integrativa dos hólons em cada nível e,
como veremos adiante, em cada tipo de sistema hierárquico. Essa
polaridade é um ponto fundamental da presente teoria e um de seus
leitmotifs. Não é um produto da especulação metafísica, mas é
exigida, de fato, pelo modelo da holarquia de muitos níveis, porque a
estabilidade do modelo depende do equilíbrio das duas facetas de seus
hólons, como todos e como partes. Essa polaridade ou coincidentia
oppositorum está presente, em diferentes graus, em todas as
manifestações da vida. Em capítulos posteriores analisaremos suas
implicações filosóficas. Para o momento, anotemos apenas que a
tendência auto-assertiva é a expressão dinâmica da totalidade do
hólon e a tendência integrativa é a expressão dinâmica de sua
parceria *.
*Ocasionalmente, usarei os seguintes sinônimos de "tendência integrativa":
tendência "participante" ou "autotranscendente".
Pelo que concerne aos hólons das hierarquias sociais, a polaridade
é mais que evidente — agride-nos das manchetes de qualquer jornal.
Contudo, a dicotomia entre a auto-afirmação e a integração faz-se
onipresente, de maneira menos óbvia, na biologia, psicologia, ecologia
e onde quer que encontremos complexos sistemas hierárquicos, o que
ocorre praticamente em qualquer parte ao nosso redor. Parafraseando
novamente Gertrude Stein: um todo é uma parte é um todo. Cada
subtodo é um "sub" e um "todo". No animal vivo ou na planta, assim
como no corpo social, cada parte deve afirmar sua individualidade,
pois, do contrário, o organismo perderia sua articulação e se
desintegraria. Mas ao mesmo tempo a parte deve submeter-se às
exigências do todo — o que nem sempre é um processo agradável.
Vimos anteriormente que todas as partes dos seres vivos, desde os
órgãos complexos até as organelas no interior da célula, possuem seus
intrínsecos ritmo e padrão de atividade, governados por seu próprio
código interno de regras, que as faz funcionar como unidades quase
independentes. Por outro lado, essas atividades autônomas do hólon
são liberadas, controladas e modificadas por controles existentes em
níveis superiores da hierarquia que atuam sobre o potencial integrativo
do hólon e o fazem funcionar como parte subordinada. Num
organismo sadio, assim como numa sociedade sadia, ambas as
tendências mantêm-se equilibradas em cada nível da hierarquia. Mas,
quando exposta a demasiada tensão, a tendência auto-afirmativa da
parte afetada do organismo ou da sociedade pode fugir ao controle —
isto é, a parte tenderá a escapar aos controles restritivos do todo. Isso
pode ocasionar mudanças patológicas, como as excrescências
malignas, com irrefreada proliferação de tecidos que se subtraíram à
coibição genética. Em nível menos drástico, virtualmente qualquer
órgão ou função pode fugir temporária e parcialmente ao controle. Em
estado de ira ou de pânico, o aparelho simpático-supra-renal assume o
comando dos centros superiores que normalmente coordenam o
comportamento; quando o sexo é excitado, as gônadas parecem tomar
o lugar do cérebro. A idée fixe, a obsessão do maluco são hólons
cognitivos que provocam agitação. Existe uma extensa gama de
desordens mentais em que alguma parte subordinada da hierarquia
cognitiva exerce uma influência tirânica sobre o todo, ou em que
algumas porções da personalidade parecem haver-se "separado",
levando uma existência quase independente. As mais freqüentes
aberrações da mente humana têm sua origem na perseguição obsessiva
de alguma meia-verdade, tratada como se fosse a verdade absoluta —
um hólon disfarçado em todo.
Nas rotinas da existência diária, ambas as tendências estão em
constante interação. A tendência auto-afirmativa manifesta-se em
cada nível das hierarquias do comportamento: na persistência dos
rituais instintivos dos animais e dos hábitos adquiridos dos homens;
nas tradições tribais e nos costumes sociais; e até mesmo nas
particularidades individuais do andar, dos gestos ou da escrita de uma
pessoa, que pode ser capaz de modificá-los, mas não o suficiente para
enganar um especialista. Os hólons de seu estilo grafológico defendem
sua autonomia. A tendência integrativo, também presente em toda
parte, evita que nos tornemos completamente escravos de nossos
hábitos e nos petrifiquemos como autômatos. Ela se manifesta em
estratégias flexíveis, adaptações originais e sínteses criativas que
geram mais elevadas, mais complexas e mais integradas formas de
pensamento e comportamento, adicionando novos níveis à hierarquia
em aberto.
2
A polaridade básica torna-se mais evidente nos fenômenos do
comportamento emotivo, no âmbito individual e social. Homem algum
é uma ilha; ele é um hólon. Olhando para dentro de si, ele se sente
como um todo único, independente, completo; olhando para fora,
percebe ser parte dependente de seu ambiente natural e social. Sua
tendência auto-afirmativa é a manifestação dinâmica de sua
individualidade; sua tendência integrativa expressa sua dependência
do todo mais amplo ao qual pertence, sua parceria. Quando tudo corre
bem, as duas tendências estão mais ou menos em perfeito equilíbrio.
Em momentos de tensão e frustração, rompe-se o equilíbrio, fato que
se manifesta por desordens emocionais. As emoções provenientes de
tendências auto-afirmativas frustradas pertencem ao bem conhecido e
"adrenalínico" tipo agressivo-defensivo: fome, raiva e medo, incluindo
também os componentes possessivos do sexo e dos cuidados pela
prole. As emoções derivadas da tendência integrativa têm sido, em
grande parte, negligenciadas pela psicologia teórica; podem ser
chamadas de emoções do tipo autotranscendente. Elas surgem da
necessidade que o hólon humano sente de pertencer a um grupo, de
transpor os estreitos limites do ego e fazer parte de um todo mais
abrangente — que pode ser uma comunidade, um credo religioso, ou
uma causa política, a Natureza, a Arte, ou a anima mundi.
Quando a necessidade de pertencer a um grupo, a ânsia de
autotranscendência são defraudadas em sua legítima satisfação, o
indivíduo frustrado pode perder sua capacidade de análise e entregar
sua personalidade à cega adoração ou fanático devotamento a qualquer
causa, sem se importar com os méritos dela. Como já temos visto
anteriormente, uma das ironias da condição humana é o fato de seu
feroz apetite destrutivo emanar, não do potencial auto-afirmativo, mas
do potencial integrativo da espécie. Tanto as glórias da ciência e da
arte como os holocaustos da história provocados por devotamento mal
orientado foram sempre incitados pelas emoções do tipo
autotranscendente. Pois o código de regras que define a identidade
corporativa e garante a coesão de um hólon social (sua língua, suas
leis, tradições, padrões de conduta, sistemas de crenças) representa
não apenas obstáculos negativos impostos a suas atividades, mas
também preceitos positivos, máximas e imperativos morais. Em
tempos normais, quando a hierarquia social está em equilíbrio, cada
um de seus hólons age de acordo com seu código de regras específico,
sem tentar impô-lo a outros hólons. Mas em situações de tensão e
crise, um hólon social pode se tornar superexcitado e procurar afirmar-
se a si mesmo em detrimento do todo, exatamente como ocorre com
um órgão superexcitado ou com uma idéia obsessiva.

3
A dicotomia entre o todo e a parte e sua dinâmica manifestação na
polaridade das tendências auto-afirmativa e integrativa são inerentes,
como já foi dito, a cada sistema hierárquico de múltiplos níveis e estão
implícitas no modelo conceitual. Encontramo-las refletidas até mesmo
na natureza inanimada: onde quer que exista um sistema dinâmico
relativamente estável, desde os átomos até as galáxias, sua
estabilidade é mantida pelo equilíbrio de forças opostas, uma das
quais pode ser a centrífuga, isto é, inerte ou separativa, e a outra, a
centrípeta, isto é, atrativa ou coesiva, que unem as partes num todo
mais abrangente, sem sacrificar a identidade das mesmas. A primeira
lei de Newton — "Todo corpo permanece em seu estado de repouso
ou de movimento uniforme em linha reta, a não ser que seja
compelido por alguma outra força a modificar esse estado" — soa
como uma proclamação da tendência auto-afirmativa de toda partícula
de matéria existente no Universo. Por outro lado, sua Lei da
Gravidade reflete a tendência integrativa*.
*Numa peça de ficção científica escrita há vários anos, eu fiz uma donzela
visitante, vinda de outro planeta, explicar a doutrina fundamental de sua religião: "...
Nós adoramos a gravitação. É a única força que não se desloca apressadamente pelo
espaço; ela está em toda parte, em repouso. Mantém as estrelas em suas órbitas e
nossos pés sobre nosso chão. É o medo que a Natureza tem da solidão, a saudade que
a Terra sente da Lua; é o amor em sua forma pura e inorgânica." (Twilight Bar, 1945.)

Podemos arriscar-nos a avançar ainda mais e considerar o


Princípio de Complementaridade como um exemplo muito mais
básico de nossa polaridade. Segundo esse princípio, que domina a
física moderna, todas as partículas elementares — elétrons, fótons etc.
— possuem o duplo caráter de corpúsculos e ondas: de acordo com as
circunstâncias, hão de se portar ou como grãos compactos de matéria,
ou como ondas sem atributos substanciais ou limites definíveis. Do
nosso ponto de vista, o aspecto corpuscular do elétron — ou de
qualquer hólon elementar — manifesta sua totalidade e seu potencial
auto-afirmativo, ao passo que caráter de onda manifesta sua parceria e
seu potencial integrativo*.
"Outro exemplo da polaridade da natureza inanimada aparece no Princípio de
Mach, que relaciona a inércia terrestre com a massa total do Universo. Ver adiante, o
Cap. XIII.

Torna-se desnecessário frisar que as manifestações das duas


tendências básicas ocorrem sob formas diferentes nos vários níveis da
hierarquia, de acordo com os códigos — ou "relações organizacionais"
— específicos e característicos de tal nível. As regras que governam
as interações das partículas subatômicas não são as mesmas que regem
as interações dos átomos como todos. E as normas éticas que norteiam
o comportamento dos indivíduos não são as mesmas que regulam o
comportamento das multidões ou dos exércitos. Da mesma forma, as
manifestações da polaridade das tendências auto-afirmativa e
integrativa, que podemos encontrar em todos os fenômenos da vida,
hão de assumir diferentes formas de nível para nível. Assim por
exemplo, encontraremos a polaridade refletida como:

integração <-----> auto-afirmação


parceria <-----> totalidade
dependência <-----> autonomia
centrípeta <-----> centrífuga
cooperação <-----> competição
altruísmo <-----> egotismo

Além disso, queremos ressaltar que a tendência auto-afirmativa é,


de modo geral, conservadora, no sentido de tender a preservar a
individualidade do hólon nas atuais condições de existência. Ao passo
que a tendência integrativa apresenta a dupla função de coordenar os
hólons constitutivos de um sistema em seu presente estágio e de gerar
novos níveis de integrações complexas nas hierarquias em evolução
— sejam biológicas, cognitivas ou sociais. Portanto, a tendência auto-
afirmativa está orientada para o presente e se preocupa com a
automanutenção, enquanto se pode afirmar que a tendência integrativa
atua no presente, mas visa também o futuro.

5
Considerando que as tendências auto-afirmativa e integrativa
desempenham um papel fundamental em nossa teoria, devendo
portanto aparecer com freqüência nos capítulos subseqüentes, julgo
interessante fazer uma breve comparação com o sistema metafísico de
Freud, que alcançou extraordinária popularidade.
Freud postulou dois Triebe ("impulsos", ou, mais livremente,
"instintos") básicos, que ele concebeu como tendências universais
mutuamente antagônicas, inerentes a toda matéria viva: Eros e
Tânatos, ou libido e desejo de morte. Uma leitura atenta das passagens
mais importantes (de Beyond the Pleasure Principie, Civilisation and
its Discontents etc.) revela, para surpresa geral, que esses dois
impulsos são regressivos: ambos visam à restauração de uma
primitiva condição do passado. Eros, mediante o engodo do princípio
do prazer, tenta restabelecer a antiga "unidade do protoplasma no lodo
primordial", ao passo que Tânatos almeja muito mais diretamente o
retorno ao estado inorgânico da matéria, mediante a aniquilação do
ego e de qualquer outra identidade. Visto que ambos os impulsos
tentam inverter a marcha do relógio da evolução, indizível é o espanto
geral, pois, apesar de tudo, acontece que o relógio se movimenta para
a frente. A resposta de Freud parece ser a de que o Eros é forçado a
fazer um enorme desvio para juntar os "fragmentos dispersos de
substância viva"1 em agregados multicelulares, com o objetivo último
de restaurar a unidade protoplasmática. Em outras palavras, a
evolução se apresenta como o produto de uma regressão inibida, a
negação de uma negação e, por assim dizer, um recuo para a frente.
A título de curiosidade, pode-se ressaltar o conceito bastante
obscuro de Freud a respeito das atividades do Eros. Segundo seu
ponto de vista, o prazer sempre se deriva da "diminuição,
rebaixamento ou extinção de excitação psíquica" e o "desprazer*, de
um aumento dela". O organismo tende para a estabilidade. É guiado
pelo "esforço do mecanismo mental para conservar a quantidade de
excitações existente nele tão baixa quanto possível ou, pelo menos,
constante. Em conseqüência, tudo o que tender a aumentar a
quantidade de excitação deve ser encarado como contrário a essa
tendência, vale dizer, como desprazível"2.
*Unlus: disforia, algo distinto da dor física.
Ora, isso é sem dúvida Verdadeiro, num sentido mais amplo, na
medida em que se tratar da frustração de necessidades elementares,
como a fome. Mas deixa no esquecimento uma classe inteira de
experiências, as quais costumamos denominar "excitamento
aprazível". Os afagos preliminares que precedem o ato sexual
provocam um aumento da tensão sexual e deveriam, de acordo com a
teoria, ser desagradáveis — mas, absolutamente não o são. É curioso
que, nas obras de Freud, não se consegue encontrar nenhuma resposta
a essa objeção embaraçosamente banal. No sistema freudiano o
impulso sexual é, em essência, algo a ser utilizado livremente — seja
pelos canais competentes, seja pela sublimação. O prazer provém não
de sua procura, mas do fato de livrar-se dele *.
O conceito de Tânatos defendido por Freud — o Todestrieb — é
tão enigmático quanto o de Eros. Por um lado, o desejo-de-morte
"atua silenciosamente, dentro do organismo, para a sua
desintegração", por processos catabólicos, decompondo a matéria viva
em matéria morta. De fato, esse aspecto pode ser equiparado à
Segunda Lei da Termodinâmica** — a gradual dispersão de matéria e
energia num estado de caos. Mas, por outro lado, o instinto-de-morte
proposto por Freud, instinto que age tão sutilmente dentro do
organismo, surge como destrutividade operante ou como sadismo,
quando projetado para fora. É difícil ver como esses dois aspectos de
Tânatos podem se harmonizar e, ocasionalmente, se unir. Pois o
primeiro aspecto é o de um processo físico-químico que tende a
reduzir células vivas à imobilidade e, por fim, ao pó; enquanto o
segundo aspecto demonstra uma agressão coordenada e violenta de
todo o organismo contra outros organismos. O processo pelo qual o
silencioso deslizar para a senectude e desintegração se converte na
imposição de violência sobre outros não é explicado por Freud. A
única ligação por ele fornecida é o uso ambíguo de palavras como
"desejo-de-morte" e "imperativo de destruição".
*Pode-se argumentar que, no universo de Freud, não há lugar para manifestações
amorosas porque Freud, assim como D. H. Lawrence, era basicamente um puritano
tomado de horror pela frivolidade, que tratava o sexo mil tierischem Ernst (com feroz
severidade). Ernest Jones afirma em sua biografia: "Freud sofreu profunda influência
do puritanismo de sua época, quando as alusões às partes sexuais eram tidas como
impróprias". Em seguida apresenta vários exemplos — como o de Freud "proibindo
terminantemente" sua noiva de ficar "com um velho amigo, recém-casado, que,
segundo ela esclareceu com toda a delicadeza, 'havia se casado antes das núpcias
dela'"13.
**Mais adiante veremos que esta famosa lei se aplica somente aos assim
chamados "sistemas fechados" da física e não a organismos vivos. Mas trata-se de
uma descoberta relativamente recente que Freud não podia conhecer.
Não se trata apenas da falta de conexão entre esses dois aspectos
da Tânatos freudiana. Cada um deles por si é sumamente questionável.
Considerando em primeiro lugar o segundo aspecto, não encontramos
em parte alguma da Natureza a destruição por amor à destruição. Os
animais matam para devorar, não para destruir; e — como já foi
mencionado — mesmo quando lutam pela supremacia num território
ou pelas companheiras, a luta segue um ritual semelhante ao da
esgrima e só muito raramente chega a um desfecho mortal. Para
provar a existência de um "instinto destrutivo" primário, seria preciso
mostrar que o comportamento destrutivo ocorre regularmente, sem
provocação externa, assim como a fome e o apetite sexual se fazem
sentir, a despeito da ausência de estímulos externos. Quero citar Karen
Horney (que foi um psicanalista eminente, mas muito crítico)4
A suposição de Freud implica que o motivo último para
a hostilidade ou destrutividade reside no impulso para
destruir. Dessa forma, ele converte no oposto nossa crença
de que destruímos com o objetivo de viver: nós vivemos a
fim de destruir. Não devemos esquivar-nos de reconhecer o
erro, mesmo em se tratando de uma convicção antiga, se
uma visão mais ampla nos leva a compreender o fato de
modo diferente. Mas este aqui não é bem o caso. Se
desejamos ferir ou matar, assim agimos porque estamos ou
nos sentimos ameaçados, humilhados, prejudicados; porque
estamos ou nos sentimos rejeitados ou tratados injustamente;
porque estamos ou nos sentimos impedidos de realizar
desejos de vital importância para nós.

Afinal, foi o próprio Freud quem nos ensinou a procurar, nos atos
de destrutividade aparentemente arbitrários e não provocados,
praticados por crianças ou adultos desequilibrados, o motivo oculto —
que, de modo geral, demonstra ser um sentimento de rejeição, ou
ciúme, ou orgulho ferido. Em outras palavras, crueldade e
destrutividade devem ser consideradas como extremos patológicos da
tendência auto-afirmativa, quando esta é frustrada ou provocada além
de um limite crítico — sem apelar para o gratuito postulado de um
instinto-de-morte, a favor do qual não existe o mínimo traço de
evidência em parte alguma da biologia.
Retornando mais uma vez ao outro aspecto do Tânatos de Freud, a
principal característica da substância viva, como já foi mencionado, é
o seu aparente descaso pela Segunda Lei da Termodinâmica. Ao invés
de dissipar sua energia no meio ambiente, o animal vivo extrai energia
desse ambiente, alimenta-se desse ambiente, bebe desse ambiente,
utiliza-se dele e constrói nesse ambiente, dos ruídos colhe informações
e encontra sentido nos estímulos caóticos. Segundo a definição de
Pearl5, "nem o envelhecimento nem a morte natural são conseqüências
inevitáveis da vida". Os protozoários são potencialmente imortais;
reproduzem-se por simples fissão, "não deixando para trás, em tal
processo, nada que se assemelhe a um cadáver". Em muitos animais
multicelulares primitivos, não ocorre envelhecimento, nem morte
natural. Multiplicam-se por fissão ou cissiparidade, também sem
deixar para trás nenhum resíduo morto. "A morte natural é, do ponto
de vista biológico, algo relativamente novo"6. Ela é o efeito
cumulativo de alguma deficiência, ainda bastante desconhecida, do
metabolismo das células nos organismos complexos — um
epifenômeno provocado por falhas na integração, e não uma lei básica
da Natureza.
Portanto, os impulsos fundamentais de Freud, sexualidade e
desejo-de-morte, não podem evocar a si validade universal. Ambos
fundamentam-se em novidades biológicas que só aparecem num nível
relativamente elevado da evolução: o sexo, como um novo processo
da reprodução assexuada e, algumas vezes (como em certos
platelmintos), alternando-se com esta; a morte, como conseqüência de
imperfeições surgidas com o aumento da complexidade. Na teoria
aqui proposta, não há lugar para um "instinto destrutivo" nos
organismos, nem para a consideração da sexualidade como a única
força integrativa na sociedade humana ou animal. Eros e Tânatos são
personagens relativamente tardios, no palco da evolução. Uma
multidão de criaturas que se multiplicam por fissão (ou cissiparidade)
ignoram completamente a ambos. Segundo nosso ponto de vista, a
sexualidade é uma manifestação específica da tendência integrativa, e
a agressividade, uma forma extrema da tendência auto-afirmativa.
Por outro lado, Jano surge como o símbolo das duas propriedades
irredutíveis da matéria viva; totalidade e parceria; e também como
símbolo de seu precário equilíbrio nas hierarquias da Natureza.
Repetindo mais uma vez, este esquema geral não se baseia em
pressupostos metafísicos, mas está, por assim dizer, embutido na
arquitetura dos sistemas complexos — físicos, biológicos ou sociais
— como uma necessária condição prévia da coerência e estabilidade
de seus conjuntos de hólons, em todos os níveis. Não foi por acaso
que Heisenberg deu o título de The Part and the Whole (A Parte e o
Todo)* a seu relato autobiográfico da gênese da física moderna.
Realmente, onde, na microfísica, encontramos partes tão
"elementares" que não se revelem, alguma vez, como todos
compostos? Onde, no macrocosmo da astrofísica, podemos colocar os
limites de nosso universo com seu espaço-tempo multidimensional? A
infinitude expande-se tanto no topo como na base das hierarquias
estratificadas da existência, e a dicotomia da totalidade auto-
afirmativa e da parceria autotranscendente está presente em cada
nível, desde o trivial até o cósmico. O aspecto mais realista da ordem
hierárquica está contido no que se pode chamar de "paradigma de
Swift":
"Der Teil und das Game, no original alemão. As traduções em inglês mudaram
esse título para Physics and Beyond.

Assim, observam os naturalistas, uma pulga


Carrega pulgas menores, que dela se alimentam;
E estas têm menores pulgas a sugá-las,
E assim continua ad infinitum...
6

Bem sei que este capítulo parece haver oscilado entre o


demasiadamente óbvio e o aparentemente abstrato e especulativo. No
entanto, um dos testes de uma teoria é este: uma vez compreendida,
ela parece mais que evidente.
Existe mais uma dificuldade inerente ao assunto. O postulado de
uma tendência auto-afirmativa universal não necessita de apologia,
pois encontra a imediata receptividade do bom senso e conta com
muitos precursores — tais como o "instinto de autopreservação",
"sobrevivência do mais apto" e assim por diante. Mas postular, em
contrapartida, uma tendência integrativa igualmente universal e a
interação dinâmica entre as duas tendências como a chave de uma
teoria geral dos sistemas recende a antiquado vitalismo e contradiz o
Zeitgeist, condensado em livros tais como Chance and Necessity, de
Monod, ou Beyond Freedom and Dignity, de Skinner. Por
conseguinte, parece-me conveniente encerrar este capítulo com
algumas citações extraídas de um livro recentemente escrito por um
eminente médico, Dr. Lewis Thomas (Presidente do Sloan-Kettering
Câncer Centre), a quem dificilmente se pode acusar de assumir uma
atitude não científica. A passagem começa com uma fascinante
descrição do parasita Myxotricha paradoxo, uma criatura de uma
única célula, que habita no tubo digestivo dos cupins australianos:

À primeira vista, parece tratar-se de um protozoário comum


e móvel, cujas principais características são a rapidez e o modo
retilíneo com que se desloca de lugar para lugar, engolindo
fragmentos de madeira bem mastigados por seu anfitrião, o
cupim. No ecossistema do cupim, um arranjo que apresenta
uma complexidade bizantina, o parasita situa-se, no epicentro.
Sem ele, a madeira, embora bem mastigada, nunca seria
digerida. Esse parasita fornece as enzimas que dissolvem a
celulose, transformando-a em carboidrato comestível e
deixando apenas a indigerível lignina, expelida então pelo
cupim em bolinhas geometricamente ordenadas. Estas são
utilizadas como tijolos na construção de arcos e volutas, no
ninho dos cupins. Sem os parasitas, os cupins não
sobreviveriam, nem existiriam as criações de fungos que são
cultivados pelos cupins e que não se reproduzem em nenhuma
outra parte...7
Mas essa minúscula criatura no interior do tubo digestivo do
cupim é formada, na realidade, por grandes aglomerados de criaturas
ainda menores, que vivem em simbiose umas com as outras, embora
mantendo sua individualidade autônoma. Assim...

...os flagelos que batem em sincronia para impelir o


Myxotricha de modo tão retilíneo, quando observados mais
atentamente sob um microscópio eletrônico, não aparecem, de
maneira alguma, como simples flagelos. São seres estranhos, que
estão aí para ajudar no trabalho, são espiroquetas perfeitas, bem
formadas, que se grudaram em locais regularmente espaçados,
sobre toda a superfície do protozoário8.
Thomas enumera então os vários tipos de outras organelas e
bactérias que formam uma espécie de zoológico cooperativo no
interior do Myxotricha, e apresenta evidências de que as células que
constituem o corpo humano evoluíram mediante um processo similar
"de se formar, parte por parte, pela contínua junção desse tipo de
animais procarióticos". Dessa forma, o modesto Myxotricha se torna
um paradigma de nossa tendência integrativa.
O animal todo, ou o ecossistema, estacionado por enquanto a meio
caminho da evolução, surge como um modelo do desenvolvimento de
células como as nossas... Existe uma força subjacente que segura
unidas as diversas criaturas, inclusive o Myxotricha, e então leva o
conjunto à união com o cupim. Se conseguirmos compreender essa
tendência, poderemos fazer uma idéia do processo que uniu as simples
células individuais para construir os metazoários, culminando com a
invenção das rosas, dos golfinhos e, naturalmente, de nós mesmos. É
possível que essa mesma tendência esteja subjacente à união dos
organismos em comunidades, à das comunidades em ecossistemas e à
dos ecossistemas na biosfera. Se, de fato, este for o curso das coisas, o
caminho do mundo, poderemos chegar a considerar as reações
imunes, os genes necessários para a diferenciação química do ego e
talvez todas as respostas reflexas de agressão e defesa como resultados
secundários da evolução, necessários para a regulagem e modulação
da simbiose, e não como destinados a atrapalhar o processo, servindo
apenas para impedir que este fuja ao controle.
Se é próprio da natureza dos seres vivos congregar os recursos e
fundir-se quando possível, teremos descoberto uma nova maneira de
considerar o progressivo enriquecimento e a complexidade de formas
dos seres vivos9.
III

AS TRÊS DIMENSÕES DA EMOÇÃO

Podemos descrever as emoções como estados mentais


acompanhados por fortes sensações e associados a mudanças
corporais dos mais variados tipos — respiração, pulsação, tônus
muscular, secreção glandular de hormônios como a adrenalina etc.
Foram também definidas como impulsos "superexcitados". Podem ser
classificadas, em primeiro lugar, de acordo com a natureza do impulso
que lhes dá origem: fome, sexo, curiosidade (o "impulso
exploratório"), sociabilidade, proteção da prole, e assim por diante.
Em segundo lugar, um aspecto evidente de todas as emoções é o
sentimento de agrado ou desagrado, o "tônus hedonista", ligado a
elas. Em terceiro lugar, vem a polaridade entre as tendências auto-
afirmativas e autotranscendentes que participam de qualquer emoção.
Desse modo, chegamos a um conceito tridimensional das emoções
humanas. A esse respeito, apresentei* uma analogia rústica, mas
familiar: imaginemos nosso cenário mental transformado em balcão
de um bar, equipado com grande variedade de torneiras, cada uma
delas fornecendo um tipo diferente de cerveja. As torneiras são abertas
e fechadas de acordo com a necessidade que surge. Cada torneira
representa um impulso diferente, ao passo que o grau de prazer-
desprazer dependerá da relação de fluxo pela torneira — que pode ser
delicado e suave, ou borbulhante e impetuoso porque há, na torneira,
pouca ou demasiada pressão. Por fim, a proporção entre os impulsos
auto-afirmativos e autotranscendentes do comportamento emotivo
podem ser representados pela escala ácido- alcalina.
*Em O Fantasma da Máquina, Cap. XV.
Essa metáfora não é muito atraente, mas pode servir para
visualizar as três variáveis (ou parâmetros) da emoção, sugeridas pela
presente teoria. Examinemos com atenção cada uma dessas variáveis,
particularmente aqueles aspectos que tornam esta teoria diferente das
demais.
2
Uma das dificuldades inerentes ao assunto é o fato de raramente
experimentarmos uma emoção pura. O garçom tende a misturar as
bebidas das diferentes torneiras. O sexo pode estar combinado com a
curiosidade e, praticamente, com qualquer outro impulso. Esse
aspecto é demasiado óbvio para merecer explicações mais detalhadas.
A segunda variável, a relação prazer-desprazer ou o "tônus
hedonista", também dá origem a "sentimentos mistos", ambíguos.
Anteriormente (no Capítulo II), mencionei a afirmação de Freud,
segundo a qual o prazer sempre se deriva "da diminuição,
enfraquecimento ou extinção da excitação física e o desprazer, de um
aumento dela". Esse ponto de vista (defendido ao longo da primeira
metade de nosso século pelas mais conceituadas escolas de psicologia,
inclusive pelo behaviorismo* americano e pela psicanálise
continental) é, sem dúvida, válido para a frustração de impulsos
primitivos "superexcitados", resultantes, por exemplo, dos tormentos
da inanição. Mas é evidentemente falso para a classe de emoções
complexas encontradas na vida cotidiana, as quais chamamos de
excitação agradável, emoção, incitamento, suspense. A leitura de uma
cena erótica de um livro, segundo as palavras de Freud, leva a um
"aumento da excitação física" e, por conseguinte, deveria ser
desagradável. Na realidade, provoca uma complexa emoção, na qual a
frustração está mesclada ao prazer.
*Onde a "Lei do Efeito", de Thorndike, que expunha a mesma falácia, imperou
como dogma supremo.
A resposta a esse paradoxo reside no papel importante que a
imaginação desempenha nas emoções humanas. Assim como um
estímulo imaginário, numa fantasia erótica, é suficiente para provocar
impulsos fisiológicos, assim, vice-versa, uma satisfação imaginária
pode conduzir a uma experiência agradável— a consumação
"interiorizada" de todos os elementos do impulso complexo que
podem ser vividos pela imaginação.
Outra porta pela qual a imaginação entra no impulso emocional é a
antecipação de sua recompensa. No exemplo anterior, a recompensa
era fictícia, embora emocionalmente real, isto é, agradável. Agora
estamos falando da antecipação imaginada do prêmio /atual. Quando
alguém está sedento, é agradável a visão de um taberneiro despejando
cerveja no copo, embora isso "aumente a excitação psíquica". O
mesmo se aplica aos atos preliminares da relação sexual, ou ao ver
uma cena emocionante: a antecipação do final feliz medeia a
"consumação interna" de alguns componentes do impulso emotivo,
enquanto aumenta a excitação de outros componentes. Ficamos
impacientes por terminar os preliminares, os quais, ao mesmo tempo,
apreciamos.
Embora a "interiorização" e a "consumação interna" dos impulsos
emotivos sejam desencadeadas por atos da imaginação, possuem seus
acompanhantes fisiológicos nos processos visceral e glandular e são
tão "reais" quanto as atividades musculares do comportamento
"externo" ou público. A lembrança de um delicioso prato francês pode
ser suficiente para reativar os sucos gástricos.
Quanto mais sublimado for o impulso (isto é, quanto mais íntima
for a coordenação entre o nível superior, cortical, e o inferior, visceral,
da hierarquia), tanto mais acessível à interiorização. Isso parece muito
abstrato, mas imaginemos dois enxadristas durante uma partida,
observando-se mutuamente por sobre o tabuleiro. O meio mais
simples de derrotar o adversário é golpeá-lo na cabeça.
Ocasionalmente, um enxadrista pode experimentar tal necessidade
(em especial se esse adversário for Bobby Fischer), mas jamais
alimentará seriamente essa idéia, pois o impulso competitivo só pode
se expressar de acordo com as "regras do jogo". Ao invés de apelar
para a violência, o jogador visualiza em sua imaginação as
possibilidades de conseguir uma vantagem em seu próximo
movimento, e essa atividade mental lhe proporciona uma série de
pequenas, mas agradáveis, satisfações antecipadas, mesmo quando, no
final, não se alcança a vitória. O mesmo ocorre com o prazer
esportivo, em jogos de competições, a despeito — até certo ponto —
do resultado final. Stevenson mostrou-se mais profundo que Freud, ao
escrever que a viagem repleta de esperanças é melhor que a chegada.
Os românticos enamorados sempre tiveram consciência disso. A
saudade é uma emoção agridoce, composta de elementos dolorosos e
agradáveis. Por vezes, a presença imaginária da pessoa amada pode
ser mais gratificante que a presença real. As emoções apresentam um
espectro de componentes multicoloridos, cada qual com seu específico
tônus hedonista. Perguntar se o amor é agradável ou não é tão
desprovido de sentido quanto perguntar se um quadro de Rembrandt é
luminoso ou escuro.
Podemos agora concentrar-nos na terceira fonte de ambivalência
de nossas emoções. A primeira, estamos lembrados, era a origem
biológica do impulso; a segunda, o tônus prazer-desprazer inerente ao
impulso; a terceira é a polaridade da auto-afirmação e
autotranscendência que se manifesta em todas as nossas emoções.
De início, escolhamos o amor - um mal definido, mas inebriante
coquetel de emoções, com variações infindas. (Como classificariam os
manuais: amor sexual, platônico, parental, de Édipo, narcisista,
patriótico, botânico, dirigido aos cães, ou devotado aos felinos.) Mas,
sejam quais forem seu objetivo e seu método de cortejo, sempre está
presente, em proporções variadas, um elemento de autotranscendente
devotamento. Nas relações sexuais, domínio e agressão misturam-se
com empatia e identificação, e o resultado varia desde o estupro até a
adoração platônica. O amor parental reflete, por um lado, um
biológico liame com "a própria carne e sangue", que transcende os
limites do ego; por outro lado, os pais dominadores e as mães
superprotetoras são exemplos clássicos de auto-afirmação. Menos
óbvio é o fato de que até mesmo a fome, um impulso biológico
aparentemente simples e direto, pode conter um componente
autotranscendente. A experiência cotidiana comprova que o apetite é
intensificado por companhia e ambientes apropriados. Em nível
menos trivial, entre os povos primitivos a comensalidade está
intimamente relacionada à magia e religião. Pela participação da carne
sacrificada do animal, homem ou deus, desenvolve-se um processo de
transubstanciação: absorvem-se as virtudes da vítima, sendo
estabelecida uma espécie de comunhão mística, a qual inclui todos os
que participam do rito. Transmitida pelo culto dos mistérios órficos, a
tradição de participar da carne e do sangue do deus sacrificado se
introduziu, sob forma simbólica, nos ritos do Cristianismo. Para o
cristão fervoroso, a sagrada Eucaristia representa a experiência
suprema de autotranscendência, e não há nenhuma intenção de
blasfemar quando afirmamos que a persistente tradição que relaciona
os banquetes rituais com a transubstanciação é um meio de derrubar as
limitações do ego.
Outros ecos dessa antiga comunhão sobrevivem em ritos tais como
os banquetes oferecidos por ocasião de um batismo ou de um funeral,
as oferendas simbólicas de pão e sal, ou a cerimônia do irmão-de-
sangue realizada por certas tribos árabes, consistindo na ingestão de
algumas gotas de sangue do irmão eleito.
Portanto, podemos concluir que o homem, mesmo quando está
comendo, não vive só de pão; que até mesmo o aparentemente mais
simples ato de autopreservação pode conter um elemento de
autotranscendência.
E vice-versa, propósitos admiravelmente altruístas como cuidar de
pessoa enferma ou pobre, proteger animais contra atos de crueldade,
trabalhar em comitês e participar de marchas de protesto podem servir
como admiráveis disfarces para uma dominadora auto-afirmação,
mesmo que seja inconsciente. Os profissionais benfeitores, as campeãs
da caridade, as matronas dos hospitais, os missionários e assistentes
sociais são indispensáveis à sociedade. Por isso, inquirir a respeito de
seus motivos reais, com freqüência ignorados por eles mesmos, seria
desagradável e grosseiro.
3
Por conseguinte, deixando à parte os extremos de furor cego e
transe místico, todos os nossos estados emocionais apresentam
combinações das duas tendências básicas: uma que reflete a totalidade
do hólon individual, a outra que mostra a sua parceria, com mútua
influência coibitiva de uma sobre a outra. Mas pode acontecer também
que a tendência integrativa, ao invés de coibir sua antagonista, aja
sobre ela como um reforço ou catalisador. No Capítulo IV,
analisaremos as desastrosas conseqüências da identificação
autotranscendente do indivíduo com o espírito grupal, seus líderes,
slogans e crenças. Por enquanto nos ateremos aos aspectos mais
agradáveis do processo autocatalisador, que serve para produzir a
magia da ilusão na arte.
Como funciona o processo? Imaginemos uma situação simples,
com a participação de apenas duas pessoas: a senhora A e sua amiga, a
senhora B, cuja filha morreu, há pouco tempo, num acidente. A
senhora A derrama sentidas lágrimas de simpatia, participando do
sofrimento da senhora B, parcialmente identificando-se com a amiga
por um ato de empatia, projeção ou introjeção — seja qual for o nome
que se queira dar-lhe. O mesmo pode ocorrer se a "outra pessoa" é
meramente uma heroína na tela ou nas páginas de um romance.
Aqui, porém, é essencial estabelecer uma distinção entre dois
diferentes processos emocionais envolvidos no evento, embora eles se
identifiquem na experiência vivida. O primeiro é o ato espontâneo da
própria identificação, caracterizado pelo fato de a senhora A ter,
momentaneamente, esquecido mais ou menos sua existência, pela
participação nas experiências de outra pessoa, real ou imaginária. Essa
é, evidentemente, uma experiência autotranscendente e catártica:
enquanto ela perdurar, a senhora A estará a salvo dos pensamentos
sobre suas próprias preocupações, ciúmes e desavenças com o marido.
Em outras palavras, o processo de identificação inibe temporariamente
as tendências auto-afirmativas.
Chegamos agora ao segundo processo, que pode ter o efeito
contrário. O ato de identificação pode provocar o surgimento de
emoções vicárias experimentadas, por assim dizer, em nome da outra
pessoa. No caso da senhora A, a emoção viçaria foi a de tristeza e
privação. Mas pode ser também de angústia ou ódio. Você se
compadece de Desdêmona. Em conseqüência, a perfídia de lago faz
seu sangue ferver. A angústia que domina o espectador de uma cena
petrificante de Hitchcock é fisiologicamente real, embora viçaria, e
vem acompanhada por palpitações, aceleração do pulso e inesperados
sobressaltos de espanto. E o ódio suscitado pelo gângster desalmado
no cinema — que os espectadores mexicanos, algumas vezes,
crivaram de balas — é ódio real, registrado por um fluxo de
adrenalina. Aqui, portanto, está o cerne de paradoxo que é de
importância básica para a compreensão das desilusões da História —
bem como das ilusões da Arte. Ambas derivam-se da natureza do
homem como um animal que aceita crenças (como o definiu
Waddington). Ambas requerem uma suspensão — temporária ou
permanente — da descrença.
Recapitulando: defrontamo-nos com um processo em dois
degraus. No primeiro degrau, os impulsos autotranscendentes de
projeção, participação e identificação inibem as tendências auto-
afirmativas, purificando-nos da escória de nossos egocêntricos desejos
e preocupações. Isso leva ao segundo degrau: o processo de afetuosa
identificação pode estimular - ou desencadear - o surgimento de ódio,
medo, vingança que, embora experimentados em nome de outra
pessoa, ou grupo de pessoas, não deixam de acelerar o ritmo das
pulsações. Os processos fisiológicos ativados por essas emoções
vicárias são essencialmente idênticos, quer a ameaça ou insulto seja
dirigido contra si mesmo, quer seja dirigido contra a pessoa ou grupo
com quem o indivíduo se identifica. Essas emoções vicárias perten-
cem à categoria auto-afirmativa, embora o ego tenha mudado,
momentaneamente, sua posição — sendo, por exemplo, projetado na
ingênua heroína do palco, no time preferido, ou no "meu país, certo ou
errado".
Constitui um triunfo dos poderes imaginativos da mente humana o
fato de sermos capazes de derramar lágrimas pela morte de Anna
Karenina, que existe somente como tinta impressa num papel, ou
como sombra numa tela de cinema. Crianças e auditórios ingênuos
que, esquecendo o presente, aceitam por inteiro a realidade dos fatos
apresentados no palco, estão experimentando uma espécie de transe
hipnótico, cuja origem principal se encontra na complacente magia
praticada nas culturas primitivas, onde o dançarino mascarado se
identifica com o deus ou demônio que imita, e o ídolo entalhado é
investido de poderes divinos. Num estágio mais avançado da
sofisticação cultural, ainda somos capazes de perceber Laurence
Olivier como ele mesmo é e como Príncipe Hamlet da Dinamarca ao
mesmo tempo, mas além disso produzimos grandes quantidades de
adrenalina para fornecer-lhe o necessário vigor na luta contra seus
adversários. É a mesma magia em ação, embora num tipo mais
sublimado: o processo de identificação (do espectador, mediante o
ator, com o herói) é transitório e parcial, confinado a certos momentos
de clímax, uma suspensão da descrença que não abole por inteiro as
faculdades críticas, nem elimina a identidade pessoal.
A Arte é uma escola de autotranscendência. Uma sessão vodu e
um comício nazista também são. Mas nossas respostas às várias
formas de ilusão criadas pela arte sofreram um processo de
sublimação no percurso desde a infância até a maturidade, e desde a
adoração de ícones até sua apreciação estética. Entretanto, não se pode
observar semelhante processo de sublimação naquelas formas de
comportamento em que o anseio pela transcendência encontra sua
expressão na formação de grupo social ou político. A esse respeito, o
palco em que se desenrolam as tragédias da história ainda continua
ocupado por heróis e vilões, e as emoções vicárias por eles
despertadas são ainda capazes de transformar um pacífico auditório
em fanáticos homicidas. Que isso sirva de ilustração do papel
ambíguo desempenhado no homem pela tendência integrativa — a
qual pode se manifestar sob formas primitivas de identificação, sendo
bem diferente da integração criteriosa. A história social é dominada
pela primeira e a história da arte, pela segunda.

IV

AD MAJOREM GLORIAM ...

As considerações teóricas alinhavadas nos capítulos precedentes


nos possibilitam analisar mais atentamente a condição humana.
Desde o alvorecer da civilização, jamais houve tamanha carência
de reformadores inspirados. Os profetas hebreus, os filósofos gregos,
os sábios chineses, os místicos indianos, os santos cristãos, os
humanistas franceses, os utilitaristas ingleses, os moralistas alemães,
os pragmatistas americanos, os pacifistas hindus, todos denunciaram
as guerras e a violência e apelaram para a melhor natureza do homem,
sem alcançar êxito. Como já observei anteriormente, a razão desse
fracasso deve ser procurada na errônea interpretação dos reformadores
a respeito das causas que impeliram o homem a transformar sua
história num desastre, que o impediram de aprender as lições do
passado e que agora põem sua sobrevivência em perigo. O erro
fundamental consiste em lançar toda a culpa sobre o egoísmo, a
ganância e a suposta destrutividade do homem, o que eqüivale a dizer,
sobre a tendência auto-afirmativa do indivíduo. Nada poderia estar
mais longe da verdade, como o mostram as evidências históricas e
psicológicas.
Historiador algum há de negar que a parte representada pelos
crimes cometidos por motivos pessoais é bem diminuta, se comparada
ao genocídio de grandes populações praticado em nome da generosa
lealdade a um deus ciumento, um rei, um país, ou um sistema político.
Os crimes de Calígula mergulham na insignificância, quando
comparados à devastação promovida por Torquemada. O número de
pessoas mortas por assaltantes, ladrões de estrada, gângsteres e outros
elementos anti-sociais torna-se desprezível à vista das massas
alegremente abatidas em nome da religião verdadeira, da causa justa.
Os hereges foram torturados e queimados vivos, não por ódio,
mas por piedade, pelo bem de suas almas imortais. Os expurgos russos
e chineses foram apresentados como operações de higiene social, para
preparar a humanidade para a idade de ouro da sociedade sem classes.
As câmaras de gás e os crematórios funcionaram com o fito de
preparar o advento de um tipo diferente de milênio. Quero mais uma
vez repetir: ao longo da história humana, as ruínas provocadas pelo
excesso de auto-afirmação individual são quantitativamente
desprezíveis em comparação ao número de pessoas abatidas ad
majorem gloriam, por um autotranscendente devotamento a uma
bandeira, a um líder, a uma fé religiosa ou convicção política. O
homem sempre foi preparado, não apenas para matar, mas também
para morrer por causas boas, más, ou completamente desatinadas. O
que melhor que isso poderia provar a realidade do anseio pela
autotranscendência?
Assim, o registro histórico confronta-nos com o paradoxo de que a
tragédia humana se origina, não em sua agressividade, mas em seu
devotamento a ideais transpessoais; não em um excesso de auto-
afirmação individual, mas no desatino das tendências integrativas de
nossa espécie. Julgo ter sido Pascal quem afirmou: O homem não é
nem anjo, nem demônio: mas quando tenta portar-se como um anjo,
transforma-se num demônio.
Mas como surgiu esse paradoxo?
2

Devemos recordar que, na polaridade básica subjacente a todos os


fenômenos da vida, a tendência auto-afirmativa de um hólon significa
a expressão dinâmica de sua "totalidade", enquanto a tendência
integrativa é a expressão de sua "parceria", isto é, sua subordinação a
um todo maior, no próximo nível superior da holarquia. Numa
sociedade bem equilibrada, ambas as tendências desempenham uma
função construtiva na manutenção do equilíbrio. Por conseguinte,
torna-se indispensável, numa sociedade dinâmica, certa dose de auto-
afirmação — "forte individualismo", ambição, concorrência — pois,
sem ela, não poderia haver progresso cultural ou social. O "sagrado
descontentamento", como o chamou John Donne, é uma força
motivadora essencial para o reformador social, o artista e o pensador.
Somente quando, por qualquer razão, se perturba o equilíbrio, a
tendência auto-afirmativa do indivíduo manifesta seu potencial
destrutivo e procura afirmar-se em detrimento da sociedade. De modo
geral, a maior parte das civilizações, tanto as primitivas quanto as
avançadas, foram bem-sucedidas no manejo de tais contingências.
No entanto, os caprichos da tendência integrativa, que, a nosso
ver, são os principais responsáveis pela situação do homem,
apresentam-se menos óbvios e mais complexos. Eu já aludi a um fator
patogênico: o rebento humano fica sujeito a um período mais longo de
fragilidade e total dependência dos adultos que o sustentam, do que os
filhotes de qualquer outra espécie. Essa prolongada experiência pode
estar na raiz da pronta submissão do adulto à autoridade, bem como na
sua quase hipnótica sugestionabilidade por doutrinas e mandamentos
éticos — sua ansiedade por pertencer a, por identificar-se com um
grupo ou com seu sistema de crenças.
Freud ensinou que a consciência moral — o superego — é o
resíduo de identificação com os pais, em particular com o pai; que
partes das personalidades e atitudes morais deles são "introjetadas" —
quase cimentadas — na estrutura mental inconsciente da criança em
desenvolvimento. Não é necessário ir tão longe, nem aceitar que a
consciência moral do adulto maduro é "nada mais" que o produto
desse transplante psíquico, para compreender que, apesar de tudo, esse
fato desempenha um papel importante na formação psíquica do adulto
imaturo — e, em nosso atual contexto, ocupamo-nos sobretudo com
adultos emocionalmente imaturos, cuja tendência integrativa, "a
necessidade de pertencer", manifesta-se de maneira infantil ou, de
qualquer forma, aberrante.
Nessas manifestações patogênicas da tendência integrativa,
podemos distinguir três fatores sobrepostos: submissão à autoridade
de um substituto-do-pai; completa identificação com um grupo social;
indiscriminada aceitação de seu sistema de crenças. Os três fatores
marcam presença nos ensangüentados anais de nossa história.
A partir de Freud, o primeiro deles tornou-se um lugar-comum tão
repisado que merece apenas uma breve menção. O líder que encarna a
imagem do pai pode ser um santo ou um demagogo, um sábio ou um
maníaco. Não cabe discutir aqui quais as qualidades que formam um
líder, mas ele deve, evidentemente, apelar para alguns denominadores
comuns das massas que estão sob seu controle, e o mais comum dos
denominadores é a infantil submissão à autoridade.
A relação líder — adepto pode abarcar uma nação inteira, como
no caso do culto a Hitler; ou uma pequena seita de devotos; ou pode
estar circunscrita a um dueto, como na ligação hipnótica, no divã do
psicoterapeuta, ou no confessionário do sacerdote. O elemento comum
é o ato de rendição.
Ao nos concentrarmos no segundo e terceiro fatores mencionados
acima — a completa identificação de um indivíduo com um grupo
social e seu sistema de crenças — novamente deparamos com extensa
variedade de agregações sociais que podem ser designadas como
"grupos", e descritas em termos de "mentalidade grupal" ou
Massenpsychologie*. Mas esse ramo da psicologia acabou por
concentrar sua atenção nas formas extremas de comportamento grupal,
tais como os irrompimentos de histeria das massas na Idade Média, ou
os clássicos estudos de Le Bon sobre o comportamento das heróicas e
assassinas multidões incitadas pela Revolução Francesa (que Freud e
outros adotaram com seus manuais). Essa tendência de focalizar o
interesse nas manifestações dramáticas da psicologia das massas
levou-os a negligenciar os princípios mais gerais que fundamentam a
mentalidade grupal, bem como sua dominante influência na história
humana do passado e do presente. Pois uma pessoa não precisa estar
fisicamente presente numa multidão para ser influenciada pela
mentalidade grupal. A identificação emocional com uma nação, igreja
ou movimento político pode ser muito eficiente, sem contato físico.
Alguém pode se tornar vítima do fanatismo grupal até mesmo na
solidão de seu quarto de dormir.
*Psicologia das massas. Em alemão, no original. (N dos T.)
Por outro lado, não é necessário que cada grupo tenha um líder
pessoal ou a "figura-do-pai", em que se investe a autoridade, como já
comentamos no tópico anterior. Movimentos religiosos e políticos
exigem líderes para terem início e, uma vez estabelecidos, ainda
colhem benefícios de uma liderança eficiente. Mas a necessidade
primária de um grupo, o fator que lhe garante coesão como um hólon
social, é um credo, um sistema comum de crenças, e o conseqüente
código de comportamento. Isso pode ser representado pela autoridade
humana ou por um símbolo — o totem ou fetiche que proporciona um
sentido místico de união entre os membros da tribo; pode ser
representado por sagrados ícones como objetos de adoração, ou pela
bandeira do regimento, a qual, durante a batalha, os soldados deviam
defender mesmo a preço de suas próprias vidas. O espírito grupal pode
ser mantido pela convicção de que o grupo representa uma Raça
Escolhida, cujos ancestrais firmaram uma aliança especial com Deus;
ou uma Raça Superior, cujos antepassados eram louros semideuses, ou
cujos Imperadores eram descendentes do Sol. Seu credo pode
fundamentar-se na convicção de que a observância de certos ritos e
normas qualifica o indivíduo para fazer parte de uma elite privilegiada
após a morte; ou que o trabalho manual qualifica a pessoa para
integrar-se na classe-elite da história. Argumentos críticos produzem
impacto insignificante sobre o espírito grupal, porque a identificação
com um grupo sempre envolve certo sacrifício das faculdades críticas
dos indivíduos que o formam e uma intensificação de seu potencial
emocional por uma espécie de ressonância grupal ou realimentação
positiva.
Permitam-me repetir que, na teoria presente, o termo "grupo" não
se restringe ao significado de multidão reunida num local, mas
abrange qualquer hólon social, governado por um código fixo de
regras (por exemplo, linguagem, tradições, costumes, crenças etc.) que
define sua identidade corporativa, proporciona-lhe coesão e um "perfil
social". Como hólon autônomo, possui seu padrão específico de
funcionamento, sendo governado por seu próprio código de conduta,
que não pode ser "reduzido" aos códigos individuais que norteiam o
comportamento de seus membros, quando agem como indivíduos
autônomos e não como partes do grupo. O exemplo óbvio é o do
soldado que, como indivíduo, está proibido de matar, mas como
disciplinado membro de sua unidade está obrigado a fazê-lo, quando o
exigirem as circunstâncias do serviço.
Portanto, é essencial distinguir entre as regras que governam o
comportamento individual e as que regem o comportamento do grupo
como um todo*.
*Num estudo sobre "The Evolution of Systems of Rules of Conduct" (A
Evolução dos Sistemas de Regras de Conduta), o Prof. F. A. von Hayek define como
seu objetivo "distinguir entre os sistemas de regras de conduta que governam o
comportamento dos membros individuais de um grupo (ou dos elementos de qualquer
ordem) e a ordem ou padrão de ações que daí resulta para o grupo como um todo...
Que não são a mesma coisa deveria parecer óbvio pela simples consideração do
assunto, embora os dois aspectos sejam, de fato, confundidos com freqüência¹.
O grupo deve, pois, ser considerado como um hólon quase
autônomo e não simplesmente como a soma de suas partes
individuais. Além disso, suas atividades não dependem apenas das
interações de suas partes, mas também das interações do grupo, como
um todo, com outros hólons sociais num nível superior da hierarquia.
Essas interações, por sua vez, hão de espelhar a polaridade das
tendências auto-afirmativa e integrativa do hólon, oscilando entre a
concorrência e/ou a cooperação com outros grupos. Numa holarquia
social sadia, as duas tendências mantêm-se em equilíbrio, mas, quando
surgem tensões, este ou aquele hólon social tende a tornar-se
superexcitado e a impor-se a seus rivais ou a usurpar a função do todo.
A História apresenta uma lista infindável dessas tensões,
confrontações e conflitos.
Nas páginas anteriores já foram mencionados vários fatores
responsáveis por esse desequilíbrio crônico — tais como a singular
gama de diversificações em nossa espécie, com respeito a
características raciais e temperamento nacional, ou o efeito divisório
da multiplicidade de línguas — fatores que, em conjunto, sempre
levaram as forças disruptivas da humanidade a prevalecer sobre as
forças coesivas, em escala global e local. Uma causa ainda mais
importante de distúrbios é o fato de o código de conduta de um hólon
social incluir não apenas as regras que governam o comportamento de
seus membros, mas também preceitos e imperativos morais que
proclamam ter validade universal. Esses imperativos contêm uma
elevada carga emocional, e o espírito grupal tende a reagir com
violência a qualquer ameaça — real ou imaginária — contra suas
preciosas crenças.
Tudo o que foi dito aponta para a conclusão de que, no espírito
grupal, as tendências auto-afirmativas são mais dominantes que no
nível da média dos indivíduos; além disso, por identificar-se com o
grupo, o indivíduo adota um código de comportamento diferente do
seu código pessoal. O indivíduo — passim, Lorenz — não é um
matador, o grupo é; e por se identificar com o grupo, o indivíduo se
transforma num matador.
Veremos dentro em breve que esse paradoxo pode ser observado
não só no campo de batalha ou entre as multidões linchadoras, mas
também em austeros laboratórios psicológicos. Sua natureza paradoxal
deriva do fato de o ato de identificação com o grupo ser um ato
autotranscendente, embora reforce as tendências auto-afirmativas do
grupo. Identificação com o grupo é um ato de devotamento, de inteira
submissão aos interesses da comunidade, uma rendição total ou
parcial da identidade pessoal e das tendências auto-afirmativas do
indivíduo. Em nossa terminologia, ele abandona sua "totalidade" em
favor de sua "parceria" num todo mais amplo, num nível superior da
holarquia. Até certo ponto, o indivíduo se torna despersonalizado, isto
é, altruísta em mais de um sentido. Ele pode se tornar insensível ao
perigo, sente-se compelido a realizar ações altruístas, mesmo heróicas,
a ponto de chegar ao auto-sacrifício e, ao mesmo tempo, a se portar
com indizível crueldade em relação ao inimigo — real ou imaginário
— do grupo. Mas sua brutalidade é impessoal e altruísta, é praticada
no interesse, ou no suposto interesse, do todo; o indivíduo está
preparado não apenas para matar, mas também para morrer em nome
do grupo. Assim, o comportamento auto-afirmativo do grupo se baseia
no comportamento autotranscendente de seus membros ou, para dizê-
lo de modo mais simples, o egotismo do grupo se alimenta do
altruísmo de seus membros.
A "infernal dialética" desse processo reflete-se em cada nível das
várias holarquias sociais. Patriotismo é a nobre virtude que subordina
os interesses individuais aos interesses da nação; contudo, também dá
origem ao chauvinismo, a expressão militante desses interesses mais
elevados. Lealdade ao clã produz espírito de casta; esprit de corps
(espírito grupal) desabrocha em arrogante facciosismo; fervor
religioso, em fanatismo; o Sermão da Montanha, em Igreja militante.
Vamos agora concentrar-nos na confirmação experimental de
nosso esquema teórico, a qual foi recentemente fornecida, de maneira
bastante surpreendente, pelos laboratórios psicológicos de Yale e de
outras universidades.
3
A série de experiências muito originais, que me proponho a
descrever com alguns detalhes, foi iniciada pelo Dr. Stanley Milgram
no Departamento de Psicologia da Universidade de Yale e repetida
por vários laboratórios experimentais na Alemanha, Itália, Austrália e
África do Sul. O objetivo das experiências era descobrir os limites da
média de obediência da pessoa à autoridade, quando essa pessoa
recebia a ordem de aplicar um severo castigo a uma vítima inocente,
em favor de uma nobre causa. A autoridade era representada pela
figura de um profissional que aparecia vestido com um avental de
laboratório. Vou chamá-lo de Prof. A nobre causa era a Educação, ou
mais exatamente, a experiência era intencionalmente orientada para
fornecer respostas ao seguinte problema: punir o aluno por seus erros
obterá um efeito positivo sobre o processo de aprendizagem? A
experiência exigia a participação de três pessoas; o Prof., encarregado
dos trabalhos, o aprendiz ou vítima e o candidato à experiência, a
quem o Prof. pedia para atuar como professor e punir o aprendiz toda
vez que este desse uma resposta errada. O castigo consistia em
choques elétricos de intensidade crescente, aplicado pelo "professor"
por ordem do Prof. O "aprendiz" ou vítima estava atado a uma espécie
de cadeira elétrica, com um eletrodo preso a seu pulso. O "professor"
estava sentado em frente a um impressionante gerador de choques que
tinha um painel de trinta chaves, variando de 15 volts a 450 volts (isto
é, um aumento de 15 volts de uma chave para a próxima). Havia
também, inscritas sobre a máquina, palavras que variavam de
CHOQUE FRACO a CHOQUE INTENSO, até CHOQUE
ALTAMENTE PERIGOSO.
Na realidade, todo esse horrível aparato se baseava numa farsa. A
"vítima" era um ator contratado pelo Prof. O gerador de choques era
apenas um simulacro. Somente o "professor", o visado pela
experiência, acreditava na realidade dos choques que devia
administrar, bem como dos gritos de dor e súplicas de misericórdia
emitidos pela "vítima".
Os "professores" — isto é, o verdadeiro alvo da experiência —
eram voluntários de todos os níveis de vida, com idades variando entre
vinte e cinqüenta anos, que chegaram ao laboratório de Yale atraídos
por anúncios de jornais para participarem de um estudo científico
sobre a memória e a aprendizagem". (Recebiam em paga a modesta
quantia de quatro dólares por hora.) Entre os candidatos contavam-se
carteiros, professores secundários, vendedores, engenheiros e
trabalhadores braçais. Ao todo, foram testados, só em Yale, mais de
mil voluntários.
O procedimento básico da experiência era o seguinte. O "aluno"
recebia para ler uma longa lista de duplas de palavras, por exemplo,
caixa azul, dia aprazível, pato selvagem etc. A seguir, no "exame" era-
lhe apresentada uma palavra-teste, por exemplo, "azul", com quatro
respostas alternativas, como tinta, caixa, céu, lâmpada, e devia indicar
qual a resposta correta. O "professor" era instruído pelo Prof. para
administrar um choque elétrico toda vez que o aluno desse uma
resposta errada e, além disso, "para passar a um nível mais alto no
gerador de choques, sempre que o aprendiz errasse a resposta".
Para comprovar que o "professor" estava ciente do que fazia, o
ator que representava o papel de vítima emitia lamentos de dor que
aumentavam de intensidade de acordo com a voltagem do choque, a
começar por "leves gemidos" iniciados a 75 volts e prosseguindo num
crescendo, até atingir 150 volts, quando a vítima gritava: "Deixe-me
sair daqui! Não quero mais continuar a experiência! Recuso-me a
continuar!" (Não esqueçamos que o "professor" julgava que a vítima
também era um voluntário.) "A 315 volts, após um grito estridente, a
vítima reafirmava com violência que não mais participava do teste.
Não emitia mais nenhuma resposta, mas berrava e contorcia-se em
agonia, toda vez que recebia novo choque. Acima de 330 volts, nada
mais se ouvia dele. ..." No entanto, o Prof. instruía o candidato a
considerar a falta de resposta como sendo resposta errada e a continuar
aumentando o nível do choque segundo o esquema. Após três choques
de 450 volts, terminava a experiência.
Na média da população, quantas pessoas você pensa que
obedeceriam à ordem de continuar com a tarefa de torturar a vítima
até o limite de 450 volts'.' A resposta parece ser uma conclusão já
preestabelecida: talvez um em mil, um sádico patológico. Antes de
iniciar suas experiências, Milgram realmente pediu a um grupo de
psiquiatras para predizerem o resultado. "Com surpreendente
semelhança, eles predisseram que praticamente todos os candidatos
haveriam de se recusar a obedecer ao orientador da experiência." Os
39 psiquiatras que responderam ao questionário foram unânimes cm
afirmar que "a maioria dos candidatos não ultrapassaria 150 volts (isto
é, quando a vítima pedia pela primeira vez para ser dispensada.) Eles
julgavam que apenas 4% alcançariam 300 volts e que somente uma
patológica margem de cerca de um em mil haveria de administrar o
choque mais forte do painel"'.
Na realidade, mais de 60 por cento dos candidatos, em Vale.
continuaram a obedecer ao Prof. até o fim até o limite de 450 volts.
Quando a experiência foi repetida na Itália, África do Sul e Austrália,
a percentagem de candidatos obedientes subiu um pouco mais. Em
Munique, chegou a 85 por cento.
Antes de continuar, permitam-me esclarecer alguns pontos
relacionados com a montagem da experiência.
Para iniciar, o Prof. não possuía sobre seus candidatos voluntários
nenhum poder comparável ao de um oficial do exército, ou de um
chefe de escritório, ou mesmo de um professor. Não tinha poder de
punir o candidato que se recusasse a administrar mais choques, nem
dispunha de nenhum incentivo financeiro ou outro qualquer para
oferecer, (fora estabelecido que os voluntários seriam empregados
apenas uma única vez.)
Como então conseguiu o Prof. impor sua autoridade ao
"professor", induzindo-o a continuar sua horrível tarefa? Não houve
nenhuma intimidação, nem qualquer persuasão eloqüente. A atitude
do Prof. era rigidamente padronizada:
Em vários pontos, no decorrer da experiência, o candidato se
dirigia ao orientador (o Prof.), pedindo orientação para saber se
devia continuar a administrar os choques. Ou informava que não
desejava continuar.
O orientador respondia com uma seqüência de "estímulos",
utilizando quantos fossem necessários para manter o candidato no
seu papel.
Estímulo 1: Por favor, continue, ou Por favor, prossiga.
Estímulo 2: A experiência exige que você continue.
Estímulo 3: É absolutamente indispensável que você continue.
Estímulo 4: Você não tem outra escolha, você deve prosseguir.
O tom de voz do orientador era sempre firme, mas nunca
descortês.
Se o candidato perguntasse se o aprendiz estava sujeito a
sofrer danos físicos permanentes, o orientador respondia: "Embora
os choques possam ser dolorosos, não há dano permanente dos
tecidos; portanto, continue, por favor". (E seguiam, se necessário,
os estímulos 2, 3 e 4.)
Se o candidato dissesse que o aprendiz não desejava
prosseguir, o orientador replicava: "Quer o aprendiz goste ou não,
você deve continuar até ele ter aprendido corretamente todos os
pares de palavras. Portanto, prossiga, por favor." (E seguiam, se
necessário, os estímulos 2.3 e 4³)
Dificilmente alguém poderia chamar de lavagem cerebral essa
técnica. No entanto, funcionou em aproximadamente dois terços de
todos os candidatos experimentados, não importando qual o seu país,
nem qual o método de recrutamento de voluntários. A técnica
funcionou mesmo quando a "vítima" se queixa de problemas cardíacos
e os choques máximos pareciam constituir um perigo para sua vida.
Sempre tem sido aceito como evidente o fato de pessoas humanas
serem capazes de cometer atos desumanos, quando agem como
membros de um exército ou de uma fanática multidão. A importância
das experiências consistiu no fato de revelarem quão pouco era
necessário para empurrar essas pessoas para além do limite psíquico
que separa o comportamento de cidadãos decentes do comportamento
desumanizado dos guardas SS. A fragilidade desse limite --
ultrapassado por dois terços dos candidatos — surgiu como absoluta
surpresa até mesmo para os psiquiatras, cujas predições gravadas se
mostraram totalmente embora compreensivelmente — erradas.
Uma confortável maneira de fugir a tão desconfortável problema
com que esses resultados nos defrontam é a de lançar a culpa sobre os
impulsos agressivos reprimidos dos indivíduos, para os quais as
experiências forneceram uma saída socialmente respeitável. Tal
interpretação segue a linha tradicional da "ânsia de destruição", de
Freud, ou do "instinto assassino", de Lorenz — ponto de vista
desmentido tanto pela evidência histórica, quanto pela evidência
psicológica, como já demonstrei anteriormente. Milgram encontrou
uma elegante maneira de refutar essa explicação fácil e demonstrar
que
... o ato de aplicar choques à vítima não emana de anseios
destrutivos, mas do fato de os candidatos se haverem integrado
numa estrutura social, sendo incapazes de livrarem-se dela.
Suponhamos que o orientador instruísse o candidato a tomar
um copo de água. Isso significa que o candidato está sedento?
Obviamente não, pois ele está simplesmente fazendo o que lhe
é mandado. O sumo da obediência consiste no fato de a ação
praticada não corresponder aos motivos do agente, mas ser
desencadeada pelo sistema motriz daqueles que ocupam uma
posição mais elevada na hierarquia social4.
Para provar sua tese, ele realizou novas séries de experiências em
que o "professor" foi informado que podia aplicar livremente no
aprendiz qualquer nível de choque de sua própria escolha, em
qualquer dos exercícios
... os níveis mais altos do gerador de choques, os mais
baixos, qualquer um do meio, ou qualquer combinação de
níveis...5
Embora recebendo ampla oportunidade para infligir um
castigo ao aprendiz, quase todos os candidatos administraram os
choques mais fracos do painel de controle, sendo o choque
médio o de 54 volts.[Recordemos que os primeiros gemidos
fracos da vítima fizeram-se ouvir somente nos choques de 75
volts.] Mas, se impulsos destrutivos estivessem realmente
forçando sua liberação, podendo os candidatos justificar o uso de
altos níveis de choque pela causa da ciência, por que não fizeram
os "aprendizes" sofrer? Foi mínima, se é que existiu, a tendência
dos candidatos a fazerem isso. No máximo, um ou dois (entre 40
candidatos)* parecia sentir alguma satisfação em aplicar choques
no aprendiz. Os níveis não eram, em absoluto, comparáveis aos
obtidos quando os candidatos recebiam a ordem de aplicar
choques na vítima. Houve uma diferença de ordem-de-grandeza6.
*As séries experimentais consistiam de grupos de 40 candidatos de diferentes
idades e profissões.
Nas primeiras experiências, quando o professor agia segundo as
ordens do Prof., uma média de 25 dentre 40 candidatos aplicou o
choque máximo de 450 volts. Na experiência de livre escolha, 38
dentre 40 não passou de 150 volts (o primeiro protesto veemente da
vítima), e apenas dois candidatos chegaram a 325 e 450 volts
respectivamente.
Para reforçar o argumento, Milgram cita outras experiências,
realizadas por seus colegas Buss e Berkowitz, com montagem
semelhante.

Com típicas manipulações experimentais, eles impediram


que o candidato percebesse se administrava choques mais
fortes, quando irado. Mas o efeito dessas manipulações foi
mínimo, quando comparado aos níveis obtidos por
obediência. Isso significa que, apesar dos esforços desses
orientadores para encolerizar, irritar ou frustrar o candidato,
este aumentaria, no máximo, um ou dois níveis de choque,
digamos, do nível de choque 4 para o nível 6 (90 volts.) Tal
fato representou um genuíno aumento de agressão. Mas
permaneceu uma diferença de ordem de grandeza na variação
provocada em seu comportamento por esse meio e pelas
condições em que ele estava recebendo ordens7.

A grande maioria dos candidatos experimentados, longe de


sentirem qualquer prazer na aplicação de choques na vítima,
mostraram vários sintomas de tensão emocional e angústia. Alguns
começaram a suar, outros suplicaram ao Prof. que parasse, outros
ainda protestaram dizendo que a experiência era cruel e estúpida. No
entanto, dois terços continuaram implacavelmente até o fim.
O que os levou a persistir numa tarefa obviamente desagradável
para eles e em flagrante contradição com seus padrões individuais de
ética? A análise de Milgram, abstraídas algumas diferenças de
terminologia, coloca-se na mesma linha das considerações teóricas
traçadas nos capítulos anteriores. Ele reconhece as profundas
implicações do conceito hierárquico*, a saber, que
*Senti-me lisonjeado pelas generosas referências, feitas em seu livro, a respeito
do sistema hierárquico proposto em O Fantasma da Máquina.
... quando os indivíduos aceitam uma situação de controle
hierárquico, o mecanismo que ordinariamente regula os
impulsos individuais é suprimido e transferido para o
componente do nível superior...8
Os indivíduos que entram em tais hierarquias são
modificados, por necessidade, em seu modo de atuar...9 Essa
transformação corresponde exatamente ao dilema central de
nossa experiência: como se explica que uma pessoa,
geralmente decente e cortês, age com severidade contra outra
pessoa, no decorrer da experiência?...10
O desaparecimento do senso de responsabilidade é a mais
importante conseqüência da submissão à autoridade..."
Durante a experiência, muitos candidatos consideram seu
comportamento num contexto mais amplo, que é benéfico e
útil à sociedade — a procura da verdade científica. O
laboratório psicológico apresenta firmes credenciais de
legitimidade e inspira confiança e crédito naqueles que ali
trabalham. Uma ação como a de aplicar choques na vítima
afigura-se má, quando considerada isoladamente, mas adquire
um significado totalmente diferente, quando colocada nesse
contexto...12
A moralidade não desaparece, mas adquire um enfoque
radicalmente oposto: a pessoa subordinada sente vergonha ou
orgulho, dependendo do grau de eficiência com que executou
as ações exigidas pela autoridade. A linguagem fornece
numerosos termos para definir com precisão esse tipo de
moralidade: lealdade, obediência, disciplina...13

Portanto, aqui temos a confirmação experimental daquilo que


chamei de "infernal dialética" da condição do homem. Não é, como o
proclama a simples frase feita, a sua "agressividade inata" (isto é, sua
tendência auto-afirmativa) que transforma inofensivos cidadãos em
carrascos, mas seu devotamento autotranscendente a uma causa,
simbolizada pelo Prof. que desempenha o papel de líder. A tendência
integrativa, agindo como veículo ou catalisador, provoca a
modificação da moralidade, a supressão da responsabilidade pessoal, a
substituição do código de comportamento individual pelo código do
"componente superior" da hierarquia. No decurso desse processo fatal,
o indivíduo se torna, até certo ponto, despersonalizado; ele não age
mais como um hólon autônomo ou como parte-todo, mas
simplesmente como uma parte. Jano não possui mais as duas faces —
resta-lhe apenas uma, voltada para cima, em sagrado arrebatamento,
ou em alienado torpor.
As conclusões finais, extraídas por Milgram de suas experiências,
estão em sintonia com a presente teoria:
Esta é, talvez, a lição mais fundamental de nosso estudo:
pessoas comuns, que simplesmente cumprem suas obrigações e
não apresentam nenhuma hostilidade particular, podem se tornar
agentes de um terrível processo destrutivo. Além disso, mesmo
quando os efeitos destrutivos de sua obra se tornam abertamente
evidentes e elas são incitadas a praticar ações incompatíveis com
os padrões fundamentais de moralidade, relativamente poucas
pessoas contam com os recursos internos necessários para resistir
à autoridade...14
O comportamento revelado nas experiências aqui relatadas é
um comportamento humano normal, embora revelado em
condições que mostram com especial clareza o perigo a que está
exposta a sobrevivência humana, perigo esse inerente à nossa
conjuntura. E o que foi que nós vimos? Não a agressão, pois não
há raiva, espírito de vingança ou ódio naqueles que aplicaram
choques na vítima. Revela-se algo muito mais perigoso: a
capacidade do homem abandonar sua humanidade, aliás, a
inevitabilidade dele assim agir, quando imerge sua personalidade
única em mais amplas estruturas institucionais.
Este é um defeito fatal que a Natureza esboçou dentro de nós
e que, a longo prazo, permite à nossa espécie apenas uma
modesta chance de sobrevivência.
A ironia reside no fato de as virtudes da lealdade, disciplina,
auto-sacrifício, que tanto valorizamos no indivíduo, serem
exatamente as propriedades que criam as máquinas
organizacionais destrutivas da guerra e atrelam os homens a
maléficos sistemas de autoridade...15
4

Anteriormente, afirmei que a metamorfose das mentes individuais


em espírito grupal não requer necessariamente a presença física do
indivíduo num grupo ou multidão, mas apenas um ato de identificação
com o grupo — suas crenças, tradições, liderança e/ou seus símbolos
que despertam emoção. Por isso, no caso das experiências de
Milgram, os "professores" se tornaram membros de um grupo
invisível — a respeitável hierarquia acadêmica, o sacerdócio da
ciência — cuja sabedoria e autoridade eram representadas pelo Prof.
Mas, uma vez engajados, viram-se presos numa armadilha — um
"sistema fechado", no qual se entra facilmente, mas de onde
dificilmente se sai. A tendência integrativa, que garante as forças
coesivas dentro do grupo, manifesta-se de várias maneiras, já
discutidas anteriormente, e todas estas contêm alta voltagem emotiva,
muito acima da expectativa racional: os resultados obtidos por
Milgram refutaram categoricamente as previsões dos psiquiatras — e
as do bom senso.
Algumas experiências mais recentes realizadas por Henri Tajfel e
sua equipe, na Universidade de Bristol, revelaram, num contexto
diferente, fenômenos igualmente inesperados. Grupos de alunos com
idade entre 14 e 15 anos foram submetidos a um rápido — e fictício
— teste psicológico. A seguir, foi dito a cada rapaz que ele era um
"personagem Júlio" ou um "personagem Augusto". Não se deu
nenhuma explicação a respeito das características das pessoas Júlio ou
Augusto, nem os alunos sabiam quais eram os outros membros de seu
grupo. No entanto, eles se identificaram rapidamente com seu grupo
fictício, orgulhosos de serem um personagem Júlio ou um personagem
Augusto, a tal ponto de se mostrarem dispostos a fazerem sacrifícios
monetários para ajudar seus anônimos irmãos de grupo e para causar
dificuldades ao grupo contrário.
O método aplicado nesta e em posteriores experiências era
bastante complicado. Em vez de entrar em maiores detalhes, prefiro
citar o resumo apresentado por Nigel Calder, que tem envidado todos
os esforços para levar a conhecimento público as descobertas de
Tajfel:
As experiências iniciadas com os alunos de Bristol
forneceram pontos de referência no vasto oceano do
comportamento social do homem, que antes parecia inavegável
para a ciência. Quantas teorias foram lançadas em vão! Algumas
delas, como as de Sigmund Freud e Konrad Lorenz, apontaram a
agressividade inata do indivíduo como fonte dos conflitos entre
grupos — uma guerra mundial seria algo semelhante a uma briga
de botequim que se alastrou descontroladamente...16 Contudo, o
grande problema de sempre tem sido explicar por que jovens
bem comportados hão de partir tão prontamente, não em
frenéticas hordas, mas em disciplinada formação, e matar outros
jovens bem comportados. Um vigoroso desafio contra a teoria
"individualista" foi lançado pelo psicólogo social Henri Tajfel.
Ele ressalta a drástica mudança verificada nas normas do
comportamento humano, quando um grupo enfrenta outro. O que
entra em cena é a capacidade do povo de agir em uníssono, de
acordo com as leis e a estrutura da sociedade, sem a mínima
consideração para com os motivos e sentimentos individuais...
Numa série notável de experiências, Tajfel e seus colegas da
Universidade de Bristol demonstraram que se pode alterar, com
grande precisão, o comportamento de uma pessoa, apenas
dizendo-lhe que pertence a um grupo — mesmo a um grupo do
qual ela jamais ouviu falar antes. O participante dessas
experiências favorece, quase automaticamente, os membros
anônimos de seu próprio grupo e, havendo oportunidade, não
titubeia em abandonar seu caminho para deixar em desvantagem
os membros de outro grupo... As pessoas defenderão
ardorosamente um grupo ao qual foram casualmente agregadas,
sem receber qualquer orientação a respeito de quem mais
pertence ao grupo, ou de quais devem ser as qualidades desse
grupo...'7 Somente após compreender todo o significado da
positiva e fácil propensão dos seres humanos a se identificarem
com qualquer grupo em que se sentem inseridos, pode alguém
formar uma base firme para a pesquisa sobre as origens da
hostilidade...18
Julgo essas experiências muito significativas, não apenas por
motivos teóricos, mas também por razões pessoais, relacionadas a um
episódio de infância que jamais deixou de me intrigar e, a um tempo,
me divertir. Em meu primeiro dia de escola, com a idade de cinco
anos, em Budapeste, Hungria, meus futuros colegas de classe fizeram-
me esta crucial pergunta: "Você é um MTK ou um FTC?" Essas eram
as iniciais dos dois mais importantes times de futebol da Hungria,
eternos rivais nos campeonatos da Confederação, como era do
conhecimento de qualquer escolar — exceto eu, que jamais fora
levado para assistir a um jogo de futebol. Entretanto, era imperdoável
confessar tão profunda ignorância. Por isso respondi com altiva
segurança: "MTK, é claro!" E assim o dado foi lançado: pelo resto de
minha infância na Hungria e mesmo quando minha família se mudou
para Viena, eu continuei um ardente e leal torcedor do MTK. E meu
coração ainda vibra por ele, por sobre a Cortina de Ferro. Além do
mais, as fascinantes camisas com listras azuis e brancas do time
jamais perderam sua força mágica, ao passo que as vulgares listras
alvi-verdes de seus indignos rivais ainda me causam repulsa. Estou
mesmo inclinado a acreditar que essa prematura conversão exerceu
certa influência sobre o fato de o azul se haver tornado minha cor
predileta. (Afinal, o céu é azul, uma cor primária, enquanto o verde
não passa de produto da adulteração do azul com o amarelo.) Posso rir
de mim mesmo, porém o apego emotivo, a mágica ligação, ainda
persiste, e transferir minha lealdade, do azul e branco MTK para o
alviverde FTC, seria uma terrível blasfêmia. Na verdade, aceitamos
nossos engajamentos da mesma forma que apanhamos uma infecção.
Pior que isso, atravessamos a vida ignorando essa disposição
patológica, que precipita a humanidade de um a outro desastre
histórico.
5
Desde o alvorecer de nossa história escrita, as sociedades humanas
sempre obtiveram considerável êxito em cercear as tendências auto-
afirmativas do indivíduo — até mesmo o pequeno e horrível selvagem
que vivia nas cavernas acabou se transformando num membro da
sociedade, mais ou menos civilizado e respeitador da lei. O mesmo
registro histórico testemunha a trágica incapacidade humana de
produzir uma paralela sublimação da tendência integrativa. No
entanto, devo repetir novamente, tanto a glória como a patologia da
condição humana derivam de nossos poderes de autotranscendência,
capazes igualmente de nos transformarem em artistas, santos ou
assassinos, mas preferentemente em assassinos. Apenas uma pequena
minoria é capaz de canalizar os ímpetos autotranscendentes para ideais
criativos. Para a esmagadora maioria, ao longo de toda a história, a
única realização de sua necessidade de entrega, de seus anelos de
comunhão, tem sido a identificação com um clã, com uma tribo,
nação, igreja, ou partido, a submissão a seus líderes, a veneração de
seus símbolos, a aceitação pueril e não crítica de seu sistema de
crenças emocionalmente saturado. Portanto, defrontamo-nos com o
contraste entre a ponderada coibição da tendência auto-afirmativa e os
imaturos caprichos da tendência integrativa, contraste claramente
revelado toda vez que o espírito de grupo sobrepuja a mente do
indivíduo, seja num comício político, seja no laboratório psicológico.
Quero colocar a idéia de maneira mais simples: o indivíduo que se
permite um excesso de auto-afirmação, expõe-se aos castigos da
sociedade — coloca-se fora da lei, desliga-se da hierarquia. Por outro
lado, o adepto fervoroso funde-se cada vez mais com a hierarquia;
ingressa no seio de sua igreja ou de seu partido, ou de qualquer tipo de
hólon social, em favor do qual ele abdica de sua identidade. Pois o
processo de identificação, em suas formas mais rudimentares, resulta,
como já vimos, em certo prejuízo da individualidade, numa abdicação
das faculdades críticas e da responsabilidade pessoal.
Isso nos leva a uma distinção básica entre as formas primitivas ou
infantis de identificação e as formas evoluídas de integração numa
holarquia social. Numa holarquia bem equilibrada, o indivíduo retém
sua característica como um hólon social, uma parte-todo que, qua
(como) todo, goza de autonomia dentro dos limites das restrições
impostas pelos interesses do grupo. Ele permanece um todo autônomo
de plenos direitos, do qual se espera, também, que defenda seus
atributos holísticos pela originalidade, iniciativa e, sobretudo, pela
responsabilidade pessoal. As mesmas considerações se aplicam aos
hólons sociais nos níveis superiores da hierarquia — clãs e tribos,
comunidades étnicas e religiosas, grupos profissionais e partidos
políticos. Eles também devem desempenhar, de modo ideal, as
virtudes contidas no princípio de Jano: funcionar como todos
autônomos e, ao mesmo tempo, amoldar-se aos interesses nacionais. E
assim por diante, subindo a escala hierárquica, nível por nível, até
chegar à comunidade mundial, no ápice da pirâmide. Uma sociedade
ideal desse tipo há de possuir consciência hierárquica e cada hólon
em cada nível estará consciente tanto de seus direitos como um todo,
quanto de seus deveres como uma parte.
É desnecessário dizer que o espelho da história, passada e
presente, nos reflete uma imagem bem diferente.
6
Mencionei apenas por alto as dramáticas manifestações de histeria
das massas que tanto impressionaram Freud e Le Bon, porque eu
tencionava concentrar a atenção no processo de formação de grupo
"normal" e sobre seus devastadores efeitos na história de nossa
espécie. Esse processo "normal", como vimos, envolve identificação
com o grupo e aceitação de suas crenças. Um importante efeito
colateral do processo é o agravamento da cisão entre emoção e razão.
Pois o espírito grupal é dominado por um sistema de crenças,
tradições, imperativos morais, com elevado potencial emotivo, sem se
importar com seu conteúdo racional; e muito freqüentemente seu
poder explosivo é intensificado pela própria irracionalidade. A fé no
credo do grupo é um compromisso emocional; ela anestesia as
faculdades críticas do indivíduo e rejeita a dúvida racional como algo
mau. Além disso, os indivíduos são dotados de mentes de
complexidade variada, ao passo que o grupo deve apresentar um
espírito uniforme, se quiser manter sua coesão como um hólon.
Conseqüentemente, o espírito grupal deve funcionar num nível
intelectual acessível a todos os seus membros: a unidade de espírito
deve reduzir-se à simplicidade de espírito. Como resultado último
tem-se o açodamento da dinâmica emocional do grupo e a
concomitante redução de suas faculdades intelectuais — uma triste
caricatura do ideal da consciência hierárquica.
7
Já mencionei a tendência paranóica que se evidencia ao longo de
toda a História. Pessoas esclarecidas podem estar propensas a admitir
quando muito, que essa tendência existiu entre os caçadores de
cabeças de Papua, ou no reino asteca, onde o número de jovens,
virgens e crianças sacrificados aos deuses subia à casa dos 20 mil a 50
mil per annum. "Nesse estado de coisas", comentou Prescott,
... foi bondosamente ordenado pela Providência que a terra
deveria ser entregue a outra raça, a qual deveria libertá-la das
horrendas superstições que diariamente se espalhavam mais e
mais... As solapantes instituições dos astecas forneceram a
melhor apologia para a sua conquista. Os conquistadores, é
bem verdade, trouxeram consigo a Inquisição. Mas também
trouxeram o Cristianismo, cuja irradiação benfazeja ainda
haveria de subsistir, quando as vorazes chamas do fanatismo
se houvessem extinguido...19
No entanto, Prescott deve ter sabido que, poucos anos após a
conquista do México, a "irradiação benfazeja" do Cristianismo se
manifestou na Guerra dos Trinta Anos*, que exterminou uma parte
considerável da população da Europa. E assim também em Auschwitz
e Gulag. Todavia, até pessoas esclarecidas, que reconhecem a
desordem mental existente na base desses horrores, são capazes de
descartá-los como fenômenos do passado. Não é fácil amar a
humanidade e admitir ao mesmo tempo que a tendência paranóica,
utilizando os mais variados disfarces, continua tão evidente na história
contemporânea quanto no passado longínquo, com a agravante de que
suas conseqüências podem ser muito mais mortíferas; e admitir
também que essa tendência não é apenas acidental, mas inerente à
condição humana.
*Conflito religioso e político (1618-1648). Uma das principais causas foi o
antagonismo existente entre católicos e protestantes. (N. do T.)
A Agência Nova China, órgão oficial do partido, escreveu: "A
travessia do rio Yangtze feita a nado pelo Presidente Mao foi um ato
de grande encorajamento ao povo chinês e a todos os revolucionários
do mundo, e um pesado golpe contra o imperialismo, o revisionismo
moderno e os monstros e aleijões que se opõem ao socialismo e ao
pensamento de Mao Tse-tung"20.
Os sintomas variam com o tempo, mas o padrão subjacente da
desordem continua o mesmo: a cisão entre a fé e a razão, entre o
pensamento racional e as crenças irracionais. As crenças religiosas
emanam de motivos padrões que sempre se repetem e parecem ser
compartilhados por toda a humanidade, provocando imediatas
respostas emotivas*. Mas, assim que se tornam institucionalizados
como propriedade coletiva de um grupo específico, esses motivos
degeneram em rígidas doutrinas que, sem perderem seu apelo
emotivo, são potencialmente lesivas às faculdades críticas. Para
encobrir a cisão, foram engendradas, em diferentes épocas, as mais
variadas formas de teorias ambíguas — formidáveis técnicas de auto-
ilusão, algumas grosseiras, outras altamente sofisticadas. O mesmo
destino sofreram as religiões seculares que se apresentam sob o nome
de ideologias políticas. Elas também possuem seus arquétipos
originais: o anelo por uma utopia, por uma sociedade ideal. Mas
quando se cristalizam em movimentos e partidos, essas ideologias
podem se tornar de tal forma distorcidas que a política atual por elas
adotada é o extremo oposto de seu apregoado ideal. Essa tendência
aparentemente inevitável de as ideologias religiosas e seculares
degenerarem em suas próprias caricaturas é uma conseqüência direta
das características do espírito grupal que nós já analisamos: sua
urgência de simplicidade intelectual, combinada com excitamento
emocional.
*Ver, por exemplo, o livro de William James The Varieties of Religious
Experience, ainda um clássico nesse campo. Um estudo mais recente é apresentado
por Sir Alister Hardy em The Divine Flame e The Biology of God.
Crenças irracionais estão saturadas de emoção; devem ser
sentidas, para serem verdadeiras. Crer foi definido como "conhecer
com as próprias vísceras". E conhecimento visceral, seja inato, seja
adquirido, promana do "cérebro antigo". Muitas vezes descrevemos —
erroneamente — nossos julgamentos impregnados de afeto como
"reações instintivas". Não são exatamente isso. Mas apresentam, como
os verdadeiros instintos, o mesmo poder elementar, contrário à razão,
do cérebro antigo. Nesse ponto, as considerações psicológicas traçadas
no presente capítulo nos conduzem diretamente para as teorias
neurofisiológicas analisadas no Prólogo. A esquizofisiologia do
cérebro fornece uma explicação essencial para o traço de insanidade,
presente ao longo de toda a história do homem.
Naturalmente, nossas preciosas crenças não são produto exclusivo
nem do neocórtex humano, nem do "cérebro antigo" que dividimos
com os mamíferos inferiores, mas das atividades conjuntas de ambos.
Seu grau de irracionalidade varia de acordo com o grau de domínio de
uma ou outra parte do cérebro, e com a intensidade desse domínio.
Entre os teóricos extremos de "pura lógica" e "paixão cega" existem
muitos níveis de atividade mental. Esses níveis podemos encontrá-los
nos homens primitivos em seus vários estágios de desenvolvimento,
nas crianças em suas diferentes faixas etárias e nos adultos em seus
variados graus de consciência (lucidez, devaneio, sonho, alucinação
etc.) Cada um desses tipos de atividade mental é governado por suas
próprias "regras do jogo" que refletem as complexas interações, no
cérebro, entre a estrutura antiga e a nova. Pois, durante todo o tempo
estas são forçadas a interagir — mesmo que a coordenação entre
ambas seja inadequada e deficiente nos efetivos controles que
garantem a estabilidade de uma holarquia bem ordenada. Assim, os
próprios símbolos verbais abstratos ficam impregnados de valores
emotivos e reações viscerais — como o demonstra tão claramente o
detector de mentiras psicogalvânico. E isso, naturalmente, se aplica
muito mais às doutrinas e ideologias amplificadas pelo espírito grupal.
Infelizmente, não podemos utilizar um detector de mentiras para
medir a irracionalidade das crenças dessas doutrinas e ideologias, nem
seu potencial explosivo e devastador.

UMA ALTERNATIVA PARA O DESESPERO


1

Enquanto acreditávamos que nossa espécie era potencialmente


imortal, contando com um infinito tempo de vida diante de si,
podíamos permitir-nos esperar pacientemente por aquela mudança
evolutiva da natureza humana que, gradual ou subitamente, haveria de
fazer prevalecer o amor e a reta razão. Mas a evolução biológica do
homem chegou a uma virtual estagnação na era Cro-Magnon, há uns
50 mil ou 100 mil anos. Não podemos esperar outros 100 mil anos
pela pouco provável mudança que há de consertar as coisas; podemos
apenas esperar sobreviver com a ajuda da invenção de técnicas que
suplantem a evolução biológica. Isso eqüivale a dizer que devemos
pesquisar a cura da endemia esquizofisiológica de nossa natureza, a
qual nos arrastou para a situação em que nos encontramos agora. Se
falharmos na descoberta dessa cura, o velho elemento paranóico
existente no homem, combinado com seus novos poderes de
destruição, haverá de levar, mais cedo ou mais tarde, à extinção da
espécie. Mas eu também acredito que a cura não está muito fora do
alcance da biologia contemporânea; e que, havendo a adequada
concentração de esforços, a biologia pode levar o homem a vencer a
luta pela sobrevivência.
Bem sei que isso parece ultra-otimista, contrastando com a visão
pessimista exposta nos capítulos anteriores, a respeito das perspectivas
existentes a nossa frente. Entretanto, não julgo exagerados esses
receios, nem penso que a esperança de salvação seja inteiramente
utópica. Essa esperança não se inspira na ficção científica, mas baseia-
se nos recentes progressos espetaculares da neuroquímica e de outros
campos afins. Eles ainda não garantiram a cura da desordem mental de
nossa espécie, mas já demarcaram a área de pesquisa que pode
111
eventualmente produzir o remédio apontado, com grande esperança,
no Prólogo: a combinação de hormônios benévolos ou de enzimas que
resolveriam o conflito entre a estrutura antiga e a nova do cérebro,
concedendo ao neocórtex o poder do controle hierárquico sobre os
arcaicos centros inferiores, catalisando assim a transição do maníaco
para o homem.
Entretanto, dolorosas experiências pessoais me ensinaram que
toda proposta que envolve "interferência na natureza humana" está
fadada a provocar fortes resistências emocionais. Essas, em parte, se
fundamentam na ignorância e no preconceito e, em parte, na
justificada repulsa contra ulteriores intrusões na privacidade e
inviolabilidade do indivíduo realizadas por manobras sociais,
manobras funcionais, várias formas de lavagem cerebral e outros
aspectos ameaçadores do totalitarismo latente ou patente.
Desnecessário se torna dizer que eu partilho dessa aversão a um
pesadelo em cuja sombra passei a maior parte de minha vida. Mas, por
outro lado, deve-se compreender que, a partir do instante em que o
primeiro habitante das cavernas cobriu seu corpo tiritante com a pele
de um animal abatido, o homem tem criado continuamente para si, ora
melhor ora pior, um ambiente artificial e um modo artificial de
existência, sem o que não consegue mais sobreviver. Não há como
regredir com relação à habitação, vestuário, aquecimento artificial,
alimentação cozida; nem com relação a espetáculos, aparelhos
auditivos, fórceps, membros artificiais, anestésicos, anti-sépticos,
profiláticos, vacinas e assim por diante. Nós começamos a interferir na
natureza humana quase no exato momento em que um bebê nasce,
pela prática universal de pingar uma solução de nitrato de prata em
seus olhos, para protegê-los contra a ophthalmia neonatorum, um tipo
de conjuntivite que muitas vezes leva à cegueira, causada por bacilos
que ficam de emboscada nas partes genitais da mãe. Mais tarde, isso é
complementado com vacinações preventivas, obrigatórias na maioria
dos países civilizados, contra varíola e outras doenças infecciosas.
Para calcular o valor dessas intromissões no curso da Natureza,
lembremos que as epidemias de varíola entre os índios americanos
foram uma das principais causas que os levaram a perder suas terras
para o homem branco. A varíola dizimou também a população da
Europa, no início do séc. XVII — e suas devastações apenas foram
igualadas, talvez simbolicamente, pelos massacres realizados em
nome da verdadeira religião, durante a Guerra dos Trinta Anos.
Com relação ao nosso tema, outra forma de interferência, embora
menos divulgada, é a prevenção do bócio e da variedade de cretinismo
112
a ele associada. Quando eu era criança, o número de pessoas, nos
vales das regiões alpinas, que apresentavam monstruosas
excrescências na superfície frontal do pescoço e o de crianças cretinas
em suas famílias subia a cifras assustadoras. Em viagens recentes,
revisitando as mesmas regiões meio século mais tarde, não me recordo
de haver deparado com uma única criança cretina. Graças aos
progressos da bioquímica, descobriu-se que esse tipo de cretinismo era
provocado por uma disfunção da glândula tireóide. Isso, por seu turno,
decorria da deficiência de iodo nos nutrientes das áreas montanhosas
afetadas. Sem iodo suficiente, a glândula é incapaz de sintetizar as
quantidades necessárias de hormônios tireóides, com trágicas
conseqüências para a mente. Por isso, foram adicionadas, pelas
autoridades sanitárias, pequenas quantidades de iodo ao sal de
cozinha, e o cretinismo causado pelo bócio tornou-se, na Europa, algo
do passado.
Obviamente, nossa espécie não possui o equipamento biológico
necessário para viver em ambientes com solo pobre em iodo, nem para
enfrentar os microorganismos da malária e da varíola. Também não
possui salvaguardas instintivas contra a procriação excessiva. Os
etólogos afirmam que toda espécie animal por eles estudada — desde
minúsculos insetos, passando pelos coelhos, até os babuínos — está
equipada com tais controles instintivos que inibem a procriação
excessiva e mantêm a densidade populacional praticamente constante,
em determinado território, mesmo quando o alimento é abundante.
Quando a densidade populacional atinge um limite crítico, a
aglomeração produz tensão que afeta o equilíbrio hormonal e interfere
no período de vida e no comportamento reprodutivo. Assim, existe
uma espécie de mecanismo de realimentação que regula a taxa de
procriação e mantém a população num nível mais ou menos estável. A
população de determinada espécie em determinado território
comporta-se, de fato, como um hólon social auto-regulador.
Mas, também sob esse aspecto, o homem é um aleijão biológico
que, em algum lugar ao longo do caminho, perdeu esse mecanismo de
controle instintivo. Até parece que, nas populações humanas, a lei
ecológica está invertida: quanto mais apinhados vivem os homens em
favelas, guetos e áreas afetadas pela pobreza, tanto mais rápido se
reproduzem. O que impediu que a população explodisse mais cedo na
história não foi o tipo de controle de realimentação automática
observado nos animais, mas a ceifa mortífera das guerras, epidemias,
pestes e mortalidade infantil. Esses eram fatores que estavam fora do
controle das massas; não obstante isso, estão registradas desde o
113
primeiro alvorecer da história tentativas conscientes para regular a
taxa de natalidade por meio de anticoncepcionais e infanticídios. (As
mais antigas receitas para evitar a gravidez estão contidas no assim
chamado Petri papyrus, que data de cerca de 1850 a.C). O controle da
natalidade mediante o infanticídio também era comum desde os
tempos da antiga Esparta até recentemente entre os esquimós.
Comparados a esses métodos cruéis, os modernos modos de
diretamente "interferir na Natureza" pelo uso de dispositivos intra-
uterinos e anticoncepcionais orais são, sem dúvida, preferíveis. No
entanto, interferem de maneira radical e permanente com o processo
fisiológico vital do ciclo menstrual. Aplicados em escala mundial,
tornar-se-iam o equivalente a uma mudança adaptativa induzida
artificialmente.
Torna-se interminável a lista das benéficas "interferências na
natureza humana", em comparação com a qual os abusos e ocasionais
loucuras da medicina e da psiquiatria se reduzem a uma relativa
insignificância. Na verdade, a soma total dessas interferências resulta
em correção da natureza humana que, sem esses corretivos,
dificilmente seria viável sob o aspecto biológico e que, sob o aspecto
social, após incontáveis desastres, marcha para a derradeira catástrofe.
Após derrotar as piores doenças infecciosas que atacam o corpo do
homem, é chegada a hora de procurar métodos para imunizá-lo contra
infecciosas desilusões que, desde tempos imemoráveis, têm atacado o
espírito grupal e transformado sua história num banho de sangue. A
neurofarmacologia brindou-nos com gases letais para os nervos,
drogas para a lavagem cerebral, outras para induzir alucinações e
ilusões a bel-prazer. Ela pode e deve ser utilizada para fins benfazejos.
Permitam-me citar um único exemplo do tipo de pesquisa orientada
nesta direção:
Em 1961, o Centro Médico São Francisco, da Universidade da
Califórnia, organizou um simpósio internacional sobre o Controle da
Mente. Durante a primeira sessão, o Prof. Holger Hyden, da
Universidade de Gothenburg, mereceu manchetes dos jornais por seu
ensaio — "Biochemical Aspects of Brain Activity" [Aspectos
Bioquímicos da Atividade Cerebral.] Nesse campo, Hyden é uma das
principais autoridades. Cito a seguir a passagem que provocou maior
interesse (a referência a minha pessoa explica-se pelo fato de eu haver
participado do simpósio):
Ao se considerar o problema do controle da mente, os dados
levam à formulação da seguinte pergunta: seria possível
114
modificar os fundamentos da emoção, induzindo alterações
moleculares nas substâncias biologicamente ativas do cérebro? O
ARN*, em particular, é o principal alvo dessa especulação, visto
que uma alteração molecular do ARN pode levar a uma alteração
das proteínas que estão sendo formadas. Pode-se formular a
pergunta de maneira diferente, para modificar a ênfase: os dados
experimentais aqui apresentados fornecem meios para modificar
o estado mental por meio de alterações químicas especificamente
induzidas? Foram obtidos resultados que apontam nesta direção;
esse trabalho foi executado com o uso de uma substância
chamada triciano-aminopropeno.
*Ácido ribonucléico, uma substância fundamental no mecanismo genético.
... A aplicação de uma substância que modifica o índice de
produção e a composição do ARN e que provoca alterações das
enzimas nas unidades funcionais do sistema nervoso central
apresenta aspectos negativos e positivos. Agora há evidências de
que a administração de triciano-aminopropeno é acompanhada
por um aumento de sugestionabilidade do homem. Assim sendo,
uma alteração dirigida de uma substância tão fundamentalmente
importante como o ARN existente no cérebro poderia ser
utilizada para o condicionamento. O autor não está se referindo
especificamente ao triciano-aminopropeno, mas a qualquer
substância que induza alterações de moléculas biologicamente
importantes nos neurônios e gânglios, e que afete o estado
mental de forma negativa. Não é difícil imaginar os possíveis
usos que o governo de um Estado controlado pela força haveria
de fazer dessa substância. Durante certo tempo, o governo
submeteria a população a situações insuportáveis. De súbito, as
dificuldades seriam removidas e, ao mesmo tempo, se
adicionaria a substância à água potável, acionando-se também os
meios de comunicação de massa. Esse método seria muito mais
econômico e criaria possibilidades muito mais intrigantes que a
técnica de deixar Ivanov lidar individualmente com Rubashov,
por longo tempo, como Koestler descreveu em seu livro. Por
outro lado, uma medida defensiva contra os efeitos de uma
substância tal como o triciano-aminopropeno também não é
difícil de ser imaginada1.
A última frase foi cautelosamente formulada, mas são claras as
suas implicações. Por mais chocante que isso possa parecer, se a nossa
115
combalida espécie tiver de ser salva, a salvação não virá das
resoluções da ONU e das conferências diplomáticas, mas dos
laboratórios biológicos. É evidente que uma disfunção biológica
necessita de um corretivo biológico.
2
Seria ingênuo esperar que as drogas possam fazer à mente
graciosas dádivas e colocar dentro dela algo que ainda não esteja lá.
Nem visões místicas, nem sabedoria filosófica, nem poder criativo
podem ser administrados por pílulas ou injeções. O bioquímico não
pode adicionar algo às faculdades do cérebro — mas pode eliminar
obstruções e bloqueios que impedem o uso apropriado delas. Ele não
pode inserir circuitos adicionais dentro do cérebro, mas pode
aperfeiçoar a coordenação entre os existentes e aumentar o poder do
neocórtex — o ápice da hierarquia — sobre os níveis inferiores,
dominados pela emoção, e sobre as paixões cegas por eles
engendradas. Nossos atuais tranqüilizantes, barbitúricos, estimulantes,
antidepressivos e demais combinações são apenas o primeiro passo na
direção de meios mais sofisticados para alcançar um estado
equilibrado da mente, imune contra o canto da sereia, contra as
apregoações dos demagogos e dos falsos messias. Não me refiro ao
Pop-Nirvana conseguido pelo LSD, nem às pílulas de soma, do Brave
New World*, mas a um estado de equilíbrio dinâmico, onde se
reunifica a dividida casa da fé e da razão, e onde se restaura a ordem
hierárquica.
*Livro da autoria do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), traduzido para o
português sob o título: Admirável Mundo Novo. (N. dos T.)
3
Publiquei pela primeira vez essas esperançosas especulações —
como a única alternativa que eu podia (e posso) antever para o
desespero — no capítulo final de O Fantasma da Máquina. Entre as
muitas críticas negativas que atacaram essa teoria, uma das
apresentadas com maior freqüência me acusou de propor a fabricação
de uma pequena pílula que haveria de suprimir qualquer sentimento e
emoção e reduzir-nos à insensibilidade dos repolhos. Tal acusação,
por vezes expressa com grande veemência, baseava-se numa
interpretação completamente errada do texto. O que eu propus não foi
a castração da emoção, mas a reconciliação entre a emoção e a razão,
116
as quais têm estado em desavença ao longo da maior parte da
esquizofrênica história do homem. Não uma amputação, mas um
processo de harmonização que determina a cada nível da mente, desde
os impulsos viscerais até o pensamento abstrato, seu lugar apropriado
na hierarquia. Isso implica em reforçar o poder de veto do cérebro
novo contra aquele tipo de comportamento emotivo — e somente
aquele tipo — que não pode ser reconciliado com a razão, tais como
as paixões "cegas" do espírito grupal. Se essas pudessem ser
erradicadas, nossa espécie seria salva.
Existem emoções cegas e emoções visionárias. Quem, em sã
razão, haveria de propor a eliminação de emoções despertadas pela
música de Mozart ou pela beleza de um arco-íris?
4
Qualquer pessoa dos tempos atuais, que afirmasse haver feito um
pacto com o demônio e mantido relações com súcubos, seria
imediatamente enviada para um manicômio. No entanto, há não muito
tempo, acreditar em tais fatos era admitido como normal e aprovado
pelo "senso comum" — isto é, pelo consenso de opinião, quer dizer,
pelo espírito grupal. A psicofarmacologia está desempenhando um
papel cada dia mais importante no tratamento de desordens mentais,
no sentido clínico, tais como as desilusões individuais que afetam as
faculdades críticas e não são sancionadas pelo espírito grupal. Mas
nós estamos preocupados com a cura do elemento paranóico existente
naqueles que chamamos de "pessoas normais", e que se revela quando
elas se tornam vítimas da mentalidade de grupo. Assim como já
possuímos drogas para aumentar a sugestionabilidade do homem,
brevemente estará a nosso alcance fazer o oposto: reforçar as
faculdades críticas do homem, neutralizar o devotamento mal
orientado, bem como o entusiasmo militante, a um tempo assassino e
suicida, que está estampado nos livros de história e nas páginas diárias
dos jornais.
Mas quem deve decidir que parte do devotamento está mal
orientado e que parte é benéfica à humanidade? A resposta parece
óbvia: uma sociedade composta por indivíduos autônomos, desde que
eles estejam imunizados contra os efeitos hipnóticos da propaganda e
do controle de pensamento, e protegidos contra sua própria
sugestionabilidade como "animais aceitadores de crenças". Mas essa
proteção não pode ser obtida por contrapropaganda, nem por atitudes
entreguistas; estas são derrotistas. O êxito só pode ser alcançado pela
117
"interferência" na própria natureza humana, a fim de corrigir sua
endêmica disposição esquizofisiológica. A História nos ensina que
nada mais pode ser feito.
5
Presumindo que os laboratórios conseguirão produzir uma
substância imunizante que outorgue estabilidade mental — como
haveremos de propagar seu uso global? Poderemos enfiá-la pela
garganta das pessoas, queiram elas ou não?
Novamente, a resposta parece óbvia. Analgésicos, pílulas
estimulantes, tranqüilizantes, anticoncepcionais, bem ou mal,
alastraram-se pelo mundo com um mínimo de publicidade ou de apoio
oficial. Espalharam-se porque o povo aprovou seus efeitos. O uso de
um estabilizador mental difundir-se-ia não por coerção, mas por
esclarecido interesse próprio; a partir de então, os progressos hão de
ser tão imprevisíveis quanto as conseqüências de qualquer descoberta
revolucionária. Um cantão suíço, após um referendo público, pode
resolver adicionar a nova substância ao iodo do sal de cozinha ou ao
cloro da água encanada, durante determinado período, e outros países
podem imitar esse exemplo. Pode surgir uma nova moda internacional
entre os jovens. De um modo ou de outro, teria início a mudança
pretendida. É possível que os países totalitários tentem resistir a ela.
Mas hoje, até as Cortinas de Ferro tornaram-se porosas; as modas se
difundem irresistivelmente. E mesmo supondo a existência de um
período transitório, durante o qual apenas um lado prosseguisse com a
idéia, este haveria de ganhar uma vantagem decisiva porque seria mais
racional em sua política a longo prazo, menos assustado e menos
histérico. Para concluir, permitam-me citar O Fantasma da Máquina:
Todo escritor possui um tipo favorito de leitor imaginário,
um fantasma amigo, mas altamente crítico, com quem está
empenhado num diálogo contínuo e exaustivo. Tenho certeza
de que meu amigo leitor-fantasma possui imaginação
suficiente para extrapolar dos recentes e estarrecedores
progressos da biologia para o futuro, admitindo que a solução
aqui delineada está dentro, dos limites do possível. O que me
preocupa é o fato dele poder sentir-se repelido e desgostado
pela idéia de que nós devemos buscar nossa salvação na
química molecular, em vez de recorrer a um renascimento
espiritual. Entendo seu desalento, mas não vejo outra
118
alternativa. Posso ouvir sua objeção: "Tentando vender-nos
suas Pílulas, você passa a adotar aquela atitude grosseiramente
materialista e aquela ingênua arrogância científica, as quais
simulava combater." Eu ainda as combato. Porém, não creio
que seja "materialista" assumir uma posição realista a respeito
da condição do homem, nem é sinal de arrogância fornecer
extrato de tireóide a crianças que, de outra forma haveriam de
se tornar cretinas... Assim como o leitor, eu também preferiria
depositar minhas esperanças na persuasão moral obtida pela
palavra e pelo exemplo. No entanto, nós somos uma raça
mentalmente enferma e, por isso, insensível à persuasão. Esta
vem sendo tentada desde a época dos profetas até Albert
Schweitzer. Daí, o angustiado grito de Swift: "Não morrer
aqui furioso, como um rato envenenado em sua toca" ter
adquirido um sentido de urgência mais intenso do que em
qualquer época anterior. A Natureza nos abandonou, Deus
parece ter esquecido o fone fora do gancho, e o tempo está se
escoando. Esperar que a salvação seja sintetizada num
laboratório pode parecer materialista, doentio ou ingênuo;
reflete o antigo sonho alquimista de elaborar o elixir vitae.
Entretanto, o que esperamos não é a vida eterna, mas a
transformação do Homo "maniacus" em Homo sapiens2.
Essa é a única alternativa para o desespero que eu consigo entrever
nos contornos das coisas que estão por acontecer. Agora podemos
avançar para horizontes mais animadores.
119
120
121
122

PARTE II
A Mente Criativa
VI
HUMOR E ESPÍRITO

A teoria da criatividade humana por mim elaborada em livros


anteriores procura mostrar que todas as atividades criativas — os
processos conscientes e inconscientes, fundamentais aos três
domínios: originalidade artística, descoberta científica e inspiração
cômica — possuem em comum um padrão básico, e além disso tenta
descrever esse padrão. Os três painéis do tríptico, à página 125,
ilustram esses três domínios que se mesclam um com o outro, sem
limites definidos. O significado do diagrama tornar-se-á mais
compreensível à medida que a explicação progredir.
Embora pareça estranho, o processo criativo revela-se com maior
clareza no humor e no espírito. Mas isso parecerá menos estranho se
lembrarmos que "espírito" é um termo ambíguo, relacionado tanto a
dito espirituoso quanto a engenhosidade ou espírito inventivo*. O
cômico e o explorador, ambos vivem de seu espírito, e adiante
veremos que os chistes do cômico fornecem uma adequada passagem
pela porta dos fundos, por assim dizer, para o santuário da
originalidade criativa.
*Wit deriva de witan, compreensão, cujas raízes remontam ao sânscrito veda.
conhecimento. A palavra alemã Witz significa ao mesmo tempo chiste e sagacidade;
origina-se de wissen. saber. Wissenschaft, ciência, é um parente próximo de Fürwitz e
Aberwitz — presunção, ousadia e gracejo. A língua francesa ensina a mesma lição.
Spirituel tanto pode significar chistoso, como espiritualmente profundo. O termo
inglês to amuse deriva de to muse (a-muser), e uma observação jocosa [a witty
remark] é um jeu d'esprit — uma forma prazerosa, travessa de descoberta**.
**Em português, o termo "espírito", a nosso ver, traduz perfeitamente o termo
inglês wit, apresentando, inclusive, a mesma ambigüidade. Além disso, os vocábulos
"espiritual" e "espirituoso" são mais que "parentes próximos", são irmãos gêmeos. (N.
dos T.)

123
Por conseguinte, esta pesquisa há de começar com uma análise do
cômico*. Pode-se pensar que eu destinei um espaço demasiado grande
para o humor, mas como eu já afirmei, ele deve servir de passagem
pela porta dos fundos para o processo criativo da ciência e da arte.
Além disso, também pode ser lido como um ensaio autônomo — que
talvez proporcione ao leitor uma agradável distração.
*Este capítulo baseia-se no sumário da teoria que elaborei para a 15ª edição da
Enciclopédia Britânica2.
2

O humor, com todas as suas esplêndidas variedades, pode


simplesmente ser definido como um tipo de estimulação que visa a
provocar o reflexo do riso. O riso espontâneo é um reflexo motor,
produzido pela contração coordenada de quinze músculos faciais, num
padrão estereotipado, e acompanhado por alteração da respiração.
Uma estimulação elétrica do músculo risório, principal músculo
suspensivo do lábio superior, com correntes de intensidade variada,
produz expressões faciais que vão desde o leve sorriso, passando pelo
amplo arreganho, até chegarem às contorções típicas da risada
explosiva3. (Naturalmente, a risada e o sorriso do homem civilizado
são, muitas vezes, de um tipo convencional, onde o esforço voluntário
substitui a espontânea atividade reflexa ou nela interfere. A nós
interessa apenas esta última.)
Após havermos compreendido que o riso é um reflexo simples,
imediatamente deparamos com vários paradoxos. Reflexos motores,
tais como as contrações das pupilas diante de uma luz ofuscante, são
respostas simples para estímulos simples, cujo valor em benefício da
sobrevivência é óbvio. Mas a involuntária contração de quinze
músculos faciais, acompanhada de certos ruídos irreprimíveis,
surpreende-nos como uma atividade sem qualquer valor prático, e sem
relação com a luta pela sobrevivência. O riso é um reflexo, embora
ímpar pelo fato de não apresentar nenhuma utilidade biológica
aparente. Podemos chamá-lo de reflexo de luxo. Seu único objetivo
parece resumir-se no fato de proporcionar alívio temporário à tensão
provocada pelas atividades importantes.
O segundo paradoxo relacionado com o riso é a surpreendente
discrepância existente entre a natureza do estímulo e a res posta, na
comunicação humorística. Quando um golpe aplicado sob a rótula do
joelho provoca um pontapé automático, o "estímulo" e a “resposta”
124
Os três domínios da criatividade

funcionam no mesmo nível fisiológico primitivo, sem exigirem a


intervenção de funções mentais mais elevadas. Mas o fato de uma
complexa atividade mental, como a leitura de uma estória escrita por
James Thurber*, provocar uma contração reflexa específica da
musculatura facial é um fenômeno que sempre intrigou os filósofos,
desde a época de Platão. Não existe uma resposta definida e tangível
que possa mostrar a um conferencista que ele obteve êxito em
convencer seus ouvintes; mas quando ele conta uma anedota, o riso
serve como teste experimental. O humor é a única forma de
comunicação em que um estímulo num alto nível de complexidade
produz uma resposta estereotipada e prenunciável ao nível de reflexo
fisiológico. Isso nos permite utilizar a resposta como indicador da
presença dessa indefinível qualidade que nós chamamos de humor —
assim como usamos os ruídos do contador Geiger para certificar-nos
da presença da radioatividade. Tal procedimento não é possível em
nenhuma outra forma de arte; e, visto que o passo do sublime para o
ridículo é reversível, o estudo do humor proporciona ao psicólogo
importantes sugestões para o estudo da criatividade em geral.
*James Grover Thurber (1894-1961). Escritor, humorista e caricaturista
americano. (N. dos T.)
125
3
É muito grande a variedade de experiências provocadoras de riso,
estendendo-se desde as cócegas corporais até as excitações mentais
das mais diversas e sofisticadas espécies. Tentarei demonstrar que
existe unidade nesta variedade, um denominador comum de um
padrão específico e especificável, que reflete a ''lógica" ou a
"gramática" do humor. Alguns exemplos ajudarão a evidenciar esse
padrão.
(a) Masoquista é a pessoa que gosta de um banho frio pela manhã,
e por isso toma um banho quente.
(b) Uma senhora inglesa, quando um amigo lhe perguntou o que
pensava a respeito do paradeiro de seu falecido esposo, respondeu:
"Bem, suponho que a pobre alma esteja gozando a eterna felicidade,
mas eu gostaria que você não mencionasse tão desagradável
assunto"*.
*Esta é uma variante da anedota de Russel, narrada no Prólogo.
(c) Um médico conforta seu paciente: "Você tem uma doença
muito grave. Dentre dez pessoas que a contraem, somente uma
sobrevive. É uma sorte você ter vindo me consultar, pois,
recentemente, eu tive nove pacientes com essa doença, e todos eles
morreram vitimados por ela".
(d) Diálogo num filme de Claude Berri:
— "Senhor, gostaria de pedir a mão de sua filha.
— Por que não? Você já pegou o resto".
(e) Um marquês da corte de Luís XV voltou inesperadamente de
uma viagem e, ao entrar no quarto da esposa, encontrou-a nos braços
de um bispo. Após um momento de hesitação, o marquês foi
calmamente até a janela, inclinou-se para fora e começou a fazer os
gestos de abençoar o povo que passava pela rua.
— Que está fazendo? — gritou a esposa angustiada.
— O monsenhor está exercendo as minhas funções, por isso eu
exerço as dele.
Existe um padrão comum subjacente a essas cinco anedotas?
Começando pela última, descobrimos, após breve reflexão, que o
comportamento do marquês é ao mesmo tempo inesperado e
perfeitamente lógico — mas de uma lógica não aplicada comumente a
esse tipo de situação. É a lógica da divisão do trabalho, regida por leis
tão antigas quanto a civilização humana. Mas nós esperávamos que
126
suas reações fossem comandadas por um conjunto diferente de regras
— o código da moralidade sexual. O que produz o efeito cômico é o
súbito choque entre esses dois códigos de regras — ou contextos
associativos, ou hólons cognitivos — que se excluem mutuamente.
Somos compelidos a perceber a situação em dois sistemas de
referência autoconsistentes, mas, ao mesmo tempo, incompatíveis;
somos levados a funcionar, simultaneamente, em dois diferentes
comprimentos de onda. Enquanto perdura essa estranha situação, o
evento não é associado com um único sistema de referência, como
acontece normalmente, mas é bissociado com ambos.
Eu criei o termo "bissociação" para estabelecer uma distinção
entre as rotinas do pensamento disciplinado dentro de um único
universo de discurso — por assim dizer, num único plano — e os tipos
criativos de atividade mental, que sempre operam em mais de um
plano. Em humor, tanto a criação de uma anedota sutil quanto o ato
recriativo de entender essa anedota envolvem o agradável choque
mental causado pelo inesperado salto de um plano ou contexto
associativo para outro.
Retornemos aos outros exemplos dados. No diálogo do filme, a
"mão" da filha é entendida, em primeiro lugar, num sistema de
referência metafórico e depois, de súbito, num contexto literal,
corporal. O médico pensa em termos de probabilidades estatísticas,
cujas regras não se aplicam a casos individuais; e há mais um detalhe,
pois, ao contrário do que sugere o ingênuo senso comum, as
possibilidades de sobrevivência do paciente não sofrem alteração por
influência daquilo que possa ter ocorrido anteriormente, e continuam
ainda na proporção de um contra dez. O chiste matemático sempre
implica num enigma.
A pobre viúva que encara o após-morte como "bem-aventurança
eterna" e, ao mesmo tempo, como "um assunto desagradável" sintetiza
a própria condição humana de viver na "dividida casa da fé e da
razão". Aqui, mais uma vez, a simples anedota contém em si
inconscientes nuanças de tonalidade, perceptíveis apenas pelo ouvido
interno.
O masoquista embaixo do chuveiro, que se pune privando-se de
seu castigo diário, é governado por regras que são o oposto das leis da
lógica normal. (Podemos também elaborar um padrão em que ambos
os sistemas de referência são invertidos: "Sádico é uma pessoa que se
mostra gentil com um masoquista"). No entanto, o cômico não
acredita realmente que o masoquista toma seu banho quente como
forma de autopunição; apenas finge acreditar nisso. A ironia é a mais
127
eficiente arma do satírico; ela insinua que aceita o modo de raciocinar
do oponente, com o fito de expor sua insensatez ou seu erro implícito.
Portanto, o padrão comum subjacente nessas anedotas é a
percepção de uma situação ou idéia em dois autoconsistentes, mas
mutuamente incompatíveis, sistemas de referência ou contextos
associativos. Podemos chamá-lo de colisão entre dois holons mentais,
cada qual governado por seu próprio livro de regras. Pode-se
demonstrar que essa fórmula possui validade geral para todas as
formas de humor e espírito, algumas das quais serão analisadas a
seguir. Mas ela abrange apenas um aspecto do humor — sua estrutura
lógica. Devemos agora concentrar-nos em outro aspecto fundamental
— a dinâmica emocional, que infunde vida nessa estrutura e nos faz
rir às gargalhadas, rir delicadamente, ou apenas sorrir.
4
Quando um comediante conta uma estória, dramatiza
deliberadamente, para criar em seus ouvintes alguma tensão, que
aumenta à proporção que a narrativa progride. Mas a tensão jamais
atinge seu clímax esperado. A frase decisiva, ou o impacto, atua como
uma guilhotina verbal que corta o desenvolvimento lógico da estória;
ela desilude nossas expectativas dramáticas. A tensão que sentíamos
torna-se subitamente redundante e explode em risada, como a água
que jorra de um cano furado. Para dizê-lo de outra maneira, o riso dá
vazão às excitações emotivas que se tornaram sem sentido e devem
ser, de algum modo, descarregadas através de canais fisiológicos de
menor resistência; e o "reflexo de luxo" tem por função providenciar
esses canais.
Uma rápida olhada para uma caricatura feita por Hogarth ou por
Rowlandson, retratando a pândega brutal de pessoas numa taverna,
leva-nos a compreender de imediato que elas estão descarregando seu
excesso de adrenalina pelas contrações de seus músculos faciais em
horríveis esgares, pelas palmadas nas coxas e pelas exalações de
explosivas baforadas através da glote semicerrada. Suas faces
avermelhadas revelam que as emoções extravasadas por essas válvulas
de segurança reguladoras da tensão são a brutalidade, a inveja e a
cobiça sexual. No entanto, quando alguém folheia um álbum de
histórias do New Yorker, a risada grosseira cede lugar a um sorriso
divertido e discreto: a grande torrente de adrenalina foi destilada e
cristalizada em um grão de sal ático. A medida que nos movemos pelo
128
espectro do humor, de suas formas grosseiras para as mais sutis, da
piada corriqueira para o quebra-cabeça, da zombaria para a ironia, da
anedota para o epigrama, o clima emocional também mostra uma
transformação semelhante. A emoção descarregada em estrondosa
gargalhada é agressão desviada de seu próprio objetivo; os chistes
apreciados pelas crianças são, na grande maioria, os escatológicos; os
adolescentes de todas as fases divertem-se com anedotas sobre sexo; o
humor negro explora o sadismo reprimido, e a sátira manifesta uma
justa indignação. Existe uma espantosa variedade de sentimentos
envolvidos nas diferentes formas de humor, inclusive afetos mistos ou
contraditórios; mas, seja qual for a mistura, o humor deve conter um
ingrediente básico, que é indispensável: um impulso, mesmo tênue, de
agressão ou apreensão. Este pode aparecer sob o disfarce de malícia,
desdém, da velada crueldade da condescendência, ou simplesmente da
ausência de simpatia pela vítima da anedota — "uma anestesia
momentânea do coração", como afirmou Bergson. Nos tipos mais
sutis de humor, a tendência agressiva pode ser tão tênue que somente
uma análise cuidadosa conseguirá descobri-la, como a presença do sal
num prato bem preparado — que, no entanto, sem ele seria insosso.
Substitua-se a agressão pela simpatia, e a mesma situação — um
bêbado caindo de rosto no chão — já não será mais cômica, e sim
patética, e não provocará mais o riso, e sim a compaixão. É o
elemento agressivo, a insinuante malícia do ator cômico que
transformam o patos em anticlímax, a tragédia em caricatura*. A
malícia pode vir combinada com a afeição, numa brincadeira amigável
— ou quando não sabemos se devemos rir ou chorar com os
infortúnios de Charlie Chaplin; e, nos homens civilizados, o
componente agressivo pode ser sublimado ou tornar-se inconsciente.
Mas, nos chistes que atraem a atenção das crianças e das pessoas
primitivas, colocam-se em grande evidência a crueldade e a
jactanciosa auto-afirmação. Uma pesquisa realizada, em 1961, entre
crianças americanas com idade de oito a quinze anos levou os
pesquisadores a concluir que "mortificação, ou aflição, ou logro de
outros provoca muito rapidamente o riso, ao passo que uma
observação espirituosa ou engraçada muitas vezes passa
despercebida"4.
*Aqui, como sempre, damos primazia à idéia e não à forma literária. O Autor,
mais feliz, expressa a presente idéia, lançando mão de dois saborosos trocadilhos: ...
"turns pathos into bathos, tragedy into travesty". (N.dos T.)
Semelhantes pontos de vista são defendidos em exemplos e
129
teorias, historicamente anteriores, sobre o cômico. Segundo
Aristóteles, o riso está intimamente relacionado com a fealdade e o
aviltamento. Cícero afirmava que "o terreno do ridículo ... se estende
sobre certa vileza e deformidade". Descartes julgava que o riso era
uma manifestação de alegria "misturada à surpresa, ou à aversão, ou
algumas vezes a ambas". Francis Bacon, em sua lista de causas que
provocam o riso, reserva o primeiro lugar para a "deformidade". Uma
das definições do riso, citada com muita freqüência, é a seguinte,
apresentada por Hobbes no Leviatã:
A paixão do riso nada mais é que a súbita glória nascida
de uma súbita concepção de alguma superioridade existente
em nós mesmos, em comparação à fragilidade de outrem, ou
à que sentimos em épocas passadas.
Transportando para a nossa terminologia, o riso aparece como
uma inofensiva manifestação de um súbito transbordamento da
tendência auto-afirmativa. Por mais que divirjam as opiniões dos
teóricos, praticamente todos eles concordam com respeito ao seguinte
ponto: as emoções descarregadas no riso sempre contêm um elemento
de agressividade. Mas, agressão e apreensão são fenômenos gêmeos;
tanto assim, que os psicólogos falam de "impulsos agressivo-
defensivos". Conseqüentemente, uma das situações típicas em que o
riso ocorre é o momento do súbito desaparecimento do medo causado
por algum perigo imaginário. Raramente a característica do riso, como
expressão de um transbordamento de excessivas tensões, manifesta-se
mais claramente do que na repentina mudança de expressão estampada
no rosto de uma pequena criança que passa de uma ansiosa apreensão
para uma feliz risada de alívio. Isso parece não estar relacionado com
o humor; no entanto, após um mais atento exame, encontramos aqui a
mesma estrutura lógica de antes: o cãozinho que latia
ameaçadoramente foi, de início, percebido pela criança num contexto
de perigo, e só depois, como um brinquedo que sacudia a cauda. De
súbito, a tensão tornou-se redundante e transbordou.
Kant compreendeu que a causa do riso é "a inesperada
transformação de uma tensa expectativa em nada". Herbert Spencer
adotou a idéia e procurou formulá-la em termos fisiológicos:
"Emoções e sensações tendem a gerar movimentos corporais. ...
Quando a consciência é inopinadamente transferida de grandes para
pequenas coisas", a "força liberada dos nervos" há de se expandir
pelos canais de menor resistência — as moções corporais do riso.
130
Freud incorporou na sua* a teoria de Spencer sobre o humor, dando
ênfase especial à liberação, pelo riso, de emoções reprimidas. Ele
também tentou explicar por que o excesso de energia deve ser
descarregado dessa maneira especial:
Segundo meu melhor entendimento, os trejeitos e
contorções dos cantos da boca, que caracterizam o riso,
aparecem por primeiro no bebê satisfeito e bem alimentado,
quando sonolentamente larga o seio... São expressões
físicas da determinação de não ingerir mais alimento, um
"basta", por assim dizer, ou até um "é mais que
suficiente"... Esse sentido primário de agradável saturação
pode ter estabelecido a ligação entre o sorriso — fenômeno
básico subjacente à risada — e sua subseqüente conexão
com outros agradáveis processos de distensão3.
*Para uma detalhada análise das Teorias de Freud e Bergson sobre o humor, ver
Insight and Outlook, Apêndice II.
Em outras palavras, as contrações musculares do sorriso, sendo as
primeiras expressões de alívio de tensão, servirão, daí por diante,
como canais de menor resistência. De modo semelhante, as inopinadas
explosões de riso parecem destinadas a "expelir" a tensão excessiva, e
os gestos exagerados servem, obviamente, para o mesmo fim.
Pode-se objetar que tais reações maciças freqüentemente parecem
muito desproporcionais em relação aos diminutos estímulos que as
provocam. Mas devemos ter em mente que o riso é um fenômeno do
tipo desengatilhador, no qual, uma leve puxada pode libertar grandes
quantidades de emoções armazenadas, com freqüência derivadas de
fontes inconscientes: sadismo reprimido, carência sexual, medo
inconfessado, e até enfado. A gargalhada explosiva de uma classe de
alunos, resultante de qualquer incidente trivial, serve de medida para
seu reprimido ressentimento provocado por uma aula cansativa. Outro
fator que pode ampliar a reação além de qualquer proporção com o
estímulo cômico é o poder do contágio social que o riso compartilha
com outras manifestações emotivas do comportamento grupal.
O riso ou o sorriso também pode ser provocado por estímulos que,
em si mesmos, não são cômicos, mas apenas sinais ou símbolos
representando padrões cômicos bem definidos: as botas de Chaplin, o
charuto de Groucho Marx, expressões fixas ou alusões a anedotas
familiares. Em algumas ocasiões, descobrir por que estamos rindo
131
exige que repassemos um longo e complicado meandro de associações
até às fontes. Essa tarefa se torna mais complicada pelo fato de o
efeito de tais símbolos cômicos — apresentados numa caricatura ou
num palco — ser aparentemente instantâneo, sem dar tempo para a
acumulação e subseqüente descarga de "expectativas" e "tensões
emotivas". Mas aqui entra em cena a memória, atuando como um
acumulador, cuja carga pode ser acionada a qualquer momento: o
sorriso que saúda o aparecimento de Falstaff no palco deriva de uma
mistura de lembranças e expectativas. Além disso, mesmo quando
nossa reação a uma charge do New Yorker parece ser instantânea, há
sempre um lapso de tempo até "captarmos o chiste"; o quadro deve
contar uma história, mesmo que ela seja transmitida em poucos
segundos. Tudo isso serve para mostrar que analisar o humor é uma
tarefa tão delicada quanto a de analisar a composição química de um
perfume com seus múltiplos ingredientes — alguns dos quais nunca
são percebidos conscientemente, enquanto outros, se aspirados
isoladamente, haveriam de nos deixar vexados.
5
Analisei, de início, a estrutura lógica do humor e, em seguida, sua
dinâmica emocional. Reunindo ambas, podemos resumir o resultado
como segue: a bissociação de uma situação ou idéia com dois
contextos mutuamente incompatíveis, e a conseqüente transferência
abrupta do curso dos pensamentos de um para outro contexto põem
um súbito fim a nossas "tensas expectativas"; a emoção acumulada,
defraudada de seu objetivo, fica solta no ar e descarrega-se no riso.
Quando o marquês vai à janela e começa a abençoar o povo na rua, o
nosso intelecto dá uma cambalhota e entra com prazer na nova jogada;
mas os maliciosos sentimentos eróticos despertados pelo início da
estória não podem ser inseridos no novo contexto; abandonados pelo
ágil intelecto, jorram em forma de gargalhada, como o ar que sai de
um pneu furado. Explicando de maneira diferente: nós rimos porque
nossas emoções possuem maior inércia e persistência que nossos
processos de raciocínio. Os afetos são incapazes de acompanhar o
ritmo do raciocínio; ao contrário deste, aqueles não conseguem
"mudar de direção" a qualquer momento. Para o fisiólogo, isso é mais
que evidente, pois nossas emoções auto-afirmativas operam por
intermédio do filogeneticamente e maciço mecanismo do sistema
nervoso simpático e de seus hormônios aliados, atuando no corpo
132
inteiro, enquanto a linguagem e a lógica estão confinadas ao
neocórtex, no alto do cérebro. A experiência comum apresenta
confirmação diária desse aspecto específico da dicotomia entre o
cérebro antigo e o novo. Estamos literalmente "envenenados" por
nossos humores supra-renais; leva-se tempo para livrar uma pessoa de
uma depressão psicológica; o medo e o ódio mostram persistentes
efeitos posteriores, muito tempo após a remoção de suas causas. Se
conseguíssemos mudar nossas disposições tão rapidamente quanto
saltamos de uma idéia para outra, seríamos acrobatas da emoção; mas,
visto não o sermos, nossos pensamentos e emoções, com freqüência,
se dissociam. A emoção, abandonada pelo pensamento, descarrega-se
no riso. Pois a emoção, devido a seu maior volume de massa, é
incapaz, como já vimos, de acompanhar uma súbita mudança das
idéias para um tipo diferente de lógica; ela tende a persistir numa linha
reta. Ariel conduz Caliban* pelo nariz: ela pula para um galho, ele
esbarra na árvore. Certa vez, Aldous Huxley escreveu:
*Ariel e Caliban são personagens de A Tempestade, de Shakespeare. A primeira
representa um poder superior; a segunda, a força bruta que sempre se revolta contra
aquela, mas acaba por obedecer-lhe. (N. dos T.)
Carregamos dentro de nós um sistema glandular que
estava admiravelmente bem adaptado à vida na era paleolítica,
mas não está muito bem adaptado à vida atual. Desse modo,
tendemos a produzir mais adrenalina do que seria
recomendável para nós. Conseqüentemente, ou nos
dominamos e canalizamos para o nosso interior as energias
destrutivas, ou não nos dominamos e passamos a agredir as
pessoas6.
Uma terceira alternativa é rir das pessoas. Existem outras saídas
para a agressividade dominada, tais como as competições esportivas
ou a crítica literária; mas estas são qualidades adquiridas, ao passo que
o riso é um dom da Natureza, incluído em nosso equipamento nativo.
As glândulas que controlam nossas emoções refletem as condições de
um estágio da evolução em que a luta pela sobrevivência era mais
feroz do que atualmente — e em que a reação a qualquer vulto ou som
estranho consistia em pular, retesar-se, lutar ou correr. À medida que
aumentavam a segurança e o conforto da espécie, tornaram-se
necessárias novas saídas para as emoções acumuladas que já não
podiam mais ser descarregadas através de seus canais originais, e o
riso é obviamente uma dessas saídas. Mas ele podia surgir apenas
133
quando o raciocínio tivesse conquistado certo grau de independência
em relação aos "cegos" ímpetos da emoção. Abaixo do nível humano,
o pensamento e o sentimento parecem formar uma unidade indivisível.
Só depois que o pensamento gradualmente separou-se do sentimento,
conseguiu o homem perceber sua própria emoção como algo
redundante, confrontar seus "humores" glandulares com o senso de
humor e admitir sorridente: "Fui tapeado".
6
As análises precedentes foram feitas com o intuito de nos
munirmos dos instrumentos necessários para dissecar e pesquisar
qualquer espécie de humor. O método a seguir é o de determinar a
natureza dos dois (ou mais) sistemas de referência, cuja colisão dá
origem ao efeito cômico — descobrir o tipo de lógica ou de "regras do
jogo" que governam cada um deles. No modelo mais sofisticado de
chiste, a "lógica" está implícita e oculta; no instante em que o
enunciamos de forma explícita, o chiste morre. Inevitavelmente, esta
seção há de estar juncada de cadáveres.
Max Eastman, em The Enjoyment of Laughter, observou a respeito
de um elaborado trocadilho feito por Ogden Nash: "Não é um
trocadilho, mas um ato punitivo"*! Isso vale para a maioria dos
trocadilhos, mesmo para os famosos versos de Milton sobre os
corvos** do Profeta Elias — os quais, "embora vorazes, eram
ensinados a se absterem daquilo (o pão para o profeta) que levavam";
ou para o exemplo de Freud que chama as festas de Natal de "festas do
álcool"**. A maior parte dos trocadilhos parecem-nos atrozes, talvez
porque representam a mais primitiva forma de humor: duas diferentes
linhas de pensamento atadas juntas por um nó acústico. Mas,
exatamente a primitividade de tais bissociações baseadas no som puro
pode ser a responsável pela imensa popularidade do trocadilho entre
as crianças e pelo seu predomínio em certos tipos de desordem mental
("mania de trocadilhos".)
*No comentário, o próprio Eastman faz um trocadilho: "It is not a pun but a
punitive expedition". Por ser praticamente impossível traduzir um trocadilho, nesta
seção, quando necessário para conservar o sabor do pensamento, transcreveremos no
rodapé as palavras originais, ou a tradução das utilizadas no texto. (N.dos T.)
**Passim: Ravens = corvos, ravenous = vorazes, e alcoholidays. (N. dos T.)
134
Do jogo de sons — trocadilhos e Spoonerismos* — uma série
ascendente leva para o jogo de palavras e, mais acima, para o jogo de
idéias. Quando Groucho Marx diz, sobre um safári na África, "Nós
derrubamos dois bucks, mas esse era todo o dinheiro que tínhamos", a
graça está nos dois significados da palavra buck**. É levemente
engraçado, mas seria ainda menos, sem a referência a Groucho, que
evoca uma imagem visual, geradora imediata de uma alta voltagem de
expectativas. A história do marquês e do bispo pertence,
evidentemente, a um tipo mais elevado de humor, porque joga não
apenas com palavras, mas com idéias.
*Palavra derivada de W. A. Spooner (1844-1930), conhecido pelo uso de sons
semelhantes, geralmente sons iniciais, em duas ou mais palavras. (N dos T.)
**No contexto, "corço" e "dólar". (N. dos T.)
Seria bastante fácil — e igualmente cansativo — elaborar uma
lista em que os chistes e ditos espirituosos estão classificados de
acordo com a natureza dos sistemas de referência, cuja colisão cria o
efeito cômico. Já deparamos com alguns exemplos, tais como o do
sentido metafórico versus o literal (a "mão" da filha); o do profissional
versus o senso comum (o médico que pensa estatisticamente); o de
códigos incompatíveis de comportamento (o marquês); o de
confrontações entre o trivial e o exaltado ("bem-aventurança eterna");
o de esquemas de raciocínio correndo alegremente juntos em direção
oposta (o sádico que é gentil com o masoquista). A lista poderia
estender-se indefinidamente; na realidade, quaisquer dois hólons
cognitivos podem ser levados a produzir toda espécie de efeito
cômico, bastando juntá-los e acrescentar uma pitada de malícia na
mistura. Os sistemas de referência podem até ser definidos por
conceitos tão abstratos como "horário" e "tempo": o professor
distraído, que tenta ler a temperatura em seu relógio ou dizer as horas
pelo termômetro, é cômico pela mesma razão que seria cômico assistir
a uma partida de pingue-pongue jogada com uma bola de futebol, ou
uma partida de rugby jogada com uma bola de pingue-pongue. São
infinitas as variações, mas a fórmula continua a mesma.
Chistes e anedotas possuem um único ponto de culminância. As
formas literárias de humor contínuo, como as novelas picarescas, não
se baseiam num só efeito, mas numa série de pequenas culminâncias.
A narrativa se move ao longo da linha de interseção de planos
contrastantes — por exemplo, o mundo fantástico de Dom Quixote e o
habilidoso senso prático de Sancho Pança — ou é levada a oscilar
entre eles; como resultado, a tensão é continuamente gerada e
descarregada em agradável divertimento.
135
O verso cômico se funda na união melodiosa de incongruidades —
os "repolhos e reis" de Carroll — e especialmente no contraste entre a
forma imponente e o conteúdo corriqueiro. Certas formas métricas,
como os versos hexâmetros ou alexandrinos, provocam expectativas
de patos, do heróico e exaltado. Um método cômico quase infalível
consiste em colocar dentro desses moldes épicos um conteúdo
corriqueiro, trivial — "Linda sopa, saborosa e verde/Que na terrina
ainda se perde". Os cadenciados dáctilos dos primeiros versos de um
limerick*, que leva a passear, em vez de Heitor ou Aquiles, uma
jovem da Nigéria, tornam-na ridícula mesmo antes de lhe sobrevirem
as esperadas calamidades. Em lugar de um molde épico, também se
pode utilizar para a mesma finalidade um molde lírico: "Haverá coisa
mais molhada/Que lágrima de ostra agastada?"
*Composição literária de cinco versos, que rimam no 1», 2' e 5?, e no 3' e 49. (N.
dos T.)

Outro tipo de incongruência entre forma e conteúdo produz o


falso provérbio: "A regra é: geléia amanhã e geléia ontem — mas
nunca geléia hoje". Duas afirmações contraditórias foram encaixadas
numa linha, cujo som familiar e admoestador cria a impressão de um
adágio popular. De modo semelhante, o verso absurdo produz seu
efeito, pretendendo fazer sentido, forçando o leitor a projetar
significado nos aglomerados fonéticos do palavrório, assim como se
interpretam os borrões de tinta de um teste de Rorschach.
A sátira é uma caricatura verbal que nos apresenta uma imagem
deliberadamente distorcida de uma pessoa, instituição ou sociedade. O
método tradicional do caricaturista consiste em exagerar aqueles
detalhes que ele considera característicos da personalidade de sua
vítima e simplificar, omitindo tudo o que não é relevante para seu
propósito. O satirista utiliza a mesma técnica; e, naturalmente, os
aspectos da sociedade que ele seleciona para ampliação são os que
desaprova. O resultado é uma justaposição, na mente do leitor, de sua
imagem habitual do mundo em que vive e o absurdo reflexo desse
mundo no espelho deformante do satirista. O leitor é assim levado a
reconhecer os detalhes familiares no absurdo e a absurdidade no
familiar. Sem essa dupla visão, a sátira não teria humor. Se os
brutamontes humanos fossem realmente monstros tão malcheirosos
como afirmavam os Houyhnhnm, anfitriões de Gulliver, o livro não
seria uma sátira, mas a afirmação de uma deplorável verdade. A
invectiva direta não é sátira; esta deve exagerar deliberadamente o seu
alvo.
136
Atinge-se efeito semelhante se, ao invés de exagerar os aspectos
objetáveis, o satirista os projeta, por meio da alegoria, sobre um fundo
diferente como, por exemplo, uma sociedade animal. Uma plêiade de
escritores, desde Aristófanes, passando por Swift e Anatole France,
até George Orwell, lançaram mão dessa técnica para focalizar a
atenção sobre as deformidades da sociedade que, embotados pelo
hábito, aceitamos como certa.

O tipo mais grosseiro de humor é o chiste prático: puxar a cadeira


de baixo dos fundilhos da autoridade. A vítima é vista, em primeiro
lugar, como uma pessoa importante e em seguida, subitamente, como
um corpo inerte sujeito às leis da física: a autoridade é escarnecida
pela gravidade; a mente, pela matéria; o homem é rebaixado a um
mecanismo. Os soldados que marcham em passo de ganso agem como
autômatos, o pedante se comporta como um robô mecânico, o primeiro
sargento atacado de diarréia e Hamlet com soluços mostram as
grandiosas aspirações do homem esvaziadas por sua carne
demasiadamente sólida. Efeito semelhante é produzido por artefatos
que se apresentam como seres humanos: Punch e Judy, caixa de
surpresas e outros dispositivos que pregam peças a seus donos como
se agissem com premeditada malícia.
Na teoria do riso elaborada por Henri Bergson, esse dualismo de
mente sutil e matéria inerte — ele o chama de "o mecânico incrustado
no ser vivo" — serve de explicação para todas as variedades de
cômico, enquanto, à luz do que tem sido afirmado aqui, ele se aplica
somente a um tipo de situação cômica, entre muitas outras.
A partir da bissociação de homem e máquina, resta apenas um
passo para se chegar ao híbrido homem-animal. As criações de Disney
portam-se como se fossem seres humanos, sem perderem sua
aparência animal. O caricaturista segue o caminho inverso,
descobrindo facetas eqüinas, murinas e suínas na face humana.
Isso nos leva aos artifícios cômicos da imitação, personificação e
disfarce. O personificador é, ao mesmo tempo, percebido como ele
mesmo e como outra pessoa. Se o resultado for levemente degradante
— mas só neste caso — o espectador há de rir. O comediante
personificando um homem público, dois pares de calças servindo de
pernas para um cavalo de pantomima, homens vestidos de mulheres e
mulheres vestidas de homens — em cada caso os padrões comparados
se reduzem mutuamente ao absurdo.
137
A mais agressiva forma de personificação é a paródia, destinada a
pulverizar uma infundada pretensão, a destruir uma ilusão e a minar o
patos, repisando o mesmo tema: as deficiências humanas da vítima.
Cabeleiras postiças caindo, oradores esquecendo o discurso, gestos
inacabados, suspensos no ar: os pontos favoritos de ataque dos
parodistas situam-se novamente na linha de interseção entre o sublime
e o trivial.
O comportamento alegre dos filhotes de animais e das crianças é
divertido porque, sem querer, parodia o comportamento dos adultos,
imitando-o ou antecipando-o. Os cachorrinhos são engraçados porque
sua fragilidade, afeição e expressão desajeitada os fazem parecer mais
"humanos" que os cães adultos; porque suas ferozes rosnadas
apresentam-se como personificações do comportamento dos adultos
— como uma criança de chapéu-coco; porque o passo incerto e
bamboleante do cachorrinho torna-o uma vítima predileta dos chistes
práticos da Natureza; porque suas desproporções corporais, suas
grandes patas acolchoadas, abdome obeso e sobrancelhas curvas de
filósofo dão-lhe a aparência de uma caricatura; e, finalmente, porque,
comparados a um cachorrinho, nós somos seres muito superiores. Um
sorriso fugaz pode conter muitos ingredientes lógicos e laivos
emocionais.
Cícero e Francis Bacon consideravam a deformidade como a causa
mais freqüente do riso. Príncipes da Renascença colecionavam anões,
corcundas e pretos para seu entretenimento. Já nos tornamos
suficientemente humanos para esse tipo de gracejo. Entretanto ainda
se exige uma boa dose de imaginação e empatia para reconhecer num
anão um ser humano que, apesar de todas as diferenças, pensa e sente
da mesma forma que todos nós. Nas crianças, essa faculdade projetiva
ainda é rudimentar; elas tendem a caçoar de pessoas que gaguejam ou
coxeiam, e a rir dos estrangeiros que têm uma pronúncia esquisita.
Atitudes semelhantes são tomadas por sociedades tribais e
provincianas em face de qualquer forma de apresentação ou
comportamento que se desvia de suas normas estritas: o estranho não
é realmente humano, ele apenas pretende ser "igual a nós". Os gregos
usavam a mesma palavra bárbaros tanto para o estrangeiro quanto
para o tartamudo: os desconhecidos e estridentes sons emitidos pelos
estrangeiros eram considerados uma paródia da fala humana.
Vestígios dessa atitude primitiva ainda são encontrados no curioso
fato de aceitarmos com tolerância o sotaque estrangeiro, mas
acharmos cômica a imitação desse sotaque. Sabemos que a pronúncia
errada do imitador é mera aparência; esse conhecimento torna
desnecessária a simpatia e nos possibilita sermos infantilmente cruéis,
com a consciência tranqüila.
138
Outra fonte de inocente divertimento surge quando a parte e o
todo trocam os papéis e a atenção se concentra sobre um detalhe
deslocado do contexto funcional, de que dependia seu significado.
Quando a agulha do toca-discos encalha, a voz do soprano continua
repetindo a mesma palavra no mesmo tom trêmulo que, de súbito,
adquire uma vida grotescamente independente. O mesmo ocorre
quando um erro de ortografia desloca a atenção do significado para a
soletração, ou quando o foco da consciência é dirigido para funções
que, normalmente, são executadas de modo automático — o paradoxo
da centopéia. O jovem autoconsciente, desajeitado, que "não sabe o
que fazer com as suas mãos", é vítima desta mesma condição.
As comédias, em geral, são apreciadas de acordo com o seu modo
de tratar as situações, maneiras e caracteres. A lógica das duas últimas
não necessita de ulterior discussão; na primeira, os efeitos cômicos
são produzidos fazendo a situação participar simultaneamente de duas
cadeias independentes de eventos, com diferentes contextos
associativos, que se entrecruzam mediante coincidências, identidades
erradas, ou confusões de tempo e ocasião. A coincidência de que elas
dependem é o deus ex machina tanto da comédia quanto da antiga
tragédia.
Por que as cócegas provocam riso permaneceu um enigma para
todas as teorias mais antigas sobre o cômico. Darwin foi o primeiro a
afirmar que a resposta inata às cócegas consiste na contorção e no
esforço para retirar a parte atingida — uma reação de defesa destinada
a fugir de ataques contra as áreas vulneráveis, como as plantas dos
pés, as axilas, o ventre e as costelas. Se uma mosca pousa na barriga
de um cavalo, ela provoca uma ondulação de contrações musculares
na pele — o equivalente da contorção da criança atingida pelas
cócegas. Mas o cavalo não ri quando excitado, e a criança nem sempre
ri. Ela só ri — e este é o nó da questão — quando percebe que as
cócegas são um ataque simulado, uma carícia feita sob disfarce
levemente agressivo. Pela mesma razão, as pessoas riem só quando as
cócegas são feitas por outros, não por elas mesmas.
Experiências feitas em Yale com bebês menores de um ano
revelaram o fato não muito surpreendente de que eles riem quinze
vezes mais quando suas mães lhes faziam cócegas do que quando
eram estranhos os que as faziam; e quando eram estes que as faziam,
os bebês, na maioria das vezes, choravam. Pois o ataque simulado
139
deve ser reconhecido como sendo apenas um simulacro e, tratando-se
de estranhos, não se pode ter certeza. Mesmo com a própria mãe
persiste sempre uma leve sensação de incerteza e apreensão, cuja
manifestação há de se alternar com o riso no comportamento do bebê;
e é precisamente esse elemento de tensão nos ataques de cócegas que
se descarrega no riso acompanhado de contorções. A regra do jogo é
esta: "Deixe-me ficar só um pouco assustado, de maneira que eu possa
saborear o alívio".
Portanto, a pessoa que faz cócegas está personificando um
agressor, mas é simultaneamente reconhecida como não sendo
agressor. Provavelmente, esta é a primeira situação na vida que levado
bebê a viver em dois planos ao mesmo tempo — um deleitável
antegozo de sentir cócegas provocadas pelo horror cômico.
O humor nas artes visuais espelha as mesma estruturas lógicas
analisadas acima. Sua mais antiga forma é o espelho deformante num
parque de diversões, que reflete a figura humana alongada como uma
coluna ou comprimida na forma de um sapo; ele faz um chiste prático
com a vítima que vê sua imagem no espelho, seja como o seu familiar
ego, seja como uma maleável massa de plastilina que pode ser
esticada ou comprimida em formas absurdas. Mas, enquanto o espelho
distorce mecanicamente, o caricaturista o faz seletivamente, usando a
mesma técnica empregada pelo satirista que exagera facetas
características e simplifica o restante. Como o satirista, o caricaturista
revela o absurdo no familiar; e ainda como o satirista, ele deve
exceder seu alvo. Sua malícia se torna inofensiva perante o nosso
conhecimento de que as monstruosas barrigas e pernas tortas por ele
desenhadas, não são reais; pois, as deformidades reais deixam de ser
cômicas e provocam nossa compaixão.
O artista, ao pintar um quadro estilizado, também utiliza a técnica
da seleção, do exagero e da simplificação; mas sua atitude em face do
modelo é dominada por empatia positiva e não por malícia negativa; e
os detalhes que ele escolhe para serem realçados diferem de acordo
com tal atitude. Em alguns esboços deixados por Leonardo, Hogarth
ou Daumier, as paixões refletidas são tão violentas, as caretas tão
ferozes, que é impossível dizer se eles se destinavam a retratos ou a
caricaturas. Se alguém imaginar que tais distorções da face humana
são realmente impossíveis, que Daumier apenas simulou que elas
existem, então essa pessoa está liberada do horror e da compaixão e
pode rir de seu aspecto grotesco. Mas se pensar que isso é realmente o
que Daumier via naquelas faces desumanizadas, então sentirá que está
contemplando uma verdadeira obra de arte.
140
Humor na música é um assunto a ser tratado com muita cautela
porque a linguagem da música, ultimamente, escapa à tradução para
símbolos verbais. Tudo o que se pode fazer é apontar algumas
analogias: um ruído "seco", tal como o soar de uma trombeta inserido
numa passagem onde ele não se enquadra, produz o efeito de um
chiste prático; semelhante reação é produzida por um cantor ou um
instrumento desafinado; a imitação de sons animais, feita vocal ou
instrumentalmente, explora a técnica da personificação; um noturno
de Chopin transposto para o ritmo de jazz, ou um simples canto
popular executado no estilo da Valquíria é um casamento de
caracteres incompatíveis. Esses são artifícios primitivos,
correspondentes aos mais baixos níveis de humor; mais para cima,
encontramos composições como La Valse, de Ravel — uma afetuosa
paródia das sentimentais Wiener Walzer; ou a Sinfonia da Surpresa,
de Haydn, ou a pseudo-heróica ópera folclórica de Kodály, Hári
Janos. Mas, em óperas cômicas, é quase impossível discernir quanto
efeito cômico provém do texto e quanto provém da música; e as mais
elevadas formas de humor musical, os inesperados deleites de um
alegre scherzo de Mozart, desafiam a análise verbal — ou então esta
deveria ser tão especializada e técnica que anularia seu objetivo. Sem
dúvida uma passagem musical "espirituosa", que causa surpresa no
auditório e burla suas "tensas expectativas", provoca o efeito de
descarregar a emoção que produz o riso. Entretanto um auditório de
concerto dificilmente será levado a rir, embora possa ocasionalmente
sorrir. Isso serve para demonstrar que as emoções causadas pelo
humor musical são de uma espécie mais sutil que as do tipo verbal e
visual.

Os critérios que determinam se uma contribuição humorística será


julgada boa, má ou indiferente dependem em parte do gosto da época
e da preferência pessoal e em parte do estilo e da técnica do
humorista. Julgo que esses critérios podem ser resumidos em três itens
principais: a) originalidade, b) ênfase, c) economia.
São evidentes os méritos da originalidade; ela fornece o elemento
essencial da surpresa, que intercepta nossas expectativas. Mas a
verdadeira originalidade não se encontra com muita freqüência nem
no humor nem nas outras formas de arte. Um substituto comum para
ela consiste em aumentar a tensão da audiência por meio de várias
técnicas de ênfase sugestiva. O domínio do palhaço é o tipo rico e
141
grosseiro do humor: ele exagera, apela para os impulsos sádicos,
sexuais e escatológicos; um de seus truques favoritos é a repetição da
mesma situação, da mesma frase-chave. Isso diminui o efeito da
surpresa, mas ajuda a conduzir a emoção pelo canal familiar — mais e
mais líquido é bombeado para dentro do cano estourado.
A ênfase sobre cores locais e peculiaridades étnicas — como nas
anedotas de escoceses, judeus e pobres de Londres — é outro meio de
canalizar as emoções nos sulcos familiares. Naturalmente, para
alcançar o objetivo cômico, o escocês e o favelado londrino devem ser
apresentados sob forma de caricaturas — em outras palavras, o
exagero e a simplificação aparecem, mais uma vez, como elementos
indispensáveis para gerar a ênfase.
No entanto, nas formas de humor mais elevadas, a ênfase tende a
ceder lugar ao seu oposto: a economia. Economia, com humor e arte,
não significa brevidade mecânica, mas a sugestão implícita no lugar
da afirmação explícita — a alusão oblíqua em lugar do ataque frontal.
A antiga caricatura do Punch mostrando o leão britânico e o urso
russo é um exemplo típico; a história em quadrinhos do New Yorker
apresenta uma charada que o leitor deve resolver com esforço
imaginativo, a fim de "ver o chiste".
No humor, como em outras formas de arte, ênfase e economia são
técnicas complementares. A primeira empurra a dose pela garganta do
leitor, a segunda o atormenta para estimular-lhe o apetite.

Teorias mais antigas — incluindo as de Bergson e Freud —


trataram o humor como um fenômeno isolado, sem procurar lançar luz
sobre as íntimas conexões entre o cômico e o trágico, entre o riso e o
choro, entre a inspiração artística, a inventividade cômica e a
descoberta científica. No entanto, esses três domínios da atividade
criativa formam (como veremos mais adiante) um continuam sem
limites definidos entre espírito e ingenuidade, entre a arte da
descoberta e as descobertas da arte.
Já se afirmou, por exemplo, que a descoberta científica consiste
em ver uma analogia que ninguém viu antes. Quando, no Cântico dos
Cânticos, Salomão comparou o pescoço da Sulamita a uma torre de
marfim, ele viu uma analogia que, antes, ninguém vira; o mesmo fez
William Harvey, quando percebeu no coração exposto de um peixe
142
uma caricatura de bomba mecânica; e quando um caricaturista
desenha um nariz semelhante a um pepino, também faz a mesma
coisa. Na verdade, todos os padrões bissociativos analisados acima,
que constituem a "gramática" do humor, podem entrar a serviço da
arte ou da descoberta, de acordo com a situação. O trocadilho tem seu
equivalente na rima, bem como nos problemas enfrentados pelo
filólogo. O choque entre códigos incompatíveis de comportamento
pode produzir comédia, tragédia, ou novas perspectivas psicológicas.
O dualismo da mente e matéria inerte é explorado pelo humorista
prático, mas também fornece um dos eternos temas da literatura: o
homem como uma marionete pendurada em cordas, manipulada por
deuses ou cromossomos. A dicotomia homem-besta é retratada pelo
Pato Donald, assim como pela Metamorfose de Kafka e pelas
experiências com ratos, feitas pelos psicólogos. A caricatura não
corresponde apenas ao retrato de caracteres feito pelo artista, mas
também aos diagramas e mapas do cientista, que dá ênfase aos
aspectos relevantes e omite o restante.
Os processos conscientes e inconscientes que fundamentam a
criatividade são atividades essencialmente combinatórias — a junção
de áreas do conhecimento e da experiência que antes estavam
separadas. O objetivo do cientista é realizar a síntese, o artista visa à
justaposição do familiar com o eterno, o jogo do humorista consiste
em produzir uma colisão. E, porque diferem suas motivações, também
diferem as respostas emocionais evocadas pelos diversos tipos de
criatividade: a descoberta satisfaz o "impulso exploratório"; a arte
induz a catarse emocional, mediante o "sentimento oceânico"; o
humor incita a malícia e proporciona-lhe uma saída inofensiva. O riso
pode ser descrito como a "reação Haha"; o grito eureka do
descobridor, como a "reação Aha!"; e o deleite da experiência estética,
como a "reação Ah...". Mas, são contínuas as transições de uma para a
outra: o dito espirituoso mistura-se com o epigrama, e a caricatura,
com o retrato; e não importa que se considere a arquitetura, a
medicina, o xadrez ou a culinária, não existe fronteira definida, onde
termine o domínio da ciência e comece o da arte. Comédia e tragédia,
riso e choro estabelecem os extremos do espectro contínuo.

SUMÁRIO

O humor fornece uma entrada pela porta dos fundos para o


domínio da criatividade porque é o único exemplo de um complexo
estímulo intelectual que libera uma resposta corporal simples — o
reflexo do riso.
143
Para descrever o padrão unitário subjacente a todas as variedades
de humor, propus o termo "bissociação" — a percepção de um evento
ou situação em dois contextos associativos que se excluem
mutuamente. Como resultado temos a transferência abrupta do trem da
consciência para uma outra linha, governada por uma diferente lógica
ou "regra do jogo". Esse choque intelectual frustra nossas
expectativas; as emoções por elas provocadas tornam-se subitamente
redundantes e são descarregadas através de canais de menor
resistência, em forma de riso.
As emoções aqui envolvidas, embora complexas, contêm sempre
um elemento dominante das tendências auto-afirmativas, agressivo-
defensivas. Baseiam-se no antigo ramo supra-renal e simpático do
sistema nervoso — o cérebro antigo — e possuem um momento e uma
persistência mais forte que os sutis e divergentes processos do
raciocínio cortical, com os quais são incapazes de se emparelhar. É a
emoção abandonada pelo pensamento que se descarrega,
inofensivamente, no riso. Mas esse reflexo de luxo poderia surgir
apenas numa criatura cujo raciocínio tivesse alcançado certo grau de
independência em relação a seus impulsos biológicos, capacitando-a a
perceber como redundantes as próprias emoções — a compreender
que fora lograda. A pessoa que ri é o oposto da fanática, cuja razão
está cega de emoção — e que se engana a si mesma.
Após aplicar a teoria a vários tipos de cômico — desde as cócegas
físicas até a sátira social — analisei os critérios de estilos e técnicas do
humor: originalidade ou imprevisão, ênfase mediante seleção,
exagero e simplificação; e seu reverso: economia ou subentendido,
que força o auditório a fazer um esforço recriativo.
Finalmente, as breves referências cruzadas à criatividade na
ciência e na arte, feitas no final deste capítulo, podem servir de
introdução às próximas seções.
144

VII

A ARTE DA DESCOBERTA

Na ciência, a criatividade poderia ser descrita como a arte de


somar dois mais dois e obter cinco. Em outras palavras, consiste em
combinar estruturas mentais anteriormente não relacionadas, de tal
maneira que se obtém do todo resultante algo mais do que aquilo que
nele foi posto. Esse aparente passo de mágica deriva do fato de o todo
não ser meramente a soma de suas partes, mas uma expressão das
relações entre essas partes; e do fato de cada nova síntese levar ao
surgimento de novos padrões de relações — hólons cognitivos mais
complexos em níveis superiores da hierarquia mental.
Permitam-me apresentar alguns breves exemplos selecionados
dentre as numerosas histórias típicas de descobertas científicas
descritas em The Sleep-walkers, The Act of Creation etc.
Desde tempos imemoriais, o homem conheceu os movimentos das
ondas. Diga-se o mesmo dos movimentos da Lua. Mas a idéia de unir
os dois movimentos, a idéia de que as ondas são provocadas pela
atração da Lua, foi defendida pela primeira vez pelo astrônomo
alemão Johannes Kepler, no séc. XVII. Somando dois mais dois, ele
desvendou um panorama infinito para a moderna astronomia.
As magnetitas — os ímãs — eram conhecidas pelos antigos
gregos como uma curiosidade da natureza. Na Idade Média, eram
utilizadas para dois fins distintos: como bússolas dos marinheiros e
como meio de reconduzir de volta para seu marido uma esposa
separada. Muito conhecidas eram também as curiosas propriedades do
âmbar que, ao ser friccionado, adquiria o poder de atrair objetos
delgados. O termo grego para âmbar é eléktron, mas a ciência grega
estava tão pouco interessada pelos extraordinários fenômenos da
eletricidade quanto a ciência moderna se ocupa com a telepatia. Nem a
Idade Média se interessou por esse assunto. Durante aproximadamente
145
dois mil anos, o magnetismo e a eletricidade foram considerados
como fenômenos separados, tão desprovidos de mútuas relações
quanto as ondas e a Lua. Em 1820, Hans Christian Oersted descobriu
que uma corrente elétrica, passando por um fio, desviava a agulha de
uma bússola que, por acaso, estava sobre a mesa. Naquele histórico
momento, os dois contextos até então separados começaram a fundir-
se numa nova síntese: o eletromagnetismo — criando assim uma
espécie de reação em cadeia que ainda está continuando. Em
sucessivos estágios, eletricidade e magnetismo fundiram-se com a luz
radiante, a química uniu-se à física, o humilde eléktron tornou-se um
planeta girando na órbita do sistema solar do átomo e, ultimamente, a
energia e a matéria se unificaram na ímpar e sinistra equação de
Einstein: E = mc2.
Se recuarmos até o início da pesquisa científica, existe uma antiga
tradição, segundo a qual Pitágoras descobriu os segredos da harmonia
musical, enquanto apreciava o trabalho de alguns ferreiros, em sua
ilha nativa de Samos, percebendo que, sob os golpes do martelo, as
barras de ferro de diferentes comprimentos produziam sons de
diferentes tonalidades. Esse amálgama espontâneo de aritmética e
música foi, provavelmente, o ponto de partida da física.
Desde os pitagóricos, que deram expressão matemática à harmonia
das esferas, até seus herdeiros modernos, que combinaram espaço e
tempo num contínuo único, o padrão se mantém sempre o mesmo: as
descobertas da ciência não criam algo do nada; elas combinam,
relacionam e integram idéias, fatos, contextos associativos — hólons
mentais — que já existiam anteriormente, mas estavam separados.
Esse ato de fertilização cruzada — ou autofertilização dentro de um só
cérebro — aparenta constituir a essência da criatividade, e justificar o
termo "bissociação". Já vimos como o humorista bissocia estruturas
mentais mutuamente incompatíveis, a fim de produzir uma colisão.
Por outro lado, o cientista visa à síntese, à integração de idéias
anteriormente não relacionadas. A palavra latina cogito vem de
coagitare, sacudir junto. No humor, a bissociação consiste em
subitamente sacudir juntos elementos incompatíveis que, em poucos
instantes, colidem e separam-se de novo. Bissociação, em ciência,
significa a combinação de hólons cognitivos até então não
relacionados, de tal modo que se adiciona um novo nível à hierarquia
do conhecimento, nível que contém como seus membros as estruturas
anteriormente separadas.
No entanto, já vimos que os dois campos são contínuos, não
apresentando uma separação nítida: cada frase espirituosa e sutil é
146
uma descoberta maliciosa e, vice-versa, muitas das grandes
descobertas científicas foram acolhidas com estrepitosas gargalhadas,
exatamente porque pareciam representar um casamento de fatos
incompatíveis — até o momento em que o casamento deu frutos,
ficando comprovado que a aparente incompatibilidade provinha de
preconceitos. O que parecia uma colisão transformou-se em fusão: o
dito espirituoso é a afirmação de um paradoxo, a descoberta é a
solução de um paradoxo. O próprio Galileu qualificou de anedota de
mau gosto a teoria de Kepler sobre as ondas; e pode-se até imaginar
um caricaturista contemporâneo desenhando uma lua de faces
rechonchudas a sugar com um canudinho os oceanos terrestres.
Todavia, o passo entre o sublime e o ridículo é reversível: as sátiras de
Swift e Orwell contêm lições mais profundas que as de uma inteira
biblioteca de obras sobre as ciências sociais.
À medida que passamos dos tipos rústicos de humor para os mais
sofisticados, continuando em frente através da fluida fronteira até
chegarmos ao painel central do tríptico apresentado na página 125,
deparamos casos híbridos, tais como quebra-cabeças, paradoxos
lógicos, passatempos matemáticos. Durante dois milênios, as charadas
a respeito de Aquiles e a tartaruga e a respeito do Mentiroso de Creta
intrigaram os filósofos e incitaram os lógicos a realizarem novos
esforços criativos. A tarefa do ouvinte foi transformada de "ver o
chiste" para "resolver o problema". E quando alcança êxito, ele não
mais explode em gargalhadas, como diante da comicidade do palhaço;
no decorrer de nossa jornada, o riso gradualmente esmaeceu em
sorriso divertido e, depois, em sorriso de admiração: o clima
emocional passou da reação Haha para a reação Aha!

O termo "experiência Aha" foi criado pelos psicólogos gestaltistas


para designar a euforia que segue ao momento de verdade, ao lampejo
de iluminação, quando as peças do quebra-cabeça se encaixam todas
corretamente — ou, em nossos termos, quando os contextos
bissociados se fundem numa nova síntese. A emoção que explode em
riso desenfreado é agressão desviada de seu objetivo; a tensão que se
esvai na reação Aha, após certa expectativa, emana sobretudo de um
desafio à curiosidade intelectual, da ânsia de explorar e compreender.
Esse anseio não se limita à pesquisas de laboratório. Nos últimos
anos, os biólogos foram levados a reconhecer a existência de um
147
instinto primário, o "impulso exploratório", de importância tão básica
quanto a dos instintos da fome e do sexo, o qual, ocasionalmente,
pode até mostrar-se mais forte que os demais. Inúmeros zoólogos
experimentais — a começar pelo próprio Darwin* — demonstraram
que a curiosidade é um impulso inato em ratos, pássaros, golfinhos,
chimpanzés e homens. É a força impulsora que leva o rato de
laboratório a encontrar o caminho através do labirinto experimental,
sem que haja recompensa ou castigo, e mesmo a enfrentar o castigo,
passando por grades eletrificadas ao invés de recuar. Faz com que a
criança desmonte por completo o brinquedo novo, "para ver o que há
lá dentro", além de ser o principal motor que leva avante qualquer
exploração e pesquisa humanas.
*Ver The Act of Creation. Livro II, Capítulo VIII.

Evidentemente, o impulso exploratório associa-se a outros


impulsos, como o da fome ou do sexo. A pesquisa proverbialmente
"desprendida" e "desinteressada" do genuíno cientista — sua
autotranscendente absorção nos mistérios da Natureza — de fato, está
muitas vezes eivada de ambição, concorrência, vaidade. Mas essas
tendências auto-afirmativas devem ser coibidas e altamente
sublimadas para alcançarem sua realização nas recompensas — na
maioria das vezes, insignificantes — por seus longos e pacientes
esforços. Afinal, existem métodos mais diretos para afirmar o seu ego,
do que o estudo de espirais nebulosas.
Contudo, embora a ambição e a vaidade possam adulterar o
impulso exploratório, a pesquisa torna-se a própria recompensa desse
impulso, em sua mais pura forma.
Emerson escreveu: "Mesmo que eu pudesse segurar a verdade em
minhas mãos, haveria de deixá-la partir para sentir a alegria positiva
de procurá-la". Numa clássica experiência, Sultan, o chimpanzé de
Wolfgang Köhler, após inúmeras tentativas infrutíferas de puxar para
perto de si uma banana colocada fora de sua jaula, utilizando uma vara
curta demais, descobriu que poderia conseguir seu intento se juntasse
duas varas ocas, colocando uma na ponta da outra. Sua nova
descoberta "causou-lhe alegria tão imensa" que ele ficou repetindo a
manobra e esqueceu de comer a banana.
No entanto, excluída a vaidade subjetiva, as tendências auto-
afirmativas também entram, em nível mais profundo, na motivação do
cientista. "Eu sou — escreveu Freud — não realmente um homem de
ciência..., mas um conquistador... com a curiosidade, a ousadia e a
tenacidade que são apanágio desse tipo de pessoas." O impulso
148
exploratório visa a compreender a Natureza, o elemento conquistador
visa a dominar a Natureza (inclusive a natureza humana). Com
exceção talvez da matemática pura, qualquer tipo de investigação
científica possui essa dupla motivação, embora ela nem sempre se
manifeste, na mente de determinado cientista, de modo necessário e
igualmente consciente. O conhecimento pode produzir humildade ou
poder. Os arquétipos dessas tendências opostas são Prometeu e
Pitágoras — um roubando o fogo dos deuses, o outro ouvindo a
harmonia das esferas celestes. À confissão de Freud podemos
contrapor os depoimentos de muitos gênios científicos, segundo os
quais o único propósito de seus esforços foi o de levantar uma
pontinha do véu que encobre os mistérios da Natureza, tendo como
exclusiva motivação o sentimento de respeito e admiração. "Os
homens foram, no início, induzidos pela admiração a estudar a
filosofia natural, assim como o fazem hoje pelo mesmo motivo",
escreveu Aristóteles. A primeira lembrança de Maxwell era a de "estar
deitado na grama, olhando para o Sol e admirando". Einstein — o
mais humilde de todos — bateu na mesma tecla ao escrever que toda
pessoa desprovida da capacidade de sentir-se admirada perante o
mistério cósmico, "todo aquele que permanece insensível, todo aquele
que não consegue contemplar ou conhecer o profundo estremecimento
da alma em êxtase só pode estar morto, pois já fechou seus olhos para
a vida". Ele não podia prever, quando descobriu a maravilhosa
equação que unificou a matéria e a energia, que ela se transformaria
em magia negra.
Portanto, a onipresente polaridade entre as tendências auto-
afirmativas e autotranscendentes manifesta-se claramente no domínio
da criatividade científica. A descoberta pode ser chamada de arte
emocionalmente neutra — não porque o cientista esteja desprovido de
emoção, mas porque seus esforços requerem uma dosagem
delicadamente equilibrada e sublimada de motivações, onde se
contrabalançam com perfeição os impulsos exploratórios e
dominadores. Pela mesma razão, reservou-se-lhe o painel central do
tríptico, entre o comediante que, exercendo seu dote espirituoso a
expensas dos outros, é primariamente dominado pela malícia auto-
afirmativa, e o artista, cujo trabalho criativo depende do poder
autotranscendente de sua imaginação.
Além disso, a topologia simbólica do tríptico parece justificar-se
pela natureza da reação Aha. Ela combina a descarga explosiva de
tensão, condensada no grito de eureka, que se assemelha à reação
Haha, com a catártica reação Ah... — aquele "profundo
149
estremecimento do êxtase, de que Einstein fala, e que está
intimamente relacionado com a experiência de beleza vivida pelo
artista e com o "sentimento oceânico" do místico. O grito de eureka
reflete o elemento conquistador, a reação Ah... reflete o elemento
místico, na híbrida motivação da pesquisa científica.
Podemos agora continuar a jornada pelo tríptico até o terceiro
painel, onde o clima emocional é dominado pela reação Ah...
150
VIII

AS DESCOBERTAS DA ARTE
1

O riso e o choro, provocados pela comédia e pela tragédia,


constituem os dois extremos de um espectro contínuo. Ambos
fornecem canais para extravasar o excesso de emoções; ambos são
"reflexos de luxo", sem utilidade aparente. Eles possuem em comum
apenas isso; sob todos os outros aspectos são diretamente opostos.
Embora o choro não seja um fenômeno incomum, nem trivial, a
psicologia acadêmica o tem ignorado quase por completo. Não
existem teorias sobre o choro comparáveis aos tratados sobre o riso
elaborados por Bergson ou Freud; e a teoria apresentada em The Act of
Creation é a única mencionada no manual de psicologia padronizado
para os estudantes universitários americanos, escrito por Kilgard e
Atkinson*.
*Extraído da obra de Kilgard e Atkinson, Introduction to Psychology (4* ed.,
1967), Cap. 7 "Emotion", subseção "Weeping": "Risos e lágrimas estão,
freqüentemente, muito unidos e, embora associemos o riso à alegria e as lágrimas à
tristeza, há também lágrimas de alegria. O escritor Arthur Koestler tem apontado a
falha existente nos manuais de psicologia, por não estudarem o choro, e ao mesmo
tempo tentou suprir essa falta, elaborando sua própria teoria. Koestler distingue cinco
espécies de situações em que o choro acompanha o comportamento motivado." Então
o manual menciona brevemente as cinco situações — arrebatamento, luto, alívio,
simpatia, autocomiseração — e conclui: "Essas considerações mostram que tipo de
comentário sobre o comportamento motivado contínuo as emoções podem provocar.
O choro não é nem impulso, nem incentivo, mas apenas um sinal de que está
ocorrendo algo importante sob o aspecto da motivação."
E isso é tudo o que os estudantes de psicologia aprendem sobre o choro.
Como passo preliminar, devemos fazer uma distinção entre
weeping e crying, pois é uma peculiaridade da língua inglesa usar
151
ambos os termos como sinônimos*. Weeping apresenta duas
características reflexas básicas: a secreção de lágrimas e um tipo
específico de respiração. Crying é a emissão de sons que expressam
angústia ou protesto. Crying pode manifestar-se combinado ou
alternado com weeping, mas não deve ser confundido com este.
Crying é uma forma de comunicação, weeping é um assunto
particular. E, naturalmente, estamos falando do weeping [choro]
espontâneo, não dos soluços forçados, produzidos por encenações
públicas ou particulares.
*Perdoe-nos o leitor a insistência em conservarmos, nesta passagem, os termos
em inglês. A isso nos leva o fato de, na língua portuguesa, nenhum sinônimo de choro
conter, ao mesmo tempo, o significado de grito, brado. (N. dos T.)
Comparemos os processos fisiológicos observados no riso e no
choro. O riso é desencadeado pela parte adrenalino-simpática do
sistema nervoso autônomo e o choro, pela parte parassimpática. O
primeiro, como já vimos, serve para enrijecer o corpo, entesando-o
para a ação; o segundo produz o efeito contrário: baixa a pressão
sangüínea, neutraliza os excessos de açúcar do sangue, facilita a
eliminação de detritos corporais e, geralmente, tende à quietude e
catarse — literalmente, à "purificação" das tensões.
Esse contraste fisiológico reflete-se com clareza nas manifestações
visíveis do riso e do choro. Os olhos de quem ri brilham, com os
cantos franzidos, mas as sobrancelhas e as faces estão serenas e
afáveis, o que empresta ao rosto uma expressão radiante; além disso,
os lábios estão entreabertos, com os cantos voltados para cima. No
choro, os olhos ficam "marejados de lágrimas", perdem sua
focalização e seu brilho; as feições parecem desabar; mesmo quando o
choro provém da alegria ou de um arroubo estético, a face
transfigurada reflete uma serena languidez.
Contraste semelhante percebe-se nos movimentos e posições do
corpo. Durante a risada, a cabeça é movida para trás por uma vigorosa
contração dos músculos da nuca; a pessoa que chora "deixa a cabeça
cair" (nas mãos, sobre a mesa ou nos ombros de alguém). O riso
contrai os músculos e produz movimentos agitados; durante o choro,
os músculos se tornam flácidos, os ombros se curvam para a frente,
toda a postura do corpo reflete uma "situação de abandono".
O modo de respirar, no riso, consiste em longas e profundas
aspirações de ar, seguidas de súbitas e explosivas exalações
intermitentes — ha-ha-ha! No choro, o processo é inverso: inalações
curtas e ofegantes — soluços — seguidas por expirações longas e
suspirantes — a-a-h, ah...
152
Esses contrastes manifestos entre o riso e o choro e sua
dependência de duas partes diferentes do sistema nervoso autônomo
estão em consonância com sua origem em tipos opostos de emoção. A
reação Haha é desencadeada pelas emoções auto-afirmativas, a reação
Ah..., pelas autotranscendentes. A esta altura, a primeira parte dessa
afirmativa deveria ser óbvia, ao passo que a segunda requer alguns
comentários mais detalhados.

Em The Act of Creation, analisei detalhadamente várias situações


que podem resultar num transbordamento de lágrimas — luto,
compaixão, abandono, pavor, arrebatamento religioso ou estético etc.
Apenas esta última situação é positivamente relevante para nosso
propósito, mas é digno de menção o fato de todas as emoções que
provocam lágrimas apresentarem um elemento básico em comum, um
elemento altruísta, isto é, autotranscendente — um profundo desejo de
entrar numa comunhão quase simbiótica com uma pessoa, viva ou
morta, ou com alguma entidade superior que pode ser a Natureza, ou
uma forma de Arte, ou uma experiência mística. Como temos visto,
essas emoções "participantes" são manifestações subjetivas da
tendência integrativa, refletindo a parceria do hólon humano — sua
dependência de, e seu compromisso com alguma unidade mais
compreensiva de um nível superior da hierarquia que transcende os
estreitos limites do ego. Ouvir o organista executar músicas numa
catedral vazia, ou apreciar as estrelas numa noite de verão pode causar
uma erupção de emoções que umedecem os olhos, acompanhada por
uma expansão da consciência, a qual se torna quase despersonalizada
e — se a experiência for muito intensa — conduz para o "sentimento
oceânico de extensão ilimitada e de unidade com o Universo*" — a
reação Ah... em sua mais pura forma.
*Palavras de Romain Rolland ao descrever a natureza da experiência religiosa,
numa carta a Freud — que pesarosamente confessou jamais haver sentido algo
semelhante1.
O comum dos mortais raramente sobe a tais alturas místicas, mas
está ao menos familiarizado com os contrafortes. As emoções
autotranscendentes possuem uma extensa escala de intensidade e uma
grande variedade; podem ser alegres ou tristes, trágicas ou líricas.
153
"Chorar de alegria" e "chorar de tristeza" refletem a relativa natureza
do tônus hedônico sobreposto a todas as emoções.
Merece ainda ser ressaltado mais um contraste entre a reação Haha
e a reação Ah... Já vimos que, no riso, a tensão explode subitamente;
no choro, ela é gradualmente drenada para fora, sem decepcionar a
expectativa, sem quebrar a continuidade da disposição interna; na
reação Ah..., emoção e razão permanecem unidas. Ademais, as
emoções autotranscendentes não propendem para a ação corporal, mas
para a quietude passiva. Respiração e pulso tornam-se mais lentos; o
"arrebatamento" é um passo em direção aos estados semelhantes a
transes alcançados pelos místicos contemplativos; a emoção é de um
tipo que não pode ser provocado por qualquer ato voluntário
específico. Ser "subjugado" pelo terror ou pela admiração,
"arrebatado" por um sorriso, "fascinado" pela beleza — cada uma
dessas palavras expressa uma rendição passiva. O excesso de emoção
não pode ser descarregado por nenhuma atividade muscular
proposital, só pode ser consumado por processos internos— viscerais
e glandulares. (Cfr. acima, Capítulo III.)
Finalmente, são pertinentes ao nosso tema algumas observações
adicionais a respeito do sistema nervoso autônomo. Em situações
fortemente emocionais ou patológicas, a ação mutuamente antagônica,
isto é, equilibrante das duas divisões (simpática e parassimpática)
deixa de prevalecer; ao contrário, as duas divisões podem reforçar-se
mutuamente, como ocorre no ato sexual; ou a superexcitação de uma
divisão pode levar a um ricochete temporário ou a um "efeito
respondente" supercompensatório da outra2; por fim, a divisão
parassimpática pode atuar como um catalisador que desperta sua
antagonista para a ação3*.
*Ver Apêndice III.

A primeira dessas três possibilidades é importante para nosso


estado emocional ao ouvirmos uma ópera de Wagner, quando os
sentimentos relaxantes e catárticos parecem estar paradoxalmente
combinados com o arroubo eufórico. A segunda possibilidade reflete-
se nas "depressões emocionais" de qualquer tipo. A terceira
possibilidade é a mais significativa para o nosso tema: ela demonstra
em termos fisiológicos concretos o modo como um tipo de reação
emocional pode atuar como um catalisador para o seu oposto — tal
como a identificação autotranscendente com o herói da tela desperta a
agressividade viçaria contra o vilão; e como a identificação com um
grupo ou credo desencadeia a selvageria do comportamento de massa.
154
3
Já analisei a motivação básica do cientista criativo, ou seja, o
impulso exploratório. Aliás, todo grande artista também possui dentro
de si um instinto de explorador: o poeta não "manipula palavras"
(como diriam os behavioristas), ele explora as potencialidades
emotivas e descritivas da linguagem; o pintor, durante toda a sua vida,
está engajado em aprender a ver (e em ensinar a outros a verem o
mundo como ele o vê). Portanto, o impulso criativo possui a sua fonte
biológica unitária, mas ele pode ser canalizado em muitas direções.
Esse é o primeiro ponto a ser mantido em evidência, se quisermos
sanar a deplorável cisão existente entre as "duas culturas" —
desconhecida da Renascença, bem como da Antigüidade — e
reafirmar a continuidade entre os painéis do tríptico. É desnecessário
dizer que continuidade não significa uniformidade; ela significa o
gradual esmaecimento, sem rupturas nem linhas divisórias, de uma cor
do arco-íris para a próxima.
As linhas horizontais do tríptico da criatividade têm a função de
indicar a continuidade de alguns padrões combinatórios típicos —
alguns processos bissociativos básicos, encontrados nos três painéis.
Esses padrões são trivalentes — podem estar a serviço do humor, da
descoberta e da arte. Permitam-me ilustrar essa parte com mais alguns
exemplos, além dos já mencionados anteriormente.
Vimos, por exemplo, que o desenho do caricaturista, o diagrama
do cientista e o quadro do artista empregam a mesma técnica
bissociativa de sobrepor grades seletivas à aparência óptica. No
entanto, segundo a linguagem da psicologia behaviorista, deveríamos
dizer que Cézanne, ao olhar uma paisagem, recebe um "estímulo" ao
qual ele responde mediante a ação de colocar um pouquinho de tinta
sobre a tela — e isso é tudo. Na realidade, perceber a paisagem e
recriá-la são duas atividades que se desenrolam simultaneamente em
dois planos diferentes, em dois ambientes diversos. O estímulo vem de
um vasto ambiente tridimensional, a paisagem distante. A resposta
atua num ambiente diferente, a pequena tela retangular. Ambos
[estímulo e resposta] são governados por diferentes regras de
organização: um traço isolado do pincel sobre a tela não representa um
detalhe isolado da paisagem. Não existe correspondência detalhada
entre os dois planos; estes são bissociados como todos, na criação do
artista e nos olhos do admirador.
155
A criação de uma obra de arte envolve uma série de processos que
ocorrem praticamente todos ao mesmo tempo e não podem ser
traduzidos em termos verbais, sem sofrerem empobrecimento e
distorção. O artista, assim como o cientista, está engajado em projetar
sua visão da realidade num determinado meio, seja esse meio a
pintura, seja o mármore, ou as palavras, ou as equações matemáticas.
Mas o produto de seus esforços jamais pode ser uma representação
exata ou uma cópia da realidade, mesmo que o artista deseje alcançar
isso. Em primeiro lugar, ele necessita ater-se às peculiaridades e
limitações do meio escolhido. Mas, em segundo lugar, sua própria
percepção e visão do mundo também possuem peculiaridades e
limitações específicas, impostas pelas convenções implícitas de sua
época ou escola e por seu temperamento individual. Isso garante
coerência à sua visão, embora, por outro lado, tenda a mumificar-se
em fórmulas fixas, estereótipos, clichês verbais e visuais. A
originalidade do gênio, tanto na arte como na ciência, consiste num
enfoque da atenção sobre aspectos da realidade anteriormente
ignorados, descobrindo conexões ocultas, vendo sob nova luz os
objetos ou eventos familiares.
Nos debates havidos após uma conferência pronunciada numa
universidade americana sobre o tema exposto no presente capítulo, um
dos "pintores residentes" observou com certa irritação: "Eu não
'bissocio'. Eu simplesmente me sento, olho para o modelo e começo a
pintá-lo."
Em certo sentido, ele estava com a razão. Descobrira seu "estilo",
seu vocabulário visual, há alguns anos e estava contente em usá-lo,
com pequenas variações, para expressar tudo o que tivesse para dizer.
O antigo processo criativo tornara-se estabilizado nos moldes de uma
rotina prática. Seria grande loucura subestimar as realizações de que é
capaz a rotina prática, seja no laboratório químico, seja no estúdio do
pintor. Entretanto, a virtuosidade técnica é uma coisa, a originalidade
criativa é outra; e, neste capítulo, estamos interessados apenas na
segunda.
4
O trio: caricatura — diagrama — retrato estilizado formam uma
das linhas horizontais de conexão entre os três painéis do tríptico. Já
foram mencionados anteriormente alguns outros padrões trivalentes.
156
Assim, a bissociação de som e significado, em sua mais humilde
forma, produz o trocadilho. No entanto, a rima nada mais é que um
trocadilho glorificado, onde o som empresta ressonância ao
significado; ao passo que, para o antropólogo e o lingüista, o som
fornece indicações práticas para o significado. Da mesma forma,
quando o ritmo e a métrica invadem o significado, podem produzir um
soneto de Shakespeare, ou um limerick; ao passo que, no painel
central, o estudo das pulsações rítmicas desempenha um papel vital, a
começar pelas ondas alfa até a sístole e diástole — os iambos e
troqueus da vida. Não deve causar espanto o fato de o verso métrico
conter ecos do tambor do xamã e, para citar Yeats, "embalar a mente
num êxtase desperto".
O caráter trino e uno de outras combinações bissociativas aparece
quase super óbvio no instante em que se capta o princípio subjacente e
se percebem como um todo os três domínios da criatividade. Por isso,
o encontro de analogias ocultas produz a metáfora poética, a
descoberta científica ou o sorriso cômico, segundo a motivação do
explorador. As dicotomias da mente e da matéria, do ser espiritual
e/ou do macaco nu, tornam possíveis infinitas variações para um
tratamento científico, artístico ou cômico.
Menos óbvia é a função trivalente da ilusão. No palco, o ator ou
personagem é, ao mesmo tempo, duas pessoas. Se o resultado é
degradante — Hamlet sofrendo um acesso de soluços durante seu
monólogo — a ilusão se desvanece e o espectador há de rir. Se este é
levado a identificar-se com o herói, experimentará o estado específico
de divisão mental, conhecido como a mágica do palco. Entretanto,
além do parodista e do ator existe um terceiro tipo de personagem que
propositalmente utiliza a capacidade humana de ser, ao mesmo tempo,
a própria pessoa e uma outra qualquer: o terapeuta ou o médico que se
projeta a si mesmo na mente do paciente e ao mesmo tempo atua
como um sábio mágico ou como um pai. Empatia — Einfühlung — é
um termo delicado e sóbrio para identificar o processo como algo
misterioso de entrar numa espécie de simbiose mental com outros
egos, de sair, por assim dizer, da própria pele e entrar na pele do outro.
A empatia é a fonte de nosso entendimento intuitivo — mais direto
que a linguagem — de como o outro pensa e sente; é o ponto de
partida da ciência e arte do diagnóstico médico e da psiquiatria. O
homem dedicado à medicina, seja o antigo, seja o moderno, mantém
uma dupla relação com seu paciente: ele está tentando sentir o que
sente o paciente e, ao mesmo tempo, está agindo como a pessoa
dotada de inspiração divina, poderes mágicos e conhecimentos
secretos. O trágico cria ilusão, o comediante desfaz a ilusão, o
terapeuta a utiliza para alcançar determinado objetivo.
157
A coincidência pode ser descrita como o encontro fortuito de duas
correntes causais não relacionadas que — de forma aparentemente
miraculosa — se fundem num evento significativo. Constitui-se no
mais claro paradigma, engendrado pelo acaso, da bissociação de
contextos anteriormente separados. As coincidências são trocadilhos
do destino. No trocadilho, duas linhas de pensamento são ajuntadas
num laço acústico; na ocorrência coincidente, duas linhas de eventos
são atadas juntas por mãos invisíveis.
Além disso, a coincidência pode servir como um clássico exemplo
da trivalência dos padrões bissociativos, como vemos adequadamente
representado em cada um dos três painéis, F. o esteio principal do tipo
de comédia, ou farsa, que se baseia em situações ambíguas, criadas
pela interseção de duas séries independentes de eventos, de maneira
tal que a situação pode ser interpretada — ou mal interpretada — à luz
de uma ou de outra série, resultando em equívoco de identidade e
confusão de tempo e ocasião. Na tragédia clássica, as coincidências
aparentemente fortuitas são o deus ex machina, pelas quais os deuses
interferem no destino do homem — Édipo cai na armadilha de matar
seu pai e casar-se com a própria mãe, por equívoco de identidade.
Finalmente, os felizes acasos — os dons de serendipia* —
desempenham um papel considerável na história das descobertas
científicas.
*O termo serendipity, criado pelo romancista inglês Horace Walpole (1717-
1797), no livro The Three Princes of Serendip. significa uma aparente aptidão para
fazer, acidentalmente, descobertas afortunadas. Serendip é o Ceilão, atual Sri Lanka,
onde os três príncipes (personagens centrais) fazem descobertas fabulosas. Ao forjar o
neologismo, optamos por serendipia levados pelo fato de o sufixo nominal -ia conter
o significado de "qualidade", "estado", "propriedade". (N. dos T.)

No entanto, num nível mais elevado do tríptico, o padrão sofre


uma sutil modificação. A comédia de situações cede o passo à
comédia de maneiras, a qual, para produzir seus efeitos, já não
depende de coincidências, mas do embate entre códigos incompatíveis
de raciocínio ou conduta, cujo resultado provoca a explosão da
hipocrisia ou absurdo de um ou de ambos os livros de regras. O drama
moderno apresenta modificação semelhante: o destino já não age mais
do exterior, e sim do interior dos personagens; estes não são mais
marionetes presas a cordas manipuladas pelos deuses, mas vítimas das
próprias paixões mesquinhas ou conflitantes: "o erro, caro Brutus, não
reside em nossas estrelas, mas em nós mesmos".
158
O drama viceja no conflito, e o mesmo ocorre com a novela. A
natureza do conflito pode ser afirmada explicitamente ou apenas
sugerida implicitamente; mas ele deve sempre estar presente, caso
contrário os personagens ficariam flutuando num universo desprovido
de atritos. O conflito pode se manifestar no coração dividido de um
único personagem, ou pode ser partilhado por duas ou mais pessoas,
ou pelo homem e seu destino. O conflito entre personalidades pode
surgir do contraste de idéias ou temperamentos, sistemas de valores ou
códigos de conduta — como ocorre na comédia. Mas, enquanto na
comédia a colisão resulta em malicioso escárnio, o conflito pode
alcançar a dignidade de uma tragédia se o auditório foi induzido a
aceitar como válidas as atitudes de ambos os antagonistas, tornando-se
cada qual vítima de seu próprio sistema de referência. Se o autor
conseguir isso, o conflito será projetado para a mente do espectador —
ou do leitor — e sentido como um choque entre duas identificações
simultâneas e incompatíveis. "Transformamos em retórica nossas
discussões com os outros, e em poesia nossas discussões com nós
mesmos," escreveu Yeats. O comediante nos leva a rir às custas da
vítima; o trágico nos faz sofrer como seus cúmplices; o primeiro apela
para as emoções auto-afirmativas e o segundo, para as
autotranscendentes. Entre ambos, na região emocionalmente "neutra",
o psicólogo, o antropólogo e o sociólogo esforçam-se por resolver os
conflitos, mediante a análise dos fatores que os produzem.

Falta ainda analisar brevemente uma bissociação básica: o


confronto entre o trágico e o trivial. Sem faltar com o devido respeito
às palavras de Shakespeare "o mundo inteiro é um palco", podemos
afirmar que a vida de todo mortal comum transcorre em dois palcos
alternantes, situados em dois níveis diferentes — vamos chamá-los de
plano trivial e plano trágico da existência. Durante a maior parte do
tempo, agitamo-nos no plano trivial; mas, em algumas ocasiões
especiais, quando confrontados com a morte ou engolfados num
sentimento oceânico, temos a impressão de cairmos num alçapão ou
numa boca-de-lobo e sermos transportados para o plano trágico ou
absoluto. Então, repentinamente, nossas rotinas diárias parecem
futilidades superficiais e frívolas. Mas, assim que retornamos com
segurança para o plano trivial, descartamos as experiências do outro
plano como se fossem fantasmas produzidos pelos nervos
superexcitados.
159
A mais elevada forma de criatividade humana consiste no esforço
de preencher a lacuna entre os dois planos. Tanto o artista como o
cientista possuem o dom — ou o anátema — de poder captar os
triviais eventos da experiência cotidiana sub specie aeternitatis, à luz
da eternidade e, vice-versa, de expressar o absoluto em termos
humanos, de refleti-lo numa imagem concreta. O mortal comum não
possui nem a bagagem intelectual nem a emocional para viver no
plano trágico durante períodos que não sejam breves e transitórios. O
Infinito é demasiadamente inumano e indefinível para ser suportado, a
menos que seja levado a misturar-se com o mundo tangível do finito.
O Absoluto do existencialista se torna emocionalmente efetivo só
quando bissociado com algo concreto — embutido nas coisas
familiares. Este é o objetivo, embora nem sempre consciente, do
cientista e do artista. Ao ser preenchida a lacuna entre os dois planos,
o mistério cósmico torna-se humanizado, inserido na órbita do
homem, e, na mesma proporção, as enfadonhas experiências do
homem são transformadas, cercando-se de um halo de mistério e de
prodígio.
É desnecessário afirmar que nem todas as novelas são "novelas
problemáticas", sujeitando o leitor a um continuado assédio de
enigmas existenciais. Mas, indireta ou implicitamente, qualquer
grande obra de arte apresenta alguma relação com os problemas
transcendentes do homem. Até uma humilde margarida possui raízes,
e uma obra de arte, por mais descontraída e serena que seja, alimenta-
se, em última análise, por meio de seus delicados capilares que
penetram nos arquétipos substratos da experiência.
Porque vive simultaneamente nos dois planos, o artista ou cientista
criativo está capacitado a ter uma visão ocasional da eternidade,
espiando pela janela do tempo. Se essa janela é um vitral medieval ou
a fórmula da gravidade universal descoberta por Newton, é apenas
questão de temperamento e de gosto.
6

Nas seções precedentes, analisei a continuidade dos domínios do


humor, da descoberta e da arte, bem como o clima emocional de cada
um desses três domínios e sua derivação da polaridade básica das
emoções e, finalmente, as "linhas horizontais" através do modelo
tríptico, indicando as afinidades estruturais entre os padrões
bissociativos da atividade criativa, nos três domínios. Devemos agora
examinar mais atentamente a psicologia do ato criativo em si mesmo.
160
Todo pensamento e ação coerente são governados por "regras do
jogo", embora não tenhamos, na maioria das vezes, consciência de
sermos controlados por eles. Nas condições artificiais do laboratório
psicológico, as regras são explicitamente ditadas pelo orientador; por
exemplo: "cite os opostos". A seguir, o orientador do teste diz
"escuro", e o candidato responde prontamente "claro". Mas se a regra
for "sinônimos", a pessoa responderá "preto", ou "noite", ou "sombra".
Note-se que embora a regra seja fixa, ela permite ao indivíduo uma
escolha entre várias respostas, mesmo nesse exemplo bem simples. É
desprovido de sentido falar, como fazem os behavioristas, de
estímulos e respostas que formam uma cadeia num vácuo; que
resposta há de ser evocada por um determinado estímulo depende (a)
das regras de jogo fixas e (b) das estratégias flexíveis permitidas pelas
regras e guiadas pela experiência anterior, pelo temperamento e por
outros fatores.
Mas as partidas que jogamos na vida cotidiana são mais
complexas que as do laboratório, onde as regras são apresentadas por
uma ordem explícita. Nas rotinas normais do pensamento e da fala, as
regras exercem implicitamente seu controle, partindo de um nível bem
inferior ao da consciência clara. Não apenas os códigos de gramática e
sintaxe operam ocultos nas entrelinhas, mas também os códigos da
lógica do senso comum e das construções mentais mais complexas,
que chamamos de "sistemas de percepção" ou "contextos
associativos", as quais incluem nossos embutidos preconceitos
axiomáticos e inclinações emocionais. Mesmo quando
conscientemente nos esforçamos por definir as regras que governam
nosso pensamento, percebemos ser extremamente difícil fazê-lo e nos
vemos obrigados a procurar a ajuda de especialistas — lingüistas,
semantistas, psiquiatras e assim por diante. Jogamos as partidas da
vida, obedecendo a livros de regras escritas com tinta invisível ou em
código secreto. Mas existem situações críticas onde não é suficiente
jogar a partida, e onde só a originalidade criativa indica o caminho
para nos safarmos das armadilhas.
Em The Act of Creation, eu propus o termo "matriz" como
fórmula unificadora de referência a essas estruturas cognitivas — isto
é, a todos os hábitos mentais, rotinas e habilidades governados por um
código invariável (que pode ser explícito ou implícito), mas capaz de
utilizar estratégias diferentes no ataque a um problema ou tarefa. Em
outras palavras, as "matrizes" são hólons mentais e apresentam todas
161
as características dos hólons analisados nos capítulos anteriores. São
controladas por regras canônicas, mas guiadas por realimentação
produzida pelo ambiente externo e interno; essas matrizes variam
desde a rigidez pedante até a adaptabilidade flexível — dentro dos
limites permitidos pelo código; estão ordenadas em hierarquias
"verticais" e abstrativas, que se entrelaçam com redes associativas
"horizontais" e referências cruzadas. (Cfr. "arborização e reticulação",
Capítulo I.)
Quando a vida nos defronta com um problema ou trabalho, este
pode ser resolvido de acordo com o mesmo conjunto de regras que nos
possibilitou tratar de outras situações semelhantes, em nossa
experiência anterior. Seria néscio depreciar o valor dessas rotinas
submissas à lei. Elas garantem coerência e estabilidade ao
comportamento, e ordem estrutural ao raciocínio. Mas quando a
dificuldade ou a novidade da tarefa excede um limite crítico, essas
rotinas já não são adequadas para enfrentar tal situação. O mundo está
em contínuo progresso e surgem novas situações, apresentando
problemas e oferecendo desafios que não podem ser resolvidos dentro
dos convencionais sistemas de referência, os consagrados livros de
regras. Na ciência, tais situações surgem sob o impacto de novos
dados que sacodem os fundamentos de teorias bem aceitas. Muitas
vezes, o desafio é proposto pelo insaciável impulso exploratório, que
incita a mente original a levantar problemas jamais apresentados antes
por alguém, e a sentir-se frustrada diante de respostas evasivas. No
caso do artista, o desafio é mais ou menos permanente, originando-se
das limitações de seu meio de expressão, da necessidade que sente de
fugir aos obstáculos e distorções impostos pelos estilos e técnicas
convencionais de sua época, e da sua sempre esperançosa luta por
expressar o inexprimível.
Quando a mente chega ao fim de suas possibilidades, pode — em
raras ocasiões — mostrar-se capaz de realizar feitos
surpreendentemente originais, quase acrobáticos, que levam a uma
realização revolucionária na ciência ou na arte, e abrem novas
perspectivas, com uma visão radicalmente modificada. Todavia, cada
revolução apresenta um aspecto destrutivo, bem como um construtivo.
Quando falamos de uma descoberta "revolucionária" na ciência, ou de
mudanças revolucionárias no estilo artístico, admitimos
implicitamente o aspecto destrutivo*. A destruição é consumada pelo
alijamento de doutrinas anteriormente consagradas e de axiomas de
*Cfr. Karl Popper: "Para que uma nova teoria possa constituir-se em descoberta
ou em passo à frente, ela deve conflitar com sua predecessora; isso
162
equivale a dizer que deve, pelo menos, levar a alguns resultados conflitantes. Isso,
porém, significa, de um ponto de vista lógico, que a nova teoria deve contradizer sua
predecessora: deve derrubá-la. Nesse sentido, o progresso da ciência — ou pelo
menos o progresso surpreendente — sempre é revolucionário"6.
raciocínio aparentemente evidentes, muito arraigados em nossos
hábitos mentais. Isso é o que nos possibilita distinguir entre
originalidade criativa e rotina diligente. Um problema resolvido ou
uma tarefa cumprida de acordo com as regras de jogo estabelecidas
deixa intacta a matriz daquela habilidade — ilesa e possivelmente até
enriquecida pela experiência. Por outro lado, a originalidade criativa
sempre implica em desaprender ou reaprender, em desfazer ou refazer.
Ela envolve o desmoronamento de estruturas mentais petrificadas, o
descarte de matrizes que já esgotaram sua utilidade, e a recomposição
de outras em nova síntese — em outras palavras, trata-se de uma
complexa operação de dissociação e bissociação, envolvendo vários
níveis da holarquia mental.
Todos os indícios biográficos4 mostram que uma operação de
reexame tão radical exige a intervenção de processos mentais situados
abaixo da superfície do raciocínio consciente, nas regiões
penumbrosas da consciência. Na fase decisiva do processo criativo,
relaxam-se os controles racionais e a mente da pessoa criativa parece
regredir do pensamento disciplinado para modos de mentalização
menos especializados e mais fluidos. Um modo freqüente de efetuar
essa mudança é o retrocesso do pensamento verbal articulado para
vagas imaginações visuais. Existe uma ingênua crença popular de que
os cientistas chegam às suas descobertas raciocinando em termos
estritamente racionais, precisos e verbais. Os indícios disponíveis
comprovam que eles não fazem nada disso. Em 1945, a famosa
pesquisa de Jacques Hakamard3, realizada entre os matemáticos
americanos para descobrir seus métodos de trabalho, chegou à
surpreendente conclusão de que aproximadamente todos eles (com
apenas duas exceções) tentavam resolver seus problemas, não em
termos verbais nem por meio de símbolos algébricos, mas apoiados
em imaginações visuais de natureza vaga e nebulosa. Entre eles
figurava Einstein, que escreveu: "As palavras da linguagem, da
maneira como são escritas ou faladas, não parecem desempenhar
nenhuma função em meu mecanismo de pensamento... que se arrima
em imagens mais ou menos claras, de natureza visual e, algumas, de
natureza muscular... Além disso, parece-me que aquilo que você
chama de consciência plena é um caso extremo que jamais pode ser
163
plenamente alcançado, porque a consciência é algo muito estreito"7.
A maior parte dos cientistas criativos que descreveram seus
métodos de trabalho parecem ter sido visualizadores que partilhavam
da opinião de Woodworth: "Para pensar com clareza, necessitamos
freqüentemente nos afastar da linguagem falada". O raciocínio verbal
ocupa os últimos e mais elevados níveis da hierarquia mental, mas
pode degenerar cm pedante rigidez que ergue uma muralha entre o
pensador e a realidade. Com freqüência, a criatividade começa onde
termina a linguagem, isto é, pela regressão aos níveis pré-verbais e
aparentemente pré-racionais da atividade mental, a qual, sob alguns
aspectos, pode ser comparada ao sonho, embora esteja talvez mais
próxima dos estados intermediários entre o sono e a vigília plena.
Tal regressão implica a suspensão temporária das "regras do jogo"
que controlam nossas rotinas de raciocínio; a mente em atividade é
momentaneamente libertada da tirania de esquemas rígidos e
superprecisos, de seus enrustidos preconceitos e axiomas secretos; é
levada a reaprender e adquirir uma nova inocência do olhar e da
fluidez de pensamento, que a capacita a descobrir analogias ocultas e
ousadas combinações de idéias, as quais seriam rejeitadas num estado
de sobriedade e plena consciência. As biografias dos grandes
cientistas apresentam incontáveis exemplos de tal fenômeno; sua
ênfase praticamente unânime sobre intuições espontâneas e
pressentimentos de origem desconhecida sugere que sempre há
grandes fatias de irracionalidade engastadas no processo criativo —
não apenas na arte, onde admitimos isso como evidente, mas também
nas próprias ciências exatas.
Em livros anteriores8, aventurei algumas suposições a respeito da
maneira como funciona esse controle inconsciente — como uma
regressão temporária a níveis mentais menos sofisticados pode
produzir a feliz combinação de idéias, a bissociação focal que gera a
solução do problema. É comum a experiência de, ao acordar pela
manhã, a pessoa tentar agarrar-se à lembrança de um sonho que está se
esvaindo, para longe do alcance da consciência, como a areia se escoa
numa peneira. Pode-se chamar a esse fenômeno de "oneirólise" —
termo formado de oneirós, sonho, mais Use, dissolução. O sonho em
si, enquanto perdura (e, até certo ponto, o modorrento devaneio
também), vagueia, sem esforço, de um cenário para outro, de maneira
absolutamente livre, indiferente às regras da lógica e às convencionais
limitações de espaço, tempo ou causa; estabelece bizarras conexões e
urde analogias entre repolhos e reis, as quais se desintegram quando o
164
sonhador acorda, não conseguindo descrevê-las com termos verbais
precisos — exceto dizendo que algo lhe lembrou alguma coisa, mas
não sabe mais o que ou por quê. Contudo, nos espasmos da obsessão
criativa, quando todos os níveis da hierarquia mental, inclusive os
estratos inconscientes, estão saturados pelo problema, o fenômeno
familiar da oneirólise pode ser invertido para uma espécie de
oneirossíntese, em que aquelas conexões vagamente percebidas
formam uma analogia nascente. Pode ser algo obscuro e impreciso,
como as "imagens de natureza visual ou muscular" de Einstein, ou as
"linhas de força" de Faraday, as quais ele viu, em vividas alucinações,
circundando os ímãs; e as formas dessa analogia podem mudar de
camelo para doninha, como ocorria com a nuvem de Hamlet. As
faculdades inconscientes das mentes férteis devem estar repletas
dessas analogias nascentes, afinidades ocultas e nebulosas "formas de
coisas desconhecidas". Entretanto, devemos lembrar-nos também que
as nuvens se formam e logo se dissolvem; e as trombas-d'água são
eventos raros.
7
A língua francesa tem uma expressão para a qual não consigo
encontrar um equivalente em inglês: reculer pour mieux sauter —
draw back to take a running jump — recuar para melhor saltar. O
processo que estive analisando segue um padrão semelhante: uma
regressão temporária para níveis de ideação mais primitivos e
desinibidos, seguida por um criativo salto para a frente. Desintegração
e reintegração, dissociação e bissociação refletem o mesmo padrão.
No sentido criativo, cogitação é co-agitação, sacudir junto o que antes
estava separado; mas a mente plenamente racional e consciente não é
a melhor coqueteleira. Ela possui um valor inestimável para nossas
rotinas diárias, mas as explosões revolucionárias na ciência e na arte
sempre representam alguma variação de reculer pour mieux sauter.
Podemos chamá-lo de padrão arquétipo, pois tem seus
equivalentes próximos em outros campos. Assim, a psicoterapia,
desde o xamanismo até nossos dias, sempre se baseou nesse tipo
característico de processo de desfazer — refazer, que Ernst Kris
chamou de "regressão a serviço do ego". O neurótico, com suas
compulsões, fobias e complicados mecanismos de defesa, é governado
por excêntricas, mas rígidas, "regras do jogo". O objetivo do terapeuta
é induzir uma regressão temporária, para levar o neurótico a refazer
seus passos até o ponto onde a situação se deteriorou, regressando dali
metamorfoseado, renascido.
165
Na mitologia, o mesmo padrão está refletido no tema da morte e
ressurreição (ou "partida e retorno"). José foi jogado dentro de um
poço, Jonas renasceu ao sair do ventre da baleia, Jesus ressuscitou do
túmulo.
Por fim, como veremos mais adiante, reculer pour mieux sauter,
recuar para melhor saltar, exerce uma função básica, não apenas na
criatividade mental, mas também na evolução criativa das formas
superiores de vida. Veremos que a evolução biológica pode ser
descrita como uma série de fugas dos becos sem saída da estagnação,
da superespecialização e do desajustamento, mediante um processo de
desfazer e refazer, que é basicamente análogo aos fenômenos da
evolução mental, chegando até, sob alguns aspectos, a prefigurá-los.
Mas, antes de adentrarmos esses panoramas mais vastos, restam ainda
algumas pontas soltas, relacionadas à criatividade na arte e na ciência,
que devem ser atadas.
8
Nas seções precedentes, envidei todos os esforços para ressaltar
que o artista e o cientista não habitam universos separados, mas
apenas diferentes regiões de um espectro contínuo — um arco-íris que
se estende do infravermelho da poesia até o ultravioleta da física, com
muitos degraus intermediários — vocações tão híbridas quanto a
arquitetura, a fotografia, o enxadrismo, a arte culinária, a psiquiatria, a
ciência de ficção, ou a cerâmica. Mas, para evitar a demasiada
simplificação, após enfatizar as afinidades, eu devo analisar
brevemente as diferenças — algumas aparentes, outras reais — entre
as partes opostas do contínuo.
Parece que a diferença mais óbvia reside na natureza dos critérios
pelos quais julgamos as realizações científicas e artísticas. Uma das
barreiras imaginárias entre ambas é a crença popular de que o
cientista, ao contrário do artista, ocupa uma posição em que pode
obter a "verdade objetiva", submetendo as teorias a testes
experimentais. Na realidade, a evidência experimental pode confirmar
certas expectativas baseadas numa teoria, mas não pode confirmar a
teoria em si mesma. O mesmo conjunto de dados experimentais pode,
com freqüência, ser interpretado em mais de um sentido — sendo esse
o motivo por que a história da ciência está repleta de tantas
controvérsias venenosas quantas as da história da crítica literária. E
166
assim temos novamente uma série de contínuas gradações desde os
relativamente objetivos métodos de testar uma teoria científica
mediante experiências, até os critérios relativamente subjetivos de
valores estéticos; mas a ênfase está no "relativo". O progresso da
ciência, na verdade, está juncado, como uma antiga trilha do deserto,
de esbranquiçados esqueletos de teorias descartadas, as quais outrora
aparentavam possuir vida eterna. Da mesma forma, a história da arte
apresenta agonizantes reavaliações de valores aceitos, de critérios de
importância, de estilos de representação. No decurso dos últimos dois
séculos, a literatura européia conviveu com o surgimento e a queda do
classicismo, do romantismo, do naturalismo, do surrealismo e do
dadaísmo; do romance de participação social, do existencialismo, do
nouveau roman. Na história da pintura, as mudanças foram até mais
drásticas. No entanto, o mesmo caminho em ziguezague caracteriza o
progresso da ciência, quer olhemos para a história da fisiologia e da
medicina (para não mencionar a da psicologia), quer nos
concentremos na da biologia evolutiva, ou na das abruptas mudanças
havidas na apresentação da ciência "mestra" da física, desde a
concepção do universo defendida por Aristóteles, passando pela de
Newton, até a de Einstein. Os dados podem ser "sólidos", como os
contornos de um borrão de Rorschach, mas a maneira de interpretá-los
é assunto à parte. Existe, sem dúvida, uma considerável diferença no
grau de precisão e objetividade entre os métodos de julgar um teorema
da física e uma obra de arte. Mas, para dizê-lo mais uma vez, a
diferença é apenas uma questão de graus, havendo contínuas
transições entre eles.
Devemos também lembrar-nos que os testes e o julgamento de
uma descoberta vêm após o ato, ao passo que o momento decisivo no
próprio ato criativo é, tanto para o cientista quanto para o artista, um
salto no escuro, nas regiões obscuras da consciência, onde ambos
dependem igualmente de suas falíveis intuições. Falsas inspirações e
teorias descabidas são tão abundantes na história da ciência quanto as
obras de arte de péssima qualidade. Apesar disso, elas provocam na
mente da vítima a mesma convicção profunda, a mesma euforia que os
felizes achados, os quais só post factum são demonstrados como
certos*. Nesse aspecto, o cientista não ocupa melhor posição que o
*Para citar Albert Szent-Györgyi, ganhador do Prêmio Nobel e descobridor da
vitamina C: "Só existe um meio seguro de evitar erros: não fazer nada ou, ao menos,
evitar fazer algo novo... O desconhecido fornece um ponto de apoio inseguro e, ao
aventurar-se nele, a pessoa nada pode esperar além do fato de o possível fracasso se
tornar um fracasso honroso"'.
167
o artista: durante as agruras do processo criativo, a orientação da
verdade é tão incerta e subjetiva quanto a da beleza. E alguns dos
maiores cientistas reconheceram que, durante o momento crucial, ao
darem o mergulho, não eram guiados pela lógica, mas por um senso
de beleza que eram incapazes de definir.
Uma Virgem de Botticelli e um teorema matemático de Poincaré
não evidenciam nenhuma semelhança entre as motivações e
aspirações de seus respectivos criadores. No entanto, o próprio
Poincaré escreveu que o que o guiou em seus inconscientes titubeios
em direção às "felizes combinações que produziram novas
descobertas" foi "o sentimento da beleza matemática, da harmonia dos
números, das formas e da elegância geométrica. Este é um verdadeiro
sentimento estético, experimentado por todos os matemáticos". O
maior físico inglês da atualidade, Paul Dirac, foi ainda mais longe,
com seu famoso pronunciamento: "É mais importante que alguém
mostre beleza em suas equações, ao invés de procurar adaptá-las à
experiência." Essa foi, sem dúvida, uma afirmação chocante, mas
apesar disso ele recebeu o Prêmio Nobel.
E, vice-versa, os pintores, escultores e arquitetos sempre foram
guiados e muitas vezes estiveram obcecados pelas teorias científicas
ou pseudocientíficas: a Seção Dourada dos gregos, a geometria da
perspectiva e redução, as leis supremas da proporção perfeita"
propostas por Dürer e Leonardo, a doutrina defendida por Cézanne,
segundo a qual toda forma natural pode ser reduzida a esferas,
cilindros e cones, e assim por diante. A contrapartida da apologia dos
matemáticos, antepondo a beleza ao método lógico, é a declaração de
Seurat: "Eles vêem poesia naquilo que eu fiz. Não, eu aplico meu
método, e isso tudo o que há."
Portanto, ambas as partes reconhecem a continuidade do tríptico: o
cientista, confessando sua dependência de pressentimentos intuitivos
que orientam sua teorização, ao passo que o artista valoriza ou
supervaloriza as teorias abstratas que impõem disciplina a suas
intuições. Os dois fatores se complementam um ao outro; as
proporções relativas em que são combinados dependem, acima de
tudo, do meio que seu impulso criativo encontra para expressá-los.
Semelhantes considerações aplicam-se às regras da harmonia e
contraponto, aos aspectos teóricos da música e, naturalmente, à
literatura. O romancista, o poeta ou o dramaturgo não criam num
vácuo; sua mundividência é influenciada — estejam eles conscientes
disso ou não — pelo clima filosófico e científico de sua época. John
Donne era um místico, mas compreendeu imediatamente o significado
168
do telescópio de Galileu:
O homem teceu uma rede, e essa rede foi lançada aos
céus e agora os céus lhe pertencem.
Newton sentiu um impacto semelhante; o mesmo, naturalmente,
ocorreu com Darwin, Marx, Frazer, autor de The Golden Bough,
Freud ou Einstein.
A Ode on a Grecian Urn, de Keat, termina com os famosos
versos:
Beleza é verdade, verdade é beleza — isso é tudo o que
você conhece na terra, e tudo o que você precisa saber.
Isto é, sem dúvida, um exagero poético, mas não deixa de ser uma
tocante profissão de fé na unidade essencial das duas culturas,
artificialmente separadas pelas artimanhas de nosso sistema
educacional e social. Na mente livre de preconceitos, qualquer
descoberta científica original provoca uma satisfação estética, porque
a solução de um problema embaraçoso transforma a dissonância em
harmonia; e, vice-versa, pode surgir unicamente se o intelecto endossa
a validade da operação — seja qual for sua natureza — destinada a
provocar a experiência. Iluminação intelectual e catarse emocional são
as recompensas gêmeas do ato de criação, bem como do eco recriativo
que sente o espectador. O primeiro constitui o momento de verdade, a
reação Aha; o segundo provoca a reação Ah... da experiência estética.
Ambos são aspectos complementares de um processo indivisível.
9
Resta ainda analisar uma diferença aparentemente mais
fundamental entre a história da ciência e a história da arte.
No romance de Solzhenitsyn The First Circle, alguns prisioneiros
estão discutindo a respeito do progresso da ciência. Um deles, Gleb
Nerzhin, num impetuoso desabafo, exclama:
"Progresso! Quem deseja o progresso? É exatamente
isso o que eu admiro na arte — o fato de não poder existir
nela nenhum 'progresso'."
Em seguida, ele discorre sobre os impressionantes avanços da
tecnologia no século passado, concluindo sarcasticamente: "Mas
houve algum avanço em Anna Karenina?''
Sartre assumiu atitude oposta em seu ensaio "O que é a
Literatura?", no qual comparou os romances às bananas, que só podem
169
ser degustadas enquanto frescas. Em seu modo de ver, Anna Karenina
deve ter apodrecido há muito tempo.
O herói de Solzhenitsyn reflete o tradicional ponto de vista de que
a ciência progride de maneira cumulativa, tijolo por tijolo, como se
constrói uma torre, enquanto a arte é intemporal, é a execução de
novas variações sobre temas eternos. Até certo ponto e num sentido
relativo, essa opinião convencional é, sem dúvida, justificável. Nas
grandes descobertas da ciência, a bissociação de contextos
anteriormente separados (eletricidade e magnetismo, matéria e energia
etc.) resulta em nova síntese que, por sua vez, há de fundir-se com
outras num nível emergente e superior da hierarquia. De modo geral, a
evolução da arte não mostra esse padrão global. Os sistemas de
percepção que influenciam o processo criativo do artista são
escolhidos por suas qualidades sensoriais e pelo potencial emotivo;
seu ato bissociativo consiste antes na justaposição desses sistemas, e
não numa fusão intelectual, para a qual eles não se prestam com
facilidade, devido à sua natureza peculiar.
No entanto, essa diferença é, novamente, relativa e não absoluta.
Se a opinião de Gleb Nerzhin for aceita in toto, inútil se torna a
procura de critérios objetivos de "progresso" na literatura, pintura ou
música; em conseqüência, a arte não evolui, simplesmente formula e
reformula as mesmas experiências originais, segundo os costumes e
estilos da época; e, embora o vocabulário esteja sujeito a mudanças —
inclusive o vocabulário visual do pintor — o depoimento contido
numa grande obra de arte permanece válido e sobranceiro às
investidas do tempo, intangível à vulgar marcha do progresso.
Contudo, examinado com maior atenção, esse ponto de vista
revela-se historicamente insustentável. Porquanto existem períodos
em que determinada forma artística mostra uma evolução definida e
cumulativa, comparável ao progresso científico. Vale citar nosso mais
destacado historiador da arte, Sir Ernst Gombrich:
Antigamente, a discussão a respeito da pintura e da escultura
centrava-se inevitavelmente na imitação [da natureza] —
mimese. Pode-se, de fato, afirmar que o progresso da arte em
direção a esse objetivo era para os antigos o que o progresso da
tecnologia representa para os modernos: o modelo do progresso
em si. Por isso Plínio narrou a história da escultura e da pintura
como sendo a história das invenções, atribuindo a artistas
individuais as importantes realizações de representar a natureza:
o pintor Polignoto foi o primeiro a mostrar pessoas com a boca
aberta, aparecendo os dentes; o escultor Pitágoras foi o primeiro
170
a reproduzir nervos e artérias; o pintor Níkias preocupou-se com
luz e sombras. A história desses anos (cerca de 550 a 350 a.C.),
da maneira como a apresentam Plínio e Quintiliano, era
transmitida como uma época de conquistas, uma história de
invenções... Na Renascença, foi Vasari quem aplicou essa
técnica à história das artes da Itália, desde o séc. XIII até o séc.
XVI. Vasari jamais esquece de render tributo aos artistas do
passado que, segundo ele, contribuíram de maneira pessoal e
distinta para o domínio da representação. "A arte evolui de suas
origens humildes até o ápice da perfeição" [afirma Vasari]
porque gênios naturais como Giotto demarcaram o caminho,
possibilitando a outros a realização de grandes obras10.
"Se eu consegui ver mais longe que os outros, disse Newton, foi
porque fiquei de pé nos ombros de gigantes." Leonardo afirmou algo
semelhante. "É um mau discípulo, escreveu ele, quem não ultrapassa o
mestre." Dürer e outros manifestaram opiniões parecidas.
Evidentemente, queriam dizer que durante o período de
desenvolvimento explosivo, iniciado por Giotto pelo ano de 1300,
cada geração sucessiva de pintores descobriu novos truques e técnicas
— redução, perspectiva, o tratamento da luz, da cor e da textura, a
captação do movimento e das expressões faciais — invenções essas
que o aluno podia assimilar de seu mestre e utilizá-las como base para
novos progressos.
Quanto à literatura, desnecessário se torna enfatizar que as várias
escolas e correntes do passado não eram estáticas, mas evoluíram
durante seu limitado período de existência em direção a um apurado
refinamento e perfeição técnica — ou decadência. Temos por certo
que os físicos de nosso tempo conhecem mais a respeito do átomo que
Demócrito; mas também o Ulisses de Joyce conhece mais a respeito
da natureza humana que o Ulisses de Homero. Numa escala de tempo
mais breve, até os filmes feitos aproximadamente há vinte anos —
salvo sempre as exceções — parecem agora surpreendentemente
antiquados: óbvios, com excesso de ação, demasiadamente explícitos.
É difícil encontrar-se um escritor, antigo ou contemporâneo, que não
tenha acreditado ou acredite sinceramente que seu estilo e técnica de
escrever situam-se, intelectual e emocionalmente, mais perto da
realidade que os do passado. Sejamos francos: nossa reverência por
Homero ou Goethe está impregnada por uma pitadinha de
condescendência, muito semelhante à nossa atitude em face dos
meninos-prodígios: como foram inteligentes para sua época!
171
Portanto, podemos rejeitar, com segurança, como uma grosseira
supersimplificação a teoria de Gleb Nerzhin, segundo a qual a ciência
é cumulativa, semelhante à obra de um pedreiro, ao passo que a arte é
intemporal, uma dança de bolas coloridas nos jatos de água de uma
fonte luminosa. A história da arte também mostra progresso
cumulativo — em certos períodos, embora não em outros. Por
exemplo, na história da pintura européia, surgem dois períodos
destacados, nos quais deparamos com progresso rápido, contínuo e
cumulativo na representação da Natureza, quase tão palpável quanto o
progresso da engenharia. O primeiro estende-se, aproximadamente,
dos meados do séc. VI até meados do séc. IV a.C. e o segundo, do
início do séc. XIV até meados do séc. XVI d.C. Cada qual durou cerca
de seis a oito gerações, no decurso das quais cada gigante realmente
ficou de pé sobre os ombros de seus predecessores, de onde podia
descortinar uma vista mais ampla. Naturalmente, seria tolo afirmar
que esses foram os únicos períodos de progresso cumulativo. Mas não
há dúvida de que, de permeio a esses períodos de rápida evolução,
existem intervalos mais longos de estagnação ou declínio. Aliás, há os
gigantes solitários que surgem aparentemente do nada e não se
encaixam em nenhuma das conhecidas pirâmides de acrobatas que se
equilibram uns nos ombros dos outros.
A conclusão parece óbvia. Nossos museus e bibliotecas
demonstram que existe uma progressão cumulativa em toda forma
artística — num determinado sentido, numa determinada direção,
durante determinados períodos. Mas esses pequenos marcos
luminosos, mais cedo ou mais tarde, exaurem-se em brumas e
confusão, dando início à procura de um novo ponto de partida para
uma nova direção.
Entretanto, contrariando a crença popular, a evolução da ciência
não apresenta um quadro mais coerente. Apenas durante os últimos
três séculos seu progresso tem sido contínuo e cumulativo. Mas
aqueles que não estão familiarizados com a história da ciência — e
aqui se inclui a maioria dos cientistas — tendem a enredar-se na falsa
crença de que a aquisição de conhecimentos sempre se manteve numa
clara e constante ascensão, num caminho reto em direção ao cume
derradeiro.
Na realidade, nem a ciência nem a arte evoluiu em marcha
ininterrupta. Certa feita, Whitehead observou que a Europa, no ano de
1500, tinha menos conhecimentos que Arquimedes, falecido em 212
a.C. Fazendo-se uma retrospectiva, apenas um passo separava
172
Arquimedes de Galileu, Aristarco de Samos (o pai do sistema
heliocêntrico) de Copérnico. Mas foram necessários quase dois mil
anos para dar-se esse passo. Durante esse longo período, a ciência
estava hibernando. Após os três curtos e gloriosos séculos de ciência
grega, praticamente coincidindo com o período cumulativo da arte
grega, há um período de morte aparente, quase seis vezes mais longo;
a seguir, ocorre um novo despertar furioso que, até o momento,
também apresenta a idade de apenas dez gerações.
Portanto, o progresso, seja da arte seja da ciência, não é nem
contínuo nem absoluto, mas — repetindo mais uma vez a idéia — é
um avanço num determinado sentido, durante determinados períodos,
em determinadas direções; não se faz ao longo de uma curva
continuamente ascendente, mas aos trancos, em descontínuos
ziguezagues.
Segundo um provérbio chinês, há tempo para pescar e tempo para
secar as redes. Quem formar uma visão panorâmica da história de
qualquer ramo da ciência descobrirá uma alternação rítmica entre
longos períodos de evolução relativamente pacífica e curtas explosões
de mudança revolucionária. Somente nos períodos tranqüilos que
seguem a uma irrupção mais forte, o progresso da ciência é contínuo e
cumulativo em sentido estrito. Trata-se de um período de consolidação
das fronteiras recentemente conquistadas, de verificação, assimilação,
elaboração e ampliação da nova síntese: tempo para secar as redes.
Pode durar uns poucos anos ou várias gerações; mas, cedo ou tarde, o
surgimento de novos dados empíricos ou a mudança do clima
filosófico leva à estagnação, uma fixação do molde num sistema
fechado, a ascensão de uma nova ortodoxia. Esta provoca uma crise,
um período de fértil anarquia em que proliferam teorias opostas — até
se chegar a uma nova síntese, recomeçando novamente o ciclo; mas
agora o objetivo será procurado numa direção diferente, seguindo
parâmetros diferentes, investigando um tipo diferente de problema.
Portanto, é possível detectar a repetição de um modelo, tanto na
evolução da ciência quanto na da arte. De modo geral, o ciclo se inicia
com uma impetuosa rebelião contra, e uma total rejeição da escola ou
do estilo anteriormente dominante, com um conseqüente avanço
através de novas fronteiras. Chamemos a isso de primeira fase. A
segunda fase do ciclo apresenta um clima de otimismo e euforia:
seguindo as pegadas dos gigantes que lideraram o avanço, seus
adeptos e imitadores, mais vagarosos, invadem os territórios
recentemente conquistados, para explorar e desenvolver seus ricos
173
potenciais. Esta é, como já foi dito, a fase par excellence de
progressos cumulativos na elaboração e aperfeiçoamento de novas
perspectivas e técnicas de pesquisa, e de novos estilos na arte. A
terceira fase traz saturação, seguida por frustração e total paralisação.
A quarta e última fase é um tempo de crise e dúvidas — condensada
na lamentação de John Donne a respeito da decadência da cosmologia
aristotélica: "Tudo está em frangalhos, toda coerência sumiu."
Contudo, é também um tempo de estouvadas experiências (o
Fauvismo e o Dadaísmo, e seus equivalentes na ciência) e de criativa
anarquia — reculer pour mieux sauter — que prepara e incuba a
próxima revolução, dando início a nova partida — e assim o ciclo
recomeça.
Em certos aspectos, esse modelo repetido é análogo aos sucessivos
estágios verificados no processo da descoberta individual, segundo o
esquema proposto por Helmholtz e Graham Wallas: preparação
consciente — incubação inconsciente — iluminação — verificação e
consolidação. Todavia, enquanto o processo da descoberta individual
é concluído no último desses estágios, na perspectiva histórica o
último estágio de um ciclo se dilui dentro do primeiro estágio do
próximo ciclo.
A teoria mais recente, que apresenta grandes afinidades com a
concepção de ciclos históricos analisada pela primeira vez em The Act
of Creation e resumida neste capítulo, é o afamado ensaio de Thomas
Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions. Kuhn chama de
"ciência normal" as fases cumulativas do ciclo e denomina de
"mudanças de paradigma" as irrupções revolucionárias. A despeito da
terminologia diferente, existem algumas surpreendentes semelhanças
entre o esquema de Kuhn e o proposto em The Act of Creation,
embora tenham sido elaborados independentemente um do outro.
Ambos representam radicais rompimentos com a venerável teoria de
George Sarton, a qual assegura que a história da ciência é a única
história que apresenta progresso cumulativo e que, em conseqüência,
o progresso da ciência é a única medida pela qual podemos medir o
progresso da humanidade.
No entanto, como já vimos, a verdade é que o progresso da ciência
não aparece, nos mapas da história, como uma curva continuamente
ascendente, mas como uma linha em ziguezague, o mesmo ocorrendo
com a história da arte. Naturalmente, isso não significa que não houve
avanços; significa apenas que ambas progridem segundo um curso
imprevisível, muitas vezes errático.
174
No decorrer dos últimos cem anos, a história acelerou seu ritmo
igual a um foguete lançado ao espaço, e fez novas descobertas numa
sucessão estarrecedora — e também produziu mais crises, reviravoltas
e destruições-reconstruções do que em qualquer outra época anterior.
Isso está evidente em todos os ramos da ciência e da arte — na pintura
e na literatura, na física e na pesquisa sobre o cérebro, na genética e na
cosmologia. Em todos os campos, os esquadrões de demolição têm
andado tão febrilmente ativos quanto os obreiros da construção, mas
nós vemos apenas o que os últimos edificam e procuramos esquecer as
outrora orgulhosas cidadelas da ortodoxia, que foram destruídas. Sem
dúvida, nas próximas décadas testemunharemos feitos ainda mais
espetaculares de destruição-reconstrução. Algumas intuições
especulativas sobre esse assunto serão encontradas nos próximos
capítulos.
175
176
177

PARTE III

Evolução Criativa

IX

178
CIDADELAS EM RUÍNAS

Uma das cidadelas da ortodoxia mencionadas ao final do capítulo


anterior, prestes a ruir, é a teoria neodarwinista da evolução (também
conhecida pelo nome de "teoria sintética"). A situação foi resumida
pelo Prof. W. H. Thorpe, quando escreveu a respeito de "uma
tendência intelectual oculta na mente de algumas centenas de biólogos
durante os últimos vinte e cinco anos" que rejeitam o dogma
neodarwinista*. As contradições e tautologias da teoria sintética eram,
na verdade, conhecidas há muito mais tempo, como uma espécie de
segredo de domínio público, e no entanto o dogma tem sido e ainda é
ardorosamente defendido pela comunidade acadêmica, impondo aos
hereges a pena de um discreto mas efetivo ostracismo. Parece haver
duas razões para a existência desse paradoxo: Primeira, a submissão a
uma teoria científica pode estar tão carregada de emoções quanto um
credo religioso — um fato muito em evidência ao longo da história da
ciência; segunda, a ausência de uma alternativa coerente para o
neodarwinismo leva muitos biólogos a admitirem que uma teoria ruim
é melhor que teoria nenhuma. Não pretendo discutir se essa atitude
pode ser admitida como uma estratégia científica válida.
*Esta observação de Thorpe inspirou a realização do simpósio "Além do
Reducionismo". (Cfr. Cap. I)

Talvez seja mais fácil apresentar a essência da teoria por


intermédio de um paralelo traçado entre o neodarwinismo em Biologia
e o behaviorismo em Psicologia. Ambos hauriram sua inspiração do
mesmo Zeitgeist [espírito do tempo] da filosofia reducionista que
predominou durante a primeira metade do nosso século. O
behaviorismo foi fundado por John Broadus Watson, pouco antes da
Primeira Guerra Mundial, e causou um impacto sensacional sobretudo
179
porque proclamava que "consciência" e "intelecto" são palavras
vazias, sem base alguma na realidade. Meio século mais tarde, o Prof.
Skinner, da Universidade de Harvard — provavelmente o mais
influente psicólogo teórico de nosso tempo — continuou a defender os
mesmos pontos de vista, e até de modo mais violento. No manual
básico de Skinner, Science and Human Behaviour, o esperançoso
estudante de psicologia aprende, desde o início, que "intelecto",
"idéias" etc. são entidades não existentes, "inventadas para possibilitar
explicações espúrias.... Visto que os eventos mentais ou psíquicos são
propostos para dar suporte às dimensões da ciência física, temos uma
razão adicional para rejeitá-los1". (Segundo a mesma lógica, podemos
rejeitar a realidade das ondas de rádio porque elas consistem em
vibrações num vácuo desprovido de quaisquer propriedades físicas).
Sempre enfrentei dificuldades ao tentar convencer amigos não
acadêmicos de que essa doutrina evidentemente absurda ainda domina
a psicologia teórica. Assim escreveu recentemente um crítico:
É um interessante exercício sentar-se e procurar
conscientizar-se do que significa dizer que a consciência não
existe. A História não registrou se os primeiros behavioristas
tentaram ou não realizar esse feito. Mas ela registrou
abundante e detalhadamente a enorme influência que a
doutrina, segundo a qual a consciência não existe, exerceu
sobre a Psicologia durante este século2.

Iremos agora abordar um ponto vital em relação ao qual o


behaviorismo e o neodarwinismo têm atitudes surpreendentemente
semelhantes. Refiro-me a seus pontos de vista a respeito das forças
impulsoras que agem, por um lado, na evolução biológica e, por outro,
na evolução cultural. Tomemos, primeiro, a evolução cultural. Como
podem a descoberta científica e a originalidade artística ser explicadas
no universo sem intelecto, do behaviorista? Eis a resposta de Watson
— e quero ressaltar que a citação a seguir é a única passagem onde
seu livro menciona a criatividade. (Os grifos são de Watson.):
Uma pergunta natural, feita com freqüência, é esta: Como
conseguimos chegar a novas criações verbais, tais como um
poema ou um brilhante ensaio? A resposta é que nós as
concretizamos pela manipulação de palavras, ajeitando-as
aqui e ali, até surgir uma nova forma... Como você imagina
que Patou cria um novo modelo de vestido? Terá ele alguma
"imagem em sua mente" de como o vestido há de ser quando
terminado? Não, ele não a tem... Ele chama seu manequim,
180
escolhe uma peça nova de seda, coloca-a ao redor do
manequim, puxa um pouco aqui, encurta um pouco lá...
Manipula o material até que este apresente a semelhança de um
vestido... A manipulação não estará completa — o equivalente
à ação do rato à procura do alimento — enquanto a nova
criação não provocar admiração e elogios, seja do próprio
autor, seja de outros... Dessa mesma forma o pintor executa
seus trabalhos, e o poeta não pode em absoluto jactar-se de
seguir qualquer outro método3".

Os dois pontos que devemos reter aqui são: (a) que a solução
"surge" por acaso, após várias tentativas desordenadas, e (b) que ela é
conservada porque foi recompensada pela aprovação.
Trinta anos após a publicação do livro de Watson, Skinner chegou
às mesmas conclusões a respeito da maneira como são feitas as
descobertas científicas — embora nessa época o behaviorismo já
tivesse desenvolvido seu próprio jargão esotérico:
O resultado do ato de resolver um problema é o
aparecimento de uma solução na forma de uma resposta... O
surgimento da resposta em seu [da pessoa humana]
comportamento não é mais surpreendente do que o surgimento
de qualquer resposta no comportamento de qualquer
organismo4.

Os "organismos" a que ele se refere aqui são os ratos


experimentais na assim chamada caixa de Skinner, que os
behavioristas consideram o meio mais eficaz para o estudo da
Psicologia*. A caixa está equipada com um prato e uma barra que
pode ser empurrada para baixo, como a alavanca de um papa-níqueis,
permitindo que uma bolinha de alimento caia dentro do prato. Quando
se coloca um rato dentro da caixa, mais cedo ou mais tarde ele há de
"esbarrar" por puro acaso sua pata na alavanca, sendo
automaticamente recompensado com uma bolinha; e, mais cedo ou
mais tarde, há de aprender que, para obter uma bolinha, ele deve
pressionar a barra. Esse procedimento experimental é chamado
"condicionamento operante"; o ato de pressionar a barra recebe o
nome de "emissão de uma resposta operante"; a bolinha de alimento
*Nos ambiciosos títulos das obras de Skinner, The Behaviour of Organisms e
Science and Human Behaviour, nada indica que os dados ali contidos são quase
exclusivamente tirados de experiências condicionantes com ratos e pombos.
chama-se de "reforço"; reter a bolinha é um "reforço negativo"; o
181
número de vezes que o rato pressiona a barra em determinado espaço
de tempo é a "taxa de resposta", que é automaticamente registrada e
representada em gráficos. O objetivo dessas experiências consiste em
capacitar o behaviorista a compreender seu propósito estabelecido:
"medir, predizer e controlar o comportamento" — inclusive o
comportamento humano.
Não nos interessam aqui os detalhes dessa erudição murina*; mais
uma vez, o ponto importante se resume no fato de a descoberta do
segredo da alavanca, feita pelo animal, ter ocorrido por puro acaso, e
o hábito de pressionar a alavanca ter sido acrescentado a seu repertório
de habilidades porque foi "reforçado" por meio de recompensas.
*Ver O Fantasma da Máquina, cap. I-III, e o Apêndice II.

Se nos concentrarmos agora na resposta dos darwinistas à questão


de como o homem evoluiu a partir de uma primitiva bolha de limo,
descobriremos que é muito semelhante à resposta de Watson à questão
de como Patou transforma uma peça de tecido num elegante vestido:
"Puxa um pouco aqui, encurta um pouco lá... manipula o material até
que este apresente a semelhança de um vestido." Supõe-se que a
evolução darwiniana opere segundo o mesmo princípio, a saber, por
manipulação fortuita da matéria-prima orgânica — acrescentando uma
cauda aqui, colocando um par de asas acolá — até conseguir uma
forma adequada, que é conservada graças à sua aptidão para
sobreviver.
Em outras palavras, o behaviorismo e o neodarwinismo, ambos
ocupando posições-chaves nas ciências contemporâneas da vida,
baseiam suas explicações a respeito da evolução biológica e cultural
num modelo que é essencialmente o mesmo e opera em dois estágios:
a primeira etapa é regida por um cego acaso e a segunda, por
recompensas seletivas. Por conseguinte, a evolução biológica é o
resultado de nada além de (a) mutações fortuitas (o macaco
escrevendo à máquina), (b) preservadas por seleção natural (que
recompensa a aptidão); e o progresso cultural é o resultado de nada
além de (a) casuais tentativas preservadas por (b) reforços (a vara e a
cenoura).

Evolução Biológica Evolução Cultural


(a) Mutações fortuitas Tentativas casuais
(b) Seleção natural Reforços
182
É de se estranhar que não se tenha dado nenhuma atenção a esse
paralelismo. O motivo talvez resida no fato de os psicólogos não se
interessarem pela evolução, e os evolucionistas não fomentarem o
interesse pela Psicologia.
Deixando (a) — o papel do acaso — para ser analisado mais
adiante, foi demonstrado, há muito tempo, que ambos os conceitos (b)
— "reforço" e "seleção natural" — são desprovidos de qualquer valor
explicativo. Em primeiro lugar, tomemos o "reforço" e ouçamos
novamente o Prof. Skinner:
O estímulo verbal "venha jantar" é uma ocasião em que ir
para a mesa e sentar-se são geralmente reforçados pelo
alimento. O estímulo torna-se eficiente em aumentar a
probabilidade de tal comportamento e é produzido pelo
locutor porque ele [o estímulo] atua dessa forma5.
Caso o leitor esteja em dúvida, isso não é uma paródia, mas uma
citação do livro de Skinner, Verbal Behaviour, publicado em 1957.
Ele também informa a seus leitores que "uma pessoa fala para si
mesma... por causa do reforço que ela recebe6"; que pensar é, na
realidade, uma "conduta que automaticamente afeta o comportamento
e produz reforço porque atua dessa forma"7; que "assim como o
músico executa e compõe aquilo que nele é reforçado pela audição, ou
assim como o artista pinta aquilo que nele é reforçado pela visão,
assim também o orador, envolvido em fantasias verbais, diz aquilo
que nele é reforçado pela audição ou escreve o que nele é reforçado
pela leitura"8; e que o artista criativo é "controlado completamente
pelas contingências do reforço"'.
Ao treinar o rato para pressionar a alavanca na caixa ou para
encontrar o caminho através do labirinto, o termo "reforço"
apresentava um significado concreto: dando ou negando recompensas,
o comportamento do rato podia ser efetivamente condicionado pelo
organizador da experiência. Mas o heróico esforço do behaviorista que
tenta extrapolar da caixa de Skinner para o ateliê do pintor, utilizando
o "reforço" como um deus ex machina, arrasta-o, como já vimos, para
aterradores absurdos. No entanto, sua filosofia compele-o a envidar
todos os esforços para demonstrar que o comportamento humano não
é nada além de uma forma mais sofisticada de comportamento
murino. Uma última citação de Skinner servirá para comprovar esse
ponto. Ele nos garante que "o comportamento verbal do escritor pode
atingir, ao mesmo tempo, milhares de ouvintes ou leitores, ou
prolongar-se através dos séculos. O escritor pode não receber reforços
183
freqüentes ou imediatos, mas seus reforço real pode ser grande"10.
Caso tenha algum significado, isso significa que todo escritor
gostaria de produzir uma obra de arte imortal. Ele persiste em seus
esforços por causa do reforço recebido, e reforço significa tudo aquilo
que o leva a persistir em seus esforços". Como observaram Chomsky2
e outros, o conceito de reforço fundamenta-se numa tautologia, e seu
esforço explicativo tem-se reduzido a zero.

Destino semelhante está reservado ao familiar conceito darwinista


de seleção natural, ou de sobrevivência do mais forte — conceito que,
já vimos antes, é o equivalente evolucionista do "reforço"
behaviorista.
Outrora, tudo parecia tão simples. A Natureza recompensava o
apto com a cenoura da sobrevivência e punia o inapto com o bastão da
extinção. A dificuldade surgiu somente quando se procurou definir
"aptidão". Serão os pigmeus mais aptos que os gigantes, as morenas
mais aptas que as loiras, os canhotos mais aptos que os destros? Quais
são exatamente os critérios de "aptidão"? A primeira resposta a
ocorrer à mente é: Os mais aptos são, obviamente, aqueles que
sobrevivem mais tempo. Mas quando nos referimos à evolução das
espécies, o período de vida dos indivíduos é irrelevante (pode ser um
dia para alguns insetos, ou um século para as tartarugas); o que
importa é quantos filhos geram durante sua vida. Portanto, a seleção
natural cuida da sobrevivência e reprodução dos mais aptos, e os mais
aptos são aqueles que apresentam o mais elevado índice de reprodução
— e caímos num círculo vicioso que simplesmente admite como
provada a questão sobre o que faz evoluir a evolução. Essa falha
mortal da teoria foi admitida, há várias décadas, por eminentes
evolucionistas (Mayr, Simpson, Waddington, Haldane etc.)13; como já
afirmei, foi e continua sendo um segredo de domínio público. No
entanto, levando em consideração que não havia nenhuma alternativa
satisfatória, o edifício em ruínas devia ser defendido. Por isso, Sir
Julian Huxley escreveu em 1953:
Pelo que nos consta, a Seleção Natural não é apenas
inevitável, não é apenas uma causa eficiente de evolução,
mas é a causa eficiente única da evolução. (Os grifos são
de Huxley)14.
184
Comparemos esse pronunciamento ex cathedra com o devastador
comentário feito pelo falecido Prof. Waddington (que, embora sendo
um ilustre membro da dominante escola neodarwinista, reservava-se o
direito de levantar dúvidas críticas):
Evidentemente, sobrevivência não significa a persistência
de um só indivíduo, que ultrapassa a idade de Matusalém.
Implica, na interpretação atual, o perpetuamento como fonte
para futuras gerações. "Sobrevive" melhor aquele indivíduo
que deixa mais filhos. Portanto, afirmar que um animal é o
"mais apto" não implica necessariamente dizer que é o mais
forte ou o mais sadio, ou que venceria qualquer exposição. Na
essência, esse conceito não denota nada mais que deixar o
maior número de filhos. Na verdade, o princípio geral da
seleção natural resume-se apenas na afirmação de que os
indivíduos que geram o maior número de filhos são aqueles
que geram o maior número de filhos. Isso é uma tautologia15.

Von Bertalanffy foi muito mais incisivo. Ao comentar a teoria


ortodoxa, declarou: "É difícil ver por que a evolução jamais progrediu
além do coelho, do arenque ou mesmo da bactéria, seres imbatíveis
em suas capacidades reprodutivas"16.
Para evitar confusões: Naturalmente, nenhum crítico haveria de
negar que os fracassos biológicos, incapazes de suportar as exigências
da vida, seriam eliminados no decurso da evolução. Mas a eliminação
das deformidades não explica a evolução de formas superiores. A ação
de um herbicida é benéfica, mas não é suficiente para explicar o
surgimento de novas espécies de plantas. É comum entre os
evolucionistas o erro de confundir o processo de eliminação do
elemento inapto com o processo de evolução rumo a algum indefinível
ideal de "aptidão". Os defensores da teoria sintética poderiam
facilmente pôr um fim a essa confusão, substituindo o desacreditado
termo "seleção natural" por "eliminação seletiva". Entretanto, eles
apenas concordaram em substituir a expressão "sobrevivência do mais
apto" pelo termo menos ofensivo "reprodução diferencial" — mas
este, como acabamos de ver, em nada facilitou a saída do labirinto das
tautologias.
De nada valeu também o recurso a mais um sinônimo de aptidão, a
saber, "adaptação". Para ser breve, eis outra citação de von
Bertalanffy:
... Em minha opinião, não há o menor traço de prova
185
científica de que a evolução, no sentido de progresso de
organismos menos complicados para organismos mais
complexos, teve algo a ver com melhor adaptação... ou com a
geração de filhos maiores. A adaptação é possível em qualquer
nível... Uma ameba, um verme, um inseto ou um mamífero não
placentário adaptam-se tão bem quanto os placentários; do
contrário, há muito tempo já teriam sido extintos17.

Em outras palavras, ninguém põe em dúvida o truísmo de que uma


espécie somente consegue sobreviver se é capaz de se adaptar ao
ambiente, mas existem inúmeros modos de adaptação ao mesmo
ambiente, sendo que alguns desses modos se apresentam
incrivelmente tortuosos e complicados, de tal forma que o termo
"adaptação" se torna desprovido de significado. Consideremos este
exemplo, extraído do The Living Stream, de Sir Alister Hardy:

Existem algumas espécies de orquídeas com flores que


imitam, na cor, na forma e no cheiro, a aparência da fêmea de
certos insetos e com isso oferecem atração sexual aos machos
dessas espécies de insetos. Os excitados machos, que vêm para
realizar o ato procriativo, trazendo o pólen, completam, embora
involuntariamente, o processo sexual das próprias flores18!

Ou, citando novamente von Bertalanffy:

Quanto a mim... ainda não logrei entender por que há


vantagem seletiva para as enguias de Comacchio em migrarem
perigosamente para o mar dos Sargaços, ou por que os
ascarídeos devem migrar por todo o corpo do hospedeiro, ao
invés de se instalarem confortavelmente nos intestinos, onde é
seu lugar. Nem tampouco entendi qual seria, para a
sobrevivência do boi, a importância de um estômago múltiplo,
se o cavalo, também vegetariano e de porte mais ou menos
semelhante, vive muito bem com um só estômago.19
E como a "adaptação" consegue explicar as fantásticas
transformações da lagarta em crisálida — tecendo ao redor de si um
casulo, dentro do qual sofre uma completa transformação que envolve
a dissolução dos órgãos e tecidos da larva, remodelando-os
completamente até se tornarem um adulto alado? Os livros sobre
história natural contêm inúmeros exemplos de tais meios artificiais de
186
"fazer a vida" como uma espécie, mas esses exemplos raramente são
mencionados em obras teóricas sobre a evolução porque eles revelam
com demasiada clareza que a teoria aceita como demonstradas as
questões vitais. Portanto, a "adaptação", como um deus ex machina da
"seleção natural", compartilha o destino de seus precursores, a
"sobrevivência do mais apto" e a "reprodução diferencial".

Segundo a doutrina do neodarwinismo, a matéria-prima em que se


realiza a mágica da seleção natural é fornecida por mutações fortuitas,
isto é, modificações químicas dos genes, os portadores da
hereditariedade. Essas mudanças são desencadeadas por radiações,
produtos químicos nocivos ou calor excessivo, e são "fortuitas" no
sentido de não se relacionarem em absoluto com as necessidades ou o
bem-estar do animal, nem tampouco com seu ambiente natural. Antes,
situam-se no âmbito dos acidentes que interferem no funcionamento
normal do organismo delicadamente equilibrado. Conseqüentemente,
a grande maioria das modificações produzem efeitos maléficos ou
triviais. Mas, de tempos em tempos, assim prossegue a teoria, ocorre
um lance feliz que há de ser preservado pela seleção natural porque
ele casualmente confere alguma pequena vantagem ao portador do
gene modificado. E, como escreveu Sir Julian Huxley, passado um
período suficiente de tempo, "tudo pode acontecer". "A velha objeção
segundo a qual é improvável que um olho ou uma mão ou um cérebro
evoluam por 'mero acaso' perdeu toda a sua força" — porque a
"seleção natural, que opera ao longo de períodos de tempo
geológico20", explica tudo.
Compare-se tal afirmativa com a seguinte, de Waddington:

Supor que a evolução dos mecanismos biológicos


maravilhosamente adaptados dependeu apenas da seleção de um
fortuito conjunto de variações, cada qual produzida por mero
acaso, é igual a sugerir que, se continuarmos a jogar tijolos aos
montões, eventualmente poderemos escolher para nós a casa
mais desejável2.
Apesar de tudo, Jacques Monod (Prêmio Nobel de 1965) chama a
evolução de "loteria gigantesca22" ou "roleta da Natureza23" e conclui:
187

Só o acaso está na base de qualquer inovação, de toda a


criação na biosfera. O puro acaso, absolutamente livre mas cego,
como o verdadeiro fundamento do estupendo edifício da evolução
— esse conceito central da biologia moderna não é mais uma
entre outras hipóteses possíveis. É hoje a única hipótese possível,
a única que se ajusta aos fatos observados e testados. E nada
justifica a suposição — ou a esperança — de que, nesse ponto, a
nossa posição chegue algum dia a ser revista...24.
O universo não estava prenhe de vida, nem a biosfera
incubava o homem. O nosso número saiu na roleta da sorte25.
Mas a analogia da roleta, ao invés de mostrar, esconde a fantástica
improbabilidade de qualquer avanço evolutivo de maior alcance,
produzido por mutações fortuitas. Para que ocorra tal evento, não
basta que determinado número exigido, digamos o 17, seja o indicado
na roleta de uma mesa — mas seria necessário que ele aparecesse
simultaneamente numa dúzia ou mais de mesas do mesmo
estabelecimento, seguido pelo 18, 19 e 20 simultaneamente em todas
as mesas.
Seja-me permitido ilustrar esse ponto com alguns exemplos. O
primeiro é muito simples e trivial, envolvendo apenas quatro roletas.
O panda gigante possui em suas patas dianteiras um sexto dedo
adicional. Esse poderia ser um caso típico de deformação provocada
por uma deletéria mutação fortuita. Ao contrário, esse dedo é muito
útil ao panda na manipulação dos brotos de bambu, mas seria,
naturalmente, um grande incômodo, se não estivesse equipado com os
necessários músculos, nervos e suprimentos sangüíneos. São
infinitamente pequenas as chances de que, dentre todas as mutações
genéticas possíveis, tenham ocorrido, simultânea e independentemente
umas das outras, somente aquelas que produziram os ossos, nervos,
músculos e artérias adicionais. E mesmo nesse caso temos apenas
quatro fatores principais — quatro roletas funcionando. Quando
analisamos maravilhas complexas, tais como os olhos dos vertebrados
— a clássica pedra de tropeço da teoria darwinista — com suas
retinas, bastonetes e cones, lentes, íris, pupilas e tudo o mais, as
chances contra a evolução harmoniosa de seus componentes por
independentes mutações fortuitas, isto é, por "cego acaso", tornam-se
absurdas, segundo Huxley. O próprio Darwin compreendeu esse ponto
quando, em 1860, escreveu a Asa Gray: "Recordo muito bem o tempo
em que a reflexão sobre o olho me dava calafrios"26. Esse tema ainda
produz o mesmo efeito nos defensores da doutrina, e por isso evitam
188
discuti-lo, ou apelam para complicadas evasivas*.
*O leitor pode encontrar um sumário dos problemas apresentados pela evolução
do olho nas obras de Grasse (1973), pp. 176 - 181, e de Wolsky (1976), pp. 106 e
segs.

Deprimente é também a idéia de que alguns répteis ancestrais


acabaram por se transformar em pássaros, mediante pequenas e
graduais modificações, provocadas por mutações fortuitas que
afetaram diferentes órgãos. De fato, causa calafrios só de pensar no
número de roletas de Monod que devem continuar em funcionamento
para produzir a transformação simultânea das escamas em penas, dos
ossos sólidos em tubos ocos, o desenvolvimento das bolsas de ar em
várias partes do corpo, o crescimento dos músculos e ossos dos
ombros até atingirem proporções atléticas, e assim por diante. E essa
reformulação da estrutura corporal vem acompanhada por mudanças
básicas nos sistemas internos, inclusive na excreção. Os pássaros
nunca desperdiçam nada. Ao invés de diluírem na água suas sobras de
nitrogênio, que seriam um pesado lastro, expelem-nas dos rins num
estado semi-sólido, através da cloaca. Além disso, subsiste ainda o
insignificante tema da transição, por "cego acaso", da condição de ter
sangue frio para a de ter sangue quente. Torna-se infinita a lista de
especificações que devem ser encontradas para fabricar nosso réptil
voador, ou para construir um globo ocular utilizando uma matéria
gelatinosa viva.
Para concluir esta seção, aqui está um exemplo menos dramático
de um progresso evolutivo — o passo aparentemente modesto que
levou à transformação do ovo anfíbio para o ovo réptil. Descrevi esse
processo no livro O Fantasma da Máquina e vou citá-lo novamente
aqui porque sua explicação, segundo o esquema darwinista, não é
apenas pouco provável, mas logicamente impossível.
A conquista da terra firme realizada pelos vertebrados
começou com a evolução de répteis oriundos de alguma
primitiva forma anfíbia. Os anfíbios se reproduziam na água, e
seus filhotes eram aquáticos. A grande novidade a respeito
dos répteis consistiu no fato de, ao contrário dos anfíbios,
botarem seus ovos em terra firme. Eles não mais dependiam
da água e eram livres para vagar pelos continentes. Mas,
enquanto ainda dentro do ovo, o réptil não nascido necessitava
de um ambiente aquático: ele precisava ter água, ou do
contrário haveria de secar num estágio inicial do
189
desenvolvimento. Além disso, necessitava de muito alimento:
os anfíbios saem do ovo como larvas que cuidam da própria
subsistência, ao passo que os répteis saem do ovo plenamente
desenvolvidos. Portanto, o ovo dos répteis devia estar provido
com uma grande quantidade de gema para servir de alimento,
e também com albumina — a clara do ovo — para fornecer a
água. Nem a gema por si, nem a própria clara do ovo poderia
ter apresentado qualquer valor seletivo. Além do mais, a clara
necessitava de um vasilhame para contê-la, pois, do contrário,
sua umidade ter-se-ia evaporado. Logo era imprescindível
haver uma casca feita de material semelhante a couro ou
porcelana, como parte do processo evolutivo. Mas a história
não termina aqui. O embrião do réptil, por causa dessa casca,
não poderia livrar-se de seus excrementos. O embrião do
anfíbio, envolto em tênue massa, dispunha de toda a lagoa
como lavatório; o embrião do réptil devia ser provido com
uma espécie de bexiga. Esta é conhecida por alantóide e, sob
alguns aspectos, é a precursora da placenta dos mamíferos.
Todavia, após a solução desse problema, o embrião ainda
continuaria trancado no interior de sua rígida proteção,
necessitando de um instrumento para sair. Os embriões de
certos peixes e anfíbios, cujos ovos estão rodeados por uma
membrana gelatinosa, possuem glândulas em seus focinhos:
chegado o momento oportuno, segregam um produto químico
que dissolve a membrana. Mas os embriões rodeados por uma
casca resistente necessitam de um instrumento mecânico. Por
isso, as cobras e os lagartos nascem munidos de um dente que
se transforma numa espécie de abridor de latas, enquanto os
pássaros têm uma carúncula — uma excrescência carnosa,
formada sobre seus bicos, que se destina à mesma finalidade,
sendo mais tarde eliminada pelo animal adulto27.
Entretanto, segundo o esquema darwinista, todas essas mudanças
devem ter sido graduais, sendo cada pequeno passo causado por uma
mutação fortuita. Mas é óbvio que cada passo, embora pequeno,
exigiu modificações simultâneas e interdependentes que afetaram
todos os fatores envolvidos no caso. Por conseguinte, o líqüido
estocado na albumina não poderia ser guardado no ovo, sem a
existência do envoltório sólido. Mas a casca seria inútil, e até fatal,
sem o alantóide e sem o abridor. Cada uma dessas modificações, no
caso de ter ocorrido isoladamente, teria sido prejudicial, e os
190
organismos afetados teriam sido eliminados pela seleção natural (ou
melhor, como sugerido acima, pela "eliminação natural"). Não se pode
obter uma isolada mutação A, conservá-la durante um número
incalculável de gerações até ocorrer a mutação B na mesma linhagem,
e assim por diante até C e D. Cada modificação isolada seria relegada
ao esquecimento antes de conseguir combinar-se com todas as outras.
Todas são interdependentes dentro do organismo — que é um todo
funcional, e não um mosaico. A doutrina segundo a qual a ocorrência
simultânea de todas as mudanças requeridas foi o fruto de uma série
de coincidências fere frontalmente não só o bom senso, mas também
os princípios básicos da explicação científica. Numa grande obra
recentemente publicada, o Prof. Pierre Grasse (que, durante 30 anos,
ocupou a cadeira da Evolução na Sorbonne, sem perder seu humor
gaulês) comentou:

Que jogador, por mais obcecado que esteja por seu vício,
seria tão louco de apostar na roleta da evolução fortuita? A
criação da Melancholia de Dürer por grãos de pó carregados
pelo vento apresenta uma probabilidade menos infinitesimal
do que a construção de um olho por obra de infortúnios que
poderiam sobrevir à molécula ADN — infortúnios esses que
não têm a mínima conexão com as futuras funções do olho.
É permitido sonhar acordado, mas a ciência não deveria
sucumbir a isso. (Os grifos são de Grasse.)28
4
Ao discorrermos sobre a evolução das espécies, temos em mente,
na maior parte das vezes, o surgimento de novas formas e estruturas
físicas, tais como as vemos expostas em museus de história natural.
Mas a evolução não cria apenas novas formas. Cria também novos
tipos de comportamento, novas habilidades instintivas que são inatas e
hereditárias. Todavia, se as forças que comandam o surgimento de
novas estruturas são desconhecidas, as que regem a evolução de
habilidades inatas estão envoltas em completa escuridão. Por isso
lamentava-se Niko Tinbergen, ganhador do Prêmio Nobel: "É
estarrecedor o atraso em que se encontra a etologia... Ainda está para
ser desenvolvida uma genética de comportamento29".
191
A razão disso é simples: O neodarwinismo não possui os
instrumentos teóricos para manejar o problema. A única explicação
que pode oferecer sobre as incrivelmente complexas habilidades
instintivas dos animais é a de que também estas são produzidas por
mutações fortuitas que, de alguma forma, afetam o circuito neural do
cérebro e do sistema nervoso do animal, sendo em seguida
preservadas por "seleção natural". Para os alunos formados em
biologia, seria um exercício benéfico repetir essa fórmula explicativa,
à maneira de uma mantra sânscrita, enquanto observam uma aranha a
construir sua teia, um chapim a moldar seu ninho, um texugo a
edificar um dique, um ostraceiro a carregar sua presa pelos ares,
deixando-a cair sobre as rochas, as atividades sociais da bem
organizada comunidade das abelhas, e assim por diante. Poder-se-ia
formar uma biblioteca só com ilustrações sobre as formas
surpreendentemente complexas de atividades instintivas de várias
espécies de animais que desafiam qualquer explicação, nos termos da
mantra darwinista. Desejo citar apenas um dos exemplos menos
conhecidos, apresentados por Tinbergen:
A fêmea desta espécie [a assim chamada vespa cavado-ra] ao
se aproximar a época da desova, cava um buraco, mata ou
paralisa uma lagarta e leva-a para o buraco, onde a acondiciona
após haver nela depositado um ovo (fase a). Feito isso, a vespa
cava outro buraco, no qual põe outro ovo sobre uma nova
lagarta. Nesse entretempo, o primeiro ovo já estava incubado e a
larva começava a consumir sua reserva de alimento. Agora, a
vespa-mãe volta novamente sua atenção para o primeiro buraco
(fase b), para o qual leva mais algumas larvas de mariposa, e a
seguir faz o mesmo no segundo buraco. Pela terceira vez retorna
ao primeiro buraco para levar um lote final de seis ou sete
lagartas (fase c), e depois disso tampa o buraco e o deixa para
sempre. Dessa maneira, a vespa cuida, em turnos, de dois ou três
buracos, cada qual numa fase diferente de desenvolvimento.
Baerends investigou a maneira pela qual a vespa leva a
quantidade exata de alimento para cada buraco. Ele observou que
a vespa visitava todos os buracos, todas as manhãs, antes de sair
para o local de caça. Mudando o conteúdo dos buracos e
observando o subseqüente comportamento da vespa, ele concluiu
que (1) o ato de retirar alimento de um buraco forçava a vespa a
trazer mais provisões que de costume, e (2) o ato de adicionar
larvas ao conteúdo de um buraco levava a vespa a trazer menos
alimento que o usual30.
192
Mas outra vespa, a Eumenes amedei, age de maneira ainda melhor.
A seguinte descrição, algo tosca, procede do livro ParwinRetried, de
Norman Macbeth: *
*Este notável tratado escrito por um advogado de Harvard, destaca as falhas e
inconsistências da teoria neodarwinista. Sir Karl Popper qualificou-o de "a mais
meritória e realmente importante contribuição para o debate."

O ovo não é posto sobre ou junto com as lagartas, como


ocorre em muitas espécies semelhantes. Essas lagartas estão
apenas parcialmente paralisadas, conseguindo ainda mover suas
patas e acionar suas mandíbulas. Qualquer uma delas, ao sentir
as mordidelas da pequena larva, poderia contorcer-se e ferir a
larva. Por isso, tanto o ovo como a larva devem ser protegidos e,
por esse motivo, o ovo fica suspenso no teto por um delgado fio
de seda. As lagartas podem remexer-se e contorcer-se, mas não
conseguem chegar perto do ovo.
Quando a larva sai do ovo, devora-lhe a casca e, em seguida,
fabrica para si um minúsculo casulo de seda, no qual se recolhe
com a cauda voltada para cima, ficando a cabeça pendurada para
baixo. Nesse abrigo a larva permanece suspensa acima da pilha
de alimento vivo. Ela pode descer o suficiente para mordiscar as
lagartas. Se estas reagem com demasiada violência, a larva pode
retirar-se para dentro de seu casulo de seda, esperar até que a
agitação esmoreça, e descer novamente para continuar sua
refeição. À medida que aumenta a força e o tamanho da larva,
esta se torna mais ousada. Então o abrigo de seda não é mais
imprescindível. E a larva pode aventurar-se a descer e viver
sossegadamente dentro do restante de seu alimento31.

A esta altura, penso eu, a mantra perde seu poder hipnótico até
mesmo sobre os mais devotados neodarwinistas. É correto o que
Tinbergen afirmou: "Ainda está para ser desenvolvida uma genética
de comportamento". Mas a teoria sintética é incapaz de fornecer-lhe
os instrumentos.
5

Como pôde uma doutrina que, na realidade, admitia como


provados todos os problemas básicos alcançar aceitação geral entre os
biólogos e ser considerada como verdade evangélica pelo público? (A
mesma pergunta pode ser feita com relação ao behaviorismo.) Parte da
resposta é novamente encontrada em von Bertalanffy:
193
Julgo que o fato de uma teoria tão vaga, tão
insuficientemente demonstrável e tão afastada dos critérios
usualmente aplicados em ciência "séria" ter-se transformado em
dogma pode ser explicado unicamente em bases sociológicas.
A sociedade e a ciência têm estado tão submersas nas idéias de
mecanicismo, utilitarismo e no conceito econômico de livre
concorrência que a seleção foi entronizada como realidade
última, em lugar de Deus32.

Isso é, sem dúvida, parte da verdade, mas outros fatores também


devem ser considerados. Em primeiro lugar, a teoria continha uma
verdade básica: a existência dos fósseis testificava que a evolução era
um fato inegável, que Darwin estava certo e o Bispo Wilberforce
estava errado e, em conseqüência, o darwinismo tornou-se uma
espécie de credo para todos os indivíduos instruídos, progressistas, ao
passo que os detalhes da teoria podiam ser deixados para os
especialistas.
No entanto, os especialistas, inclusive Darwin, muito cedo
esbarraram em dificuldades. Nos inícios da história do darwinismo,
ocorreu um episódio bem pouco conhecido, que se enquadra
perfeitamente em nosso tema*. Em 1867, oito anos após a publicação
de A Origem das Espécies, Fleeming Jenkin, professor de engenharia
na Universidade de Edinburgh, publicou um artigo que resultou numa
completa refutação da teoria de Darwin33. Jenkin demonstrou,
mediante uma dedução lógica surpreendentemente simples; que
nenhuma espécie nova jamais poderia ter surgido de variações
fortuitas, segundo os mecanismos da hereditariedade aceitos naquela
época. Pois, no tempo de Darwin, a teoria da hereditariedade baseava-
se na suposição de que o talento inato do recém-nascido era uma fusão
ou "mistura" das características dos pais, e para essa mistura cada um
dos pais contribuía com aproximadamente uma metade. O próprio
primo de Darwin, Francis Galton, apresentou uma fórmula matemática
para essa "lei da hereditariedade ancestral", como foi chamada. Agora,
presumindo que um indivíduo dotado com uma variação casual útil
(que, mais tarde, seria chamada de mutação fortuita) surgisse dentro
de uma espécie e se casasse com um parceiro normal (isto é, com um
da grande maioria da população), então seus filhos haveriam de herdar
apenas 50 por cento da nova característica útil; os netos, apenas 25 por
*O que segue é uma versão resumida da exposição desse episódio feita em The
Case of the Midwife Toad, pp. 52 e segs.
194
por cento; os bisnetos 12,5 por cento e assim por diante, até a
auspiciosa novidade se desvanecer como uma gota no oceano, muito
antes que a seleção natural tivesse a oportunidade de fazê-la espalhar-
se na espécie.
Como escreveu Sir Alister Hardy34, é impressionante o fato de "os
grandes cérebros da era vitoriana" não terem descoberto o erro lógico
básico, apontado por Jenkin. O próprio Darwin sentiu-se tão abalado
que inseriu um capítulo novo completo na sexta edição de A Origem
das Espécies, no qual ressuscitou a teoria lamarckista da evolução
mediante a hereditariedade das características adquiridas, teoria que
anteriormente ele qualificara de "monte de entulhos" e que ainda é
anatematizada pelos darwinistas. Como indicam suas cartas a Wallace,
Darwin não viu outra saída*. Mas seus seguidores ignoraram a recaída
do mestre na heresia lamarckista (a qual, todavia, não forneceu as
respostas desejadas), e durante as últimas décadas do séc. XIX o
darwinismo se encontrou num beco sem saída — embora o público
não se desse conta disso. O mais proeminente darwinista inglês dessa
época, William Bateson, escreveu numa retrospectiva: "No estudo da
evolução, o progresso quase parou. Os mais vigorosos, talvez os mais
prudentes, haviam abandonado esse campo da ciência"36.
*Seu filho, Francis Darwin, comentou posteriormente: "É muito significativo que
as críticas que meu pai, no meu entender, julgou serem as mais valiosas já feitas a
suas idéias houvessem partido, não de um naturalista professo, mas de um Prof. de
Engenharia, o Sr. Fleeming Jenkin5". No entanto, a sexta edição nem chega a
mencionar o seu nome.

Contudo, no ano de 1900, por uma reviravolta inesperada e


dramática dos acontecimentos, a crise foi resolvida — ou assim se
julgou na época. As nuvens desvaneceram-se e o darwinismo se
transformou em neodarwinismo.
Esse evento fundamental foi a redescoberta de um estudo
intitulado "Experiências em Hibridização de Plantas", escrito pelo
monge agostiniano Gregor Mendel, publicado em 1865, em
Proceedings of de Natural History Society of Brünn (hoje, Brno), na
Morávia. 35 anos mais tarde, muito depois da morte de Mendel, esse
estudo foi desenterrado, quase simultânea e independentemente, por
três biólogos em três países diferentes (Tschermak em Viena, de Vries
em Leyden, Correns em Berlim). Cada um deles estivera pesquisando
os livros, à procura de uma pista que indicasse o caminho para sair do
labirinto, e os três perceberam imediatamente o significado das
ervilhas híbridas de Mendel — que, à semelhança da maçã de
Newton, haveriam de se tornar uma parte integral da erudição
195
científica. As experiências de Mendel mostraram que as "unidades de
hereditariedade" — mais tarde chamadas de genes — que
determinavam a cor, o tamanho e outros aspectos de suas plantas, não
"se combinavam" e por isso não se diluíam. Eram, ao contrário,
copiadas bolas duras e estáveis que se encaixavam numa variedade de
formas de mosaico, preservando sua identidade e sendo transmitidas
intactas e sem modificações para as gerações subseqüentes — mesmo
quando o efeito dos genes "recessivos" ficava encoberto pela
superioridade dos genes "dominantes".
Após longa expectativa, aqui estava a resposta à crucial objeção de
Jenkin. Pois agora se podia supor que toda mutação casual ocorrida
não seria eliminada por meio de combinações, mas seria preservada
em sucessivas gerações e, assim, daria à "seleção natural" uma
oportunidade para escolher e conservar.
E cada coisa estava se encaixando no devido lugar. Cada fator
individual, determinante de um traço hereditário, estava contido num
gene mendeliano, e cada gene possuía seu lugar garantido nos
cromossomos do núcleo celular, como as contas num rosário. A
evolução já não apresentava mais nenhum segredo — ou, ao menos,
parecia assim. Bateson, subitamente curado de seu desespero ao ler o
estudo de Mendel durante uma viagem de trem, deu a seu filho caçula
o nome de Gregory, em homenagem ao monge da Boêmia. Vinte anos
mais tarde, escreveu: "Somente aqueles que se recordam da terrível
escuridão que precedeu a aurora mendeliana sabem avaliar o que
aconteceu36".
Os detalhes do mendelismo não vêm ao caso agora. Interessa-nos
apenas seu impacto sobre a teoria da evolução. Na verdade, foi
decisivo.
Bateson foi o primeiro a mostrar que as leis da hereditariedade
estabelecidas por Mendel se aplicam tanto às plantas como aos
animais. Fez experiências com aves domésticas. Mas o elemento
favorito para experimentação da nova ciência da genética foi a
pequena mosca das frutas, a Drosophila melanogaster, que se
reproduz muito rápido e tem apenas quatro pares de cromossomos. Ela
tornou possível aplicar métodos estatísticos ao estudo das variações
hereditárias entre grandes quantidades de moscas, variações estas
causadas por modificações espontâneas ou provocadas artificialmente
(por irradiação, calor etc.) Em seu próprio campo limitado, a ciência
da genética alcançou brilhantes resultados, e ainda os alcança. Mas
transcorreu um longo tempo até os mais ponderados dentre os seus
aficionados compreenderem que seus esforços, embora fornecessem
196
melhores perspectivas a respeito dos mecanismos das pequenas
variações hereditárias, tinham pequena ou não tinham nenhuma
importância para o problema básico da evolução: a origem, a causa e o
modo dos grandes passos pela escada evolutiva acima, o surgimento
das formas superiores de vida e dos novos estilos de vida. Segundo as
palavras de Grasse que, seja-me permitido repetir, ocupou durante
trinta anos a cadeira da evolução na Sorbone (os grifos estão no
original):
Variação é uma coisa, evolução é outra bem diferente. Isso
nunca pode ser excessivamente enfatizado...37.
Vamos repetir mais uma vez: as mutações não fornecem
uma explicação para a natureza ou a ordem temporal dos
fenômenos da evolução, não criam novidades evolutivas, não
podem exercer influência sobre o exato acoplamento das partes
de um órgão, nem sobre a mútua coordenação dos órgãos...38
As modificações produzem mudança, mas não
progresso...39
O repertório de mutações, ou espectro-de-mutações, de uma
espécie nada tem a ver com a evolução. Uma prova irrefutável
disso está nos "Jordanons" (equivalentes de mutações) da
gramínea Erophila vertia, do amor-perfeito Viola tricolor, da
tanchagem Plantago major, da ibérida Iberis, que formam um
rico e bem catalogado conjunto. Apesar de tudo o que se disser,
apesar de suas numerosas mutações, a Erophila verna, a Viola
tricolor etc. não evoluem. Isso é um fato.
As numerosas raças de cães e de todos os outros animais
domésticos representam unicamente o espectro-de-mutações
das espécies, manipuladas por seleção artificial. O mesmo se
aplica às plantas de adorno. Nada disso resulta em evolução40.
Tampouco, podemos acrescentar, as ervilhas de Mendel ou as
moscas das frutas dos geneticistas têm alguma influência real sobre a
"evolução por seleção natural". As observações de Mendel referiam-se
a traços tão simples como sementes amarelas e sementes verdes, flores
purpurinas ou flores brancas etc., os quais dependiam de um único
gene e eram "triviais", no sentido de que não apresentavam nenhum
significado evolutivo. Da mesma forma, todas as mutações observadas
ou induzidas durante mais de meio século de experiências com a
Drosophila foram ou deletérias ou triviais — variações no padrão dos
pêlos do corpo da mosca, na cor dos olhos etc. Esses detalhes
isolados, que não interagem nem interferem no funcionamento do
197
organismo como um todo, podem, de fato, ser tranqüilamente
deixados para a roleta. Na verdade, nenhuma das mutações observadas
em milhões de Drosophila produziram filhotes que apresentassem
qualquer vantagem evolutiva.
Mais uma vez a teoria darwinista encontrava-se num beco sem
saída, apesar da revigorante injeção do mendelismo. Bateson, que fora
o primeiro a saudar, na Inglaterra, a "aurora mendeliana", também
esteve entre os primeiros que manifestaram sua desilusão. Dois anos
antes de sua morte em 1926, confessou a seu filho Gregory que
cometera um grande erro ao dedicar sua vida ao mendelismo, pois este
não passava de uma rua sem saída, que não haveria de lançar nenhuma
luz sobre a diferenciação das espécies, nem sobre a evolução em
geral41.
Aliás, ele já havia escrito antes em Problems of Genetics:
As numerosas linhas convergentes de evidência apontam
com tanta clareza para o fato central da origem das formas de
vida mediante um processo evolutivo que somos compelidos a
aceitar essa dedução, mas, quanto à grande maioria dos
problemas essenciais..., devemos confessar uma ignorância
quase total. A transformação de grandes massas de população
por meio de imperceptíveis passos guiados pela seleção é,
como muitos de nós vemos agora, tão inaplicável aos fatos,
seja de variação seja de especificidade, que nos resta apenas
maravilhar-nos com dois detalhes: a vontade de compreensão
manifestada pelos defensores de tal proposição, e a habilidade
retórica utilizada para fazer tal proposição parecer aceitável,
mesmo que fosse apenas por algum tempo42.
Bateson criou o termo "genética" e ocupou a primeira cadeira
universitária dedicada a esse novo campo, em Cambridge. William
Johannsen, o pioneiro dinamarquês do neodarwinismo, inventou o
termo "gene". Por volta de 1923, ele também compreendeu que toda a
evidência experimental depunha contra a teoria: "O Problema das
Espécies, a Evolução, parece não ser abordado com a devida seriedade
pelo mendelismo, nem pelas respectivas experiências modernas sobre
as mutações43".
Todavia, os defensores da teoria, dominados pela tradição
mecanicista, estavam aparentemente incapacitados para ver que as
mutações fortuitas de fatores isolados — "átomos" de hereditariedade
— eram insignificantes com relação ao problema central do progresso
evolutivo, que exige mudanças simultâneas e coordenadas de todos os
componentes fundamentais da estrutura e do funcionamento da
198
holarquia orgânica. A obsessão dos geneticistas com os pêlos da
mosca das frutas e a dos behavioristas com a pressão da alavanca
efetuada pelo rato mostram uma analogia que não é apenas superficial:
ambas descendem de uma filosofia reducionista que considera o ser
vivo como simples coleção de elementares porções de hereditariedade
(genes mendelianos), ou porções de comportamento (reflexos
condicionados ou respostas operantes).
6
Mencionei algumas vozes de oposição vindas de biólogos que
ocupam destacadas posições acadêmicas. Houve muitas outras,
também criticando a doutrina ortodoxa, embora nem sempre tenham
sido tão sinceras — e seu número vem aumentando gradativamente.
Apesar de tais críticas terem aberto numerosas fendas nas muralhas, a
cidadela ainda continua de pé — sobretudo, como já foi dito antes,
porque ninguém tem uma alternativa satisfatória para oferecer. A
história da ciência mostra que uma teoria bem estabelecida pode
suportar muitos assédios e lançar-se num emaranhado de contradições
— a quarta fase de "Crise e Dúvida", no ciclo histórico* — e mesmo
assim há de ser defendida pela sociedade até que ocorra uma ruptura,
iniciando uma nova partida e o começo de um novo ciclo.
*Ver acima o Cap. VIII, 9.

Mas tal evento ainda não está à vista. Entrementes, o educado


público continua acreditando que Darwin apresentou todas as
respostas importantes, mediante a mágica fórmula da mutação fortuita
mais a seleção natural — sem tomar consciência de que as mutações
fortuitas provaram ser irrelevantes e a seleção natural mostrou ser
mera tautologia.
Ao final do século passado, Samuel Butler, outro desiludido
darwinista, escreveu em seu Notebooks:
Em Erewhon, ataquei os fundamentos da moralidade, e
ninguém deu a mínima atenção. No livro The Fair Haven,
tornei a abrir os ferimentos de meu Redentor enquanto ele
ainda pendia da cruz, e o público até gostou disso. Mas quando
ataquei o Sr. Darwin, todos pegaram imediatamente em
armas44.
Quase um século depois, as reações emocionais a tal lesa-
majestade são ainda muito semelhantes.
199
7
Na década de 1950, um novo símbolo popular foi acrescentado à
maçã de Newton e às ervilhas de Mendel: a hélice dupla. O
deslindamento da estrutura química do ADN, o ácido nucléico dos
cromossomos, portador do "protótipo hereditário, foi em si um feito
memorável e centralizou as atenções sobre o novo campo da biologia
molecular, ou genética molecular. De início, parecia — como ocorrera
com a redescoberta das leis de Mendel — uma dádiva caída dos céus
para o neodarwinismo. Mas logo se tornou evidente que se tratava de
um Cavalo de Tróia: os novos conhecimentos adquiridos a respeito da
infinitamente complexa bioquímica subjacente à "estratégia dos
genes" acabou enfim por demolir o modelo ingenuamente simplista da
genética mendeliana.
As primeiras versões do modelo representavam os cromossomos
na forma de teclado de um gigantesco piano com milhões de teclas*.
O ovo fertilizado tinha à sua disposição todo o teclado. À medida que
o embrião se desenvolvia e cada célula se tornava diferenciada, a
maior parte de seu teclado era selado com "fita colante", continuando
a operar somente aquelas teclas que interessavam às funções
especializadas da célula. Na terminologia da genética, a "fita colante"
recebe o nome de "repressor". O agente que aciona a tecla que ativa o
gene no momento oportuno é um indutor ou "operador". Um gene
modificado é uma tecla que desafinou. Em algumas ocasiões, quando
grande número de teclas haviam desafinado bastante, o resultado
(fomos solicitados a acreditar nisso) foi uma nova e maravilhosa
melodia — um réptil transformado em pássaro, ou um macaco
transformado em homem**. Obviamente, em alguma parte ao longo
do caminho a teoria havia errado.
* Ver o Cap. 1,9.
**Isso pode parecer uma caricatura maldosa da teoria. Entretanto, utilizei pela
primeira vez esse exemplo musical em O Fantasma da Máquina (1967) e, três anos
mais tarde, o próprio Monod, de certo modo, endossou-o. Eis suas palavras46:
"Mesmo em nossos dias, grande número de mentes privilegiadas parecem incapazes
de aceitar ou até de entender que a seleção natural, sozinha e sem a mínima ajuda,
tenha extraído de uma fonte de ruídos toda a música da biosfera."
Outra metáfora, aprovada pelos geneticistas, compara as mutações (ocorridas
durante a reprodução dos cromossomos) aos erros de cópia cometidos por
descuidados datilógrafos". Grasse comentou. "Os monges da Idade Média cometeram
erros de cópia que alteraram ou corromperam os textos que pretendiam reproduzir.
Quem ousaria pretender que esses erros constituem as obras?"47
Como já vimos, o ponto em que a teoria errou foi o conceito
atomístico do gene. Na época em que a genética tomou impulso, o tipo
200
de atomismo peculiar ao séc. XIX estava sendo abandonado pelos
físicos, embora ainda continuasse em plena exuberância entre as
ciências da vida: os reflexos eram átomos de comportamento, e os
genes eram unidades atômicas de hereditariedade. Determinado gene
era responsável por cabelos lisos ou crespos; outro, pela hemofilia. E
o organismo era representado como um mosaico composto por estas
unidades elementares. Mas, em meados de nosso século, esses
conceitos rigidamente atomísticos da genética mendeliana sofreram
considerável amolecimento — e, na verdade, tornaram-se fluidos.
Chegou-se à compreensão de que um único gene pode afetar uma
vasta escala de diferentes características (pleiotropia). E, vice-versa,
um grande número de genes pode interagir um com o outro para
produzir uma só característica (poligenia). Algum detalhe
insignificante, como a cor da íris, pode depender de um só gene, mas a
configuração hereditária de todos os aspectos importantes do
organismo depende da totalidade dos genes — o complexo dos genes,
ou o "genoma" como um todo. Por isso, por volta de 1957, podia-se
ler, em respeitáveis manuais de biologia, afirmações como a seguinte:
Na mensagem hereditária total, os genes tendem a agir
todos juntos, como um todo integrado, no controle do
desenvolvimento... É fácil cair no hábito de pensar que um
organismo possui determinado número de características, com
um gene controlando cada um dos caracteres. Isso é incorreto.
A evidência experimental demonstra claramente que os genes
nunca atuam completamente separados. Os organismos não são
conjuntos de retalhos, onde cada gene controla um dos retalhos.
São todos integrados, cujo desenvolvimento é controlado pelo
grupo inteiro de genes agindo em cooperação48.

Essa é uma afirmação muito distante das primeiras versões da


teoria. Naqueles tempos iniciais da genética, um gene podia ser
"dominante" ou "recessivo", e isso constituía quase tudo o que se
podia saber a respeito dele. Mas, com o advento da biologia
molecular, entraram no modelo (exatamente como na física
subatômica) fenômenos cuja complexidade jamais havia sido
cogitada, de maneira que muitos novos termos deviam ser cunhados e
acrescentados ao vocabulário: genes repressores, com co-repressores e
apo-repressores; genes modificadores, genes interruptores, genes
operadores que ativam outros genes, "cistrons" e "operons" (Monod)
que constituem subsistemas de genes interagentes (podemos chamá-
los de "hólons genéticos"), e até genes que regulam o grau de
201
mutações nos genes. Embora as atividades dos cromossomos tenham
sido originalmente concebidas como o desdobramento de uma
seqüência linear, como num gravador, aos poucos deveria ter-se
tornado evidente, que os controles genéticos nas células do embrião
em desenvolvimento operam como uma micro-hierarquia auto-
reguladora, equipada com dispositivos de realimentação fornecidos
por uma hierarquia ambiental* que engloba todas e cada uma das
células.
Tal holarquia — ao contrário de uma fita de gravador ou uma
"fotocópia" — deve ser concebida como uma realidade estável, mas
flexível. Entretanto, ela deve ser, em grande parte, auto-reguladora e
capaz de auto-restaurar-se. Deve não só proteger o embrião em
desenvolvimento contra os imprevistos e contratempos a que está
exposto, mas também proteger a espécie contra os riscos evolutivos da
filogenia — as mutações fortuitas que ocorrem em seus próprios genes
cromossômicos.
O conceito de uma "micro-hierarquia genética**" ainda é visto
com ceticismo ou hostilidade pela elite dos defensores da teoria
sintética — em grande parte, talvez, porque sua aceitação haveria de
levar a uma reavaliação básica de nossas noções do processo evolutivo
— como teremos oportunidade de ver nos capítulos seguintes.
*Ver o Cap. 1,9.
**Segundo meu conhecimento, um termo inicialmente proposto por L. L. Whyte.

Ao contrário da metáfora em voga do "protótipo genético", que dá


a impressão de um mapa topográfico fixo que deve ser copiado
mecanicamente, o conceito de uma "hierarquia genética" implica que
os controles seletivos e reguladores do organismo operam em vários
níveis.
Os níveis inferiores destinam-se a eliminar variações prejudiciais
no material genético; os níveis superiores devem coordenar os efeitos
de modificações aceitáveis. Como veremos, o mistério reside na
operação dos níveis superiores — a coordenação (ou orquestração)
daquelas mudanças que transformam o ovo de anfíbio em ovo de
réptil, e o réptil em pássaro. Antes, porém, devo dizer algumas
palavras a respeito da operação dos níveis inferiores.
Vários biólogos (entre eles von Bertalanffy, Darlington, Spurway,
Lima-de-Faria e, mais recentemente, Monod) têm sugerido que o
202
processo evolutivo de seleção — a ação do "herbicida seletivo" —
pode iniciar-se no interior do organismo, a nível da química molecular
do próprio genoma. As mutações são alterações na seqüência das
unidades químicas existentes nos cromossomos (as quatro letras do
alfabeto genético). Essas mutações têm sido comparadas aos erros de
cópia dos monges medievais que adulteravam os textos antigos49. O
conceito de "seleção interna" inventado pelos biólogos citados acima
significa que existe uma hierarquia de censores e revisores de provas
trabalhando para eliminar os erros de impressão. Na teoria ortodoxa, a
seleção natural é totalmente governada pelas pressões do ambiente
externo que elimina o inapto e abençoa o apto com uma numerosa
descendência. Entretanto, à luz do que já foi exposto, qualquer
modificação cromossômica, seja qual for sua causa, deve passar nos
testes de seleção interna com relação à aptidão física, química e
biológica, antes de ser liberada como novidade evolutiva. Em
conseqüência, o conceito de uma micro-hierarquia genética impõe
estritas limitações ao alcance e ao impacto evolutivo das mutações
fortuitas e reduz ao mínimo a importância do fator acaso. O
renomado macaco junto à máquina de escrever trabalha, na verdade,
com um aparelho muito sofisticado que os fabricantes programaram
para imprimir somente palavras que apresentem sentido e para apagar
automaticamente as sílabas sem sentido*. Assim, o modelo
hierárquico nos capacita, pelo menos, a eliminar o macaco datilógrafo
e a roleta de Monod. Não responde à última pergunta sobre quem ou o
que programou aquela prodigiosa máquina de escrever, mas coloca o
ponto de interrogação onde ele deve exatamente estar e nos possibilita
abordar o problema passo a passo, à medida que subimos para os
níveis superiores da hierarquia genética.
*Essa metáfora é quase literalmente aplicável aos erros cometidos na fabricação
de proteínas nos microorganismos, por causa das "sílabas sem sentido" que
aparecem no ARN50.
A próxima etapa nos conduz aos admiráveis poderes de
regeneração e auto-restabelecimento que residem no complexo dos
genes como um todo, ou num subconjunto substancial dele. Esses
poderes são demonstrados pela embriologia experimental. Nós nos
recordamos que, se o tecido que normalmente se desenvolveria numa
cauda for transplantado, durante os primeiros estágios de
desenvolvimento do embrião de salamandra, para a posição de uma
futura perna, esse tecido não crescerá como uma cauda, mas como
uma perna. Essa mágica não se limita apenas à ontogenia, mas pode
203
ser também observada na filogenia. Em O Fantasma da Máquina,
apresentei um dos muitos exemplos.
A mosca das frutas possui um gene mutante que é
recessivo, isto é, quando unido a um gene normal, não
apresenta efeito visível... Mas, se dois desses genes mutantes
se unem no ovo fertilizado, o filhote será uma mosca sem
olhos. Se, em seguida, todo um conjunto de moscas sem olhos
for acasalado, então todos os descendentes terão somente o
gene mutante "sem olhos"... No entanto, após algumas
gerações, no conjunto acasalado de moscas "sem olhos
surgem algumas com olhos que são perfeitamente normais. A
tradicional explicação desse admirável fenômeno é que os
outros membros do complexo de genes foram "remanejados e
recombinados de tal forma que representam o gene normal da
formação do olho que está faltando"51.

Mas nenhum biólogo tem sido tão perverso a ponto de sugerir que
os novos olhos evoluíram por mero acaso, repetindo assim, em
algumas gerações, um processo evolutivo que durou milhões de anos.
Nem o conceito de seleção natural oferece aqui a mínima ajuda. A
recombinação de genes para representarem o gene ausente deve ter
sido coordenada segundo algum plano superior, ou segundo um
conjunto de regras, que governam a ação do complexo de genes como
um todo. É exatamente essa atividade coordenadora, desenvolvida no
ápice da hierarquia genética, que garante tanto a estabilidade genética
da espécie durante milhões de anos, quanto suas modificações
evolutivas segundo padrões biologicamente aceitáveis. O problema
central da teoria evolutiva reside no modo como essa vital atividade
coordenadora é exercida. Este é o lugar onde entra o grande ponto de
interrogação. A metáfora desviou-se do crupiê encarregado da roleta
para o regente que dirige sua orquestra.
Tal substituição já fora prenunciada por alguns dos membros
fundadores do neodarwinismo que se tornaram dissidentes, tais como
Bateson e Johannsen. Este (vale recordar, foi o criador do termo
"gene") escreveu que, após terem sido levados em consideração todos
os mínimos efeitos das mutações mendelianas, ainda subsistia "algo
central e muito importante" que continha a chave do enigma52.
Waddington manteve uma atitude ambivalente com relação à
teoria oficial. Eu citei palavras suas que ridicularizavam a evolução-
por-mutação-fortuita; por outro lado, ele desejava evitar uma ruptura
204
completa com a doutrina darwinista. Como saída para o dilema,
propôs, numa célebre conferência difundida pelo rádio, que na
evolução de um órgão complexo, tal como o olho humano, uma
mutação casual pode "afetar o órgão inteiro de maneira harmoniosa".
Isso implica que a mutação que afeta um único componente —
digamos, o cristalino — atua meramente como um gatilho num
complexo sistema preestabelecido, que foi programado para reagir "de
maneira harmoniosa" (nossa "máquina de escrever programada"); e
implica ainda que essa programação é também herdada, isto é,
representada num nível superior da hierarquia genética. Ademais, a
evolução harmoniosa de órgãos aparentemente não relacionados (a
saber, as asas, as bolsas de ar e o sistema digestivo dos pássaros) é
controlada em nível ainda mais elevado — o "algo central e muito
importante", no ápice da hierarquia.
Jacques Manod teve de enfrentar o mesmo dilema. Sua corajosa
tentativa, em Chance and Necessity, de defender a cidadela cercada
poderia ser comparada à última batalha de Custer*. Embora persistisse
em repetir que "só o acaso é a fonte de toda a criação havida na
biosfera" etc., ele foi compelido pela evidência provinda de seu
próprio campo de pesquisa a reconhecer a existência do "algo central e
muito importante", chegando a postular um segundo princípio básico
de evolução, além do acaso, princípio que ele chama de teleonomia
(os grifos são de Monod):
*Alusão a George Armstrong Custer (1836-1876), oficial norte-americano que
dedicou sua vida a combater os índios e acabou morrendo numa batalha contra eles,
em Little Big Horn. (N. dos T.)

Uma das características fundamentais, comuns a todos os


seres vivos, sem exceção, [é] a de eles serem objetos dotados de
um propósito ou projeto que, ao mesmo tempo, eles exibem em
suas estruturas e realizam em seus desempenhos...53
A pedra angular do método científico é... a negação
sistemática de que o conhecimento "verdadeiro" pode ser
alcançado pela interpretação de fenômenos em termos de causas
finais — isso equivale a dizer, de "propósito"... A objetividade,
no entanto, obriga-nos a reconhecer o caráter teleonômico dos
organismos vivos, a admitir que em suas estruturas e em seus
desempenhos eles agem projetivamente— realizam e perseguem
um propósito...54
Mas, pode-se perguntar, qual é a diferença entre a "teleonomia" de
205
Monod e a conhecida e antiga teleologia aristotélica, definida pelo
Concise Oxford Dictionary como a "doutrina das causas finais, teoria
segundo a qual os progressos se devem ao propósito ou desígnio a que
eles servem?"* E, até mais surpreendentemente, a passagem acima
citada não relembra uma das heresias lamarckianas, segundo a qual a
evolução é a resposta da Natureza às necessidades dos organismos?
Grasse comentou:

Os darwinistas cunharam as palavras pseudoteleologia e


teleonomia para se referirem a causas finais, cuja existência,
ao mesmo tempo, eles negam. Afirmam que as aparências são
enganosas, que todos os constituintes da vida são produtos do
acaso, e que o que nós tomamos por finalidade** nada mais é
que a ordenação de blocos casuais, feita pela seleção natural...
Na verdade, os termos pseudoteleologia e teleonomia pagam
tributo à finalidade, assim como a hipocrisia presta
homenagem à virtude..."

Todavia, Jacques Monod não era um hipócrita. Era brilhante em


seu campo de especialização, mas decepcionantemente ingênuo com
relação às implicações teóricas de sua especialidade — aquilo que
seus compatriotas chamam de "terrible generalisateur". Isso,
naturalmente, aplica-se também a muitos de seus eminentes colegas da
sociedade neodarwinista. Guiados — talvez inconscientemente —
pela máxima segundo a qual uma teoria ruim é melhor que teoria
nenhuma, são incapazes de, ou não querem, admitir que a cidadela por
eles defendida jaz em ruínas.

*O Novo Dicionário da Língua Portuguesa define assim a teleologia: "Doutrina


que considera o mundo como um sistema de relações entre meios e fins" (N. dos T.)
**"Finalidade": princípio da causa final, isto é, propósito considerado como
operante no universo. "Teleologia": teoria segundo a qual os progressos se devem ao
propósito ou desígnio a que eles servem (Concise Oxford Dictionary).

206
X

LAMARCK REVISITADO

O atomismo genético está morto. Tão morto quanto o atomismo


físico do séc. XIX que considerava o átomo como pequenas bolas
compactas e indivisíveis. O organismo vivo não é um mosaico, onde
cada parte é governada por um gene específico, e a evolução não
procede mediante a substituição de partes individuais, de modo casual,
até que, por encanto, a imagem de um peixe é substituída pela de um
anfíbio. Em O Fantasma da Máquina, comparei a atual crise da teoria
evolutiva ao desmoronamento da cosmologia medieval. As páginas
seguintes fazem a discussão progredir mais um passo.
2

No livro Evolution Old and New, publicado em 1879, Samuel


Butler escreveu: "Lamarck tem sido tão sistematicamente
ridicularizado que se torna quase um suicídio filosófico o fato de
alguém erguer-se em sua defesa." Cerca de meio século mais tarde,
Paul Kammerer, o mais brilhante lamarckista de sua época, foi
induzido ao suicídio corporal pelo menosprezo e hostilidade de seus
colegas biólogos*. Nos dias em que escrevo estas páginas, passados
outros cinqüenta anos, o lamarckismo ainda continua sendo um campo
minado de emoções, onde os estudiosos só podem entrar correndo o
risco de verem sua reputação e suas carreiras esfaceladas por alguma
explosão**.
*The Case of Midwife Toad é um relato de sua vida e da controvérsia sobre sua
obra.
*Na França há maior tolerância a esse respeito; afinal, Lamarck era francês e
Darwin, inglês.
207
O cerne explosivo da discussão era — e continua sendo — um
postulado aparentemente inócuo: "a hereditariedade das características
adquiridas", postulado que Lamarck formulou no início do séc. XIX,
na obra Philosophie Zoologique. O termo "características adquiridas"
refere-se a aperfeiçoamentos no aspecto físico, nas habilidades, ou nos
modos de vida, que os indivíduos adquirem mediante seus esforços
para enfrentar o ambiente e explorar as oportunidades que este lhes
oferece. Em outras palavras, refere-se a mudanças progressivas que
correspondem às necessidades vitais da espécie e que — aqui está o
obstáculo — são transmitidas, segundo Lamarck, de pais para filhos
através dos canais da hereditariedade. Sucessivas gerações receberiam,
pois, os benefícios das lutas e dos esforços realizados por seus
antecessores, mediante herança corporal direta (e não apenas
indiretamente, pela aprendizagem imitativa de seus ancestrais).
Alguns dos primeiros lamarckistas acreditavam, de fato, que o
filho do ferreiro haveria de nascer com o bíceps mais forte que o
comum, sem necessitar desenvolvê-lo pela repetição fiel de todos os
esforços de seu pai, e que o descendente de um pianista haveria de
herdar algumas das habilidades que seu pai adquirira. Mas os
neolamarckistas abandonaram há muito tempo esses ingênuos pontos
de vista; afirmam que só as características biologicamente vitais, que
são adquiridas em resposta a intensas e persistentes pressões do
ambiente sobre muitas gerações, tornam-se eventualmente
hereditárias, isto é, incorporadas ao complexo dos genes. Em que pese
a essa restrição, a essência do lamarckismo consiste na crença de que
os esforços dos pais não ficam totalmente perdidos, que alguns dos
benefícios provindos de suas experiências e esforços são transmitidos
aos filhos, e que esta é a principal causa ativa da evolução "desde a
ameba até o homem".
Portanto, segundo o ponto de vista lamarckista, a evolução é um
processo cumulativo, o efeito dos propositados esforços dos
organismos vivos (não muito diferente da teleonomia de Monod), ao
passo que, segundo a explicação do neodarwinismo, a evolução é um
processo acidental, no curso do qual os pais podem transmitir, pelos
canais da hereditariedade, somente o que eles próprios herdaram,
acrescido de algumas aberrações (na maioria, prejudiciais) surgidas no
material genético. Assim, do ponto de vista dos descendentes, os
esforços e realizações de seus ancestrais eram perdidos, resultando,
nas palavras do Eclesiastes, em mera "vaidade e caça ao vento". As
duas atitudes contrastantes podem ser resumidas por duas citações,
sendo a primeira extraída de Kammerer, lamarckista:
208
Não é uma seleção impiedosa a que forma e aperfeiçoa o
maquinismo da vida; não é apenas a luta desesperada pela
sobrevivência que governa o mundo, mas, ao contrário, movido
por sua própria força cada ser que foi criado luta para se
aperfeiçoar, em direção à luz e à alegria de viver, sepultando no
túmulo da seleção somente aquilo que for inútil1.

A segunda citação é de Simpson of Harvard, eminente neo-


darwinista:

Parece que o problema [da seleção] está agora


essencialmente resolvido e que o mecanismo da adaptação é
conhecido. Torna-se manifesto que é um problema basicamente
materialista, não manifestando como variável atuante na história
da vida qualquer sinal de propósito... O homem é o resultado de
um processo materialista e sem propósito...2

Não deve causar surpresa o fato de atitudes tão diametralmente


opostas haverem-se tornado tão repletas de emoção, podendo ser
comparadas às disputas teológicas do passado. Como escreveu Sir J.
A. Thomson, em 1908:
A questão referente à transmissibilidade de caracteres
adquiridos durante a vida pelo corpo do progenitor... é muito
mais que um problema técnico para os biólogos. Nossa decisão a
respeito dela afeta não apenas toda a nossa teoria da evolução
orgânica, mas até nossa conduta cotidiana. A questão deveria
despertar o interesse do progenitor, do físico, do professor, do
moralista e do reformador social — em resumo, de todos nós3.
Não é somente de interesse histórico o fato de Darwin ter
pessoalmente permanecido a vida inteira meio darwinista e meio
lamarckista. No livro The Variation of Animals and Plants under
Domestication, publicado em 1868, e em seus cadernos de anotações,
ele apresentou uma série completa de exemplos espúrios da
hereditariedade de características adquiridas: "o gato teve sua cauda
cortada, em Shrewsbury, e todos os seus filhotes nasceram com cauda
curta", ou "um homem perdeu parte de seu dedo mínimo e todos os
seus filhos nasceram com dedos mínimos deformados", e muitas
outras estórias do arco-da-velha em que acreditava piamente. E, em
1875, próximo ao fim de sua vida, escreveu a Galton que, a cada ano,
sentia-se mais e mais compelido a retornar à teoria da hereditariedade
209
das características adquiridas, porque as variações fortuitas e a seleção
natural eram, sozinhas, aparentemente insuficientes para explicar os
fenômenos da evolução. Os exemplos por ele citados eram, sem
dúvida, apócrifos, mas provam que, embora o larnarckismo fosse
"uma velha superstição desacreditada" (como o qualificou o Prof.
Darlington), Darwin pessoalmente acreditava nele4. O mesmo ocorreu
com Herbert Spencer, o grande apóstolo do darwinismo, que escreveu
na obra Principies of Biology(1983):
Uma análise profunda dos fatos me impressiona mais forte
do que nunca com duas alternativas — ou ocorreu a
hereditariedade dos caracteres adquiridos, ou não houve
evolução alguma [grifos no original]5. Logo no início era
possível e até comum entre os evolucionistas ser, ao mesmo
tempo, tanto lamarckista como darwinista. Com o advento do
neodarwinismo, essa coexistência pacífica foi interrompida,
Lamarck foi excomungado, e o ecletismo dos primeiros
evolucionistas transformou-se numa atitude de intolerância
sectária.
A causa ostensiva do cisma proveio de uma doutrina proposta em
1885, três anos após a morte de Darwin, pelo zoólogo alemão August
Weismann — a doutrina da "continuidade e inalterabilidade do plasma
do germe". O "plasma do germe" de Weismann é o portador do talento
hereditário (hoje chamado de "protótipo genético"); localiza-se nas
células sexuais — o esperma e o óvulo — que são colocadas à parte
num estágio inicial do desenvolvimento do embrião, isoladas das
células somáticas que hão de dar origem ao restante do corpo; e é
transmitido à próxima geração através da "sucessão contínua de
germes", inalterável e inatingível por nada do que aconteceu aos
indivíduos transitórios que hospedaram em seus ovários e testículos o
imortal plasma. A doutrina de que nenhuma "característica adquirida"
pode penetrar a barreira protetora do plasma do germe e alterar o
talento hereditário tornou-se uma parte integral do credo
neodarwinista, e ainda continua sendo — modernizada por Crick e
Watson que, provocativamente, a chamara, de "dogma central". Essa
doutrina nos afirma que as cadeias ADN de hereditariedade dos
cromossomos são guardadas em esplêndido isolamento do resto do
corpo; que elas são estruturas moleculares potencialmente imortais,
protegidas contra os imprevistos da vida e passadas adiante,
inalteradas, de geração em geração, ad infinitum, exceto quando
intervém alguma irradiação prejudicial. É uma doutrina deprimente,
210
seja ela verdadeira ou falsa. Tudo indica que ela é falsa.
O neodarwinismo realmente levou o labéu de materialismo do séc.
XIX a seus limites extremos ao proclamar que a evolução do homem é
o resultado de "um processo materialista e sem propósito", regido por
"cego acaso". E precisamente nesse particular reside sua perversa
atração filosófica — em sua inflexível rejeição de qualquer traço de
propósito nas manifestações da vida; em sua irredutível determinação
de reduzir os valores éticos e os fenômenos mentais às leis
elementares da física, e de estigmatizar como indignos de atenção
científica aqueles aspectos da biologia que não podem ser assim
reduzidos.
O quanto esse preconceito metafísico influenciou e distorceu a
metodologia científica é ilustrado por um hilariante episódio
raramente mencionado nos manuais de estudo. A fim de provar sua
tese de que o "plasma germe" continuava inatingível pelas
características adquiridas, Weismann amputou as caudas de vinte e
duas gerações sucessivas de ratos, para ver se eventualmente nasceria
um rato sem cauda. Não nasceu tal rato, portanto Lamarck estava
refutado. No entanto, segundo observou um lamarckista impenitente,
Weismann poderia, da mesma forma, ter pesquisado a hereditariedade
de uma perna de madeira. Pois a tese de Lamarck dizia que se tornam
hereditárias somente aquelas características adquiridas que um animal
desenvolve como resultado de suas necessidades naturais e vitais — e
ter a cauda decepada dificilmente poderá ser definido como uma
necessidade vital do rato.
3

Nem Weismann nem qualquer outro cientista conseguiu refutar a


hereditariedade lamarckista, por causa da inerente dificuldade em
provar uma negativa: os lamarckistas poderiam sempre argumentar,
com justificativa perfeita, que a evolução age numa escala de tempo
incomparavelmente mais ampla que a de uma equipe de pesquisa, por
mais perseverante que esta seja. Isso foi reconhecido mesmo por
darwinistas irredutíveis, como J. B. S. Haldane:
Deve-se ter em mente que, apesar de inúmeras experiências
falharem, é sempre possível que os efeitos dos caracteres
adquiridos... venham a se fixar numa espécie em proporção não
suscetível à verificação experimental, mas rápida bastante para
ter importância no decorrer de um tempo geológico6.
211
Chega a ser divertido observar que Sir Julian Huxley, como já
vimos, utilizou exatamente o mesmo argumento em defesa da
hereditariedade darwinista, contra seus críticos: a " 'velha objeção'
segundo a qual é improvável que um olho ou uma mão ou um cérebro
evoluam por cego acaso 'perdeu toda a sua força', porque a seleção
natural 'opera ao longo de períodos de tempo geológico' "7.
Se, por um lado, era impossível refutar, pela experiência tanto a
teoria darwinista quanto a lamarckista, por outro lado ficou evidente
que também era impossível provar qualquer uma das duas. No campo
dos lamarckistas, o ilustre Pavlov em Leningrado e MacDougall em
Harvard tentaram demonstrar que os resultados do condicionamento
de ratos e ratazanas eram hereditários — e acabaram falhando*. No
outro campo, os pacientes esforços dos geneticistas darwinistas em
milhares de gerações de Drosophila também não conseguiram
produzir qualquer aperfeiçoamento evolutivo. No que concerne à
evidência experimental direta, ambas as partes podem considerar-se
quites.
*Talvez o que mais tenha se aproximado de tal prova sejam as controvertidas
experiências realizadas por Kammerer e descritas no livro The Case of the Midwife
Toad, bem como as experiências de J. McConnell com planarias*.

Se os neodarwinistas, apesar de tudo, levaram a palma — por


enquanto — a razão residiu no fato de, excluídos os preconceitos
metafísicos, terem eles aparentemente conseguido oferecer
"modernas" explicações científicas de alguns aspectos do processo
evolutivo, que os lamarkistas não souberam oferecer. A descoberta
das leis de Mendel, a utilização da estatística na genética e finalmente
a "ruptura do código genético", tudo isso parecia de início mais uma
confirmação da visão profética de Darwin (esquecendo suas próprias
recaídas no larmarckismo). O mecanismo da evolução proposto por
ele pode ter sido imperfeito, necessitando de modificações e
refinamentos, mas os lamarckistas não tinham para oferecer
absolutamente nenhum mecanismo à altura da bioquímica moderna.
Mutações fortuitas dos cromossomos, provocadas por radioatividade
ou por elementos químicos nocivos, eram, prima fade, cientificamente
aceitáveis como base para a seleção natural. Mas não surgiu nenhuma
hipótese aceitável para explicar como um aspecto mental ou corporal
adquirido podia alterar o "protótipo genético" contido na
microestrutura dos cromossomos. Logo, prevaleceu mais uma vez o
212
princípio de que uma teoria ruim é melhor que teoria nenhuma, e o
lamarckismo adquiriu o estigma de ser uma "superstição
desacreditada", porque postulava um princípio na natureza, sem
conseguir oferecer, em termos de ciência contemporânea, um
mecanismo capaz de responder por tal princípio.
Semelhante situação, todavia, apresenta muitos precedentes na
história da ciência. Quando Kepler sugeriu que as ondas do mar são
provocadas pela atração da Lua, o próprio Galileu rejeitou a idéia
como uma "fantasia mística", porque não existia nenhum mecanismo
concebível que pudesse explicar uma ação à distância. Mais tarde,
alguns dos mais eminentes contemporâneos de Newton repeliram a
gravidade universal porque esta significava, segundo as palavras dele,
"agarrar com dedos de fantasma objetos distantes", e isso contradizia
as leis da mecânica. Mutatis mutandis, o lamarckismo foi rejeitado
porque a proposição segundo a qual as experiências adquiridas pelo
organismo vivo influenciam a estrutura de seus cromossomos
hereditários contradizia as leis da genética resumidas no "dogma
central".
Na realidade, o dogma central sucumbiu, menos de vinte anos
após sua proclamação, sob o peso das novas evidências que
rapidamente se acumularam. No dia 25 de junho de 1970, o New
Scientist (não muito dado a manchetes sensacionalistas) anunciou:
"Biology's Central Dogma Turned Topsy-Turvy" (O Dogma Central
da Biologia Virado às Avessas), e o Editorial Científico de The Times
seguiu o exemplo: "Big Reverse for Dogma of Biology"' (Grande
Revés do Dogma da Biologia). O trabalho experimental que aniquilou
o dogma central (e que, seis anos mais tarde, foi recompensado com
um Prêmio Nobel)* é demasiado técnico para ser exposto aqui em
detalhes. Basta dizer que demonstrou, acima de qualquer dúvida, que
em certas bactérias o "protótipo hereditário" pode ser alterado pela
incorporação de agentes de origem externa (vírus) que podem produzir
efeitos maléficos ou benignos10. Ou, como Grasse resumiu o assunto:
*Compartilhado por Temin, Baltimore e Dulbecco.

Esses resultados comprovam que existe um mecanismo


molecular que, em determinadas circunstâncias, fornece ao
organismo informações recebidas de fora, e insere tais
informações no código genético do organismo. Isso é de
suma importância para os evolucionistas.¹¹
213

De fato é. E aqui reside o motivo por que chamei a genética


molecular de Cavalo de Tróia colocado dentro da cidadela.
Seria, naturalmente, uma loucura saltar para a seguinte conclusão:
Visto que os vírus podem produzir mudanças hereditárias numa
célula, segue-se que os continuados exercícios de piano feitos pelos
pais hão de levá-los a gerar gênios musicais. No entanto, as
descobertas da genética molecular realizadas no decurso da última
década finalmente demoliram a doutrina da "inalterabilidade da
sucessão do germe", de Weismann, e modificaram sua versão
moderna, o "dogma central". Tomadas em conjunto com as críticas
apresentadas nas páginas anteriores, essas descobertas podem
significar o começo do fim do neodarwinismo, tal como é ensinado
nos manuais contemporâneos. A seleção darwinista, sem dúvida,
ocupa um lugar no processo evolutivo, mas é apenas um lugar
subordinado (comparável à ação do herbicida seletivo), e aumenta
cada dia mais a persuasão de que devem existir outros princípios e
forças agindo na gigantesca tela dos fenômenos evolutivos. Em outras
palavras, a evidência indica que a evolução é o resultado combinado
de todo um conjunto de fatores causais— alguns conhecidos, outros
vagamente pressentidos e ainda outros até agora desconhecidos por
completo.
4

Em The Case of the Midwife Toad, sugeri que entre o vasto


conjunto de fatores causais "poderia ser reservado um modesto espaço
para uma espécie de 'minilamarckismo' modificado, que serviria de
explicação para alguns fenômenos evolutivos, raros e bem
delimitados"12. À luz de recentes descobertas, não tenho tanta certeza
de que o espaço deva ser tão modesto, nem de que os fenômenos
sejam tão raros. Naturalmente, seria absurdo retornar à ingênua versão
do lamarckismo, defendida pelo próprio Darwin. Como ficou dito
acima o lamarckismo tem sentido apenas se a hereditariedade das
características adquiridas se restringir àqueles aspectos corporais e
habilidades que os organismos adquirem em resposta a constantes
pressões e exigências do ambiente, exercidas sobre muitas gerações.
Essa limitação é essencial, e uma simples analogia basta para
explicar suas razões. Nossos órgãos sensoriais da visão e audição
atuam como estreitas fendas ou filtros que admitem somente uma
quantidade de freqüência muito limitada de ondas eletromagnéticas e
sonoras. No entanto, mesmo essa entrada reduzida é demais para
214
nossa capacidade de recepção. Nossas mentes cessariam de funcionar
se devêssemos atender a cada um dos milhões de estímulos que — na
clássica frase de William James — bombardeiam constantemente
nossos órgãos receptores, numa "exuberante e atordoante confusão."
Por isso, o sistema nervoso e o próprio cérebro agem como uma
hierarquia de muitos níveis de instrumentos filtrantes e classificadores
que eliminam grande quantidade de entradas, como sendo "ruídos"
irrelevantes, e agrupam as informações importantes em formas
coerentes, antes de remetê-las à consciência.* Um típico exemplo
desse processo de filtragem e sintetização é o que os psicólogos
chamam de "fenômeno da reunião social" — nossa espantosa
capacidade para isolar e captar uma única voz dentre a miscelânea de
sons que atingem o tímpano.
*Cfr. Cap. I, 13.
Ora, o que a doutrina de Weismann, ou o dogma central,
realmente pode significar é o postulado de que semelhante aparato de
filtragem deve proteger o protótipo hereditário das células do germe
contra a "atordoante confusão" das intrusões bioquímicas que, do
contrário, haveriam de pôr em perigo a continuidade e a estabilidade
da espécie. Mas isso não exclui necessariamente a possibilidade de
que algumas aquisições muito persistentes e muito vitais, conquistadas
pelo esforço de gerações e gerações, se infiltrem gradualmente através
do aparato e se tornem hereditárias. De qualquer forma, existem
alguns exemplos clássicos, mencionados exaustivamente na literatura,
que parecem exigir uma explicação lamarckista, pois o darwinismo
não tem nenhuma para oferecer.
Temos, por exemplo, o vetusto problema que consiste no
fato de ser a pele da sola de nossos pés bem mais espessa do
que a do resto do corpo. Se o espessamento ocorresse após o
nascimento, em decorrência de pressão e fricção, não haveria
problema. Mas a pele da sola dos pés já é espessa no embrião
que jamais andou, nem de pés no chão nem de qualquer outra
maneira. Fenômeno parecido, e até mais impressionante, são
as calosidades córneas das pernas dianteiras do javali africano,
sobre as quais o animal se apóia enquanto se alimenta; as
calosidades dos joelhos dos camelos; e, o mais estranho de
todos os fenômenos, os dois espessamentos bulbosos
existentes na subestrutura da avestruz, um para a frente e o
outro para trás, sobre os quais esta desajeitada ave se agacha.
Todas essas calosidades aparecem, como ocorre
215
com a pele de nossos pés, no embrião. São características
hereditárias. Mas, é concebível que essas calosidades possam
ter-se desenvolvido por mutações fortuitas, exatamente no
local onde o animal precisava delas? Ou devemos admitir que
existe uma conexão causal, lamarckista, entre a necessidade
do animal proteger esses lugares vulneráveis e a mutação
genética que satisfaz tal necessidade?13
Esses exemplos e muitos outros que são demasiado técnicos para
serem aqui citados foram explorados exaustivamente pelos
lamarckistas desde o início da controvérsia. Mas os darwinistas,
incapazes de apresentarem uma explicação satisfatória,
persistentemente evitaram o assunto, ou — segundo a expressão de
Samuel Butler — continuaram a "bancar avestruz" perante a
evidência. Um século após Butler, ainda prevalecem essas táticas
evasivas*.
*O leitor interessado encontrará um exemplo recente dessa atitude na discussão
que se originou durante o Simpósio Alpbach, após a apresentação do estudo "The
Theory of Evolution Today", feito pelo Prof. Waddington, quando o conhecidíssimo
exemplo da avestruz e do javali foram outra vez mencionados por este autor16. Foi
sobremaneira interessante observar que Waddington, embora se tenha mostrado,
como já vimos, um acerbo crítico da teoria sintética, imediatamente lançou-se em
defesa dela ao ser atacado por outros.
Evidentemente, torna-se difícil ver como uma calosidade
adquirida poderia produzir, de modo concebível, uma mudança nos
cromossomos. Mas, como o próprio Waddington concluiu num livro
anterior14, "mesmo sendo improvável, tal processo não seria
teoricamente inexplicável. Deve-se deixar que a experiência decida se
essas mudanças ocorrem ou não." Ele até elaborou um "modelo
especulativo" para demonstrar um possível modo como as mudanças
nas atividades das células do corpo podem afetar as atividades dos
genes nas células do germe, por meio de enzimas adaptativas.
Segundo suas palavras, o modelo "apenas pretendia sugerir que pode
ser perigoso imaginar que a ocorrência de mutações dirigidas e
propositais, relacionadas com o ambiente, possam ser descartadas a
priori15”.
5
Há longo tempo se sabe que a "barreira de Weismann" que
supostamente isola as células reprodutivas, portadoras da
hereditariedade, do resto do corpo não é aplicável às plantas, nem aos
animais inferiores, tais como os platelmintos e pólipos, que
216
conseguem regenerar um indivíduo todo, inclusive seus órgãos
reprodutores, de praticamente qualquer segmento de seus corpos.
Enfim, os biólogos deverão enfrentar o dilema: ou se mantêm fiéis ao
dogma da "parede impermeável" que protege a "inalterável sucessão
do germe" contra o resto do mundo, e atribuem ao puro acaso todas as
alterações evolutivas do embrião, ou admitem que a parede é porosa, é
um sistema de filtros ultra-sensíveis, só permitindo a penetração de
informações vitais e selecionadas no santuário da hereditariedade das
células do germe. Até o momento, a genética moderna não conseguiu
informar-nos como isso ocorre, mas trata-se de uma ciência ainda
incipiente, em contínuo progresso, e ela não exclui a priori a
possibilidade de existir uma memória poligenética para as
experiências vitais e recorrentes, codificadas nos cromossomos. De
que outra forma senão mediante algum processo de aprendizagem
filogenética e de formação de memória poderiam ter surgido as
complexas e hereditárias habilidades para a construção de um ninho
de passarinho ou a confecção de uma teia de aranha? A teoria oficial,
como temos visto, não possui nenhuma explicação para a genética de
tal virtuosismo herdado.
Recapitulando, pode-se traçar uma analogia entre o mecanismo de
filtragem que opera no sistema nervoso com o fim de proteger a mente
contra os estímulos irrelevantes, e a micro-hierarquia genética que
protege o talento hereditário contra as maléficas mutações fortuitas,
além de coordenar os efeitos das benéficas. Podemos agora ampliar a
analogia e sugerir que também existe uma micro-hierarquia
lamarckista atuando no processo da evolução e impedindo que as
características adquiridas interfiram no protótipo hereditário —
exceção feita àquelas poucas escolhidas que satisfazem a alguma
necessidade vital da espécie, por se terem originado de contínuas
pressões exercidas pelo ambiente sobre muitas gerações — como a
espessa pele da sola dos pés do embrião humano. Teríamos, pois, uma
micro-hierarquia quase darwinista, responsável sobretudo pelas
variações imensamente ricas no mesmo nível da escada evolutiva, e
uma micro-hierarquia quase lamarckista, responsável principalmente
pela evolução para níveis superiores. E, sem dúvida, existem ainda
outros fatores causais em ação, os quais estão fora do nosso horizonte
atual.
Somente um louco poderia negar o impacto revolucionário do
darwinismo sobre o panorama do séc. XIX, quando — segundo a
expressão de um biólogo17 — o público letrado defrontou-se com a
217
alternativa "a favor de Darwin ou contra a evolução". Mas o
mesquinho sectarismo dos neodarwinistas de nossa época é um
assunto completamente diferente e, num futuro não muito distante, os
biólogos podem até perguntar-se com espanto: que espécie de
obscurantismo subjugou nossos ancestrais? Esse prognóstico é
compartilhado por alguns dos críticos que citei e, talvez, pela maioria
da geração mais jovem. É, sem dúvida, expressivo o fato de até na
Introdução, escrita por um eminente entomologista, à Edição
Centenária da obra de Darwin A Origem das Espécies, publicada pela
Everyman Library, podermos deparar com uma nota de total
discrepância com a atitude ortodoxa:

É anormal e indesejável para a ciência esta situação em que


os cientistas correm em defesa de uma doutrina que são
incapazes de definir cientificamente e, muito menos, de
demonstrar com rigor científico, tentando manter o crédito dela
perante o público mediante a supressão de críticas e a eliminação
de dificuldades18.

Talvez seja significativo o fato de essa introdução ter deixado de


aparecer nas subseqüentes edições de A Origem das Espécies,
lançadas pela Everyman.

218
XI

ESTRATÉGIAS E PROPÓSITO NA
EVOLUÇÃO

No capítulo I, 10, mencionei o clássico exemplo dos membros


anteriores dos vertebrados, os quais, sejam de répteis, pássaros,
baleias ou homens, apresentam idêntico desenho básico dos ossos,
músculos, nervos etc., e por isso se denominam órgãos homólogos. As
funções das pernas, asas e nadadeiras diferem muito entre si, embora
todos esses membros sejam variações de um único tema —
modificações estratégicas de uma estrutura preexistente: o membro
anterior do ancestral comum réptil. Uma vez que a Natureza tenha
"registrado uma patente" de um órgão vital, persiste nessa patente, e
tal órgão torna-se um estável hólon evolutivo. Seu desenho básico
aparenta ser governado por um cânone evolutivo fixo, ao passo que a
adaptação para nadar, andar, ou voar é uma questão de estratégia
flexível da evolução.
Esse princípio aplica-se facilmente a todos os níveis da hierarquia
evolutiva, a partir do nível subcelular até o cérebro dos primatas. As
mesmas quatro bases químicas do ácido nucléico cromossômico —
ADN — constituem o alfabeto de quatro letras dos códigos genéticos
de todo o reino animal; o mesmo "arranjo" de organelas funciona em
suas células; o mesmo combustível químico — ATP — fornece sua
energia; as mesmas proteínas contrácteis servem aos movimentos da
ameba e dos músculos humanos. Animais e plantas são feitos de
homólogas moléculas e organelas, e até de subestruturas homólogas
mais complexas. São os hólons estáveis dentro do fluxo evolutivo, os
nódulos da árvore da vida.
As teorias sobre a evolução comentadas nas páginas anteriores
preocupam-se sobretudo com a natureza das estratégias evolutivas
219
(darwinista, lamarckista etc.), as quais levaram as formas superiores
de vida a se ramificarem das raízes que estão à base da hierarquia.
Entretanto, estarrecidos pela prodigiosa variedade de plantas e
animais, os biólogos se inclinaram a prestar menos atenção à
uniformidade dessas unidades básicas — refletida nos fenômenos de
homologia — e às limitações que tal uniformidade impôs sobre todas
as formas de vida possíveis e existentes neste planeta. Afinal, a
própria uniformidade básica das organelas constituintes da célula viva
resulta das limitações impostas pela química fundamental da matéria
orgânica, qual seja, os aminoácidos, as proteínas, as enzimas. Em
nível superior, as micro-hierarquias genéticas impõem maiores
restrições às variações hereditárias. Avançando mais para o alto, o
"grande algo central" regula — por meios desconhecidos para nós — a
"coordenação harmoniosa" das mudanças genéticas. Seu efeito
combinado forma o cânone evolutivo que permite uma grande soma
de variações, mas só em direções limitadas e sobre um número restrito
de temas. A evolução não é um vale-tudo, mas — para retomar nossa
fórmula — um jogo regido por regras fixas e estratégias flexíveis,
disputado ao longo de milhares de milênios.
Para ilustrar essas considerações algo abstratas, mais uma vez
lançarei mão do exemplo dos marsupiais australianos, já utilizado em
O Fantasma da Máquina*. Qualifiquei-os de enigma embalado num
quebra-cabeças. O enigma está ilustrado pelos desenhos da pág. 222.
O quebra-cabeças é: por que os evolucionistas se recusam a ver os
problemas propostos pelo enigma?
*A seção seguinte é uma versão resumida de O Fantasma da Máquina, págs.
143-146.

A classe dos mamíferos apresenta duas subclasses**: os


marsupiais e os placentários. Eles evoluíram, independentemente um
do outro, de um ancestral comum (os já extintos terapsídeos, ou
répteis semelhantes a mamíferos). O embrião marsupial é expelido do
útero num estado de desenvolvimento muito prematuro, sendo criado
numa bolsa elástica, existente no abdome da mãe. Um canguru recém-
nascido é um ser feito pela metade: cerca de 2,5 cm de comprimento,
pelado, cego, com pernas traseiras que não passam de botões
embrionários. Pode-se até imaginar se o nenê humano, mais
**Sem incluir os mamíferos ovíparos, como o ornitorrinco, cujo bico é
semelhante ao do pato.
220
desenvolvido mas ainda indefeso ao nascer, não se desenvolveria
melhor numa bolsa materna. E isso nos leva a lembrar as mulheres
africanas e japonesas que carregam suas criancinhas amarradas às
costas. Todavia, quer o método marsupial seja melhor, quer seja pior
que o placentário, a verdade é que ambos diferem entre si. Pode-se
chamar a bolsa e a placenta de variações em estratégia, dentro do
esquema geral da reprodução dos mamíferos.
Como já se frisou, as duas linhas separaram-se bem no início da
evolução dos mamíferos, algum tempo antes de a Austrália se afastar
do continente asiático, em fins do período cretáceo. Os marsupiais
(que se ramificaram do tipo ancestral comum mais cedo que os
placentários) penetraram na Austrália antes de ocorrer a separação
desta; os placentários não. Portanto, as duas linhas evoluíram em total
separação, durante cerca de 100 milhões de anos. O enigma consiste
no fato de tantos animais da fauna australiana, produzidos pela linha
evolutiva independente dos marsupiais, se parecerem de modo tão
espantoso com os exemplares opostos dentre os placentários. As
ilustrações da pág. 222 mostram à esquerda três espécimes de
marsupiais e, à direita, os placentários correspondentes. É como se
dois artistas que jamais se houvessem encontrado e jamais
compartilhado o mesmo modelo, tivessem pintado séries paralelas de
quadros quase idênticos.
Quando a Austrália se tornou uma ilha, os únicos mamíferos
imigrantes que haviam conseguido chegar até ela anteriormente eram
animais pequenos, semelhantes a ratos e providos de marsúpio, talvez
não muito diferentes do ainda existente rato de patas amarelas e de
marsúpio, mas bem mais primitivos. Apesar disso, essas criaturas
arcaicas, confinadas em seu continente insular, ramificaram-se e
deram origem a versões marsupiais de nossos placentários toupeiras,
tamanduás, esquilos voadores, gatos, lobos, leões e assim por diante,
cada qual parecendo uma cópia um tanto imperfeita de seus
homônimos placentários. Por que — se a evolução fosse um vale-tudo
— a Austrália não produziu alguma espécie de animais
completamente diferentes, como os monstros de olhos esbugalhados
da ficção científica? No decorrer de 100 milhões de anos, a única
criação moderadamente não ortodoxa dessa ilha isolada são os
cangurus e os wallabies*; o resto da fauna é formado por duplicatas,
*Canguru é um nome genérico que designa várias espécies de mamíferos
marsupiais da Austrália. Wallaby também é nome genérico, mas restringe-se às
espécies de cangurus de pequeno e médio porte, alcançando alguns deles o tamanho
de um coelho. (N. dos T.)

221
(c)

(a) Gerbo marsupial e gerbo placentário. (b) Filandra voador


marsupial e esquilo voador placentário. (c) Crânio de lobo
tasmaniano e crânio de lobo placentário (segundo Hardy).
222
até inferiores, dos tipos placentários, mais eficientes — variações
sobre um número limitado de temas, dentro do repertório do cânone
evolutivo.
A única explicação para esse enigma que a teoria oficial tem a
oferecer está resumida na seguinte citação extraída de um competente
manual:
Os lobos tasmanianos — isto é, marsupiais — e os
verdadeiros são ambos predadores contumazes, que se alimentam
de outros animais de porte mais ou menos igual e com os mesmos
hábitos. Similaridade adaptativa — isto é, adaptação a ambientes
semelhantes — envolve também similaridade de estrutura e
função. O mecanismo de tal evolução é a seleção natural1.

E G. G. Simpson, a principal autoridade de Harvard em evolução,


ao analisar o mesmo problema, conclui que a explicação é "seleção de
mutações fortuitas2".
Isso é petição de princípio em escala verdadeiramente heróica.
Somos induzidos a acreditar que a vaga frase "que se alimentam de
animais com aproximadamente o mesmo tamanho e os mesmos
hábitos" — que pode ser aplicada a centenas de espécies diferentes —
fornece uma explicação suficiente para o surgimento dos crânios
quase idênticos mostrados à pág. 222. Mesmo a evolução de uma
única espécie de lobo, por mutação fortuita aliada à seleção, apresenta
intransponíveis dificuldades, como já vimos anteriormente. Duplicar
esse processo independentemente, na ilha e no continente, significaria
exigir um milagre. Permanece o quebra-cabeças: por que os
darwinistas não estão perplexos — ou fingem não estar*.
*Foram inventados vários termos para descrever esse fenômeno, tais como
"convergência", "paralelismo", "homeoplasia", mas esses termos são puramente
descritivos, sem valor explicativo.
3
Os Doppelgängers australianos deram firme apoio à hipótese de
que existem leis unitárias subjacentes à diversidade evolutiva, as quais
permitem praticamente ilimitadas variações sobre um número limitado
de temas. Nos níveis inferiores da hierarquia, essas leis incluem as
macromoléculas, organelas e células que representam os hólons
evolutivos; mais acima, os órgãos homólogos, tais como os membros
dianteiros dos vertebrados, pulmões e guelras — para não mencionar
os olhos equipados com cristalinos — que evoluíram
223
independentemente uns dos outros, por vezes em linhas evolutivas
muito diferentes como as dos moluscos, aranhas e vertebrados. Em
níveis ainda mais altos da hierarquia, devemos incluir na lista os tipos
de vertebrados mais ou menos padronizados, exemplificados nas
ilustrações. Podemos atribuir o "mais ou menos" às variações da
estratégia evolutiva num ambiente que se modifica; mas podemos
explicar a padronização desses tipos unicamente por leis inseridas
dentro das micro-hierarquias genéticas, que delimitam os avanços
evolutivos a certas avenidas principais, retendo o restante em seus
filtros.
Essa concepção de "formas arquetípicas" recua até os
transcendentalistas alemães do séc. XVIII, incluindo Goethe entre eles
(e talvez venha de Platão). Mas foi ressuscitada por alguns dos
evolucionistas modernos que jogaram com a idéia de "seleção
interna", sem explicitar suas profundas implicações*. Em
conseqüência, partindo da recorrência universal de formas homólogas,
Helen Spurway concluiu que o organismo possui apenas "um restrito
espectro de mutação" que "determina suas possibilidades de
evolução3". Outros biólogos falaram de "leis orgânicas co-
determinando a evolução", "influências modeladoras guiando a
mudança evolutiva dentro de certas avenidas4"; ao passo que
Waddington retornou à "noção dos arquétipos... isto é, a idéia de que
existe apenas determinado número de padrões básicos que a forma
orgânica pode assumir5". O que eles querem significar (sem gastar
tantas palavras) é que, levando em consideração as condições de nosso
específico planeta, sua gravidade e temperatura, a composição de sua
atmosfera, de seus oceanos e de seu solo, bem como a natureza das
energias disponíveis e das matérias-primas, a vida desde o seu
princípio na primeira bolha de lodo vivo só podia evoluir num
limitado número de direções e num limitado número de modos. Mas,
em contrapartida, isso implica que, assim como o padrão básico dos
lobos gêmeos estava prefigurado, ou presente in potentia, em seu
ancestral comum, assim também a criatura réptil, semelhante ao
mamífero, deve ter estado potencialmente presente no ancestral
cordado — e assim por diante, até chegar ao ancestral protista e à
primeira fibra auto-reprodutiva de ácido nucléico.
*Ver acima, Cap. IX, 7. Uma excelente e resumida análise crítica pode ser
encontrada em L. L. Whyte, Internai Factors in Evolution. e na resenha dessa obra
escrita por VV. H. Thorpe na revista Nature. de 14 de maio de 1966.
Esta parece ser a inevitável conclusão extraída dos fenômenos da
homologia — qualificada por Sir Alister Hardy como "absolutamente
224
fundamental para tudo quanto estamos discutindo, quando falamos de
evolução6". Se essa linha de raciocínio é correta, ela põe um fim aos
monstros da ficção científica como possíveis formas de vida sobre a
Terra — e sobre outros planetas semelhantes a ela. Mas isto não
significa o contrário: decididamente, isto não insinua a existência de
um universo rigidamente predeterminado, que funciona como um
mecanismo automático. Significa — para retornar a um dos leitmotivs
deste livro — que a evolução da vida é uma esplêndida partida jogada
segundo regras fixas que limitam suas possibilidades, mas deixam
suficiente espaço para variações virtualmente ilimitadas. As regras
estão inerentes à estrutura básica da matéria viva, as variações
derivam das estratégias flexíveis que se aproveitam das oportunidades
oferecidas pelas regras.
Em outras palavras, a evolução não é nem um vale-tudo que só
depende do acaso, nem a execução de um programa de computador
rigidamente predeterminado. Poderia ser comparada a uma
composição musical de estilo clássico, cujas possibilidades são
limitadas pelas regras da harmonia e pela estrutura das escalas
diatônicas, as quais, no entanto, permitem um infinito número de
criações originais. Poderia também ser comparada ao jogo de xadrez,
que obedece a regras fixas, com variações igualmente inesgotáveis.
Por fim — citando O Fantasma da Máquina:
... o vasto número de espécies animais existentes (cerca de
um milhão) e o reduzido número de classes maiores (cerca de
cinqüenta) e de filos ou divisões principais (cerca de dez)
poderiam ser comparados com a inesgotável quantidade de
obras de literatura e o pequeno número de temas e enredos
básicos. Todas as obras de literatura são variações sobre um
limitado número de leitmotivs, derivados das experiências e
conflitos arquetípicos do homem, mas em cada época
adaptados a um novo ambiente — os costumes, as convenções
e a linguagem do momento. Nem mesmo Shakespeare
conseguiu inventar um enredo original. Goethe citou com
aprovação o dramaturgo italiano Cario Gozzi*, segundo o qual
só existem trinta e seis situações trágicas. O próprio Goethe
julgava que provavelmente existissem ainda menos; mas seu
número exato continua um segredo muito bem guardado entre
os escritores de ficção. Uma obra literária é construída com
hólons temáticos7.
*Autor de Turandot e muitas outras obras de sucesso.
225
Mas ainda sobra bastante espaço para o escritor inventar o que
quiser, servindo-se da escassa lista de trinta e seis temas, elaborada
por Gozzi. Assim também há muito espaço para as estratégias
evolutivas tirarem o máximo proveito das limitadas possibilidades
inerentes à estrutura físico-química da matéria viva que existe na
Terra, e provavelmente em outros planetas, onde as condições se
assemelham às da Terra. Mais adiante, retornaremos a este assunto
especulativo.
4
Pode-se objetar que falar da "estratégia da evolução" quer dizer
cair na armadilha do antropomorfismo — atribuindo à Natureza
motivações humanas. Na realidade, o enfoque sugerido aqui deveria
antes chamar-se "biomórfico", porque se baseia nos significativos
aspectos inerentes aos fenômenos da vida, em oposição ao enfoque
"robomórfico" do reducionismo. A ciência não deveria recear de
aplicar os termos "propósito" e "estratégia" à evolução; eles não
implicam que haja um divino Estrategista em ação. No entanto,
precisamente esse receio injustificado desnorteou a controvérsia e
conduziu os teóricos ortodoxos para um atoleiro de contradições.
Procurando citar mais uma vez um porta-voz representativo, o Prof.
G. G. Simpson, a evolução "acaba sendo basicamente materialista,
sem o mínimo sinal de propósito ...e com algum possível Idealizador
relegado à incompreensível posição de Causa Primeira... O homem é o
resultado de um processo materialista e desprovido de finalidade, que
não o incluía nos planos. O homem não foi planejado8".
Aqui se revela explicitamente o sofisma lógico, baseado numa
alternativa espúria: ou a evolução é desprovida de sentido, ou deve
estar em ação um divino Idealizador. É de se estranhar como pode
acontecer que os naturalistas, após se especializarem em genética, se
tornem tão cegos em relação à Natureza que não conseguem ver a
intencionalidade como uma característica fundamental da vida, que
não impõe o postulado de um Idealizador, porque essa
intencionalidade é inerente ao próprio conceito de vida; ou — citando
Sinnott — porque o propósito é "a atividade diretiva mostrada por
organismos individuais, a qual estabelece uma diferença entre os seres
vivos e os objetos inanimados"9. O termo "intencionalidade", aplicado
a um organismo vivo, significa atividade voltada para um objetivo, e
não atividade fortuita; estratégias flexíveis para atingir a meta, e não
respostas rígidas e mecanizadas; adaptação ao ambiente, embora
226
sempre segundo os próprios ditames do organismo, às vezes de modo
um tanto extravagante, como o faz a orquídea ou a borboleta; e
adaptação do ambiente às próprias necessidades. Ou, segundo
escreveu H. J. Muller, agraciado com o Prêmio Nobel: "O propósito
não é introduzido na Natureza, nem precisa ser imaginado como algo
estranho ou divino que se insere no organismo e faz a vida progredir...
Está simplesmente implícito no fato da organização biológica10".
Conseqüentemente, agora tornou-se mais ou menos respeitável
falar de propósito ou dirigibilidade em ontogenia, isto é, o
desenvolvimento do indivíduo durante sua existência; mas ainda é
considerado herético aplicar os mesmos termos à filogenia, isto é, à
história da evolução. A ontogenia é intencional, a filogenia é cega; a
ontogenia é guiada pela memória e aprendizagem, a filogenia não é
afetada nem por uma nem por outra. Vimos, contudo, que os mais
ponderados dentre os neodarwinistas sentem-se cada vez mais
preocupados com este abismo criado artificialmente, e começaram a
construir pontes sobre ele— tais como a "teleonomia" de Monod, ou o
conceito de micro-hierarquias genéticas que filtram e coordenam as
mudanças hereditárias. O próprio Simpson, a despeito de seu
dogmatismo, foi induzido a compreender que a filogenia não passa de
uma abstração, a menos que seja considerada uma seqüência de
ontogenias, e que "o curso da evolução segue as mudanças das
ontogenias". Mas, se as ontogenias são propositadas, torna-se difícil
ver por que sua somatória haveria de ser não-propositada — a não ser
que aceitemos o dogma da "inalterável sucessão do germe", de
Weismann-Crick (que constituiria o único exemplo, encontrado na
Natureza, de um processo biológico privado de realimentação).
Portanto, o velho enigma a respeito do Idealizador oculto atrás do
propósito pode ser deixado à parte. O Idealizador é todo e cada um
dos organismos, desde o despontar da vida, que lutou e se esforçou
para fazer o máximo, dentro de suas limitadas possibilidades. E a
soma total dessas ontogenias reflete o ingente esforço da matéria viva
para a melhor realização do potencial evolutivo deste planeta.
5
No parágrafo anterior, a ênfase deve estar em "esforço ingente".
Quando os evolucionistas ortodoxos falam de "adaptações", querem
significar — como fazem os behavioristas, quando falam de
"respostas" — um processo basicamente pacífico, inteiramente
controlado "pelas contingências do ambiente". Isso pode calhar à
227
filosofia deles, mas certamente não está de acordo com a evidência
que mostra, segundo a afirmação de G. E. Coghill, que "o organismo
age sobre o ambiente antes de reagir a ele"¹¹. Quase a partir do
momento em que uma criatura sai do ovo ou nasce, ela investe contra
o ambiente, seja este líquido ou sólido, utilizando-se de cílios, flagelos
ou músculos; nada, rasteja, desliza, pulsa; esperneia, uiva, respira e se
alimenta do ambiente. Essa criatura não se conforma em meramente
adaptar-se ao ambiente, mas adapta o ambiente às próprias
necessidades — come e bebe seu ambiente, luta contra e une-se a ele,
faz escavações e constrói nele; não apenas "responde" ao ambiente,
mas, explorando-o, faz perguntas. Devemos lembrar-nos (Capítulo
VII, 2) que o "impulso exploratório" é um instinto primário, tão básico
quanto a fome e o sexo, e em determinadas ocasiões pode até mostrar-
se mais forte que os dois últimos. Incontáveis naturalistas, a começar
pelo próprio Darwin, demonstraram que a curiosidade é uma
premência instintiva dos ratos, pássaros, golfinhos, macacos etc.; e
também temos visto que ela se torna a principal força impulsiva a
motivar tanto os artistas como os cientistas. Portanto, o impulso
exploratório é um fator dominante na evolução mental do homem;
além disso, Hardy e outros sugeriram que esse impulso pode ser
também um fator dominante na evolução biológica. Segundo a opinião
deles, o progresso evolutivo baseia-se na iniciativa de alguns
indivíduos empreendedores da espécie, os quais descobrem um novo
método de alimentação, de autoproteção, ou alguma nova habilidade
que, disseminando-se por imitação, é incorporada no modo de vida da
espécie. Como ilustração do processo, Hardy cita o exemplo de um
dos "tentilhões de Darwin", existente nas ilhas Galápagos, o
Carpodacus pallidus. Este admirável pássaro cava buracos ou fendas
nas cascas das árvores e, "tendo escavado, procura um espinho de
cacto ou um graveto fino, de três a cinco centímetros de comprimento,
segura-o de comprido em seu bico, enfia-o no buraco e larga-o para
pegar o inseto assim que este tenta abandonar seu abrigo. ... Algumas
vezes o pássaro carrega consigo um espinho ou graveto, introduzindo-
o nas fendas e rachaduras, à medida que procura o alimento de árvore
em árvore12".
Após descrever vários exemplos semelhantes, Hardy sugere que o
principal fator causal do progresso evolutivo não é a pressão seletiva
do ambiente, mas a iniciativa do organismo vivo — "o animal
incansável, explorador e observador que descobre novas maneiras de
viver... As adaptações provocadas pelo comportamento do animal, por
sua incansável exploração do ambiente e por sua iniciativa distinguem
228
as principais linhas divergentes da evolução... dando origem às linhas
dos corredores, dos trepadores, dos escavadores, dos nadadores e dos
conquistadores do ar13".
A essa teoria da evolução podemos dar o nome de "progresso por
iniciativa". Os pioneiros da espécie iniciam um novo hábito, uma
mudança no comportamento, que se difunde pela população e é
copiado pelas sucessivas gerações — até que uma feliz mudança
casual o transforma em instinto hereditário. Por conseqüência, o
processo é iniciado pelo animal, só depois surgindo a feliz mutação,
como uma espécie de genético endosso que incorpora a nova
habilidade ao protótipo genético. A importância do acaso foi reduzida
mais ainda. O macaco junto à máquina de escrever precisa apenas
continuar tentando, até bater uma tecla pré-especificada.
Quando escrevi O Fantasma da Máquina, julguei atrativa essa
teoria mas, se analisada com maior profundeza, ela revela uma falha
crucial, pois ainda se apóia — embora com menor intensidade que a
teoria ortodoxa — sobre mutações fortuitas para executar as mudanças
fantasticamente complexas do sistema nervoso, necessárias para
inserir um novo hábito ou habilidade no equipamento nativo do
organismo. A ênfase sobre a iniciativa, sobre o papel ativo do animal
explorador continua sendo atrativa, mas permanece sem solução o
enigma básico das calosidades da avestruz, bem como o do
brilhantismo arquitetônico da aranha. Do ponto de vista metodológico,
parece preferível supor que a habilidade de caçar insetos, do tentilhão
de Darwin, foi impressa nos cromossomos do pássaro por algum
processo desconhecido porque era útil — isto é, por hereditariedade
lamarckista — ao invés de se invocar mais uma vez a mantra
darwinista.
6
A evolução, sob o ponto de vista humano, apresenta-se como um
processo chocantemente esbanjador. Os biólogos têm como certo o
fato de, para cada uma do milhão de espécies existentes, centenas de
outras terem perecido no passado. Além disso, as linhas sobreviventes
dão a impressão de se terem estagnado, tendo sua evolução
estacionado num passado já bem distante. Tanto a causa principal da
extinção como a da estagnação parecem residir na superespecialização
e sua concomitante perda de adaptabilidade às modificações do
ambiente. Julian Huxley comparou a evolução a um labirinto com um
"grande número de becos sem saída e uma trilha ocasional para o
229
progresso... Todas as linhas dos répteis, exceto duas, eram becos sem
saída — uma das duas transformou-se em pássaros, e a outra evoluiu
para os mamíferos. Do lado dos pássaros, todas as linhas terminaram
na estagnação; do lado dos mamíferos, todas, exceto uma — aquela
que fez surgir o homem14".
O paradigma humano de superespecialização é o pedante, o
escravo dos hábitos, cujo pensamento e comportamento se movem em
rígidos esquemas — uma predestinada vítima de qualquer calamidade
inesperada. Seu equivalente no reino animal é o patético urso coala
que se especializa em alimentar-se de folhas de determinada variedade
de eucalipto, e de nada mais, e que está provido de garras semelhantes
a ganchos, perfeitamente aptas para segurar nas cascas das árvores —
e para nada mais. Todas as ortodoxias tendem a fomentar os coalas
humanos.
Um caminho para sair desse labirinto apresenta particular interesse
para nosso tema: um fenômeno conhecido pelo nome de
"pedomorfose". Foi definido por Garstang na década de 1920 e muitos
biólogos* o estudaram com afinco. Mas, embora a existência do
fenômeno seja comumente aceita, ele não provocou grande impacto
sobre a teoria ortodoxa, e raramente é mencionado nos manuais. O
fenômeno sugere que, em certos estágios críticos, a evolução pode
refazer seus passos, por assim dizer, ao longo do caminho que
conduziu ao beco sem saída e fazer nova tentativa em outra direção
mais promissora. Nesse processo, o evento mais importante é o
aparecimento, no estágio fetal, larval ou juvenil, de alguma novidade
evolutiva útil, que é transportada para o estágio adulto do organismo
dos descendentes. O seguinte exemplo explicará o significado daquilo
que pretendo expor:
*Entre eles destacam-se Hardy e de Beer, na Inglaterra, e Koltsov e Takhtajan, na
União Soviética".

Existe uma razoável evidência a favor da hipótese


segundo a qual os cordados — e em conseqüência nós, os
vertebrados — descendem do estágio larval de algum
primitivo equinodermo, talvez semelhante ao ouriço-do-mar
ou pepino-do-mar [equinodermo = "espinhosa + pele"]. Na
verdade, um pepino-do-mar adulto não deveria ser um
ancestral muito atraente — é uma criatura vagarosa, que se
assemelha a uma lingüiça mal feita, com pele coriácea,
vivendo no fundo do mar.- Contudo, suas larvas que flutuam
livremente são muito mais promissoras: ao contrário do
230
pepino-do-mar adulto, a larva apresenta uma simetria
bilateral semelhante à do peixe; possui uma faixa ciliar —
precursora do sistema nervoso — e alguns outros detalhes
sofisticados, ausentes no animal adulto. Devemos supor que
o adulto sedentário, residindo no fundo do mar, precisou
depender das larvas móveis para espalhar a espécie pelo
vasto oceano, tal como as plantas difundem suas sementes
pelo vento. Devemos também supor que as larvas, lutando
pela própria subsistência, expuseram-se mais que os adultos
a fortes pressões seletivas, tornando-se aos poucos mais
semelhantes a peixes; e, eventualmente, elas se tornaram
sexualmente maduras ainda no estágio larval, flutuando
livremente. E assim deram origem a um novo tipo de animal
que jamais se acomodou ao fundo do mar, eliminando ao
mesmo tempo, de sua vida, o estágio senil e sedentário do
pepino16.
Ora, essa redução da idade de maturidade sexual é um fenômeno
evolutivo muito conhecido, chamado de neotínea. Apresenta dois
aspectos: o animal começa a procriar enquanto ainda se encontra num
estágio larval ou juvenil; e nunca atinge o estágio plenamente adulto,
que é descartado — eliminado de seu ciclo vital ("abreviação
terminal"). Assim, os estágios juvenis de desenvolvimento dos
ancestrais se tornam a condição definitiva de seus descendentes, ao
passo que as características adultas dos antepassados ficam
abandonadas no caminho. O resultado de tudo isso é um processo de
juvenescimento* e desespecialização — uma bem-sucedida evasão de
um beco sem saída do labirinto evolutivo. Como escreveu J. Z.
Young, comentando os pontos de vista de Garstang:
*Julian Huxley (1952), pág. 532, propôs o termo "juvenilization”
O problema que permanece é, de fato, não "como os
vertebrados foram formados pelos ouriços-do-mar", mas
como os vertebrados eliminaram de sua vida o estágio adulto
do ouriço-do-mar. É plenamente razoável admitir que isso
tenha sido alcançado mediante a pedomorfose17.
Sir Gavin de Beer comparou o processo ao ato de dar novamente
corda a um relógio biológico, quando a evolução está em perigo de
degenerar e chegar à estagnação: "Uma raça pode rejuvenescer
quando os seus indivíduos eliminam da parte final de suas ontogenias
o estágio adulto, e tal raça pode então irradiar-se em todas as
direções18".
231
De fato, os registros apresentados pela paleontologia e anatomia
comparativa sugerem que esse retrocesso para escapar dos becos sem
saída da superespecialização foi repetido em cada uma das grandes
encruzilhadas evolutivas. Mencionei a evolução dos vertebrados,
partindo do estágio larval de algum primitivo equinodermo. Hardy e
Koitsov apresentaram outros numerosos exemplos e Takhtajan20
demonstrou que a pedomorfose também ocorre com freqüência na
evolução da vida das plantas. É muito provável que os insetos tenham
evoluído de um ancestral semelhante à centopéia — entretanto, não de
sua forma adulta, cuja estrutura era demasiadamente especializada,
mas de sua forma larval. A conquista da terra firme foi iniciada pelos
anfíbios, cuja ascendência pode ser relacionada a algum tipo primitivo
de peixe com aparelho respiratório pulmonar, ao passo que as últimas
linhas de peixes munidos de guelras altamente especializadas haviam
estagnado. Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas o caso de
pedomorfose mais impressionante é a evolução de nossa própria
espécie.
A partir da obra pioneira de Bolk, publicada em 1926,
generalizou-se a aceitação da idéia de que o adulto humano
assemelha-se mais ao embrião de um macaco do que a um macaco
adulto.
Tanto no embrião símio quanto no adulto humano a relação
entre o peso do cérebro e o peso de todo o corpo é
desproporcionalmente elevada. Em ambos, o fechamento das
suturas entre os ossos do crânio é retardado para permitir a
expansão do cérebro. O eixo de trás para a frente através da
cabeça do homem — isto é, a direção de sua linha de visão —
forma ângulo reto com sua coluna vertebral, um detalhe que,
nos macacos e outros mamíferos, é encontrado apenas no
estágio embrionário, não no estágio adulto. O mesmo se aplica
ao ângulo entre a coluna vertebral e o canal urogenital — fato
que pode explicar a singularidade da maneira humana de
copular face a face. Outras características embrionárias — ou,
para usar o termo de Bolk, fertilizadas — do homem adulto
são: a ausência das saliências das sobrancelhas, a escassez e o
surgimento tardio dos pêlos do corpo, palidez da pele,
retardado crescimento dos dentes e outros muitos detalhes...21
Provavelmente, jamais será encontrado o "elo perdido" entre o
macaco e o homem — porque foi um embrião.
232
7
Assim, a pedomorfose — ou o juvenescimento — parece
desempenhar um importante papel na grande estratégia da evolução.
Ela implica um "abandono" das formas adultas especializadas e
retorno a estágios anteriores menos comprometidos e mais elásticos
do desenvolvimento dos organismos, seguido por um súbito avanço
em nova direção. É como se a correnteza da vida tivesse
momentaneamente invertido seu curso, seguindo por algum tempo
ladeira acima, em direção a sua fonte original, e depois tivesse aberto
um novo leito — deixando o urso coala encalhado em sua árvore,
como uma alternativa descartada. Em outras palavras, deparamos aqui
com o mesmo princípio de reculer pour mieux sauter, "recuar para
melhor saltar", que já temos encontrado nas encruzilhadas críticas, na
evolução da ciência e da arte. A evolução biológica é, em grande
parte, uma história de fugas dos becos sem saída da
superespecialização; a evolução das idéias é uma série de fugas da
tirania dos hábitos mentais e rotinas estagnantes. Na evolução, a fuga
se concretiza na retirada de um estágio adulto para outro juvenil, que
serve de ponto de partida para a nova linha; na evolução mental,
consuma-se por uma temporária regressão a hábitos de ideação mais
primitivos e desinibidos, seguida pelo criativo salto para a frente (o
equivalente a uma súbita eclosão de "irradiação adaptativa"). Portanto,
esses dois tipos de progresso — o surgimento de novidades evolutivas
e a criação de novidades culturais — refletem o mesmo processo de
desfazer e refazer e surgem como comportamentos análogos, em
níveis diferentes.
Nem a evolução biológica, nem o progresso cultural segue uma
curva contínua. Nenhum deles é estritamente cumulativo, no sentido
de continuar a construir onde a geração anterior parou a obra. Ambos
progridem na forma ziguezagueante descrita no Capítulo VIII. O
avanço da ciência é contínuo apenas durante aqueles períodos de
consolidação e elaboração que seguem a uma grande irrupção ou
"mudança de paradigma". Entretanto, mais cedo ou mais tarde, a
consolidação leva a uma crescente rigidez e ortodoxia, caindo assim
no beco sem saída da superespecialização — o equivalente do alce
irlandês ou do urso coala. Mas a nova estrutura teórica que emerge
dessa irrupção não é simplesmente acrescentada ao velho edifício; ela
se ramifica a partir do ponto em que a evolução das idéias havia
enveredado pelo caminho errado. As grandes revoluções na história da
ciência apresentam uma característica decididamente pedomórfica. Na
233
história da literatura e da arte, a linha em ziguezague é ainda mais
evidente: temos visto como os períodos de progresso cumulativo
dentro de determinada "escola" ou técnica terminam inevitavelmente
na estagnação, no maneirismo ou na decadência, até a crise ser
resolvida por uma revolucionária modificação na sensibilidade, ênfase
e estilo.

8
A analogia entre a evolução biológica e a cultural pode ser
fortalecida ainda mais se volvermos nossa atenção para um dos
atributos fundamentais dos organismos vivos, seu poder de auto-
restauração, bem como para a dramática manifestação desse poder nos
fenômenos de regeneração (qualificados por Needham como "um dos
mais espetaculares números de mágica, no repertório dos organismos
vivos")*. Esse poder é tão fundamental para a vida quanto a
capacidade de reprodução e, em alguns organismos inferiores que se
multiplicam por cissiparidade ou por germinação, a regeneração e a
reprodução muitas vezes se confundem. Deste modo, se um
platelminto for cortado transversalmente em duas metades, a parte da
cabeça formará uma nova cauda, e a parte da cauda formará uma nova
cabeça. Mesmo se for cortado em meia dúzia de pedaços, cada um
deles se regenerará num animal completo. Platelmintos, pólipos,
ouriços-do-mar e estrelas-do-mar, todos eles capazes de regenerar um
indivíduo completo a partir de uma pequena fração do corpo, podem
ser chamados de hologramas biológicos.
Mais acima na escada evolutiva, os anfíbios são capazes de
regenerar um membro ou órgão perdido, e mais uma vez a mágica é
executada segundo a fórmula de desfazer e refazer: as células do
tecido próximo ao coto decepado diferenciam-se e regridem a um
estado quase embrionário, e depois rediferenciam-se e reespecializam-
se para formar a estrutura regenerada**.
*Ver Insight and Outlook, Cap. X. e O Fantasma da Máquina, Cap. XIII.
**Um exemplo clássico dessa metaplasia é a regeneração do cristalino do olho
da salamandra: "Se a lente é cuidadosamente removida com instrumentos adequados,
é substituída por uma nova lente que se forma na margem superior da íris: esta é a
membrana pigmentada do olho, que circunda a pupila. A primeira mudança, após a
extirpação da lente, consiste no desaparecimento dos pigmentos na parte superior da
íris, isto é, um processo de não-diferenciação. Em seguida, as duas camadas de
tecido que contêm a íris separam-se e expandem-se na borda em que são contínuas,
formando uma pequena vesícula. Esta vesícula cresce para baixo até assumir a
posição normal de uma lente; eventualmente chega a desprender-se da íris.
diferenciando-se em uma lente típica".
234
Ora, a reposição de um membro perdido ou do cristalino ocular é
um fenômeno de ordem bem diferente da simples cura de um
ferimento. O potencial regenerativo de uma espécie mune-a com um
suplementar dispositivo de segurança a serviço da sobrevivência —
um método de auto-reparação baseado na plasticidade genética de
células embrionárias não comprometidas. Entretanto, isso significa
mais que um mero dispositivo de segurança, pois acabamos de ver que
as principais novidades evolutivas se concretizaram mediante uma
similar retirada dos níveis adultos para os embrionários. Na verdade,
os grandes passos na linha ascendente que conduziram até nossa
espécie poderiam ser descritos como uma série de operações de auto-
reparação filogenética: fugas de becos sem saída, pelo método de
desfazer e remodelar estruturas mal adaptadas.
À medida que prosseguimos nossa escalada rumo aos animais
superiores, dos répteis aos mamíferos, decresce o poder de
regeneração das estruturas corporais, sendo substituído por um
crescente poder do cérebro e do sistema nervoso para reorganizar os
padrões de comportamento do organismo. Na primeira metade deste
século, mediante uma série de experiências clássicas, K. S. Lashley
demoliu o conceito de que o sistema nervoso é um rígido autômato de
reflexos. Ele demonstrou que os tecidos do cérebro, que no rato
normalmente servem para uma função específica, podem, em
determinadas circunstâncias, assumir as funções de outros tecidos
afetados do cérebro. Por exemplo, ele ensinou a seus ratos algumas
habilidades de diferenciação visual. Quando removia o córtex óptico
dos ratos, essas habilidades desapareciam, como seria de se esperar.
Mas, contrariando qualquer expectativa, os ratos mutilados eram
capazes de aprender novamente a lição. Alguma outra área do cérebro,
não especializada normalmente na aprendizagem visual, devia ter
assumido essa função, substituindo a área perdida. Tais manifestações
do que se pode chamar de meta-adaptações têm sido registradas em
insetos, pássaros, chimpanzés e outros animais*.
*Ver The Act of Creation, Livro II, Cap. III.
Por fim, em nossa própria espécie, a capacidade de regenerar as
estruturas corporais está reduzida a um mínimo, embora seja
compensada pelo poder ímpar do homem para remodelar seus padrões
de pensamento e comportamento — para enfrentar grandes desafios
mediante respostas criativas. E assim completamos o círculo através
da evolução biológica, retornando às diferentes manifestações da
criatividade humana, baseadas no padrão de desfazer e refazer, que se
235
mantém como um leitmotiv desde a pedomorfose até as encruzilhadas
revolucionárias da ciência e da arte; retornando também à regeneração
mental, que é o objetivo das técnicas regressivas da psicoterapia e,
finalmente, aos arquétipos de morte-e-ressurreição, de retirada-e-
retorno, comuns a todas as mitologias.
9
Uma das doutrinas básicas da cosmovisão mecanicista do séc.
XIX foi a famosa "Segunda Lei da Termodinâmica", de Clausius. Essa
lei asseverava que o universo está degenerando rumo à dissolução
final porque sua energia está sendo gradativa e inexoravelmente
dissipada pelo desordenado movimento das moléculas, até se tornar
uma simples e amorfa bolha de gás, com uma temperatura uniforme
um pouco acima do zero absoluto: o cosmo dissolvendo-se no caos.
Somente em data muito recente a ciência começou a recuperar-se
do efeito hipnótico produzido por essa melancólica visão,
compreendendo que a Segunda Lei se aplica apenas no caso especial
dos assim chamados "sistemas fechados" (como o de um gás mantido
num recipiente hermeticamente fechado), ao passo que todos os
organismos vivos são "sistemas abertos", os quais mantêm sua
complexa estrutura e funcionamento pela assimilação continuada de
materiais e energia extraídos de seu ambiente. Ao invés de
"degenerar" como um aparelho mecânico que dissipa sua energia por
causa da fricção, um organismo vivo constantemente "fabrica"
substâncias mais complexas aproveitando as substâncias que ingere,
formas de energia mais complexas utilizando as energias absorvidas, e
padrões de informação mais complexos — percepções, conhecimentos
e memórias armazenadas — aproveitando as informações de seus
receptores sensoriais.
No entanto, embora os fatos aí estivessem para qualquer um
conferir os eventualistas ortodoxos relutavam em aceitar suas
implicações teóricas. A idéia de que os organismos vivos, ao contrário
das máquinas, são primariamente ativos, e não meramente reativos; a
idéia de que ao invés de se adaptarem passivamente a seu ambiente
eles estão, para citar Judson Herrick, "criando, no sentido de novos
padrões de estrutura e comportamento serem constantemente
elaborados" — tais idéias eram profundamente desagradáveis aos
darwinistas, behavioristas e reducionistas em geral23. Na verdade, foi
uma tarefa difícil para uma ortodoxia ainda convencida de que todos
os fenômenos da vida podiam, em última análise, ser reduzidos às leis
236
da física, aceitar que a veneranda Segunda Lei, a qual fora tão útil na
física, não se aplicava à matéria viva e, em certo sentido, fora
invertida na matéria viva.
De fato, foi um físico, não um biólogo, o laureado com o Prêmio
Nobel Erwin Schrödinger, quem pôs fim à tirania da Segunda Lei,
com sua célebre afirmativa: "O que um organismo absorve é entropia
negativa"24. Ora, entropia é o termo para designar energia degradada,
que foi dissipada pela fricção e por outros processos esbanjadores, e
não pode ser recuperada; em outras palavras, é uma medida de energia
desperdiçada. A Segunda Lei pode ser expressa pela afirmação de que
a entropia de um sistema fechado tende a aumentar em direção ao
máximo, quando toda a sua energia tiver sido dissipada pelos
movimentos caóticos das moléculas de gás; logo, se o nosso universo
é um sistema fechado, deve eventualmente "desfazer-se", passando de
cosmo a caos. Entropia tornou-se um conceito-chave da física — um
pseudônimo de tânatos; insinuou-se no próprio conceito freudiano de
desejo de morte. (Ver o Capítulo II.)
"Entropia negativa" (ou "negentropia") é, pois, um modo bastante
perverso de se referir ao poder dos organismos vivos para "construir"
ao invés de degenerar, para criar estruturas complexas utilizando
elementos mais simples, padrões integrados aproveitando a
deformidade, ordem a partir da desordem. A mesma tendência
irreprimível de construir manifesta-se no progresso da evolução, no
surgimento de novos níveis de complexidade na hierarquia orgânica, e
nos novos métodos de coordenação funcional, resultando em maior
independência do ambiente e em maior domínio sobre ele.
Poucas páginas atrás mencionei "o esforço ativo da matéria viva
rumo à melhor realização do potencial evolutivo do planeta." Numa
linha semelhante, o veterano biólogo e vencedor do Prêmio Nobel
Albert Szent-Györgyi propôs a substituição de "negentropia" com suas
conotações negativas pelo termo positivo "sintropia", que ele define
como um "impulso inato na matéria viva para aperfeiçoar-se a si
mesma." Chamou também a atenção para seu equivalente no nível
psicológico, como sendo "um impulso para a síntese, para o
crescimento, para a totalidade e o auto-aperfeiçoamento"25.
Falando francamente, o que tudo isso significa é o renascer do
vitalismo, que a ortodoxia reducionista havia estigmatizado de obscura
superstição. A origem do conceito remonta à enteléquia de
Aristóteles, o princípio ou função vital que transforma a mera
substância num organismo vivo e, ao mesmo tempo, anseia pela
perfeição. Depois de Aristóteles, o conceito de uma força vital que
237
infunde vida na substância inanimada foi adotado por vários autores,
sob diferentes matizes: a facultas formatrix, de Galeno e Kepler; a
lifeforce, de Galvani; as mônadas, de Leibniz; a Gestaltung, de
Goethe; o élan vital, de Bergson. No início de nosso século, o termo
enteléquia foi adotado pelo biólogo alemão Hans Driesch, cujas
experiências clássicas sobre embriologia e regeneração o convenceram
de que esses fenômenos não podem ser explicados unicamente pelas
leis da física e da química, ao passo que a escola oposta dos
"mecanicistas" proclamava que elas podiam ser explicadas dessa
maneira. Devido aos rápidos progressos da bioquímica, o vitalismo
continuou a perder terreno, sendo considerado como uma hipótese
impregnada de sabor místico — até que o pêndulo começou a oscilar
na direção oposta. O revolucionário conceito de "negentropia", de
Schrödinger, publicado em 1944, recebendo aclamação universal,
reintroduziu o vitalismo, por assim dizer, pela porta dos fundos*. Mas
deveria ser chamado de neovitalismo, para distingui-lo de seus
precursores pré-científicos. Sua mensagem básica foi resumida com
admirável simplicidade por Szent-Györgyi (a quem dificilmente se
pode acusar de ter uma atitude não científica):
*Foram criados outros termos, na tentativa de restabelecer o vitalismo sob
respeitáveis disfarces. Assim, o biólogo alemão Woltereck propôs "anamorfose" para
expressar a tendência da Natureza para o surgimento de formas cada vez mais
complexas, enquanto L. L. Whyte a chamava de "princípio mórfico."
Se partículas elementares são agrupadas para formarem um
núcleo atômico, cria-se algo novo que já não pode mais ser
descrito em termos de partículas elementares. O mesmo ocorre
novamente quando se circunda esse núcleo com elétrons e se
constrói um átomo, quando se ajuntam átomos para formar uma
molécula etc. A natureza inanimada pára no nível inferior de
organização de moléculas simples. Mas os sistemas vivos
prosseguem e combinam moléculas para formar
macromoléculas, macromoléculas para formar organelas (tais
como os núcleos, mitocôndrios, cloroplastos, ribossomos ou
membranas) e eventualmente reunir todas essas organelas para
formar a maior maravilha da criação, a célula com suas
assombrosas regulagens internas. Então, o sistema vivo
continua a aglomerar células para formar "organismos
superiores" e indivíduos gradativamente mais complexos, de
que você é um exemplo. A cada novo passo, criam-se
qualidades mais complexas e sutis e assim, no final, deparamos
238
com propriedades que não encontram paralelo no mundo
inanimado, embora as regras básicas continuem imutáveis26.
Por "regras básicas" ele entende as leis da física e da química, as
quais conservam sua validade no campo dos fenômenos biológicos,
sendo, porém, insuficientes para explicá-los porque estes "não
encontram paralelo no mundo inanimado." Disto resulta o postulado
de "sintropia" (ou "negentropia", ou élan vital), como um "impulso
inato na matéria viva para aperfeiçoar-se a si mesma" — ou em
direção à melhor atualização de seu potencial evolutivo.
Na presente teoria, esse "impulso inato" deriva da "tendência
integrativa". É mais específico do que as expressões que acabo de
citar, porque é inerente à concepção de ordem hierárquica e se
manifesta em cada nível, a começar pela simbiose das organelas no
interior da célula, indo até os sistemas ecológicos e as sociedades
humanas. Seu oponente, a tendência auto-afirmativa, está igualmente
presente em cada nível. Esta fornece uma chave para o enigmático
conservantismo do processo evolutivo, tal como vem refletido nos
fenômenos de homologia, a estabilidade das espécies, e no baixo
índice de mudanças, a sobrevivência de "fósseis vivos" (também
conhecidos como "tipos persistentes"), e finalmente, quando não
controlado pela tendência integrativa, nos becos sem saída da
estagnação e da superespecialização. Pois temos visto (Capítulo II, 4)
que a tendência auto-afirmativa é, na verdade, conservadora, dedicada
a preservar e afirmar a individualidade do hólon "no aqui e agora das
condições existentes, enquanto a tendência integrativa possui a dupla
função de coordenar as partes constituintes de um sistema em seu
estado atual e de gerar novos níveis de organização nas hierarquias
evolutivas — sejam biológicas, sociais ou cognitivas. Portanto, a
tendência auto-afirmativa está orientada para o presente, preocupada
com a automanutenção, ao passo que a tendência integrativa pode ser
classificada como trabalhando tanto para o presente como para o
futuro."
A evolução tem sido comparada a uma viagem de um local
desconhecido para um destino ignorado, a uma travessia de um vasto
oceano. Mas nós podemos ao menos traçar a rota que nos trouxe do
estágio do pepino-do-mar até ao da conquista da Lua. E não se pode
negar que há um vento que faz o barco se mover. Mas, torna-se
indiferente dizer que o vento, vindo de um passado distante, empurra
o barco para a frente, ou dizer que ele nos arrasta consigo para o
futuro. A intencionalidade de todos os processos vitais, a estratégia
239
dos genes e o poder do impulso exploratório no animal e no homem,
tudo parece indicar que a atração do futuro é tão real quanto a pressão
do passado. Causalidade e finalidade são princípios complementares
nas ciências da vida. Se eliminarmos finalidade e propósito, teremos
eliminado a vida da biologia, bem como a da psicologia*.
*Até mesmo o evasivo Waddington, num de seus últimos livros, argumentou em
favor de uma "visão quase finalista"28.

Se isso for chamado de vitalismo, não farei nenhuma objeção e


citarei em resposta uma profunda observação feita pelo arquivitalista
Henri Bergson:

O princípio vitalista pode, na verdade, não explicar muito,


mas é ao menos uma espécie de rótulo afixado à nossa
ignorância, de maneira a fazer-nos ocasionalmente lembrar
dela, enquanto o mecanicismo nos convida a ignorar essa
ignorância.

Mas a última palavra neste capítulo pertence ao Prof. Grasse:

Os esforços conjugados da paleontologia e de uma biologia


molecular livre de dogmatismo haverão de conduzir
eventualmente à descoberta do mecanismo exato da evolução
— mas possivelmente sem nos revelarem as causas que
determinam a direção das linhagens evolutivas e a
intencionalidade das estruturas, funções e ciclos vitais. Parece
possível que, diante desses problemas, a biologia se veja
relegada ao abandono, devendo estender a mão à metafísica27.

240

PARTE IV

Novos Horizontes
241
242
XII

LIVRE-ARBÍTRIO NUM CONTEXTO


HIERÁRQUICO

Pascal observou: "Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto,


a história do mundo teria sido diferente." E se Descartes,
contemporâneo de Pascal, tivesse criado um poodle, a história da
Filosofia teria sido diferente. O poodle teria ensinado a Descartes que,
ao contrário de sua doutrina, os animais não são máquinas e, por
conseguinte, o corpo humano não é uma máquina separada para
sempre da mente, que ele pensava estar localizada na glândula pineal.
Uma visão diametralmente oposta acha-se resumida em outro
aforisma inesquecível de Bergson: "A inconsciência de uma pedra que
cai é algo muito diferente de um repolho que cresce."
A atitude de Bergson aproxima-se do pampsiquismo, a teoria de
que alguma espécie rudimentar de sensibilidade está presente em todo
o reino animal e até mesmo nas plantas. Alguns físicos modernos,
inclinados à especulação, chegam até a atribuir um elemento psíquico
às partículas subatômicas. Portanto, o pampsiquismo postula um
continuum que se estende desde o repolho em crescimento até a
autoconsciência humana, enquanto o dualismo cartesiano considera a
consciência como uma possessão exclusiva do homem e coloca uma
espécie de Cortina de Ferro entre a matéria e a mente.
Pampsiquismo e dualismo cartesiano demarcam os extremos
opostos do espectro filosófico. Não abordarei as múltiplas
interpretações a que eles deram origem — o interacionismo, o
paralelismo, o epifenomenalismo, a hipótese da identidade e assim por
diante. Ao contrário, tentarei demonstrar que o conceito da holarquia
de muitos níveis é muito adequado para lançar alguma nova luz sobre
243
este vetusto problema. Como veremos, o método hierárquico substitui
a curva continuamente ascendente do pampsiquismo, desde o repolho
até o homem, por uma série completa de discretos degraus — uma
escada no lugar de uma rampa; e substitui a compacta parede
cartesiana que separa a mente do corpo por uma série de portas
giratórias, por assim dizer.
Para começar, a experiência cotidiana nos ensina que a
consciência não é um caso de tudo ou nada, mas uma questão de
degraus. Existem níveis de consciência que formam uma série
ascendente, a começar pela inconsciência provocada por um
anestésico, passando pela sonolência produzida por sedativos mais
brandos e pela execução de rotinas complexas, como a de amarrar
automaticamente os cadarços dos sapatos com a "mente perdida", e
chegando à consciência plena e à autoconsciência, até atingir a
consciência da própria consciência, e assim por diante, sem jamais
atingir um teto.
Na direção descendente, encontramos também uma multiplicidade
de níveis de consciência ou sensibilidade que se estendem muito
abaixo do nível humano. Os etologistas que têm um estreito
"relacionamento" com os animais geralmente se recusam a traçar uma
linha indicativa do mais baixo limite de consciência na escada
evolutiva. Por seu turno, os neurofisiologistas admitem a "consciência
espinhal" em vertebrados inferiores e até mesmo a "consciência
protoplasmática" dos protozoários. Para mencionar apenas um
exemplo: Sir Alister Hardy nos forneceu uma palpitante descrição dos
foraminíferos — minúsculos animais marinhos de uma única célula,
parentes das amebas, os quais constroem "casas" microscópicas nas
formações com aspecto de agulha de esponjas mortas — casas que
Hardy qualifica de "maravilhas de engenharia"1. No entanto, esses
primitivos protozoários não possuem nem olhos nem sistema nervoso,
e não passam de massa gelatinosa de protoplasma fluido. Logo, a
hierarquia parece permanecer em aberto tanto para baixo como para
cima.
Quero citar um eminente etologista, W. H. Thorpe:
Os fatos sugerem que, nos níveis inferiores da escada
evolutiva, a consciência, se existir, deve ser de um tipo muito
geral, por assim dizer não-estruturado; e que, com o
desenvolvimento de um comportamento objetivo e com uma
poderosa faculdade de atenção, a consciência associada à
expectativa tornar-se-á mais e mais vívida e precisa2.
244
É essencial, no entanto, compreender que essas gradações
"estruturação, vividez e precisão" da consciência encontram-se não
apenas ao longo da escada evolutiva e em membros da mesma espécie
em diferentes estágios de sua ontogenia, mas também dentro dos
indivíduos adultos, quando enfrentam situações diferentes. Estou me
referindo ao fato decepcionantemente banal de que uma e a mesma
atividade — dirigir um carro — pode ser executada automaticamente,
sem a consciente atenção do indivíduo sobre as próprias ações, ou
pode vir acompanhada por variados graus de consciência. Ao dirigir
ao longo de uma estrada familiar, com pouco trânsito, eu posso ceder
o lugar para o "piloto automático" em meu sistema nervoso e pensar
em outros assuntos. Em outras palavras, a tarefa de controlar e
coordenar meu ato de dirigir foi transferida de um nível superior para
outro inferior, em minha hierarquia mental. E vice-versa, ultrapassar
outro carro exige uma mudança de controle para cima, para o nível de
rotina semiconsciente; e ultrapassar numa situação difícil demanda
uma nova mudança para a consciência plena do que eu estou fazendo.
Existem vários fatores que determinam o grau, se for o caso, de
atenção consciente que uma pessoa dedica à atividade em que está
engajada. No presente contexto, o mais importante desses fatores é a
formação do hábito. Enquanto adquirimos uma habilidade, devemos
concentrar-nos em cada detalhe daquilo que estamos fazendo. Com
muito esforço aprendemos a reconhecer e nomear as letras impressas
do alfabeto, a andar de bicicleta, a bater a tecla certa do piano ou da
máquina de escrever. Mas, com o crescente domínio e prática, o
datilógrafo pode deixar seus dedos "cuidarem de si mesmos"; nós
lemos, escrevemos, dirigimos "automaticamente", e isso é uma outra
maneira de dizer que as regras que governam o exercício da habilidade
são agora aplicadas inconscientemente. Essa condensação da
aprendizagem em um hábito pode ser considerada como um processo
que transforma atividades mentais em atividades mecânicas —
processos mentais em processos maquinais. Tem início na infância e
jamais termina.
Essa tendência para a progressiva automatização de hábitos
apresenta um lado positivo: está de acordo com o princípio da
parcimônia. Manejando mecanicamente o volante do carro, sou capaz
de manter uma conversa; e, se as regras de gramática e sintaxe não
entrassem automaticamente em ação, eu não poderia captar o sentido
das frases. Mas, por outro lado, a mecanização progressiva de hábitos
e rotinas ameaça transformar-nos em autômatos. O homem não é uma
máquina, embora durante a maior parte do dia nos comportemos como
máquinas — ou como sonâmbulos, sem nos concentrarmos
245
mentalmente nas atividades em que estamos engajados. Isso não se
aplica apenas a rotinas manuais — empunhar garfo e faca à mesa,
acender um cigarro, ou assinar uma carta — mas também a atividades
mentais: pode-se ler um parágrafo inteiro de um livro maçante,
"distraidamente", sem absorver uma única palavra. Certa vez, Karl
Lashley citou um colega seu, professor de psicologia que lhe
assegurou: "Quando preciso fazer uma palestra, destravo minha língua
e procuro dormir."
Portanto, de maneira algo perversa, pode-se definir a consciência
como aquele especial atributo de uma atividade que decresce em
proporção direta à formação do hábito. A condensação da
aprendizagem em hábito vem acompanhada de um enfraquecimento
das luzes de consciência. Por isso presumimos que o processo oposto
ocorra quando a rotina é perturbada pelo choque inesperado contra
algum obstáculo ou problema: que isso provoque uma instantânea
mudança do comportamento "mecânico” para o comportamento
"atento" ou "consciente". Se um gatinho cruzar repentinamente a
estrada pela qual você vinha dirigindo distraidamente, seu intelecto,
que antes estava ausente, há de retornar num átimo para assumir o
controle, isto é, para tomar uma rápida decisão, a saber, se você vai
atropelar o gatinho ou arriscar a segurança dos passageiros, pisando
firme nos freios. O que ocorre nessa crítica situação é a súbita
transferência do controle de uma atividade em desenvolvimento para
um nível superior da hierarquia de muitos níveis, porque a decisão a
ser tomada ultrapassa a competência do piloto automático e deve ser
comunicada aos "quartéis superiores". Na presente teoria, essa
repentina mudança do controle de comportamento, de um nível
inferior da hierarquia para outro superior — análoga ao salto do
quantum do físico — é a essência da tomada consciente de decisões,
bem como da experiência subjetiva do livre arbítrio.
O processo oposto, como já vimos, é a mecanização de rotinas, a
escravização ao hábito. Chegamos assim a uma dinâmica visão de um
tráfego ininterrupto nos dois sentidos, para cima e para baixo na
hierarquia mente-corpo. A automatização de hábitos e habilidades
implica um contínuo movimento para baixo, como numa escada
rolante acionada, abrindo espaços, nos estratos superiores, para
atividades mais sofisticadas — mas também ameaçando transformar-
nos em autômatos. Cada passo para baixo significa uma transição do
mental para o mecânico; cada mudança para cima, na hierarquia,
produz mais vívidos e mais bem estruturados estados de consciência.
246
Como já frisei, essas alternâncias entre o comportamento de robô e
o comportamento lúcido são assunto da experiência diária. Em
algumas raras ocasiões, no entanto, as pessoas criativas experimentam
uma rápida oscilação — um reculer pour mieux sauter — dos estratos
superarticulados e superespecializados na hierarquia cognitiva, para
níveis inferiores mais primitivos e fluidos, subindo novamente para
um nível superior reestruturado.
2
O dualismo clássico só conhece uma única barreira entre a mente e
o corpo. O enfoque holárquico sobre o qual se baseia a presente teoria
implica uma visão pluralista em vez de uma dualista: a transformação
de eventos físicos em eventos mentais e vice-versa é efetuada não por
um simples salto sobre uma única barreira, mas por uma série de
passos para cima ou para baixo, pelas portas giratórias da hierarquia
de muitos níveis.
Como exemplo concreto, relembremos (Capítulo 1, 6) a maneira
como convertemos ondas de ar, que atingem o tímpano e são eventos
físicos, em idéias, que são eventos mentais. Isso não se faz "de um só
golpe". A fim de decifrar a mensagem trazida pelas pulsações do ar, o
ouvinte deve realizar uma rápida série de "saltos do quantum" de um
nível da hierarquia da linguagem para o seguinte superior: os fonemas
não têm significado e só podem ser interpretados ao nível dos
morfemas; as palavras devem ser relacionadas a seu contexto, e as
sentenças, a um sistema de referência mais amplo. A ação de falar —
o enunciado de uma idéia ou imagem anteriormente não verbalizada
— envolve o processo oposto: converte eventos mentais em
movimentos mecânicos das cordas vocais. Isso também é realizado
por toda uma série intermediária de rápidos mas distintos passos, cada
qual desencadeando rotinas lingüísticas de um tipo mais e mais
automatizado: a estruturação da mensagem pretendida em uma
seqüência linear, o processamento da mensagem segundo os
silenciosos ditames da gramática e da sintaxe e, finalmente, a ativação
dos padrões de movimento completamente mecânicos dos órgãos da
fala. A hierarquia psicolingüística de Noam Chomsky está prefigurada
em A Midsummer Night's Dream:
Enquanto a imaginação corporifica
As formas de coisas desconhecidas, a pena do poeta
Empresta-lhes formas e dá ao nada etéreo
Uma habitação local e um nome.

247
Permitam-me repetir: cada passo para baixo na gradativa
conversão de nadas etéreos em movimentos físicos das cordas vocais
requer uma transferência de controle para automatismos mais
acentuados; cada passo para cima leva a processos de mentalização
mais sofisticados. Assim, a dicotomia mente-corpo não se localiza ao
longo de uma única fronteira, como no dualismo clássico, mas está
presente em cada nível intermediário da hierarquia.
Sob esse aspecto, a distinção categórica entre mente e corpo se
desvanece e, em seu lugar, "mental" e "mecânico" tornam-se atributos
complementares de processos ocorridos em cada nível. O domínio de
um desses atributos sobre o outro — dar um nó na gravata pode ser
uma atividade realizada atenta ou mecanicamente — depende do fluxo
do tráfico na hierarquia: as mudanças de controle podem proceder de
baixo para cima ou de cima para baixo, pelas portas giratórias. Em
conseqüência, até as partes ínfimas, viscerais, da hierarquia, reguladas
pelo sistema nervoso autônomo, podem aparentemente ser mantidas
sob controle mental, mediante as práticas de Yoga ou os métodos de
realimentação biológica. E vice-versa — como já foi dito — quando
estou sonolento ou entediado, posso executar a atividade
supostamente mental de ler um trabalho sem "assimilar" uma só
palavra.
Possuímos o hábito de falar sobre a "mente" como se ela fosse
uma coisa, quando na verdade não é. Mentalizar, pensar, lembrar,
imaginar são processos em relação recíproca ou complementar com
processos mecânicos. A esta altura da análise, a física moderna
oferece-nos uma analogia pertinente: o assim chamado "Princípio de
Complementaridade", que é fundamental para toda a sua estrutura
teórica. Posto em linguagem não técnica, o princípio afirma que os
constituintes elementares da matéria — elétrons, prótons, nêutrons etc.
— são ambíguos, entidades com face de Jano, os quais, sob certos
aspectos, comportam-se como corpúsculos sólidos, mas sob outros
aspectos comportam-se como ondas num meio não sólido. Werner
Heisenberg, laureado com o Prêmio Nobel e um dos pioneiros da
física subatômica, comentou:
O conceito da complementaridade se destina a descrever
uma situação em que podemos olhar para um e o mesmo
evento através de dois diferentes sistemas de referência. Esses
dois sistemas excluem-se mutuamente mas eles também se
complementam mutuamente, e somente a justaposição desses
sistemas contraditórios permite uma visão exaustiva... O que
248
chamamos de complementaridade assemelha-se muito
nitidamente ao dualismo cartesiano de matéria e mente3.

Embora isso se refira ao dualismo clássico e não à pluralidade de


níveis aqui proposta, a analogia mantém seu interesse. O
conhecimento de que um elétron se comportará como uma partícula
ou como uma onda, dependendo da experiência realizada, torna mais
fácil aceitar que o homem também, de acordo com as circunstâncias,
há de agir como um autômato ou como um ser consciente.
Outro agraciado com o Prêmio Nobel, Wolfgang Pauli, pensou em
termos muito semelhantes.

Não se pode afirmar que o problema geral da relação


entre a mente e o corpo, entre o interior e o exterior, tenha
sido resolvido... A ciência moderna talvez nos tenha
aproximado de uma compreensão mais satisfatória dessa
relação, introduzindo na própria física o conceito de
complementaridade4.

A essas citações podemos acrescentar quase uma infinidade de


pronunciamentos semelhantes, proferidos por pioneiros da física
moderna. É evidente que eles se referem ao paralelismo entre os dois
tipos de complementaridade — corpo/mente e corpúsculo/onda —
como sendo mais que uma analogia superficial. Na realidade, ela é
uma analogia muito profunda mas, a fim de apreciar o que ela implica,
devemos tentar fazer uma idéia do que os físicos pretendem exprimir
com o termo "ondas", conceito que constitui um dos dois aspectos do
assunto. O bom senso, esse traiçoeiro conselheiro, nos diz que para
produzir uma onda deve haver algo que ondule — uma corda de piano
em vibração, ou água em movimento, ou ar em agitação. Mas o
conceito de "ondas de matéria" exclui por definição qualquer meio
com atributos materiais de portador da onda. Portanto, desafia-nos a
tarefa de imaginar a vibração de uma corda mas sem a corda, ou o
arreganho do gato de Cheshire* mas sem o gato. Contudo, podemos
haurir algum consolo da analogia entre as duas complementaridades.
Os conteúdos de consciência que passam pela mente, desde a
percepção de cores até pensamentos e imagens, são "nada etéreos"
*O gato de Cheshire (condado do oeste da Inglaterra) foi celebrizado por Lewis
Carroll em As Aventuras de Alice no Pais das Maravilhas (1856). Na história, o gato
esvaeceu-se gradativamente até permanecer apenas um arreganho fixo. (N. dos T.)
249
insubstanciais embora estejam de alguma forma ligados ao cérebro
material, assim como as "ondas" insubstanciais da física estão de
alguma forma ligadas aos aspectos materiais das partículas
subatômicas. Parece que o duplo aspecto do homem reflete o duplo
aspecto dos últimos constituintes do universo.
3

A "interpretação" de uma intenção — seja ela a articulação verbal


de uma idéia, seja apenas o ato de apagar um cigarro — é um processo
que desencadeia o funcionamento de sucessivas sub-rotinas: hólons
funcionais que vão desde as habilidades matemáticas até as mecânicas
contrações dos músculos. Em outras palavras, é um processo de
particularizações de um plano geral. E vice-versa, submeter decisões
a níveis superiores é um processo integrativo que tende a produzir um
grau mais elevado de coordenação e de totalização da experiência.
Como se enquadra nesse esquema o problema do livre arbítrio?
Vimos anteriormente que todas as nossas habilidades corporais e
mentais são governadas por regras fixas e mais ou menos flexíveis
estratégias. As regras de xadrez definem os movimentos permitidos, a
estratégia determina a escolha do movimento concreto. O problema do
livre-arbítrio resume-se, pois, na questão de como são feitas essas
escolhas. A escolha do enxadrista pode ser chamada de "livre" no
sentido de não ser determinada pelas regras. Mas, embora sua escolha
seja livre no sentido acima, certamente não é casual. Pelo contrário, é
guiada por considerações de maior complexidade — envolvendo um
nível superior da hierarquia — que as simples regras do jogo.
Comparemos o jogo-da-velha com o jogo de xadrez. Em ambos os
casos, minha escolha estratégica do movimento seguinte é "livre", no
sentido de não ser determinada pelas regras. Mas o jogo-da-velha
oferece apenas algumas escolhas alternativas, guiadas por estratégias
relativamente simples, ao passo que o enxadrista é guiado por
considerações de um nível muito superior de complexidade, com uma
variedade de escolhas incomparavelmente mais ampla — isto é, com
mais graus de liberdade*. Além disso, as considerações que norteiam
sua escolha também formam uma hierarquia ascendente. No nível
* A expressão "graus de liberdade" é utilizada na física para denotar o número de
variáveis independentes que definem o estado de um sistema.
250
ínfimo, estão preceitos táticos, como o de ocupar as casas centrais do
tabuleiro, evitar a perda de peças, proteger o rei — preceitos que
qualquer principiante pode dominar, mas dos quais o mestre pode
livremente prescindir, concentrando sua atenção em níveis superiores
de estratégia, onde as peças podem ser sacrificadas e o rei exposto
num movimento aparentemente insensato que, no entanto, é mais
eficaz do ponto de vista da partida como um todo. Assim, no decurso
da partida, há necessidade constante de submeter decisões a escalões
superiores, com mais graus de liberdade, e cada mudança para cima é
acompanhada por uma intensificação da consciência e pela
experiência de fazer uma escolha livre. Falando de maneira geral,
nesses domínios sofisticados, o restritivo código de regras (seja de
xadrez, seja de gramática da linguagem) opera mais ou menos
automaticamente, em níveis inconscientes ou pré-conscientes, ao
passo que as escolhas estratégicas são auxiliadas pela luz da
consciência focal.
Repetindo: os graus de liberdade na hierarquia aumentam em
ordem ascendente e cada mudança para cima da atenção a níveis
superiores, cada transferência de uma decisão para escalões superiores
vem acompanhada pela experiência de livre escolha. Mas, é
meramente uma experiência subjetiva, repleta de ilusão? Não penso
que seja esse o caso. Afinal, a liberdade não pode ser definida em
termos absolutos, mas apenas em termos relativos, como libertação de
alguma limitação específica. A liberdade do prisioneiro comum é
maior que a do confinado em uma solitária; a democracia permite
mais liberdade que a tirania, e assim por diante. Graduações
semelhantes existem nas hierarquias de muitos níveis do pensamento e
da ação onde, a cada passo em direção a um nível superior, a
importância relativa das limitações diminui e o número de escolhas
aumenta. Mas isso não significa que haja um nível supremo, livre de
qualquer limitação. Ao contrário, a presente teoria implica a noção de
que a hierarquia está aberta a um infinito recuo, tanto no sentido
ascendente como no descendente. Inclinamo-nos a acreditar que a
última responsabilidade recai sobre o ápice da hierarquia — mas esse
ápice jamais se estabiliza, está sempre recuando. O ego jamais permite
ser abarcado pela própria consciência. Voltando-se para baixo e para
fora, uma pessoa está consciente da tarefa a ela confiada, uma
consciência que se dilui a cada passo dado para baixo, em direção à
obscuridade da rotina, à escuridão dos processos viscerais, aos vários
graus de inconsciência do repolho que cresce e da pedra que cai e,
finalmente, dissolve-se na ambigüidade do elétron com face de Jano.
251
Mas, na direção para cima, a hierarquia também está em aberto e
conduz a um infinito recuo do ego. Olhando para cima ou para dentro,
o homem adquire um sentimento de totalidade, de um sólido núcleo
para sua personalidade, de onde emanam suas decisões e que, segundo
as palavras de Penfield, "controla seu pensamento e dirige o holofote
de sua atenção". Mas essa metáfora do grande neurocirurgião
decepciona. Quando um sacerdote admoesta um penitente que se
permitiu pensamentos pecaminosos, tanto o sacerdote como o
penitente admitem tacitamente que por detrás da atividade que gera os
pensamentos pecaminosos existe outra atividade que controla o
gerador, e assim por diante ad infinitum. O último réu, o ego que
dirige o holofote de minha atenção, jamais pode ser apanhado por seu
facho luminoso. O agente da experiência nunca pode tornar-se
plenamente o objeto de sua experiência; quando muito pode conseguir
sucessivas aproximações. Se a aprendizagem e o conhecimento
consistem em fazer para si mesmo um modelo privado do universo,
segue-se daí que o modelo jamais pode incluir um modelo completo
de si mesmo, porque ele permanecerá sempre um passo atrás do
processo que representa. A cada mudança da consciência em direção
ao ápice da hierarquia, o ego como um todo integrado, retrocede como
uma miragem. "Conhece-te a ti mesmo" é o mais venerável e o mais
torturante mandamento. Consciência total do ego, a identidade do
conhecedor e do conhecido, embora sempre almejada, jamais é
alcançada. Só poderia ser conseguida, alcançando-se o cume da
hierarquia que está sempre um passo à frente do alpinista.
Esse é um velho enigma, mas parece desabrochar para nova vida,
no contexto da holarquia em aberto. O determinismo desvanece não
apenas no nível subatômico do quantum, mas também na direção para
cima, onde, em níveis sucessivamente superiores, as limitações
diminuem e os graus de liberdade crescem ad infinitum. Ao mesmo
tempo, o conceito letárgico de predeterminação e predestinação é
tragado pelo infinito recuo. O homem não é nem um joguete dos
deuses, nem um marionete suspenso em seus cromossomos. Para
expressar essa idéia com maior propriedade, essas conclusões estão
implícitas na proposição de Sir Karl Popper, segundo a qual nenhum
sistema de processamento de informações pode incorporar em si
mesmo uma representação atualizada de si mesmo, inclusive essa
representação5. Argumentos bastante semelhantes foram também
formulados por Michael Polanyi6 e Donald MacKay7.
Alguns filósofos detestam o conceito de recuo infinito porque ele
252
traz à lembrança o pequeno homem dentro do pequeno homem dentro
do pequeno homem. Mas não podemos nos livrar do infinito. O que
seria da matemática, o que seria da física, sem o cálculo infinitesimal?
A autoconsciência tem sido comparada a um espelho em que o
indivíduo contempla suas próprias atividades. Talvez seja mais
apropriado compará-la a uma Sala dos Espelhos, onde um espelho
reflete a imagem de uma pessoa em outro espelho, e assim por diante.
Nós nos vemos diante do infinito, quer olhemos para as estrelas, quer
procuremos nossas próprias identidades. O reducionismo não sabe o
que fazer dele, mas uma verdadeira ciência de vida deve deixar espaço
para o infinito, sem nunca perdê-lo de vista.
4
O problema do livre-arbítrio versus determinismo tem perseguido
filósofos e teólogos desde tempos imemoriais. O comum dos mortais
raramente se preocupa com o paradoxo relativo ao agente que dirige o
pensamento de uma pessoa, e com o agente que está por trás desse
agente, porque, paradoxal ou não, todos aceitam como certo que "eu"
sou responsável por minhas ações. Em O Fantasma da Máquina,
inventei uma breve história para ilustrar o assunto. Apresentei-a sob a
forma de um diálogo de alto nível, numa faculdade de Oxford, entre
um idoso lente de convicções estritamente deterministas e um jovem
hóspede australiano, de temperamento desinibido. O australiano
exclama: "Se o senhor continuar negando que eu sou livre para tomar
minhas decisões, dar-lhe-ei um murro no nariz!"
O velho professor enrubesce: "Deploro a sua imperdoável
conduta."
"Peço desculpas. Perdi as estribeiras."
"Realmente, você deveria controlar-se."
"Muito obrigado. A experiência foi conclusiva."
Realmente foi. "Imperdoável", "deveria" e "controlar-se" são todas
expressões que implicam que o comportamento do australiano não foi
determinado por seus cromossomos e educação, mas que era livre para
escolher entre portar-se com polidez ou com rudeza. Sejam quais
forem as convicções filosóficas de uma pessoa, na vida cotidiana é
impossível proceder sem a crença implícita na responsabilidade
pessoal. E responsabilidade implica liberdade de escolha. A
experiência subjetiva de liberdade é um dado fornecido, tanto quanto a
sensação da dor ou o sentimento de dor.
No entanto, essa experiência é constantemente corroída pela
formação de hábitos e rotinas mecânicas, que tendem a nos
253
transformar em autômatos. Quando perguntaram ao Duque de
Wellington se ele acreditava que o hábito era a segunda natureza do
homem, exclamou: "Segunda natureza? É a natureza multiplicada por
dez." O hábito é a negação da criatividade e a negação da liberdade. É
uma camisa-de-força imposta a si mesmo e da qual o indivíduo não
tem consciência.
Outro inimigo da liberdade é a paixão ou, mais especificamente,
um excesso de emoções auto-afirmativas. Quando estas são
despertadas, o controle do comportamento é assumido por aqueles
níveis primitivos da hierarquia que estão relacionados com o "cérebro
antigo". A perda de liberdade resultante dessa mudança para baixo
vem refletida no conceito legal de "responsabilidade diminuída" e no
sentimento subjetivo de se estar agindo sob coerção — expresso por
frases feitas como: "Eu não pude evitar", "Perdi a cabeça", "Eu devia
estar fora de mim".
É nesta altura que surge o dilema moral de julgar os outros. Ruth
Ellis foi a última mulher a ser enforcada na Inglaterra — por ter
baleado seu amante "a sangue-frio", como se dizia. Como posso eu
saber e como poderia o júri saber se e até que ponto a
responsabilidade dela estava "diminuída" quando ela agiu daquele
modo, e se ela poderia "ter evitado"? Coerção e livre-arbítrio são
conceitos filosóficos situados nos lados opostos de uma balança, mas
não existe o fiel da balança para eu poder observar. Em dilemas como
esse, o método mais seguro é aplicar dois padrões diferentes: atribuir o
mínimo de livre-arbítrio aos outros e o máximo a si mesmo. Existe um
ditado francês muito antigo: Tout comprendre c'est tout pardonner —
compreender tudo é perdoar tudo. A luz do exposto acima, deveria ser
modificado para: Tout comprendre, ne rien se pardonner:
compreender tudo, não perdoar nada a si mesmo.
Pode ser difícil vivê-la na prática, mas é uma sentença segura.
254
XIII

FÍSICA E METAFÍSICA

"Metade dos meus amigos me acusam de excesso de pedantismo


científico e a outra metade, de tendências anticientíficas em relação a
temas absurdos, como a percepção extra-sensorial (PES), que eles
incluem no campo do sobrenatural. Todavia, é confortador saber que
idênticas acusações se assacam a uma elite de cientistas que me fazem
agradável companhia no banco dos réus." Esse é o parágrafo inicial de
As Razões da Consciência. Desde então, a "elite" de cientistas, ao que
tudo indica, tornou-se a maioria. Em 1973, o New Scientist, um
semanário inglês muito conceituado, expediu um questionário a seus
leitores, convidando-os a exporem suas opiniões a respeito do tema da
percepção extra-sensorial. Dentre os 1.500 leitores — quase todos eles
cientistas e engenheiros — que responderam o questionário, 67%
considerava a PES ou como um "fato comprovado" ou como "uma
possibilidade plausível1".
Já antes (em 1967), a Academia de Ciências de Nova York
realizou um simpósio sobre parapsicologia e, em 1969, a Associação
Americana para o Progresso da Ciência (o equivalente da Associação
Inglesa) aprovou o pedido da Associação de Parapsicologia para
tornar-se membro daquela augusta entidade. Dois pedidos anteriores
haviam sido rejeitados. A aprovação do terceiro foi um sinal das
alterações ocorridas no clima intelectual e, para a parapsicologia,
significou o sinete supremo de respeitabilidade.
Conseqüentemente, parece-me desnecessário recapitular aqui o
progresso da parapsicologia, a começar das sessões espíritas
realizadas nas obscuras salas de visitas vitorianas até chegar à ciência
empírica que utiliza estatísticas computadorizadas, contadores Geiger
e outros equipamentos eletrônicos sofisticados. Nas páginas seguintes,
255
não mais me preocuparei com a questão de saber se a telepatia e
fenômenos análogos existem — os quais, em vista do grande acúmulo
de evidência, resolvi aceitar como verdadeiros* — mas com as
implicações desses fenômenos em nossa cosmovisão.
*Parte dessa evidência encontra-se analisada em As Razões da Coincidência, The
Challenge of Chance e várias conferências incluídas em The Heel of Achilles.

Essa cosmovisão, à medida que diz respeito ao leigo instruído,


coloca a parapsicologia e a física nas pontas opostas do espectro do
conhecimento e da experiência. A física é considerada pelo leigo
instruído como a rainha das "ciências exatas", que tem acesso direto às
imutáveis "leis da Natureza", as quais governam o universo material.
Em contraste com isso, a parapsicologia lida com fenômenos
subjetivos, extravagantes e imprevisíveis, que se manifestam de modo
aparentemente desprovido de leis, ou em contradição direta com as
leis da Natureza. Como diz o jargão acadêmico, a física é uma ciência
"calejada", com os pés bem firmes na terra, ao passo que a
parapsicologia flutua algures, numa nebulosa quimera.
Na verdade, essa perspectiva da física foi absolutamente legítima e
imensamente produtiva durante os quase dois séculos em que o termo
"física" era, na prática, sinônimo da mecânica newtoniana. Vale citar
um físico contemporâneo, Fritjof Capra:
As questões acerca da natureza essencial das coisas eram
respondidas, na física clássica, segundo o modelo mecanicista
do universo, de Newton, o qual, de maneira muito semelhante à
do modelo elaborado por Demócrito na antiga Grécia, reduzia
todos os fenômenos aos movimentos e interações dos
compactos e indestrutíveis átomos. As propriedades desses
átomos eram deduzidas da noção macroscópica das bolas de
bilhar e, por conseguinte, da experiência sensível. Não se
questionava se essa noção poderia realmente ser aplicada ao
mundo dos átomos2.

Ou, segundo as próprias palavras de Newton:

Parece-me provável que, no início, Deus formou a matéria


em partículas sólidas, compactas, duras, impenetráveis e
móveis, de tais formatos e tamanhos e com tais outras
propriedades e em tal proporção com o espaço, tornando-se
muito apropriadas ao fim para que Ele as criou. E creio que
essas partículas primitivas, por serem sólidas, são
256
incomparavelmente mais duras que quaisquer outros corpos
formados por elas, tão duras que jamais se desgastam nem se
despedaçam, e nenhum poder ordinário consegue dividir o que
o próprio Deus, na primeira criação, fez uno3.

Se excluirmos a referência a Deus, a citação anterior, escrita em


1704 d.C, ainda reflete o credo implícito de nosso leigo instruído.
Naturalmente, ele sabe que o átomo, antes indivisível, pode agora ser
dividido (com sinistros resultados), mas acredita — se pensar um
pouco sobre o assunto — que dentro do átomo existem outras bolas de
bilhar, verdadeiramente indivisíveis, chamadas prótons, nêutrons,
elétrons etc. Entretanto, se o leigo se interessasse bastante, descobriria
também que os gigantescos desintegradores de átomos fragmentaram
prótons, nêutrons etc., que as últimas (até a presente data) partículas
elementares são chamadas de "quarks"* e que alguns quarks possuem
um atributo físico chamado "charm". A exótica terminologia dos
físicos subatômicos inclui também as expressões "via óctupla",
"estranheza" e "princípio do cordão de botas" — o que serve para
mostrar que eles estão bem cônscios da natureza surrealista do mundo
que criaram. Por trás do humor ginasiano esconde-se o apavorado
reconhecimento do mistério. Pois, nesse nível submicroscópico, os
critérios de realidade são fundamentalmente diferentes daqueles que
aplicamos em nosso macronível. No interior do átomo, nossos
conceitos de espaço, tempo, matéria e causalidade não mais são
válidos, e a física se transforma em metafísica, com um forte sabor de
misticismo. Como resultado desse desenvolvimento, os inimagináveis
fenômenos de parapsicologia parecem algo menos absurdo, à luz das
impensáveis proposições da relatividade e da física dos quanta.
* O termo foi tirado do romance Finnegan's Wake de James Joyce. Quark, em
alemão, quer dizer coalho ou queijo mole, acre e geralmente malcheiroso.

Já mencionei uma dessas proposições: o Princípio da


Complementaridade que transforma os assim chamados "elementares
blocos de construção" da física clássica em entidades com face de
Jano, as quais, sob determinadas circunstâncias, comportam-se como
pequenas protuberâncias duras de matéria, mas, em outras
circunstâncias agem como ondas ou vibrações propagadas num vácuo.
Como observou Sir William Bragg, elas parecem ondas às segundas,
quartas e sextas-feiras, e partículas às terças, quintas e sábados. Temos
visto que alguns dos pioneiros da física dos quanta, bem como seus
sucessores contemporâneos, consideraram o Princípio de
257
Complementaridade um paradigma adequado para a dicotomia mente-
corpo. Essa foi uma agradável notícia para os parapsicólogos.
Todavia, devemos recordar que o dualismo cartesiano reconhece
apenas os dois domínios da mente e da matéria, ao passo que a
presente teoria propõe uma série de níveis equipados com portas
giratórias que ora se abrem para um lado, ora para outro. Tanto em
nosso comportamento diário como no nível subatômico as portas
continuam movendo-se ininterruptamente.

O conceito de ondas-matéria proposto na década de 1920 por


Broglie e Schrödinger completou o processo de desmaterialização da
matéria. Tal processo começara muito antes, com a mágica fórmula E
= mc2* de Einstein, a qual pressupõe que a massa de uma partícula
não deve ser concebida como algum material elementar estável, mas
como um padrão concentrado de energia, contida naquilo que se nos
assemelha à matéria. A "substância" de que são feitos os prótons e os
elétrons assemelha-se antes à substância que forma os sonhos, como
se pode deduzir da ilustração apresentada à pág. 259. É um exemplo
do tipo de eventos que ocorrem a todo instante na câmara de bolhas
dos físicos, onde partículas "elementares" de alta energia colidem e se
aniquilam umas às outras, ou criam novas partículas que dão origem a
uma nova cadeia de eventos. É claro que as partículas em questão são
infinitamente pequenas e muitas delas têm um período de vida menor
que um milionésimo de segundo. No entanto, elas deixam rastros na
câmara de bolhas, comparáveis aos rastros visíveis que os aviões a
jato, fora do alcance de nossa vista, deixam no céu. O comprimento,
densidade e curvaturas dos rastros permitem aos físicos determinar
qual das duzentas e tantas "partículas elementares" os produziu e
também identificar "partículas" antes desconhecidas.
*Na fórmula, E significa energia, m, massa e c, a velocidade da luz.

Contudo, a lição fundamental que a câmara de bolhas e outros


instrumentos sofisticados ensinam ao físico é que, no nível
subatômico, não se aplicam mais nossos conceitos de espaço, tempo,
matéria e lógica convencional. Por conseguinte, duas partículas podem
colidir e despedaçar-se, mas os fragmentos resultantes podem não ser
258
Diagrama de uma fotografia de câmara de bolhas, mostrando eventos
subatômicos, elaborado segundo uma Foto CERN — cortesia da
Organização Européia para Pesquisa Nuclear, Genebra. A legenda (que
deixa os não físicos na mesma) explica: "Interação na Gargamelle, a câmara
de bolhas de líqüido pesado. Em A, um antipróton incidente, que entra na
câmara em C (ver o plano), aniquila um próton residente, dando origem a
um pion + vo e —vo, um pion neutro, e a dois raios gama, cada um dos quais
se converte (em D) num par pósitron-elétron. Um segundo evento e
registrado quando uma partícula que entra em E interage em B e produz dois
anti-prótons e dois píons + vo, um dos quais colide, em seguida, duas vezes
com partículas residentes."
259
menores que as partículas originais — porque a energia cinética
liberada pela colisão foi transformada em "massa". Ou um fóton, a
unidade elementar da luz, que não possui massa, pode dar origem a
um par elétron-pósitron que possui massa. E, em seguida, esse par
pode colidir e, num processo inverso, transformar-se num fóton. Os
fantásticos eventos numa câmara de bolhas têm sido comparados à
dança de Xiva*, com suas rítmicas alternações de criação e
destruição**.
*Xiva, ou Civa, um dos deuses que formam a trimurti, a trindade hindu. É, ao
mesmo tempo, o deus conservador e destruidor do universo. Completam a trindade:
Brama, o Absoluto, o Criador do mundo, dos deuses e dos seres, e Vishnu, o deus do
amor. (N. dos T.)
**Capra(1975).

Tudo isso está muito distante do ilusoriamente simples modelo de


Rutherford - Bohr, criado no início de nosso século, o qual
representava os átomos como sistemas solares em miniatura, onde os
elétrons com carga negativa circulavam como planetas ao redor de um
núcleo com carga positiva. Aliás, o modelo defrontou-se com um
paradoxo após outro. Logo se descobriu que os elétrons se portam de
maneira bem diversa que a dos planetas — saltam continuamente de
uma órbita para outra, sem passarem pelo espaço existente entre elas,
como se a Terra fosse, de repente, transferida para a órbita de Marte
num simples salto, ignorando o espaço. As próprias órbitas não são
trajetórias bem definidas, mas rastros muito confusos, atribuídos ao
aspecto de onda do elétron que foi "lambuzado" em toda a órbita. E
tornou-se tão insensato perguntar em que ponto exato do espaço o
elétron estava em determinado momento, quanto era insensato tentar
prender uma onda. Como observou Bertrand Russell:
A idéia de que lá existe uma pequena massa consistente,
que é o elétron ou próton, é uma injustificável intrusão de
noções do bom senso derivadas do tato4.
No modelo, os núcleos atômicos não se portaram melhor que os
"planetas" orbitais. Os núcleos se revelaram como compostos de
partículas, sobretudo prótons e nêutrons, mantidas juntas por outras
partículas e forças que desafiam qualquer modelo visual ou
representação em termos de nossa experiência sensorial. Segundo uma
das hipóteses, nêutrons e prótons giram no interior do núcleo a uma
velocidade aproximada de 75.000 km por segundo — um quarto da
velocidade da luz. Capra afirmou o seguinte:
260
A matéria nuclear é, pois, uma forma de matéria inteiramente
diferente de tudo quanto experimentamos "cá em cima", em
nosso ambiente macroscópico. Talvez possamos ilustrá-la
melhor na forma de minúsculas gotas de um líquido
extremamente denso, em frenética efervescência e ebulição5.

Em livros anteriores6 tenho debatido alguns dos mais notáveis


paradoxos da física dos quanta: as experiências de Thompson que fez
o mesmo elétron passar, ao mesmo tempo, por dois minúsculos
buracos de uma tela (o que, segundo comentários de Sir Cyril Burt, "é
mais do que um fantasma pode fazer"); o paradoxo do "gato de
Schrödinger" que pode aparecer vivo e morto a um só tempo; os
diagramas de Feynman em que, por um breve instante, as partículas
são levadas a retroceder no tempo (trabalho que lhe mereceu o Prêmio
Nobel em 1965); e o "paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen" (ou
paradoxo EPR), ao qual retornarei dentro em breve. O próprio
Heisenberg, um dos principais arquitetos da teoria dos quanta,
resumiu a situação nas seguintes palavras:

A simples tentativa de esboçar um quadro das partículas


elementares e pensar nelas em termos visuais demonstra uma
interpretação delas completamente errônea...7
Átomos não são coisas. Os elétrons que formam uma concha
de átomo já não são mais coisas, no sentido da física clássica,
coisas que poderiam ser descritas, sem a menor ambigüidade,
por conceitos como localização, velocidade, energia, tamanho.
Quando descemos ao nível atômico, não mais existe o mundo
objetivo de espaço e tempo8.
4
Provavelmente, Werner Heisenberg será lembrado como o grande
iconoclasta que pôs fim ao determinismo causal na física — e
conseqüentemente na filosofia — mediante seu "Princípio da
Indeterminação", que se tornou tão fundamental para a física moderna
quanto as Leis do Movimento, de Newton, o foram para a mecânica
clássica. Tentei transmitir seu significado utilizando uma analogia
261
bastante simplista. Certa qualidade estática de muitas pinturas da
Renascença é devida ao fato de que as figuras humanas no primeiro
plano e o cenário distante no fundo estão, ambos, nitidamente
focalizados — o que é, opticamente, impossível. Quando focalizamos
um objeto no primeiro plano, o fundo se torna confuso e vice-versa.
Graças ao Princípio de Indeterminação, o físico, ao estudar o
panorama subatômico, se defronta com situação semelhante (embora,
é óbvio, por razões bem diferentes). Na física clássica, uma partícula
mantém, a todo instante, posição e velocidade definidas. No nível
subatômico, entretanto, a situação mostra-se radicalmente diferente.
Quanto mais acuradamente o físico conseguir determinar a posição de
um elétron, por exemplo, tanto mais incerta se torna a sua velocidade.
E vice-versa: quanto mais exatamente ele puder determinar a
velocidade da partícula, tanto mais obscura, isto é, indeterminada, se
torna sua posição. Essa indeterminação não é produzida pela
imperfeição de nossas técnicas de observação, mas pela própria
natureza dupla do elétron, como "partícula" e como "ondícula", o que
torna prática e teoricamente impossível fixá-lo. Isto significa que,
descendo-se ao nível subatômico em qualquer momento determinado,
o universo encontra-se num estado quase indeciso, e que seu estado,
no instante seguinte é, até certo ponto, indeterminado ou "livre".
Assim, se um exímio fotógrafo, com uma câmara perfeita,
fotografasse todo o universo em dado momento, a fotografia sairia de
certa forma desfocalizada, por causa do estado indeterminado de seus
últimos constituintes*. Essa imprecisão obriga os físicos a se
pronunciarem sobre processos subatômicos somente em termos de
probabilidades, jamais de certezas. "A natureza é imprevisível" —
para citar novamente Heisenberg.
*Pode-se provar que, apesar da brevidade do tempo de exposição, o Princípio de
Indeterminação ainda desfocalizaria a foto.
Por isso, durante os últimos 50 anos, desde o advento da teoria dos
quanta, tornou-se corriqueiro entre os físicos da escola dominante (a
assim chamada Escola de Copenhagen) afirmar que a cosmovisão
estritamente determinista, mecanicista, já não pode ser defendida. Tal
cosmovisão se transformou num anacronismo vitoriano. O modelo do
séc. XIX que apresentava o universo como um mecanismo perfeito
está em ruínas e, considerando que o próprio conceito de matéria foi
desmaterializado, o materialismo já não pôde mais apregoar ser uma
filosofia científica.
262
5
Mencionei alguns dos gigantes (a maioria deles laureados com o
Prêmio Nobel)* que foram, solidariamente, responsáveis pelo
desmantelamento do antiquado mecanicismo, procurando substituí-lo
por um modelo mais sofisticado, suficientemente flexível para
acomodar paradoxos lógicos e ousadas teorias, antes consideradas
impensáveis. Durante este meio século, realizaram-se incontáveis
descobertas — graças aos radiotelescópios que esquadrinham os céus
e também às câmaras de bolhas que registram a dança subatômica de
Xiva — mas ainda não surgiu um padrão satisfatório nem uma
filosofia coerente, comparáveis aos da clássica física newtoniana.
Podemos descrever esta era pós-newtoniana como um dos períodos de
"anarquia criativa" que ocorrem na história de cada ciência quando os
velhos conceitos se tornaram obsoletos e, ao mesmo tempo, ainda não
se concretizou a ruptura que leva a uma nova síntese.** Enquanto
escrevo este livro, a própria física teórica parece estar imersa numa
câmara de bolhas, onde se entrecruzam as mais fantásticas hipóteses.
Tenciono mencionar alguns de acordo com a conveniência de nosso
tema.
*É proposital a freqüente menção a Prêmios Nobel, com o intuito de comprovar
que as estranhas teorias citadas neste capítulo não foram propostas por maníacos,
mas por físicos de renome internacional. **Cfr. acima, Cap. VIII.
Em primeiro lugar, alguns físicos eminentes, entre os quais se
encontravam Einstein, de Broglie, Schrödinger, Vigier e David Bohm,
relutaram em aceitar a indeterminação e a acausalidade dos eventos
subatômicos, pois, na opinião deles, aceitá-las equivalia a admitir que
esses eventos eram governados por cego acaso. (Reflete essa atitude a
famosa frase de Einstein: "Deus não joga dados com o mundo.") Eles
estavam inclinados a acreditar na existência de um substrato abaixo do
nível subatômico, governando e determinando esses processos
aparentemente indeterminados. Deram-lhe o nome de teoria das
"variáveis ocultas" — a qual foi, no entanto, abandonada até mesmo
por seus mais convictos defensores porque parecia não conduzir a
nada.
Embora inaceitáveis para o físico, as "variáveis ocultas"
forneceram, porém, um campo fértil para as teorizações metafísicas e
parapsicológicas. Os teólogos apregoaram que a Divina Providência
pode agir do interior das indistintas lacunas no molde da causalidade
física ("o Deus das lacunas"). Sir John Eccles, Prêmio Nobel em
fisiologia, propôs que a indeterminação dos quanta de neurônios
263
"criticamente equilibrados" no cérebro abre espaço para o exercício do
livre-arbítrio:
No córtex cerebral ativo, em vinte milésimos de segundo, o
padrão de descarga de até centenas de milhares de neurônios seria
modificado em conseqüência de uma "influência" que, de início,
provocou a descarga de apenas um neurônio...
Portanto, a hipótese neurofisiológica afirma que a "vontade"
modifica a atividade espaço-temporal da rede neurônica,
aplicando "campos de influência" espaço-temporais que são
afetados por esta singular função de detector do córtex cerebral
ativo10.
Essa afirmativa se aplica à ação de intelectos individuais sobre
seus "próprios" cérebros. Nas seções finais de seu livro, no entanto,
Eccles inclui a PES e a PC (psicocinética) em sua teoria. Ele aceita os
resultados experimentais de Rhine e sua escola como demonstração de
um generalizado "tráfego nos dois sentidos" entre o intelecto e a
matéria, e de canais de comunicação direta entre intelecto e intelecto.
Eccles aceita que PES e PC são fracas e irregulares manifestações do
mesmo princípio que permite à volição mental de um indivíduo
influenciar seu próprio cérebro material e também permite ao cérebro
material produzir experiências conscientes.
A teoria não é elaborada com todos os detalhes, mas serve para
indicar as atuais correntes de pensamento entre os neurofisiólogos
esclarecidos — a começar pelo falecido Sir Charles Sherrington, até
Penfield e Gray Walter, os quais citei em livros anteriores.
É interessante observar também que Penfield, o neurologista,
retomou uma hipótese indevidamente negligenciada, defendida por
Eddington, o astrônomo, a qual postulava um "comportamento
correlato das partículas individuais de matéria, que ele (Eddington)
presumia ocorrer com a matéria em ligação com o intelecto. O
comportamento de tal matéria contrastaria frontalmente com o não
correlato ou fortuito comportamento de partículas, que é postulado na
física"¹¹.
Conseqüentemente, a matéria "em ligação com o intelecto"
apresenta propriedades específicas que, de outra forma, não são
encontradas no domínio da física — uma proposição não muito
distante do pampsiquismo. Outro astrônomo, V. A. Firsoff, opinou
que o "intelecto é uma entidade universal ou uma interação da mesma
ordem que a eletricidade ou a gravitação, e deve haver um módulo de
transformação análogo à famosa equação de Einstein E = mc2"12.
264
Em outras palavras, assim como a matéria pode ser transformada
em energia física, assim também a energia física deve ser
transformável em energia psíquica e vice-versa.
Nos últimos anos, houve uma inundação de semelhantes teorias
procurando preencher a lacuna entre a física dos quanta e a
parapsicologia, teorias que soam como ficção científica — mas, como
já vimos, a mesma observação vale também para o postulado básico
da própria física moderna. Assim, o brilhante matemático de
Cambridge, Adrian Dobbs, apresentou uma minuciosa teoria sobre
telepatia e precognição, na qual hipotéticos "psítrons", com
propriedades semelhantes às dos neutrinos*, são considerados como
os portadores de fenômenos PES, capazes de atingir diretamente os
neurônios no cérebro do recipiente13. Entre escritores mais recentes,
Dr. E. Harris Walker, especialista em balística, elaborou uma
engenhosa teoria mecânica dos quanta, em que as hipotéticas
"variáveis ocultas" são identificadas com a consciência, como
"entidades não físicas, mas reais", independentes de espaço e tempo, e
"relacionadas com o mundo físico mediante a função ondular
mecânica dos quanta"14. Sua teoria inclui os fenômenos
parapsicológicos, mas ao mesmo tempo utiliza a matemática
avançada, sendo, em seu conjunto, demasiadamente técnica para
apresentá-la aqui.
Erguendo nossos olhos da câmara de bolhas para os céus
estrelados, nossas corriqueiras noções de espaço, tempo e causalidade
tornam-se tão inadequadas como quando tentamos aplicá-las ao
campo subatômico. No universo relativista, o espaço torna-se curvo e
o fluxo do tempo é acelerado ou retardado segundo o estado de
movimento do cronometrista. Além disso, se partes do universo
estiverem tomadas por galáxias de antimatéria**, fato admitido como
possível por muitos astrônomos, existe uma grande possibilidade de
que nessas galáxias o fluxo do tempo esteja invertido.
*Neutrinos são partículas de origem cósmica desprovidas de atributos físicos
(massa, peso, carga elétrica, campo magnético), que transpassam a terra (e nossos
corpos também) em conjuntos de bilhões, à velocidade da luz.
**A antimatéria consiste em átomos em que as cargas elétricas de seus
constituintes estão invertidas.
Retornando do macrocosmo para o microcosmo, nós nos
recordamos que, nos diagramas de Feynman, as partículas se movem,
durante breves instantes, para trás no tempo. O próprio Heisenberg
endossou essa hipótese:
265
O único consolo (quando nos defrontamos com os paradoxos
da teoria dos quanta) é a presunção de que, em pequeníssimas
regiões de espaço-tempo da ordem de magnitude das partículas
elementares, as noções de espaço e tempo se tornam obscuras, isto
é, em intervalos muito curtos, até os conceitos de "mais cedo" e
"mais tarde" já não podem ser definidos com exatidão.
Naturalmente, nada se altera no espaço-tempo em larga escala,
mas devemos ter em mente a possibilidade de a experiência
conseguir provar que os processos de espaço-tempo da pequena
escala podem ocorrer ao inverso da seqüência causal15.

Portanto, nosso mundo de tamanho médio, com suas noções


familiarmente corriqueiras de espaço, tempo e causalidade, parece
estar comprimido entre o macro e o micro domínio da realidade, aos
quais já não se aplicam essas noções provincianas. Como escreveu Sir
James Jeans: "A história da ciência física no séc. XX é a de uma
progressiva emancipação do ponto de vista puramente humano"16. Na
escala macrocósmica de grandes distâncias e altas velocidades, a
relatividade combinada com a teoria dos quanta produziu o mesmo
efeito. O conceito físico de tempo é hoje totalmente diferente daquele
que existia durante o reinado da Rainha Vitória. O mais eminente dos
astrônomos contemporâneos, Sir Fred Hoyle, expôs essa idéia de
maneira peculiar e provocativa:

Você está subjugado por uma grotesca e absurda ilusão...


a idéia de tempo como um fluxo ininterrupto.... Há uma
coisa bastante certa nesse assunto: a idéia de tempo como
uma progressão contínua do passado para o futuro é falsa.
Sei muito bem que, subjetivamente, essa é a maneira pela
qual encaramos o tempo. Mas nós somos as vítimas de um
abuso de confiança17.

Mas, se a irreversibilidade do tempo deriva de um "abuso de


confiança" — isto é, de uma ilusão subjetiva — não mais temos
justificativas para excluir, com argumentos a priori, a possibilidade
teórica de fenômenos precognitivos, tais como os sonhos verídicos. O
paradoxo lógico de que a predição de um evento futuro pode frustrar
sua ocorrência ou alterar seu curso é desfeito, ao menos parcialmente,
pela indeterminação do futuro na física moderna e pela natureza
probabilística de todas as previsões.
266
6
A revolução na física que assim transformou nossa visão do
mundo ocorreu na década de 1920. Mas, na segunda metade de nosso
século, ela tomou um rumo ainda mais surrealista. Enquanto escrevo
este livro, o universo apresenta-se todo ulceroso, com os assim
chamados "buracos negros". Esse termo foi cunhado por John A.
Wheeler, professor de Física na Universidade de Princeton e figura
destacada entre os físicos contemporâneos*. Os buracos negros são
hipotéticos poços ou fossas existentes no espaço longínquo, nos quais
a massa de uma estrela queimada que sofreu um colapso gravitacional
é sugada à velocidade da luz, para ser aniquilada e desaparecer de
nosso universo. Os locais onde se consumam esses eventos
apocalípticos são chamados de "singularidades" no continuum. Aí,
segundo as equações da relatividade geral, a curvatura do espaço
torna-se infinita, o tempo é congelado e as leis da física são
invalidadas. Realmente, o universo está se tornando um lugar muito
estranho, e não necessitamos de fantasmas para eriçar nossos cabelos.
*O livro de Wheeler, Geometrodynamics, publicado em 1962, é considerado uma
obra clássica moderna.

Alguém pode sentir-se tentado a fazer a ingênua pergunta: Para


onde "vai" a matéria que caiu no buraco negro (pois nem toda ela pode
ter sido convertida em energia)? Wheeler apresenta uma resposta
experimental: essa matéria pode emergir sob a forma de um "buraco
branco", em alguma parte de outro universo localizado no superespaço
(os grifos são dele):

O palco em que o espaço do universo se move certamente


não é o próprio espaço. Ninguém pode ser palco para si mesmo;
deve possuir uma arena mais ampla para aí se mover. A arena
onde o espaço realiza sua mudança não é nem mesmo o espaço-
tempo de Einstein, pois espaço-tempo é a história do espaço
mudando com o tempo. A arena deve ser algo mais amplo: o
superespaço... Não é dotado de três ou quatro dimensões — é
dotado de um número infinito de dimensões. Um simples ponto
no superespaço representa todo um mundo tridimensional.
Pontos próximos representam mundos tridimensionais
levemente diferentes18.

Superespaço — ou hiperespaço — tem sido um velho arrimo da


267
ficção científica, de parceria com a noção de universos paralelos e
tempo invertido ou multidimensional. Agora, graças aos
radiotelescópios e aceleradores de partículas, tais conceitos estão
adquirindo respeitabilidade acadêmica. Quanto mais singulares forem
os dados experimentais palpáveis, tanto mais singulares se tornarão as
teorias que tentam elucidá-los.
A versão de Wheeler sobre o superespaço apresenta alguns
detalhes interessantes:
O espaço da geometrodinâmica dos quanta pode ser
comparado a um tapete de espuma estendido sobre um terreno
levemente ondulado... As contínuas mudanças microscópicas
havidas no tapete de espuma, à medida que surgem novas
bolhas e desaparecem as antigas, simbolizam as flutuações
quânticas na geometria...19
Outro atributo digno de nota do superespaço de Wheeler é a
conectividade múltipla. Isto significa — usando uma linguagem muito
simples e despretensiosa — que regiões, situadas muito distantes umas
das outras em nosso grosseiro mundo tridimensional, podem ser
temporariamente colocadas em contato direto através de túneis ou
"buracos" no superespaço. Recebem o nome de buracos de caruncho.
Supõe-se que o universo esteja todo crivado de tais buracos de
caruncho, os quais surgem e desaparecem em flutuações infinitamente
rápidas, produzindo formas em contínua mutação — um caleidoscópio
cósmico movido por mão invisível.
7
Um aspecto essencial apresentado pela física moderna é sua
tendência crescentemente holística, baseada na visão de que o todo é
tão necessário para a compreensão de suas partes quanto estas são
necessárias para a compreensão do todo. Um dos primeiros indícios
dessa tendência, surgido no início do século, foi o "Princípio de
Mach", endossado por Einstein. Segundo esse princípio, as
propriedades inertes da matéria terrestre são determinadas pela massa
total do universo que nos circunda. Não existe uma explicação causal
satisfatória para o modo como tal influência é exercida, embora o
Princípio de Mach seja uma parte integral da cosmologia relativista.
São fundamentais as implicações metafísicas — pois daí segue-se não
apenas que o universo como um todo influencia os eventos terrestres e
locais, mas também que os eventos locais exercem uma influência,
268
conquanto diminuta, sobre o universo como um todo. Os físicos
imbuídos de mentalidade filosófica possuem uma consciência vívida
dessas implicações — que trazem à baila um dos antigos provérbios
chineses: "Quem corta uma folha de capim sacode o Universo."
Bertrand Russell observou, petulantemente, que o Princípio de
Mach, embora formalmente correto, "sabe à astrologia", ao passo que
Henry Margenau, professor de Física em Yale, comentou numa
conferência pronunciada na Sociedade Americana de Pesquisa Física:
A inércia não é intrínseca ao corpo. É induzida pela
circunstância de o corpo estar rodeado por todo o universo... Não
conhecemos nenhum efeito físico que transmita essa ação;
raríssimas pessoas se preocupam com um agente físico que
transporte a inércia. Quanto a mim, o Princípio de Mach é tão
misterioso quanto vossos fenômenos físicos inexplicados, e a
formulação do princípio se me apresenta quase igualmente
obscura...20
Passando mais uma vez do macrocosmo para o microcosmo,
defrontamo-nos com o famoso "paradoxo de Einstein-Podolsky-
Rosen." Tem sido objeto de controvérsia desde quando Einstein o
formulou em 1933 e, recentemente, J. S. Bell, um físico teórico de
CERN, deu-lhe uma formulação mais precisa. O "Teorema de Bell"
estabelece que, depois de duas partículas terem interagido e fluído em
direções opostas, a interferência com uma das partículas afetará
instantaneamente a outra partícula, a despeito da distância existente
entre elas. Não se discute a exatidão dos resultados experimentais de
Bell, mas a interpretação deles cria um grande problema, porque
parece implicar uma espécie de "telepatia" entre as partículas em
questão. Eis como David Bohm, professor de Física Teórica do
Birkbeck College, Universidade de Londres, resumiu o assunto (os
grifos são dele):
É do conhecimento geral que a teoria dos quanta apresenta
muitos aspectos surpreendentemente inéditos... No entanto, tem-
se dado muito pouca ênfase sobre aquilo que, a nosso ver, é o
novo detalhe mais fundamentalmente diferente de todos, isto é, a
íntima interconexão de sistemas diversos que não se acham em
contato espacial. Isso tem sido revelado com especial clareza
pelas... bem conhecidas experiências de Einstein, Podolskye
Rosen...
Ultimamente, o interesse sobre tal questão tem sido
269
estimulado pela obra de Bell, que obteve critérios matemáticos
precisos, destacando as conseqüências experimentais desse
detalhe de "entrelaçamento quântico de sistemas distantes"...
Assim, somos levados a uma nova noção de totalidade
inquebrantável que nega a idéia clássica da possibilidade de se
analisar o mundo, separada e independentemente, em suas partes
existentes...21
Devo mencionar mais uma lei da Natureza, aparentemente não
causal: o assim chamado Princípio de Exclusão de Pauli. Wolfgang
Pauli, a quem já tenho citado antes, recebeu o Prêmio Nobel em 1945
por haver descoberto esse princípio. Falando de maneira bem simples,
ele afirma que qualquer uma das "órbitas planetárias" no interior de
um átomo só pode ser ocupada por um elétron em determinado
momento. Caso contrário, resultaria o caos e o átomo cairia em
colapso. Mas por que é assim? A resposta — ou melhor, a ausência de
resposta — aparece claramente nesta página extraída de Margenau
(condensada):
A maior parte das ações organizadoras que ocorrem na
Natureza realizam-se, segundo o Princípio de Pauli, que é
simplesmente um princípio de simetria, uma característica
matemática formal das equações que, no fundo, regulam os
fenômenos da Natureza. De modo quase miraculoso ele dá
existência às forças que aglutinam os átomos em moléculas e
as moléculas em cristais. A impenetrabilidade da matéria, sua
própria estabilidade, podem ser diretamente relacionadas com
o Princípio de Exclusão de Pauli. Ora, esse princípio não
possui, em absoluto, um aspecto dinâmico peculiar. Age como
uma força, embora não seja uma força. Não podemos afirmar
dele que realiza algo por ação mecânica. Não, é algo muito
genérico e indefinível, uma simetria matemática imposta
sobre as equações básicas da Natureza.22
Tais citações (que poderiam ser multiplicadas ao infinito) não
representam vozes isoladas, mas antes um coro de físicos eminentes,
cônscios das implicações revolucionárias da teoria dos quanta e da
nova cosmologia, que estão fadadas a transformar a idéia do homem a
respeito do universo ainda mais radicalmente do que o fez a revolução
copernicana. Mas, como já ficou dito, o público em geral é lento para
tomar consciência dessa mudança. Os dogmas e tabus da ciência
materialista do séc. XIX com relação a espaço, tempo, matéria e
270
energia, contidos dentro de um rígido arcabouço de causalidade e
determinismo, dominam ainda os modos de pensar do público erudito
que se orgulha de sua visão racional, sentindo-se compelido a negar a
existência de fenômenos do tipo PES, que aparentemente contradizem
as "Leis da Natureza." Na verdade, durante os últimos cinqüenta anos,
nossos físicos andaram muito ocupados em descartar sem comiseração
"Leis da Natureza" anteriormente sacrossantas, substituindo-as por
obscuras construções mentais que não podem ser representadas no
espaço tridimensional e cujas implicações quase místicas permanecem
ocultas em jargões técnicos e formalismos matemáticos. Se Galileu
ressuscitasse, com certeza acusaria Heisenberg, Pauli e outros de
"perderem-se em ocultas fantasias."
Mui curiosamente, durante o mesmo período, a parapsicologia
assumiu uma aparência mais "consistente", apoiando-se mais e mais
em métodos estatísticos, controles rigorosos, instrumentos mecânicos
e computadores eletrônicos. Com isso, o clima nos dois campos
parecia estar mudando em direções opostas: os sucessores de Rhine
são, por vezes, acusados de pedantismo insípido, ao passo que os
sucessores de Einstein têm sido acusados de flertar com fantasmas
disfarçados em partículas que não possuem nem massa, nem peso,
nem qualquer posição exata no espaço. Sem dúvida, essas tendências
convergentes são significativas, mas isso não significa que a física há
de fornecer explicações para os fenômenos da parapsicologia, num
futuro próximo ou mesmo distante. O que ambas têm em comum é
uma atitude de desafio ao senso comum e de desafio a "Leis da
Natureza" anteriormente consideradas invioláveis. Ambas são
provocadoras e iconoclastas. E, repetindo mais uma vez, os
desconcertantes paradoxos da física fazem os desconcertantes
paradoxos da parapsicologia parecerem um pouco menos absurdos. Se
distantes regiões do universo podem ser postas em contato através de
buracos de caruncho existentes no superespaço, a telepatia continua
sendo inimaginável? As analogias podem ser traiçoeiras, mas é
encorajador saber que, se o parapsicólogo se equilibra num galho, o
físico se equilibra numa corda esticada.
8
Existe um tipo de fenômeno, até mais misterioso que a telepatia ou
a precognição, que tem intrigado o homem desde o alvorecer da
mitologia, o encontro aparentemente acidental de duas correntes
271
causais não relacionadas, num evento simultâneo que parece, ao
mesmo tempo, muito improvável e muito significativo. Qualquer
teoria que tente levar a sério esses fenômenos implicará
necessariamente num rompimento com nossas categorias de raciocínio
tradicionais ainda mais radical do que o rompimento provocado pelos
pronunciamentos de Einstein, Heisenberg ou Feynman. Certamente,
não é mera coincidência o fato de ter sido Wolfgang Pauli,
descobridor do Princípio de Exclusão, quem colaborou com C. G.
Jung no famoso ensaio deste último: "Sincronicidade: Um Princípio
de Conexão Acausal". Jung criou o termo "sincronicidade" para
significar "a ocorrência simultânea de dois ou mais eventos ligados
entre si pelo significado, mas não causalmente"23. E afirmou que o
fator acausal existente atrás desses acontecimentos deve ser
considerado "igual, em grau, à causalidade, como um princípio de
explicação”24.
"Freqüentemente me pronunciei contra os fenômenos em
questão," escreveu Jung, "... e acabei convencendo-me do quanto
essas experiências interiores significavam para meus pacientes. Na
maior parte dos casos eram coisas sobre as quais as pessoas não falam
por medo de se exporem a um irrefletido ridículo. Causou-me pasmo
verificar o grande número de pessoas que passaram por experiências
semelhantes e o extremo cuidado com que guardavam tal segredo"25.
Aparentemente os suíços são por natureza mais propensos a
guardar segredo do que os ingleses, pois, desde que escrevi As Razões
da Coincidência, tenho recebido uma enxurrada de cartas dos leitores,
narrando coincidências. As mais significativas dentre elas foram
escritas por pessoas que começaram por afirmar solenemente que
atribuir significado às coincidências é um completo contra-senso, mas
não podiam resistir à premente necessidade de contar sua história
favorita do gênero acredite se quiser. Será que no interior de cada
céptico pertinaz existe um místico frágil gritando para sair?
Os leitores que nutrirem interesse em colecionar coincidências
encontrarão uma bela seleção em The Challenge of Chance. Enquanto
eu pesquisava esse vasto acervo de material, começaram a emergir
alguns padrões distintos, apesar de se misturarem com freqüência, ao
passo que, em outros casos, tornava-se difícil distinguir se
determinado evento, com infinitas possibilidades contra o acaso,
deveria ser interpretado como uma manifestação da "clássica" PES ou
como um exemplo de "sincronicidade" acausal. Assim, no tipo
livresco de casos, procura-se uma referência indefinível, abre-se ao
acaso um grosso volume e lá está ela. No tipo de episódios deus ex
272
machina, ocorre uma interferência aparentemente providencial, justo
no momento oportuno, para resolver um problema, ou impedir um
desastre, ou concretizar uma premonição. É interessante notar que tal
interferência ocorre indiscriminadamente em ocasiões trágicas ou
triviais. Uma subcategoria, nesse grupo, é a recuperação
aparentemente miraculosa de objetos perdidos, cujo valor é quase
sempre sentimental, e não monetário. Já nos casos poltergeist, as
tensões emocionais (mais comuns em adolescentes instáveis)
coincidem com graves acontecimentos físicos — e aqui também não
importa se o efeito é dramático ou grotesco. Entre os mais freqüentes
acontecimentos "convergentes" ou "confluentes" (como podemos
chamar a esse tipo de coincidência) estão os encontros inverossímeis,
embora possa parecer que muitos deles tenham sido provocados por
PES. Do ponto de vista racional, os piores de todos são os
agrupamentos de nomes, números, endereços e datas. Finalmente,
existe uma quantidade de casos bem autenticados de premonições ou
admonições de desastres iminentes — mas aqui é particularmente
difícil fazer uma distinção entre PES e sincronicidade ou "eventos
confluentes".
Ainda mais frustrante é a tentativa de traçar uma linha entre as
coincidências significativas que parecem ser produzidas por algum
desconhecido agente além da causalidade física e as coincidências
triviais devidas ao puro acaso, pois tal tentativa deve invocar as leis da
probabilidade, que estão repletas de ciladas — como veremos a seguir.
9
O ensaio de Jung sobre "sincronicidade", publicado em 1952*,
baseou-se, em parte, no livro Das Gesetz der Serie, de Paul
Kammerer, publicado em 1919. Kammerer foi um brilhante biólogo
experimental vienense de convicções lamarckistas, acusado de
falsificar os resultados obtidos, que suicidou-se em 1926, aos 45 anos
de idade**. Durante toda a sua vida foi um homem fascinado pelas
coincidências e, desde os vinte até os quarenta anos de idade, escreveu
um diário delas — como também o fez Jung.
Kammerer definiu seu conceito de "serialidade" como a
*Publicado num só volume com o ensaio escrito por Pauli "Der
Einfluss Archetypischer Vorstellungen auf die Bildung
Naturwissenschaftlicher Theorien bei Kepler" (Jung-Pauli,
Nalurerklärung und Psyche, 1952).
**Ver The Case of the Midwife Toad.
273
concorrência no espaço ou a recorrência no tempo de eventos
relacionados entre si pelo significado mas não pela causalidade. Seu
livro contém exatamente uma centena de exemplos selecionados,
classificados com a meticulosidade de um biólogo devotado à
taxionomia. Ele considerava as coincidências isoladas apenas como os
topos dos icebergs que conseguiram despertar a atenção entre as
onipresentes manifestações de "serialidade". Com isso inverteu o
argumento dos cépticos, segundo o qual nós tendemos a ver
significados por toda parte, porquanto, dentre a multidão de eventos
fortuitos, relembramos somente aqueles poucos que são significativos.
No final da primeira parte, classificatória, de seu livro, Kammerer
concluiu:
Até aqui temo-nos ocupado com as manifestações fatuais
de séries recorrentes, sem tentar uma explicação. Descobrimos
que a recorrência de dados idênticos ou similares em áreas
contíguas de espaço ou tempo é um simples fato empírico que
deve ser aceito e não pode ser explicado pela coincidência —
ou melhor, que faz a coincidência imperar de tal forma que o
próprio conceito de coincidência é negado26.
Na segunda parte, teórica, de seu livro, Kammerer desenvolve sua
teoria de que, coexistindo com a causalidade física, há um princípio
acausal ativo no universo que tende para a unidade na variedade. Sob
alguns aspectos, esse princípio é comparável àquela outra força
misteriosa, a gravidade universal. Mas, enquanto a gravidade atua
indiscriminadamente sobre toda a matéria, esse fator hipotético age
seletivamente para fazer os semelhantes convergirem em espaço e
tempo — ele correlaciona por afinidade ou por alguma espécie de
ressonância seletiva, como diapasões vibrando no mesmo
comprimento de onda. Não podemos saber que meios utiliza esse
agente acausal para interferir na ordem causal das coisas, visto que
opera fora das leis conhecidas da física. No espaço, produz eventos
confluentes, relacionados por afinidades de forma e função; no tempo,
séries igualmente relacionadas:
Assim chegamos à imagem de um mosaico mundial ou de
um caleidoscópio cósmico que, apesar de constantes
modificações e reagrupamentos, também cuida de juntar o
semelhante ao semelhante...27
274

Ninguém precisa ser um jogador profissional para sentir-se atraído


pela Lei da Serialidade, de Kammerer. Muitas línguas possuem uma
frase ou um provérbio para expressá-la. "Das Gesetz der Serie" é um
clichê em alemão cujo equivalente em inglês é "It never rains but it
pours." Algumas pessoas parecem ser propensas às coincidências
como outras são propensas aos acidentes. No final de seu livro,
Kammerer expressa sua crença em que a serialidade é
... onipresente e contínua na vida, na Natureza e no cosmo.
E o cordão umbilical que liga o pensamento, o sentimento, a
ciência e a arte com o ventre do universo que lhes deu vida.28
A principal diferença entre a serialidade de Kammerer e a
sincronicidade de Jung reside no fato de o primeiro focalizar os
acontecimentos seriais no tempo (embora também inclua eventos
simultâneos coincidentes), ao passo que o segundo focaliza os eventos
simultâneos (mas inclui também os sonhos precognitivos que podem
ter ocorrido vários dias antes do evento). Kammerer baseou, em parte,
sua teoria na analogia da gravidade e, em parte, nos ciclos periódicos
observados na biologia e na cosmologia. Algumas de suas incursões
na física apresentam erros ingênuos. Outras passagens revelam
surpreendentes lampejos de intuição — a tal ponto que Einstein teceu
favoráveis comentários a respeito do livro, classificando-o de "original
e de modo nenhum absurdo"2. Por outro lado, Jung usou Pauli como
guia em física teórica mas, no fim das contas, tirou pouco proveito
dela. Suas explicações sobre o "fator acausal" eram totalmente
obscuras, invocando a inconsciência coletiva e seus arquétipos. Isso
provocou um triste desapontamento, apesar de haver contribuído para
transformar a sincronicidade numa palavra de culto.
Merece especial interesse a parte desempenhada por Pauli nesses
acontecimentos. Pauli participava com Kammerer e Jung da crença em
fatores não-causais, não-físicos, operantes no universo — não estava
seu Princípio de Exclusão "agindo como uma força, embora não fosse
uma força"? Ele, provavelmente, desfrutava de uma visão mais
profunda que a da maioria de seus colegas sobre as limitações da
ciência. Além disso, assim como Jung, ele também foi perseguido
durante toda a sua vida por fenômenos do tipo poltergeist30. Aos
cinqüenta anos de idade, laureado com o Prêmio Nobel, Pauli
escreveu um penetrante estudo sobre ciência e misticismo, tendo como
paradigma as obras de Johannes Kepler31. A primeira edição foi
publicada sob a forma de monografia pelo Instituto Jung, em Zurique.
275
Quase no fim do ensaio, Pauli escreveu (grifos do autor):
Hoje nós temos as ciências naturais, mas já não contamos
com uma filosofia da ciência. Após a descoberta dos quanta
elementares, a física viu-se obrigada a renunciar à sua
orgulhosa pretensão de poder entender, em princípio, o todo do
universo. Mas essa situação pode conter a semente de ulteriores
desenvolvimentos que hão de corrigir a anterior orientação
unilateral, caminhando em direção a uma cosmovisão unitária,
em que a ciência é apenas uma parte do todo32.
Esse tipo de dúvida filosófica sobre o "significado atrás de tudo"
não é raro entre os cientistas, quando eles atingem a idade dos
cinqüenta anos. Pode-se quase afirmar que é uma regra. Mas Pauli foi
além da tentativa de maquinar teorias fisicistas para explicar a PES ou
a sincronicidade. Ele sentiu que esse caminho não tinha futuro e que
era mais honesto aceitar o fato de tais fenômenos serem os traços
visíveis de fatores acausais invisíveis — como os traços das partículas
invisíveis na câmara de bolhas. A proposta revolucionária de Pauli foi
de estender o conceito de eventos não-causais do microcosmo (onde
sua legitimidade era reconhecida) para o macrocosmo (onde não o
era). Ele deve ter esperado que, unindo suas forças com Jung, ambos
seriam capazes de elaborar uma teoria acausal que conseguisse
explicar os fenômenos paranormais. Como já vimos, o resultado foi
decepcionante. O desfecho do ensaio de Jung sobre a sincronicidade
foi um curioso diagrama sobre o qual, afirma Jung, ele e Pauli
"finalmente concordaram." Este é o diagrama33:

276
Jung não oferece nenhuma explicação sobre o modo como o
esquema deve funcionar e seus comentários a respeito são tão
obscuros que prefiro confiar ao leitor interessado o trabalho de
pesquisá-los no original. Nesse caso, não se pode escapar à lembrança
da montanha do poeta latino, a qual, tendo concebido, deu à luz um
modesto ratinho. Todavia, foi, sem dúvida, um rato muito simbólico.
Foi a primeira vez que a hipótese de fatores acausais existentes em
todo o universo recebeu o selo conjunto de respeitabilidade, dado por
um psicólogo e um físico, ambos de renome internacional.

10

Naturalmente, a crença em conexões além da causalidade física


não se originou com Kammerer ou Jung. Sua ascendência pode ser
retraçada até Schopenhauer, que exerceu considerável influência sobre
Freud e também sobre Jung. Schopenhauer afirmou que a causalidade
física é apenas um dos princípios que governam o mundo. O outro é
uma entidade metafísica, uma espécie de consciência universal, diante
da qual a consciência individual é "como um sonho comparado com a
realidade." Ele escreveu:

A coincidência é a ocorrência simultânea de eventos não


relacionados causalmente... Se imaginarmos toda corrente
causal que progride no tempo como um meridiano do globo,
poderemos representar os eventos simultâneos como sendo os
círculos paralelos da latitude. ... Em conseqüência, todos os
eventos da vida de um homem poderiam figurar em duas
conexões fundamentalmente diferentes34.

Essa idéia de unidade na diversidade pode ser encontrada por toda


parte, em retrospectiva, até chegarmos à "Harmonia das Esferas"*, dos
pitagóricos, e à "simpatia de todas as coisas", de Hipócrates: "existe
um fluxo comum, uma respiração comum, todas as coisas estão em
simpatia." A doutrina segundo a qual tudo no universo está
estreitamente relacionado, em parte por causas mecânicas, mas
sobretudo por afinidades ocultas (que também respondem pelas
aparentes coincidências) não apenas forneceu os fundamentos para a
magia simpática, a astrologia e a alquimia, mas também serve como
um leitmotiv subjacente aos ensinamentos do Taoísmo e do Budismo,
do Neoplatonismo e dos filósofos do início do Renascimento. Pico
*Sobre a influência dessa concepção na filosofia e poesia elisabetanas, ver The
Sleepwalkers, Parte I, Cap. II.
277
della Mirandola (entre muitos outros) resumiu com clareza essa
doutrina, por volta de 1550 d.C:
Em primeiro lugar, existe a unidade nas coisas, pela
qual cada coisa é una em si mesma, consiste em si
mesma e coerente consigo mesma. Em segundo lugar,
existe a unidade pela qual uma criatura está unida às
outras, e todas as partes do mundo constituem um
mundo35.
Em termos da presente teoria, a primeira metade da citação acima
reflete a atuação da tendência auto-afirmativa e a segunda, a atuação
da tendência integrativa ou autotranscendente, num plano universal.
Podemos também comparar a afirmativa de Pico della Mirandola
com o consenso dos físicos contemporâneos: "É impossível separar do
todo qualquer parte do universo." A essência de ambas as citações,
feitas com um intervalo de quatro séculos, é uma visão holística do
universo que transcende a causalidade física.
11
Um dos segredos mais bem guardados do universo é este: como o
subatômico microcosmo de partículas, que são ao mesmo tempo
ondículas que desafiam o determinismo estrito e a causalidade
mecânica — como esse ambíguo "tapete ondulante de espuma" dá
origem ao sólido e ordenado macrocosmo da experiência diária,
governado pela causalidade estrita?
Os físicos modernos respondem que este fato aparentemente
miraculoso da criação de uma ordem a partir da desordem deve ser
visto à luz da teoria da probabilidade, ou da "lei dos grandes
números". Mas essa lei, como o Princípio de Exclusão de Pauli, não é
explicável por forças físicas. Por assim dizer, ela está suspensa no ar.
Alguns exemplos servirão para ilustrar o assunto.
Os dois primeiros são casos clássicos extraídos do livro de Warren
Weaver sobre a teoria da probabilidade36. As estatísticas do
Departamento de Saúde de Nova York mostram que, em 1955, a
média do número de cães que morderam pessoas, registrada por dia,
foi de 75,3; em 1956, 73,6; em 1957, 73,5; em 1958, 74,5; em 1959,
72,4. Um fato estatístico semelhante ocorreu com os cavalos que
278
desferiram coices fatais em soldados do exército alemão durante o
último século. Aparentemente, foram orientados pela assim chamada
equação de Poisson, da teoria da probabilidade. Os assassinos da
Inglaterra e Gales, embora diferissem pelas características e pelos
motivos, mostraram o mesmo respeito às leis da estatística: desde o
fim da Primeira Guerra Mundial, a média de assassinatos durante
sucessivas décadas foi: de 1920 a 29, 3,84 por um milhão de pessoas;
de 1930 a 39, 3,27 por milhão; de 1940 a 49, 3,92 por milhão; de 1950
a 59, 3,3 por milhão; de 1960 a 69, aproximadamente 3,5 por milhão.
Esses estranhos exemplos mostram a natureza paradoxal da
probabilidade, que vem intrigando os filósofos desde quando Pascal
iniciou tal ramo da matemática — e que von Neumann, o maior
matemático de nosso século, chamou de "magia negra." O paradoxo
consiste no fato de a teoria da probabilidade ser capaz de predizer,
com misteriosa precisão, o resultado final de um grande número de
eventos individuais, embora cada um deles seja por si imprevisível.
Em outras palavras, defrontamo-nos com um grande número de
incertezas que produzem uma certeza, um grande número de eventos
fortuitos criando um legítimo resultado final.
Mas, paradoxal ou não, a lei dos grandes números funciona. O
mistério reside no porquê e no como ela funciona. Ela se tornou um
instrumento indispensável para a física e para a genética, para os
projetistas econômicos, para as companhias de seguro, para os
cassinos e para as pesquisas de opinião — de tal forma que nós
simplesmente aceitamos a magia negra. Assim, quando nos
defrontamos com esses exemplos bizarros de erudição probabilística,
como os casos dos cães e dos cavalos do exército, podemos ficar
levemente intrigados ou deleitados, sem no entanto compreendermos a
natureza universal do paradoxo nem sua relevância para o problema
do acaso e do destino, da liberdade e da necessidade.
Na física nuclear, encontramos surpreendentes analogias com os
imprevisíveis cães que produzem previsíveis estatísticas. Um exemplo
clássico é o declínio radioativo, onde átomos radioativos totalmente
imprevisíveis produzem resultados finais exatamente previsíveis. O
exato momento em que um átomo radioativo há de se desintegrar de
súbito é totalmente imprevisível, seja teórica, seja experimentalmente.
A desintegração não sofre influências de fatores químicos ou físicos,
como a temperatura ou a pressão. Em outras palavras, não depende da
história anterior do átomo, nem de seu ambiente atual. Segundo as
palavras do Prof. Bohm, "ela não tem nenhuma causa", é
"completamente arbitrária, no sentido de não ter absolutamente
279
nenhuma relação com qualquer outra coisa existente no mundo ou que
já tenha existido." (Os grifos são do original.)37 No entanto, ela tem
uma relação oculta, aparentemente acausal, com o resto do mundo,
porque a assim chamada "meia-vida" de qualquer grão de substância
radioativa (isto é, o tempo necessário para a metade dos átomos do
grão se desintegrarem) é rigorosamente fixo e predizível. A meia-vida
do urânio é de 4 milhões e meio de anos. A meia-vida do rádio A é de
3,825 dias. A meia-vida do tório C é de 60,5 minutos. E assim por
diante, até chegarmos a milionésimos de segundos.
No entanto, pode haver flutuações no grau de deterioração do
grão. Em alguns estágios, rumo à data da meia-vida, pode haver um
excesso ou um déficit de átomos desintegrados, fato que ameaça
desorganizar o cronograma. Mas tais desvios da média estatística
serão prontamente corrigidos, observando-se rigorosamente a data da
meia-vida. Que agente exerce esse poder de controle e correção, visto
que a deterioração de átomos individuais não é afetada pelo que ocorre
no resto do grão? Como conhecem os cães de Nova York a hora em
que devem parar de morder e como sabem quando devem perfazer a
cota diária? Como os assassinos da Inglaterra e de Gales são levados a
parar nas quatro vítimas por milhão de pessoas? Que misterioso poder
induz a bola da roleta, após um excesso de "vermelhos", a restaurar o
equilíbrio a longo prazo? Dizem-nos que é "pelas leis da
probabilidade" (ou "pela lei dos grandes números"). Mas essa lei não
tem poderes físicos para impor seus ditames. Ela é impotente — e,
todavia, é virtualmente onipotente.
Poderia parecer que estou exagerando o assunto por mera
perversidade, mas esse paradoxo é deveras vital para o problema da
causalidade. Visto que as correntes causais que levam à decomposição
dos átomos individuais são ostensivamente independentes umas das
outras, devemos admitir que a concretização da previsão estatística de
que a amostra de tório C apresentará uma meia-vida de 60,5 minutos é
em si mesma produto de cego acaso — o que é um absurdo; ou
devemos arriscar-nos cegamente e optar por alguma hipótese
alternativa no campo especulativo de um "agente conectivo acausal",
o qual complementa a causalidade física, no sentido de cada partícula
e ondícula, "mecânico" e "mental", complementarem-se mutuamente.
Tal agente operaria de maneiras diferentes em níveis diferentes: na
forma de "variáveis ocultas", preenchendo as lacunas da causalidade
no nível subatômico; coordenando as atividades dos átomos de tório
C, fisicamente independentes, para forçá-los a respeitar o período da
meia-vida; reunindo o semelhante ao semelhante nos "eventos
280
confluentes" da serialidade e da sincronicidade; e, talvez, gerando os
"campos psi" dos parapsicólogos.
Essa colocação pode parecer muito extravagante, mas na realidade
não é mais extravagante que os paradoxais fenômenos sobre os quais
se baseia. Vivemos submersos num universo de "ondulante espuma
quântica" que incessantemente cria extraordinários fenômenos por
meios que transcendem os conceitos clássicos de causação física. São
desconhecidos, talvez até incognoscíveis para nós, o propósito e o
desígnio desse agente acausal. Mas sentimos por intuição, que, de
alguma maneira, está relacionado com aquele esforço em busca de
formas superiores de ordem e de 'unidade na variedade', esforço esse
observado na evolução do universo como um todo, na evolução da
vida na Terra, da consciência humana e, finalmente, da Ciência e da
Arte. Aceita-se com maior facilidade um derradeiro mistério do que
uma grande profusão de enigmas não relacionados.
Em seu clássico ensaio What is Life?, que já citei acima, Erwin
Schrödinger seguiu uma linha de raciocínio semelhante. À conexão
existente entre os eventos subatômicos totalmente imprevisíveis e seu
resultado coletivo previsível com exatidão, ele chamou de "princípio
da ordem na desordem". E admitiu claramente que esse princípio está
além da causação física:
A desintegração de um único átomo radioativo é observável
(ele emite um projétil que provoca uma cintilação visível numa
tela fluorescente). Mas se tomarmos um determinado átomo,
seu provável tempo de vida é muito menos certo do que o de
um pardal sadio. Na verdade, nada mais que isto pode ser dito a
respeito dele: enquanto ele vive (e isso pode prolongar-se por
milhares de anos) a possibilidade de o átomo explodir dentro de
um segundo continua a mesma, seja ela grande ou pequena. No
entanto, essa evidente falta de determinação individual resulta
na exata lei exponencial da decadência de um grande número
de átomos radioativos da mesma espécie.38
Robert Harvie, co-autor (com Sir Alister Hardy e comigo) de The
Challenge of Chance, comentou a respeito dessa passagem de
Schrödinger:
A ortodoxa teoria dos quanta procura resolver esse
paradoxo apelando para a natureza probabilística da matéria no
nível microscópico. Mas ainda resta outro paradoxo — o da
probabilidade em si. As leis da probabilidade descrevem como
281
um conjunto de simples eventos fortuitos pode contribuir para
uma certeza em larga escala, mas não por quê. Por que os
milhões de núcleos não explodem a um só tempo? Por que
deveríamos supor que uma moeda simetricamente equilibrada
não há de dar "cara" toda vez que a jogamos para cima, agora e
por toda a eternidade? A pergunta é evidentemente
irrespondível...
O princípio "da ordem na desordem" parece ser irredutível,
inexplicavelmente "ele aí está". Perguntar por que, é igual a
perguntar "Por que existe o universo?" ou "Por que o espaço
tem três dimensões?" (se é que tem)39.
Na presente teoria, o princípio da "ordem na desordem" é
representado pela tendência integrativa. Temos visto que esse
princípio pode ser encontrado já entre os antigos pitagóricos. Após um
eclipse temporário, ocorrido durante o reino das ortodoxias
reducionistas na Física e na Biologia, o princípio está novamente em
ascensão, em versões mais sofisticadas. Mencionei a afinidade entre
os conceitos negentropia, de Schrödinger, sintropia, de Szent Györgyi,
élan vital, de Bergson etc. Podemos acrescentar à lista o biólogo
alemão Woltereck, que criou o termo "anamorfose" — adotado por
von Bertalanffy — para designar a tendência da Natureza para criar
novas formas de vida, bem como o "princípio mórfico" ou "o princípio
fundamental do desenvolvimento de padrões", de L. L. Whyte. O que
todas essas teorias apresentam em comum é o fato de aceitarem a
tendência mórfica, ou formativa, ou sintrópica, o esforço da Natureza
para criar ordem na desordem, fazer do caos o cosmo, como princípios
últimos e irredutíveis, além da causação mecânica*.
* Embora a maioria deles não invoque expressamente fatores acausais, esses
estão implícitos quando se considera como "irredutível" a tendência formativa.
Esta minha teoria é ainda mais arriscada, pois sugere
explicitamente que a tendência integrativa opera de ambas as formas,
causal e acausal, permanecendo ambas num relacionamento
complementar, análogo ao da complementaridade da partícula-onda,
na Física. Conseqüentemente, a teoria deve abarcar não apenas os
agentes acausais que operam no nível subatômico, mas também os
fenômenos da parapsicologia e os "eventos confluentes". Já temos
visto que a PES e a "sincronicidade" sobrepõem-se com freqüência, de
tal forma, que um evento supostamente paranormal pode ser
interpretado como um resultado da PES ou também como um caso de
282
"sincronicidade". Mas talvez incorramos em erro quando tentamos
estabelecer uma distinção categórica entre ambas. A física clássica nos
tem ensinado que existem diferentes manifestações de energia,
especialmente da energia cinética, potencial, térmica, elétrica, nuclear
e radiante que podem ser convertidas umas nas outras mediante
processos adequados, à semelhança de moedas permutáveis. A
presente teoria sugere que, da mesma maneira, a telepatia, a
clarividência, a precognição, a psicocinese e a sincronicidade são
meramente manifestações diferentes, sob diferentes condições, do
mesmo princípio universal — a saber, a tendência integrativa
operando por meio de agentes causais e acausais. Como isso ocorre,
ultrapassa nossa capacidade de entendimento. Mas pelo menos
podemos encaixar a evidência dos fenômenos paranormais no
esquema unificado.
12
Entre as exigências básicas para a validação de uma experiência
científica figuram sua repetência e sua previsibilidade. No entanto,
fatos paranormais, quer sejam produzidos em laboratório, quer sejam
espontâneos, são imprevisíveis, caprichosos e relativamente raros. Eis
uma das razões por que os céticos se julgam autorizados a rejeitar os
resultados de quase quarenta anos de experiências de laboratório sobre
PES e PK rigorosamente controladas, apesar da maciça evidência
estatística que, em qualquer outro campo de pesquisa, seria
considerada como prova suficiente para a realidade dos fenômenos.
Mas o critério de repetência aplica-se apenas quando as condições
experimentais são essencialmente idênticas às da experiência original.
E, em se tratando de seres humanos sensíveis, as condições nunca são
exatamente as mesmas, em termos de disposição, receptividade, ou
relacionamento emocional entre o sujeito testado e o aplicador do
teste. Além disso, os fenômenos de PES quase sempre implicam
processos que ultrapassam o controle voluntário. E, se os fenômenos
são de fato desencadeados por agentes acausais, seria ingênuo supor
que podem ser produzidos à vontade.
Existe, no entanto, outra explicação para a aparente raridade e
volubilidade dos fenômenos paranormais, a qual apresenta especial
interesse para nosso contexto. Foi formulada por Henri Bergson, creio
eu, e tem sido repetida por muitos autores de parapsicologia. Por
exemplo, por H. H. Price, ex-Wykeham, professor de Lógica em
Oxford:
283
Parece que as impressões recebidas telepaticamente
encontram certa dificuldade para transpor o limiar e manifestar-
se na consciência. Parece que existe alguma barreira ou algum
mecanismo repressivo que tende a excluí-las da consciência,
uma barreira bastante difícil de transpor, e elas [as impressões]
utilizam toda sorte de instrumentos para superar tal obstáculo...
Muitas vezes, elas só conseguem emergir sob uma forma
distorcida e simbólica (como ocorre também com outros
conteúdos mentais inconscientes). É bem plausível o fato de
muitos de nossos cotidianos pensamentos e emoções serem
telepáticos ou parcialmente telepáticos na origem, mas não são
reconhecidos como tais porque surgem distorcidos e misturados
com outros conteúdos mentais, ao transporem o limiar da
consciência40.
Ao comentar o excerto que acabo de citar, Adrian Dobbs, o
matemático de Cambridge, foi direto ao âmago da questão:
Esta é uma passagem muito interessante. Evoca a imagem
da mente ou do cérebro como portador de um conjunto de
filtros seletivos, destinados a eliminar sinais indesejáveis em
freqüências contíguas, embora alguns desses sinais consigam
infiltrar-se sob forma distorcida, exatamente como numa
captação radiofônica ordinária41.
Cyril Burt, antigo professor de Psicologia no University College
de Londres, retomou a mesma idéia:
Nossos órgãos sensoriais e nosso cérebro operam como uma
complicada espécie de filtro que limita e dirige os poderes
clarividentes da mente de tal maneira que, sob condições normais,
a atenção é concentrada somente sobre aqueles objetos e situações
que apresentam importância biológica para a sobrevivência do
organismo e de sua espécie... Parece que a mente, como norma
geral, rejeita as idéias vindas de outra mente, assim como o corpo
rejeita enxertos vindos de outro corpo42.
A essa altura, o leitor pode estar experimentando um sentimento
de déjà vu, pois apresentei anteriormente algumas outras "teorias dos
filtros" relacionadas com os mecanismos da percepção e com o
processo da evolução. De fato, a hipótese de que existe um sistema de
filtragem que nos protege contra "indesejados" sinais PES não passa
284
de uma extrapolação daquilo que conhecemos a respeito da percepção
sensória normal. Temos ainda presente a famosa "multidão exuberante
e murmurante de sensações", de William James, as quais
bombardeiam constantemente nossos receptores sensoriais, e em
particular nossos olhos e ouvidos. Nossas mentes seriam tragadas pelo
caos, se devêssemos atender a cada um desses milhões de estímulos
que sobre elas se lançam. Por isso, o sistema nervoso central — tanto
como o cérebro — precisa funcionar como uma hierarquia de muitos
níveis de dispositivos analisadores, filtrantes e classificadores "que
eliminam uma grande parte das entradas sensoriais como sendo
'ruídos' irrelevantes, e reúnem a informação importante em padrões
coerentes, antes de apresentá-la à consciência". Por analogia, um
semelhante sistema filtrante pode proteger nossas mentes racionais
contra a "multidão exuberante e murmurante" de mensagens, imagens,
intuições e ocorrências coincidentes, no "campo psicomagnético" que
nos circunda.
Podemos também estabelecer outra analogia entre as hierarquias
filtrantes que protegem a mente contra irrelevantes estímulos de
origem sensorial ou extra-sensorial e as micro-hierarquias genéticas
que protegem o protótipo genético nos cromossomos contra intrusões
bioquímicas e mutações prejudiciais que, do contrário, destruiriam a
estabilidade e a continuidade da espécie (ver pág. 214 e segs.). Além
disso, também me sinto encorajado a sugerir a existência de uma
micro-hierarquia lamarckiana de filtros seletivos que impedem que as
características adquiridas interfiram com o talento hereditário — com
exceção daquelas poucas selecionadas que respondem a alguma
necessidade vital da espécie, resultantes de ininterruptas pressões do
ambiente sobre muitas gerações, até que elas [as características]
passem através do filtro e se tornem parte do talento hereditário do
embrião humano, à semelhança da pele grossa da sola dos pés. Esta é
inegavelmente uma característica adquirida que se tornou hereditária
— embora esteja de acordo com o predominante dogma que nos
impõe aceitar que ela ocorreu por mero acaso.
De fato, como já vimos, os lamarckistas encontraram-se no mesmo
tipo de situação que a dos parapsicólogos: eram incapazes de produzir
uma renovável experiência de laboratório. Até mesmo casos
aparentemente definidos de hereditariedade lamarckiana estavam
sujeitos a diferentes interpretações, a polêmicas sustentadas com
paixão quase teológica e, como último recurso, a acusações de fraude.
Além do mais, os lamarckistas não conseguiram apresentar uma
explicação fisiológica para a hereditariedade das características
285

adquiridas — da mesma forma que os parapsicólogos são incapazes de


elaborar uma explicação física dos fenômenos de PES.
Esse curioso paralelo parece haver passado despercebido dos
lamarckistas e dos parapsicólogos. Não encontrei nenhuma referência
a ele na literatura de ambas as escolas. Entretanto, parece-me
relevante, porque ambas as heresias mostram as falhas das ortodoxias
científicas, sem se habilitarem a oferecer uma alternativa
compreensiva além do "grande mistério central" de Johannsen, ou a da
conclusão de Grasse: "Parece possível que, diante desses problemas, a
biologia seja relegada ao abandono, devendo ceder lugar à
metafísica43".
286
XIV

UMA ESPIADELA PELO BURACO DA


FECHADURA
1
Ao nos aproximarmos do fim da jornada, pode ser útil retornar ao
Prólogo, onde abordei o assunto do repentino surgimento do neocórtex
humano e de seu crescimento a uma velocidade sem precedentes na
história da evolução. Temos visto que uma das conseqüências desse
explosivo processo foi o conflito crônico entre o novo cérebro, que
forneceu ao homem seus poderes de raciocínio, e o arcaico cérebro
antigo, governado pelo instinto e pela emoção. Como resultado, temos
uma espécie mentalmente desequilibrada, marcada com uma inerente
tendência paranóica, a qual é inexoravelmente revelada pela história
humana passada e presente.
Mas a explosão do cérebro no final da Época Plistocena também
levou a outras conseqüências — menos dramáticas, conquanto não
menos abrangentes — as quais ainda resta analisar.
O ponto crucial é este: ao criar o cérebro humano, a evolução
ultrapassou amplamente o objetivo.
Um instrumento foi desenvolvido além das necessidades
de seu possessor... A seleção natural podia ter fornecido ao
selvagem apenas um cérebro um pouco superior ao do
macaco, mas na realidade ele possui um cérebro muito
pouco inferior ao de um indivíduo mediano de nossas
sociedades civilizadas...1
Isso foi escrito por um autor do prestígio de Alfred Russel
Wallace, que co-gerou (se é permitida tal expressão) com Darwin a
teoria da evolução pela seleção natural*. Darwin captou de imediato
as implicações potencialmente desastrosas desse argumento e
*A primeira apresentação pública da teoria ocorreu numa comunicação conjunta,
dirigida por Darwin e Wallace à Linnean Society, em 1858.
287
escreveu para Wallace: "Espero que você não tenha matado de vez o
seu e o meu filho". Mas não encontrou uma resposta satisfatória às
críticas de Wallace, e os discípulos de Darwin as varreram para
debaixo do tapete.
Por que era tão importante essa crítica? Havia duas razões.
A primeira apresenta apenas um interesse histórico, pelo fato de a
objeção de Wallace destruir uma das pedras angulares do edifício de
Darwin. A evolução, segundo a teoria darwiniana e neodarwiniana,
deve progredir a passos lentos, e cada um desses passos deve conferir
ao organismo modificado alguma vantagem seletiva mínima pois, do
contrário, o plano todo não terá nenhum sentido, como o próprio
Darwin afirmou reiteradas vezes. Mas nenhum malabarismo da
imaginação conseguiria encaixar nessa teoria a rápida evolução do
cérebro humano, comparada por alguns antropólogos a uma
"excrescência tumorosa"3. Daí a angustiosa resposta de Darwin e a
subseqüente conspiração de silêncio.
O segundo e, indiscutivelmente, o mais importante aspecto da
crítica de Wallace nem ele mesmo parece ter compreendido
plenamente. Ele enfatizou que o "instrumento" — o cérebro humano
— foi "desenvolvido além das necessidades de seu possessor"4. Mas a
evolução do cérebro humano não apenas ultrapassou as necessidades
do homem pré-histórico, mas também é o único exemplo de evolução
que fornece a uma espécie um órgão que ela não sabe como utilizar;
um órgão de luxo, cujo proprietário levará milhares de anos para
aprender como fazer bom uso dele — caso o consiga algum dia.
Os indícios arqueológicos mostram que o primeiro representante
do Homo sapiens — o homem de Cro-Magnon que entrou em cena há
100 mil anos ou mais — já estava munido de um cérebro cujo
tamanho e forma em quase nada diferiam do nosso cérebro atual.
Entretanto, por mais paradoxal que isto pareça, ele pouco utilizou esse
órgão de luxo. Permaneceu como um analfabeto habitante de cavernas
e, por milênios e milênios, continuou a fazer lanças, arcos e flechas do
mesmo tipo primitivo, embora o órgão que haveria de levar o homem
até a Lua já estivesse lá, pronto para o uso, dentro de seu crânio.
Portanto, a evolução do cérebro ultrapassou o objetivo por um fator
temporal de magnitude astronômica. Não é fácil captar e compreender
esse paradoxo. Em O Fantasma da Máquina, procurei ilustrá-lo
mediante um pequeno lance de ficção científica, por mim intitulado de
"a parábola do presente não solicitado":
"Antigamente, num bazar árabe, trabalhava um pobre
lojista analfabeto chamado Ali. Não sendo muito bom em fazer
288
contas, ele sempre era logrado pelos fregueses, em vez de
lográ-los, como deveria ser. Por isso, todas as noites suplicava
a Alá que lhe desse de presente um ábaco — esse vulnerável
aparelho de somar e subtrair, mediante a manipulação de contas
colocadas ao longo de fios. Mas algum djim malévolo
encaminhou suas preces para a seção errada do Departamento
Celestial de Encomendas Postais e, em conseqüência, certa
manhã, chegando ao bazar, Ali encontrou sua tenda de
mercador transformada num prédio de estrutura metálica de
vários andares, abrigando o último tipo de computador IBM,
com painéis de instrumentos cobrindo todas as paredes, com
milhares de osciladores fluorescentes, mostradores, olhos
mágicos etc, além de um livro de instruções com várias
centenas de páginas, as quais, por ser analfabeto, Ali não podia
ler. No entanto, depois de passar muitos dias mexendo neste ou
naquele mostrador, ele ficou possesso de raiva e começou a dar
pontapés num luminoso e delicado painel. Os choques
descontrolaram um dos milhões de circuitos eletrônicos da
máquina e, passado algum tempo, Ali descobriu, com imensa
alegria, que se chutasse, digamos, aquele painel três vezes e,
em seguida, mais cinco vezes, num dos mostradores aparecia o
número oito. Ele agradeceu a Alá por haver-lhe mandado um
ábaco tão lindo e continuou a utilizar a máquina para somar
dois mais três, ignorando ingenuamente que ela era capaz de
deduzir as equações de Einstein num instante ou predizer as
órbitas dos planetas e das estrelas, com milhares de anos de
antecedência.
Os filhos de Ali e, depois, os seus netos herdaram a
máquina e o segredo de chutar o mesmo painel. Mas foram
necessárias centenas de gerações até aprenderem a usá-la para
os fins de simples multiplicação. Nós próprios somos os
descendentes de Ali e, embora tenhamos descoberto muitas
outras maneiras de pôr a máquina em funcionamento, mesmo
assim aprendemos a utilizar uma fração ínfima do potencial de
seus milhões de circuitos. Pois, o presente não solicitado é,
naturalmente, o cérebro humano. Quanto ao livro de instruções,
foi perdido, se é que alguma vez existiu. Platão afirma que
existiu outrora, mas isso é apenas boato5.
Quando os biólogos falam de "evolução mental" em substituição à
evolução biológica como sendo uma característica específica do
homem, e não existente nos animais, eles geralmente não conseguem
289
ver o cerne do problema. Pois o potencial de aprendizagem dos
animais está inevitavelmente limitado pelo fato de que estes, ao
contrário do homem, fazem uso total — ou quase total — de todos os
órgãos de seu equipamento nativo, incluindo seus cérebros. As
possibilidades dos computadores instalados dentro dos crânios dos
répteis ou dos mamíferos inferiores são exploradas quase à exaustão e,
por conseguinte, não sobra espaço para a aprendizagem cumulativa
nem para a "evolução mental". Apenas no caso do Homo sapiens a
evolução antecipou as necessidades dele num espaço de tempo de
tamanha magnitude que ele está apenas começando a utilizar alguns
dos desconhecidos e inexplorados potenciais de aproximadamente 10
trilhões de neurônios do cérebro e de suas quase inexauríveis
conexões e cruzamentos. Desse ponto de vista, a história da Ciência,
da Filosofia e da Arte é o lento processo da mente que aprende pela
experiência a concretizar o potencial do cérebro. As novas fronteiras a
serem conquistadas situam-se nas circunvoluções do córtex.
Os motivos pelos quais esse processo de aprender a usar nossos
cérebros foi tão vagaroso, espasmódico e repleto de contratempos
podem ser resumidos numa fórmula bem simples: o cérebro antigo
atrapalhou o progresso do novo, ou atuou como um freio. Na história
européia, os únicos períodos em que houve um crescimento deveras
cumulativo de conhecimentos científicos limitam-se aos três grandes
séculos da Grécia antes da conquista Macedônia e aos quatro séculos
desde a Renascença até o presente. O órgão que podia gerar tais
conhecimentos sempre esteve lá dentro dos crânios dos homens,
durante o tenebroso interregno de dois mil anos, mas não lhe foi dada
a oportunidade de produzir esses conhecimentos. Durante a maior
parte da história humana registrada e durante os períodos ainda mais
longos da pré-história, as maravilhosas potencialidades da dádiva não
solicitada conseguiram apenas manifestar-se mediante serviços
prestados a crenças arcaicas, baseadas na emoção, saturadas de tabus,
ou mediante as pinturas das cavernas de Dordogne, motivadas por um
poder mágico, ou mediante a interpretação de imagens arquetípicas
através da linguagem da mitologia, ou mediante a arte religiosa da
Ásia e da Idade Média cristã. A tarefa da razão consistiu em atuar
como ancilla fidei, como serva da fé, não importando que se tratasse
da fé dos feiticeiros e curandeiros, dos teólogos, dos escolásticos, dos
materialistas dialéticos, dos seguidores do Presidente Mao ou do Rei
Mbo-Mba. A falha não estava em nossas estrelas, mas antes no cavalo
e no crocodilo que trazemos dentro de nossos crânios.
290
2
As conseqüências históricas da dupla personalidade do homem
foram exaustivamente analisadas em capítulos anteriores. Minha
intenção, ao abordar novamente este assunto, consiste em ressaltar
uma bem diversa conseqüência dessa situação, a qual suscita
problemas filosóficos básicos. Retomando mais uma vez nossa
metáfora: os descendentes de Ali ficaram tão impressionados e tão
satisfeitos com a capacidade aparentemente inexaurível do
computador (nos felizes momentos em que lhes era permitido operar
sem impecilhos) que acabaram por se tornar vítimas da compreensível
ilusão de que o computador era potencialmente onisciente. Tal ilusão
foi uma conseqüência direta do fato de a evolução haver ultrapassado
seu objetivo. Em outras palavras, os poderes do cérebro para aprender
e raciocinar mostraram-se tão grandes, quando comparados aos de
outros animais e também quando comparados às necessidades
imediatas de seus possuidores, que estes chegaram a se convencer de
que o inexplorado potencial desse cérebro era inexaurível e seu poder
de raciocínio, ilimitado. Em verdade, não havia razão para crer que
existissem problemas para os quais o computador não tivesse resposta,
só porque ele não estava "programado" para responder a eles. Pode-se
dar a essa atitude o nome de "ilusão racionalista" — a crença de que a
solução dos últimos mistérios do universo não passa de uma mera
questão de tempo, graças aos ilimitados poderes de raciocínio do
cérebro.
Essa ilusão foi compartilhada pela maioria dos sucessores de Ali,
inclusive pelos mais eminentes dentre eles. Aristóteles acreditava que
quase todas as coisas dignas de serem descobertas com relação aos
aspectos do universo já haviam sido descobertas e que não havia
ficado nenhum problema sem solução6. Descartes deixou-se embalar
de tal forma pelo êxito da aplicação dos métodos matemáticos à
Ciência que julgou ser capaz de completar sozinho todo o edifício da
nova Física. Os mais cautelosos de seus contemporâneos, dentre os
pioneiros da revolução científica, pensaram que não levaria mais de
duas gerações para arrancar da Natureza o seu último segredo. "Os
fenômenos particulares das artes e das ciências são, na realidade,
apenas um punhado", escreveu Sir Francis Bacon. "A descoberta de
todas as causas e ciências há de ser um trabalho de apenas uns poucos
anos7". Dois séculos mais tarde, em 1899, o eminente biólogo alemão
e apóstolo de Darwin, Ernst Haeckel, publicou seu livro Die
Welträtsel — Os Enigmas do Universo — (obra que se tornou a bíblia
291
de minha juventude). O livro abordava sete grandes enigmas, seis dos
quais já estavam "definitivamente resolvidos", incluindo a estrutura da
matéria e a origem da vida. O sétimo — a experiência subjetiva do
livre-arbítrio — não passava de "uma ilusão sem existência real" e por
isso não restava mais nenhum enigma a resolver, o que era muito
gratificante. Provavelmente, Sir Julian Huxley partilhava dessa
opinião quando escreveu: "No campo da evolução, a genética
apresentou sua resposta básica, e os biólogos evolucionistas estão
livres para pesquisar outros problemas"8.
A filosofia do reducionismo foi um produto direto da ilusão
racionalista. "A invenção [isto é, a descoberta] de todas as causas e
ciências há de ser um trabalho de apenas uns poucos anos."
Substituamos "anos" por "séculos" e teremos captado a essência do
credo reducionista, segundo o qual o potencialmente onisciente
cérebro do homem posteriormente há de explicar todos os enigmas do
universo, reduzindo-os a "nada além" da interação de elétrons, prótons
e quarks. Pasmados com os benefícios oriundos da dádiva não
solicitada, não ocorreu aos beneficiários que, embora os poderes do
cérebro humano sejam imensos sob alguns aspectos, são todavia
fortemente limitados sob outros aspectos, no tocante aos significados
fundamentais. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a
evolução "ultrapassou" seu objetivo, ela também ficou
lamentavelmente aquém desse objetivo, com respeito aos problemas
essenciais e existenciais, para os quais não foi "programada". Esses
problemas básicos incluem os paradoxos do infinito e da eternidade
("Se o universo começou com o Grande Estrondo, o que havia antes
do Estrondo?"), a curvatura do espaço segundo a relatividade, a noção
de universos paralelos e interpenetrantes, os fenômenos da
parapsicologia e dos processos acausais, e todos os problemas
relacionados aos significados fundamentais (do universo, da vida, do
bem e do mal etc.). Quero citar (pela última vez) um célebre físico, o
Prof. Henry Margenau, da Universidade de Yale:
Tornar multidimensional o tempo é um artifício utilizado
com freqüência para explicar a precognição. Isso permite um
genuíno retrocesso do tempo, que possibilitaria que intervalos
positivos em uma direção de tempo se tornassem negativos
("efeito antes da causa") em outra direção. Em princípio, isso
representa um esquema válido, e desconheço qualquer crítica
que possa eliminá-lo por não ser um método científico. No
entanto, se tal esquema for aceitável, deve ser desenvolvida uma
292
métrica de espaço-tempo inteiramente nova...9
Mas nós não estamos "programados" para essa nova métrica; não
somos capazes de visualizar dimensões espaciais somadas ao
comprimento, largura e altura; nem conseguimos ver o tempo
correndo de amanhã para ontem, e assim por diante. Somos incapazes
de visualizar tais fenômenos, não porque sejam impossíveis, mas
porque o cérebro humano e o sistema nervoso não estão programados
para esses fenômenos.
As limitações de nossa programação — de nosso equipamento
original — tornam-se ainda mais evidentes em nossos órgãos
sensoriais receptores. O olho humano pode captar apenas uma fração
muito diminuta do espectro das radiações eletromagnéticas; nosso
ouvido está restrito a uma gama de freqüências sonoras mais estreita
que a do ouvido dos cães; nosso olfato é incoerente e nossa
capacidade de orientação espacial não pode ser comparada com a das
aves migratórias. Até aproximadamente o séc. XIII, o homem não se
havia apercebido de que estava cercado por forças magnéticas, e ainda
hoje não possui nenhuma consciência sensível dessas forças, nem das
chuvas de neutrinos que, aos milhões, penetram e atravessam seu
corpo. Tampouco se apercebe de outros desconhecidos campos e
influências que operam dentro e ao redor dele. Se o aparelho sensitivo
de nossa espécie está programado para perceber apenas uma parte
infinitamente pequena da fantasmagoria cósmica, então por que não
admitir que seu aparelho cognitivo pode estar sujeito a limitações
igualmente severas de programação — isto é, que é incapaz de
apresentar respostas para os problemas fundamentais "do significado
de tudo"? Admitir tal fato nem diminuiria a mente do homem, nem
desencorajaria o homem a fazer pleno uso de sua mente, pois as
mentes criativas tentarão sempre fazer exatamente isso, "como se" as
respostas estivessem ao alcance da mão.
Admitir as inerentes limitações do poder de raciocínio do homem
leva automaticamente a uma atitude mais tolerante e mais aberta
diante dos fenômenos que parecem desafiar a razão — como a física
dos quanta, a parapsicologia e os eventos acausais. Tal mudança de
atitude também haveria de pôr um fim à grosseira máxima
reducionista, segundo a qual o que não pode ser explicado não pode
existir. Um tipo de seres humanos desprovidos de olhos, tais como os
cidadãos do Country of the Blind (O País dos Cegos), de H. G. Wells,
haveria de rejeitar como grosseira tolice nossa pretensão de sermos
capazes de perceber objetos distantes, sem contato direto.
293
Um provérbio chinês nos ensina que é inútil falar a respeito do mar a
uma rã que vive no fundo de um poço.
Temos ouvido todo um coro de laureados com o Prêmio Nobel
afirmar que a matéria é apenas energia disfarçada, que a causalidade
está morta, que o determinismo está acabado. Se isso é verdade,
merecem um funeral público nos bosques de oliveiras de Academo,
com um réquiem de música eletrônica. Já é tempo de nos livrarmos da
camisa-de-força imposta ao nosso panorama filosófico pelo
materialismo do séc. XIX, combinado com o reducionismo e a ilusão
racionalista. Se esse panorama tivesse caminhado a par das mensagens
revolucionárias saídas das câmaras de bolhas e dos radiotelescópios,
em vez de se arrastar um século atrás delas, de há muito tempo já
teríamos sido libertados dessa camisa-de-força.
Uma vez reconhecido esse fato simples, poderemos tornar-nos
mais receptivos a estranhos fenômenos que ocorrem dentro de nós e
ao nosso redor, os quais uma ênfase unilateral no determinismo
mecânico nos fez ignorar. Poderemos também sentir a aragem que
sopra através das fendas do edifício causal, incluir fenômenos
paranormais em nossos reformulados conceitos de normalidade, e
compreender que estávamos vivendo no País dos Cegos — ou no
fundo de um poço.
São imprevisíveis as conseqüências de tal mudança de
mentalidade. Segundo o Prof. H. H. Price, "a pesquisa física é um dos
mais importantes ramos de investigação já abordados pela mente
humana", e essa pesquisa "pode transformar todo o panorama
intelectual em que se baseia nossa presente civilização10". Essas
palavras, vindas de um professor de Lógica de Oxford, são muito
incisivas, mas não penso que sejam exageradas.
É bem possível que nesse campo específico do talento físico nós
sejamos — juntamente com nossas outras deficiências — uma espécie
menos privilegiada. O grande esquema da estratégia evolutiva não
exclui a existência de aleijões biológicos, como o coala, nem a de
raças autodestrutivas, como a nossa raça paranóica. Se for este o caso,
precisamos viver "como se" não fosse assim, e tentar fazer o melhor
possível — como estamos tentando fazer o melhor possível com
respeito a nossas pendentes sentenças de morte, enquanto indivíduos.
As limitações do computador de Ali podem condenar-nos ao papel
de Peeping Toms* junto ao buraco da fechadura da eternidade. Mas
podemos, ao menos, tentar retirar o material que obstrui esse buraco e
que está bloqueando até mesmo nossa limitada visão.
294
* Peeping Toms, segundo a lenda inglesa, foi um alfaiate de Coventry, cidade da
Inglaterra central. Ele foi condenado à cegueira, por haver espiado pelo buraco da
fechadura a Lady Godiva, benfeitora da cidade, no séc. XI. (N. dos T.)
3
No Prólogo deste livro, destaquei o fato de nossa atual situação
não contar com nenhum precedente na História. Vou repetir outra vez:
em todas as gerações anteriores, o homem precisava haver-se com a
perspectiva de sua morte como indivíduo. Mas a presente geração é a
primeira a defrontar-se com a perspectiva da morte de nossa espécie.
O Homo sapiens entrou em cena há cerca de 100 mil anos, o que não
passa de um piscar de olhos na escala de tempo da evolução. Se o
homem viesse a desaparecer agora, sua ascensão e queda teriam sido
um episódio muito breve, não celebrado nem lamentado por outros
habitantes de nossa galáxia. Atualmente, sabemos que outros planetas
na vastidão do espaço estão fervilhantes de vida; esse breve episódio
provavelmente jamais chegou a seu conhecimento.
Há apenas algumas décadas, era comum pensar-se que o
surgimento da vida a partir de compostos químicos inanimados deve
ter sido um evento extremamente improvável e, portanto,
extremamente raro, que deve ter ocorrido apenas uma única vez em
nosso privilegiado planeta, e em nenhum outro lugar mais. Além
disso, pensava-se que a formação de sistemas solares, semelhantes ao
nosso, também era um acontecimento raro, e que os planetas capazes
de abrigar seres vivos deveriam ser ainda mais raros. Mas tais
suposições, eivadas de "chauvinismo terrestre", têm sido refutadas
pelos rápidos avanços da astrofísica. Atualmente, os astrônomos
aceitam, de modo geral, a tese de que a formação de sistemas
planetários, incluindo planetas habitáveis, é "um evento comum"* e
que os compostos orgânicos, potencialmente capazes de dar origem à
vida, estão presentes tanto em nossa vizinhança imediata, em Marte,
como nas nuvens de poeira intersideral das nebulosas distantes. Além
disso, descobriu-se que determinada classe de meteoritos contêm
materiais orgânicos cujos espectros são idênticos aos dos esporos
parecidos com pólen, encontrados nos sedimentos pré-cambrianos.¹¹
* Prof. Carl Sagan (Centre for Radiophysics and Space Research, Cornell
University), durante o Congresso CETI, em 1971. CETI (Communication with Extra-
terrestrial Intelligence, isto é, Comunicação com a Inteligência Extraterrestre) foi
uma promoção da Academia Nacional de Ciências dos EUA e da Academia Soviética
de Ciências, e contou com a participação de destacados cientistas de ambos os
países. Seus anais (publicados pela MIT Press, em 1973) representam um marco
importante no estudo dos problemas relacionados com a vida extraterrestre e com os
possíveis métodos de estabelecer contatos com formas alienígenas de vida.
295
Sir Fred Hoyle e seu colega Wickranashinghe, propuseram (em 1977)
uma teoria que considera "as nuvens pré-estelares de moléculas, tais
como as que existem na nebulosa Órion, como os mais naturais
"berços" da vida. Os processos que ocorrem em tais nuvens levam ao
início e à disseminação da atividade biológica na galáxia... Parece
agora muito provável que a transformação da matéria inorgânica em
sistemas biológicos primitivos está acontecendo mais ou menos
continuamente no espaço entre as estrelas”12.
Quanto aos corpúsculos semelhantes ao pólen encontrados nos
meteoritos, os autores sustentam ser possível que "representem
primitivas 'protocélulas' interestelares, num estado de morte
aparente13." Atualmente, "cerca de 100 ton. de material meteorítico
entram todos os dias na atmosfera terrestre; mas em épocas geológicas
anteriores a média de acumulação deve ter sido mais elevada". Parte
desse material pode ter-se originado nos "berços de vida" — as nuvens
de poeira anteriores à formação das estrelas.
Por conseguinte, as doutrinas do "chauvinista terrestre" se
tornaram insustentáveis, como tantas outras afagadas crenças da
ciência do séc. XIX. Não estamos sozinhos no universo — nem somos
os únicos expectadores no teatro, cercados por cadeiras vazias. Ao
contrário, o universo ao nosso redor está borbulhante de vida, a
começar por primitivas "protocélulas" que flutuam no espaço
interestelar, até milhões de avançadas civilizações muito adiante da
nossa — "muito adiante" podendo significar a distância que temos
percorrido desde nossos ancestrais répteis ou amebianos. Julgo essa
perspectiva confortante e divertida. Em primeiro lugar, é bom saber
que não estamos sós, que temos companhia lá fora entre as estrelas, de
maneira que, se desaparecermos, não há de fazer muita diferença, e o
drama cósmico não será apresentado para uma casa vazia. É
intolerável a idéia de que somos os únicos seres conscientes nesta
imensidão, e de que, se perecermos, a consciência também há de
desaparecer. Vice-versa, o conhecimento de que existem bilhões de
seres em nossa galáxia e em outras também, seres infinitamente mais
luminosos que nós, pobres enfermos, pode levar àquela humildade e
àquela autotranscendência que constituem a fonte de toda experiência
religiosa.
Isso me conduz a uma consideração talvez ingênua, embora eu a
considere plausível, a respeito da natureza das inteligências e
civilizações extraterrenas. Segundo uma estimativa bastante generosa,
a civilização terrestre (desde o início da agricultura, da linguagem
296
escrita etc.) tem cerca de dez mil anos. Naturalmente, é de todo irreal
fazer conjeturas sobre a natureza de civilizações extraterrenas que são
alguns milhões de anos mais antigas que a nossa. Por outro lado, é
perfeitamente razoável presumir que mais cedo ou mais tarde —
digamos, no decorrer de seus primeiros dez mil anos — cada uma
dessas civilizações tenha descoberto as reações termonucleares — isto
é, tenha atingido o ano zero de seu próprio calendário. Desse ponto em
diante, a seleção natural — ou melhor, o "herbicida seletivo", como eu
o chamei — assume o comando, numa escala cósmica. As civilizações
doentes, engendradas por fracassos biológicos, mais cedo ou mais
tarde hão de agir como seus próprios executores e desaparecer de seu
planeta poluído. Aquelas civilizações que sobrevivem a esses e outros
testes de sanidade hão de crescer, ou já cresceram, tornando-se uma
elite cósmica de semideuses. Para falar de modo mais comedido, é
muito confortante pensar que, graças à atuação do herbicida cósmico,
sobreviverão apenas as "boas" dentre essas civilizações, ao passo que
as "más" aniquilar-se-ão a si mesmas. É, sem dúvida, agradável saber
que o universo é um lugar reservado para as boas civilizações e que
nós estamos cercados por elas. As religiões tradicionais adotam um
ponto de vista menos caritativo a respeito da administração cósmica*.
*A freqüente pergunta por que essas civilizações avançadas não se comunicam
conosco ultrapassa os objetivos da presente obra. O leitor encontrará algumas
observações e referências bibliográficas sobre o assunto no Apêndice IV.
4
Quero concluir este livro com uma espécie de credo, cuja origem
remonta a quase quarenta anos atrás, à Guerra Civil Espanhola. Em
1937, fiquei detido durante vários meses na prisão nacionalista de
Sevilha, por suspeita de espionagem, ameaçado de morte14. Durante
esse tempo, confinado numa solitária, tive algumas experiências que
me pareceram semelhantes ao "sentimento oceânico" dos místicos, as
quais posteriormente tentei descrever numa narrativa
autobiográfica**. Chamei essas experiências de "as horas de janela".
O resumo que segue, embora formulado um tanto vagamente, reflete o
que se pode chamar de "credo de um agnóstico":
** The Invisible Writing (escrito em 1953).
As "horas da janela" haviam-me propiciado uma certeza
inabalável de que existe uma ordem superior de realidade, e de
que somente esta ordem imprime significado à existência. Mais
tarde, cheguei a chamá-la de "a realidade da terceira ordem". O
297
acanhado mundo da percepção sensorial constitui a primeira
ordem; esse mundo perceptivo está envolvido pelo mundo
conceitual, que contém fenômenos não perceptíveis
diretamente, tais como os átomos, os campos eletromagnéticos,
ou o espaço curvo. Esta segunda ordem de realidade preenche
os vazios e dá significado à absurda fragmentação do mundo
sensitivo.
Do mesmo modo, a terceira ordem de realidade envolve e
interpenetra a segunda e lhe dá sentido. Ela contém fenômenos
"ocultos" que não podem ser captados ou explicados nem ao
nível sensitivo nem ao nível conceitual e, no entanto, invade
esporadicamente esses dois níveis, como meteoros espirituais
que riscam o céu abobadado dos primitivos. Assim como a
ordem conceitual desmascara os enganos e as distorções dos
sentidos, assim também a "terceira ordem" revela que, no
seguinte nível superior, o tempo, o espaço e a causalidade, o
isolamento, a separação e as limitações espaço-temporais do
ego são meras ilusões óticas. Se os enganos do primeiro tipo
forem tomados segundo seu valor aparente, então o Sol deve
mergulhar todas as tardes no mar e um cisco no olho deve ser
maior que a Lua. E se o mundo conceitual for erroneamente
aceito como realidade última, o mundo acaba se tornando uma
fábula igualmente absurda, contada por um idiota ou por
elétrons idiotas, que fazem crianças indefesas serem
atropeladas por automóveis, e pequenos camponeses da
Andaluzia serem baleados no coração, na boca e nos olhos, sem
motivo algum. Assim como ninguém consegue sentir a atração
de um ímã em sua própria pele, assim também ninguém pode
esperar captar em termos concretos a natureza da realidade
última. Ela é um texto escrito com tinta invisível. Mas, embora
ninguém possa lê-la, o conhecimento de que ela existe é
suficiente para alterar o contexto da existência da pessoa, e leva
as ações dessa pessoa a se amoldarem ao texto.
Gosto de meditar sobre a seguinte metáfora. O capitão de
um navio faz-se ao largo com uma ordem lacrada em seu bolso,
e só tem permissão de abrir essa ordem em alto-mar. Espera
ansioso por esse momento em que toda incerteza findará, mas
quando chega tal momento e ele rasga o envelope, encontra
apenas um texto invisível que desafia qualquer tentativa de
tratamento químico. De quando em vez uma palavra se torna
visível, ou surge um desenho mostrando um meridiano, e em
298
seguida tudo some novamente. O capitão jamais saberá as
palavras exatas da ordem, nem saberá se a executou
corretamente ou se falhou em sua missão. Mas a consciência de
levar a ordem em seu bolso, mesmo que não alcance decifrá-la,
faz esse capitão pensar e agir de maneira bem diversa daquela
do capitão de um cruzeiro turístico ou de um navio pirata.
Eu também gosto de pensar que os fundadores de religiões,
os profetas, os santos e os visionários foram capazes, por
alguns momentos, de ler um fragmento do texto invisível. Em
seguida, acrescentaram palavras a esse fragmento,
dramatizaram-no e ornaram-no tanto que eles próprios já não
conseguiam mais distinguir quais as partes autênticas".
299
APÊNDICES
I
Em adição ao atomismo e ao holismo — o
conceito de hólon*
* Esta versão publicada de um estudo apresentado no Simpósio Beyond
Reductionism, realizado em Alpbach em 1968, deve servir como sumário da Parte I,
"Esboço de um Sistema" (Capítulos I a IV). Inevitavelmente, algumas passagens são
repetitivas e outras, bastante técnicas. O leitor comum pode saltar, sem prejuízos, os
Apêndices I a III.
Isto deverá constituir um ensaio sobre a Teoria Geral dos Sistemas
— o que se afigura o mais apropriado, uma vez que Ludwig von
Bertalanffy, o fundador dessa teoria, está sentado aqui ao meu lado.
Parece igualmente acertado que eu incorpore em meu escrito uma
frase de Ludwig em Problems of Life1. É a seguinte: "A organização
hierárquica por um lado e as características dos sistemas abertos por
outro são princípios fundamentais da natureza viva."
Se combinarmos esses dois princípios fundamentais,
acrescentando-lhes uma pitada de cibernética, obteremos um modelo
teórico-sistemático da Auto-reguladora Ordem Hierárquica Aberta,
cuja sigla será AOHA. Pretendo analisar algumas das propriedades
desse modelo AOHA, como uma alternativa para o modelo E — R da
causação linear, derivado da mecânica clássica, o qual somos
aparentemente unânimes em rejeitar. Posso apresentar aqui apenas um
rápido esboço da idéia, mas já tentei arrolar de maneira mais
sistemática os axiomas e proposições a ela relacionados, num
apêndice de meu último livro2. Essa lista aparece também no final do
presente estudo, como uma espécie de Tractatus Lógico Hierarchicus.
Algumas dessas proposições podem parecer triviais, outras se baseiam
em evidências incompletas e outras ainda necessitarão de correções ou
especificações. Mas todas podem servir de base para uma discussão.
300
HIERARQUIAS E VELHAS CARTOLAS
Quando alguém fala sobre organização hierárquica como um
princípio fundamental da vida, muitas vezes esbarra numa forte
resistência emocional. Na verdade, hierarquia é uma palavra disforme,
repleta de associações eclesiásticas e militares, e transmite a algumas
pessoas a impressão errônea de uma organização rígida ou autoritária.
(Talvez a assonância com "hierático", que é algo completamente
diferente, seja uma das causas dessa confusão.) Além disso, o termo é,
com freqüência, usado incorretamente para mencionar apenas uma
ordem de graduação numa escala ou escada linear (por exemplo, as
"hierarquias de hábitos familiares", de Clark Hull). Mas isso não
condiz em absoluto com o que o termo deve significar. Seu símbolo
correto não é uma escada rígida, mas uma árvore-viva — um modelo
de organização em muitos níveis, estratificada, que se ramifica; um
sistema que se expande em subsistemas, que por sua vez se desdobram
em novos subsistemas de ordem inferior, e assim por diante; uma
estrutura que traz em seu bojo subestruturas etc.; um processo que
gera subprocessos e assim por diante. Paul Weiss afirmou: "O
fenômeno da estrutura hierárquica é um fenômeno real, apresentado a
nós pelo objeto biológico, e não uma ficção de um cérebro
especulativo." A hierarquia é, ao mesmo tempo, um instrumento
conceitual, um modo de pensar, uma alternativa para a concatenação
linear de eventos arrancados de seus contextos estratificados
multidimensionalmente.
Todas as estruturas complexas e todos os processos com uma
característica relativamente estável apresentam organização
hierárquica, e isso se aplica igualmente quando tratamos de sistemas
inanimados, de organismos vivos, de organizações sociais, ou de
padrões de comportamento. O lingüista que pensa basicamente
segundo os termos do modelo hierárquico de Chomsky4 sente uma
reação de déjà vu — como a definiu Mc-Neill — diante da hierarquia
intracelular do fisiólogo. E isso pode igualmente estender-se à
apresentação que Bruner faz da estrutura hierárquica da ação
voluntária. Sob esse aspecto essencial — e também sob outros que
ainda mencionarei — esses processos em campos inteiramente
diferentes são, na verdade, isomórficos. O diagrama da árvore
hierárquica pode servir de modo igualmente perfeito para representar
as ramificações da evolução das espécies — a árvore da vida e sua
projeção na taxionomia. Serve para representar a diferenciação
gradual aos tecidos no desenvolvimento embrionário. E pode também
301
servir como diagrama estrutural da arquitetura das partes embutidas
nas partes dos organismos ou das galáxias, ou como um esquema
funcional para a análise do comportamento instintivo feita pelo
etólogo5 ou para a análise do mecanismo de geração de frases feita
pelo psicolingüista. Esse diagrama pode representar a hierarquia
locomotora dos membros, junções, músculos individuais, e assim
descendo até as fibras, fibrilas e filamentos6 ou, na direção inversa,
prosseguindo até a filtragem e o processamento dos impulsos
sensórios desde a periferia até o centro. Poderia até ser visto como um
modelo para o índice de assuntos da Biblioteca do Congresso e para a
organização do conhecimento nos depósitos de nossas memórias,
como um diagrama organizacional das administrações
governamentais, militares e comerciais; e assim por diante.
Essa aplicabilidade quase universal do modelo hierárquico pode
levantar a suspeita de que o modelo é logicamente vazio, e isso
haveria de se transformar em mais um fator de resistência contra ele.
Geralmente, tal resistência assume a forma daquilo que se pode
chamar de reação "e daí": "tudo isso é um velho truque, é auto-
evidente" — seguida por um non sequitur c "de qualquer maneira,
onde está sua evidência?" Pois bem, a hierarquia pode ser um truque
conhecido, mas eu gostaria de sugerir que, se uma pessoa a trata com
algum carinho, podem sair alguns coelhos bem vivos de dentro dessa
cartola.

EVOLUÇÃO E ORDEM HIERÁRQUICA


Um dos meus exemplos favoritos para ilustrar os méritos da
ordem hierárquica é a divertida parábola inventada por Herbert Simon,
cuja ausência todos nós lamentamos. Já a mencionei em outras
ocasiões, mas quero repeti-la aqui em breves palavras. A parábola
refere-se a dois relojoeiros, Hora e Tempo. Ambos fabricam relógios
formados por mil peças cada um. Hora monta seus relógios peça por
peça. Por isso, quando ele interrompe o trabalho ou derruba um
relógio antes de terminá-lo, este se desmonta em fragmentos e ele
precisa recomeçar tudo de novo. Tempo, por seu turno, monta
subconjuntos de dez peças cada. Dez desses constituem o relógio
completo. Se ocorre algum distúrbio, Tempo precisa repetir, na pior
das hipóteses, nove operações de montagern e, na melhor das
hipóteses, nenhuma. Se estabelecermos a média de um distúrbio para
cada cem operações, então Hora levará quatro mil vezes mais tempo
para montar um relógio — em vez de um dia, ele precisará de onze
anos. E se, no lugar de peças mecânicas, nós colocarmos aminoácidos,
moléculas de proteína, organelas e assim por diante, a relação entre as
escalas de tempo torna-se astronômica.
302
Essa é uma vantagem fundamental da utilização do método
hierárquico. A segunda é, evidentemente, a incomparavelmente maior
estabilidade e resistência contra choques do tipo de relógio fabricado
por Tempo, além de sua aptidão para receber consertos e
aperfeiçoamentos. Simon conclui:
Os sistemas complexos evoluirão a partir de sistemas simples
com rapidez muito maior se existirem formas intermediárias
estáveis, do que se não existirem. No primeiro caso, as formas
complexas resultantes hão de ser hierárquicas. Basta apenas
aprofundar um pouco o argumento para explicar a evidente
predominância de hierarquias entre os complexos sistemas que a
Natureza nos apresenta. Dentre as formas complexas possíveis,
as hierarquias são as únicas que tiveram tempo para evoluir7.

Se existe vida em outros planetas, podemos presumir com certeza


que, seja qual for sua forma, ela deve estar organizada
hierarquicamente.
Há muito tempo os fabricantes de automóveis descobriram que
não compensa desenhar um novo modelo a partir do nada, começando
ao nível dos componentes elementares. Eles utilizam os já existentes
subconjuntos — motores, freios etc. — pois cada qual foi
desenvolvido a partir de longas experiências anteriores, e introduzem
modificações relativamente pequenas em alguns desses subconjuntos.
A evolução segue a mesma estratégia. Uma vez alcançada uma
patente, a evolução se agarra tenazmente a ela — como Thorpe
observou, ela segue seus conservadores e imutáveis caminhos. A
estrutura, o órgão ou o aparelho patenteado adquire uma espécie de
existência autônoma como subconjunto. O mesmo arranjo de
organelas funcionam nas células dos ratos e dos homens; a mesma
estrutura de proteína contráctil serve ao movimento ondulante da
ameba e aos músculos dos dedos do pianista; o mesmo desenho
homólogo é mantido nos membros vertebrados anteriores do homem,
do cão, do pássaro e da baleia. A loi du balancement de Geoffroy de
St. Hilaire e a transformação do crânio de um babuíno em crânio de
um homem, apresentada por d'Arcy Thompson8, seguindo
harmoniosas deformações de uma coordenada rótula cartesiana,
ilustram ainda melhor as hierárquicas limitações impostas ao desenho
evolutivo.
303

HÓLONS AUTÔNOMOS

A estabilidade evolutiva desses subconjuntos — organelas, órgãos,


sistemas de órgãos — reflete-se em seu notável grau de autonomia ou
autogoverno. Cada um deles — um pedaço de tecido ou um coração
inteiro — é capaz de funcionar in vitro como um todo quase
independente, mesmo quando isolado do organismo ou transplantado
para outro organismo. Cada qual é um subtodo que, em relação a suas
partes subordinadas, comporta-se como um todo auto-suficiente e, em
relação a seu superior, controla-se como uma parte dependente.
Quando aplicada a qualquer de seus subconjuntos, essa relatividade
dos termos "parte" e "todo" configura mais uma das características
gerais das hierarquias.
Novamente, a grande evidência desse detalhe tende a induzir-nos a
negligenciar suas implicações. Uma parte, como geralmente usamos a
palavra, significa algo fragmentário e incompleto, que por si só não
teria existência autêntica. Por outro lado, há uma tendência entre os
holistas de usar a palavra "todo" ou Gestalt como algo completo em si
mesmo, que não requer ulterior explicação. Mas todos e partes, neste
sentido absoluto, não existem em lugar nenhum, nem no domínio dos
organismos vivos, nem nas organizações sociais. O que encontramos
são estruturas intermediárias numa série de níveis em ordem
ascendente de complexidade, cada qual possuindo duas faces voltadas
para direções opostas: a face voltada para os níveis inferiores é a de
um todo autônomo e aquela voltada para cima é a de uma parte
dependente. Em outro lugar, propus a palavra "hólon" para designar
esses subconjuntos com face de Jano.
O conceito de hólon destina-se a suprir o elo que falta entre o
atomismo e o holismo e a substituir a maneira dualista de pensar em
termos de "partes" e "todos", que está tão profundamente enraizada
em nossos hábitos mentais, por um enfoque estratificado e de muitos
níveis. Um todo organizado hierarquicamente não pode ser "reduzido"
a suas partes elementares. Mas pode ser "dissecado" em suas
ramificações constituintes de hólons, representados pelos nódulos do
diagrama da árvore, enquanto as linhas que ligam os hólons
representam os canais de comunicação, de controle ou de transporte,
segundo o caso.
304

REGRAS FIXAS E ESTRATÉGIAS FLEXÍVEIS

O termo hólon pode ser aplicado a qualquer subtodo estável de


uma hierarquia orgânica, cognitiva ou social, que apresenta
comportamento governado por regras e/ou constância gestáltica
estrutural. Assim, os hólons biológicos são "sistemas abertos"10 auto-
reguladores, governados por um conjunto de regras fixas que
respondem pela coerência e estabilidade do hólon, bem como por sua
forma específica de estrutura e função. A esse conjunto de regras
podemos chamar de o cânon do hólon*. O cânon determina o aspecto
fixo, invariável, do sistema aberto em seu estado permanente
(Fliessgleichgewicht — equilíbrio dinâmico); define seu padrão e
estrutura. Em outros tipos de hierarquias, o cânon representa os
códigos de conduta dos hólons sociais (família, tribo, nação etc.),
incorpora as "regras do jogo" dos rituais instintivos ou das habilidades
adquiridas (hólons comportamentais); incorpora as regras de
pronúncia, gramática e sintaxe na hierarquia da linguagem; os
"esquemas" de Piaget nas hierarquias cognitivas, e assim por diante. O
cânon representa as limitações impostas a qualquer processo ou
comportamento governado por regras. Mas essas limitações não
aniquilam os graus de liberdade do sistema; deixam espaço para
estratégias mais ou menos flexíveis, guiadas pelas contingências do
ambiente real do hólon.
*Cfr. as "relações organizacionais" ou "leis da organização" apresentadas pelos
primeiros autores sobre organização hierárquica (por exemplo, Woodger, 1929 e
Needham, 1941) e as "condições do sistema" na teoria geral do sistema.

A essa altura, torna-se indispensável fazer uma clara e categórica


distinção entre o cânon fixo, invariável, do sistema e suas estratégias
flexíveis (plásticas, variáveis). Alguns exemplos servirão para ilustrar
a validade dessa distinção. Em ontogenia, o ápice da hierarquia é o
zigoto, e os hólons em níveis sucessivos representam estágios
sucessivos do desenvolvimento dos tecidos. Cada passo na
diferenciação e especialização impõe ulteriores limitações ao potencial
genético do tecido, mas a cada passo este retém suficiente
flexibilidade de crescimento para seguir esta ou aquela trilha
evolutiva, dentro do campo de sua competência, guiado pelas
contingências do ambiente das células — a "estratégia dos genes", de
Waddington. Passando do desenvolvimento embrionário para as
atividades instintivas do animal adulto, verificamos que as aranhas
tecem teias, os pássaros constroem ninhos segundo cânones
invariáveis e peculiares a cada espécie, mas sempre utilizando
estratégias flexíveis, guiados pela situação ambiental: a aranha pode
pendurar sua teia em três, quatro ou mais pontos de sustentação, mas o
resultado será sempre um polígono regular. Em habilidades
305
adquiridas, como o jogo de xadrez, as regras do jogo definem os
movimentos permitidos, mas a escolha estratégica de determinado
movimento depende das circunstâncias — a distribuição das figuras
no tabuleiro. Nas operações simbólicas, os hólons são estruturas
cognitivas governadas por regras e recebem diferentes denominações
como "sistemas de referência", "universos de discursos", "algoritmos"
etc., cada qual seguindo sua "gramática" ou cânon específico; e as
estratégias aumentam em complexidade nos níveis superiores de cada
hierarquia. Tem-se a impressão de que a vida, em todas as suas
manifestações, desde a morfogênese até o pensamento simbólico, é
governada por regras do jogo que lhe garantem ordem e estabilidade e
ao mesmo tempo lhe permitem flexibilidade. E essas regras, sejam
inatas sejam adquiridas, são apresentadas em forma de código nos
vários níveis da hierarquia, a começar pelo código genético até chegar
às estruturas do sistema nervoso responsável pelo pensamento
simbólico.

GATILHOS E FILTROS

Pretendo agora discorrer brevemente sobre algumas características


específicas daquilo que se pode chamar vagamente de hierarquias de
saída, não importando se o "produto" é um bebê ou uma sentença
falada em inglês. Por mais que seus produtos difiram, todas as
hierarquias de saída parecem seguir um modelo clássico de operação,
baseado no princípio do disparador de gatilho, segundo o qual um
implícito sinal em código, que pode ser relativamente simples, aciona
mecanismos complexos e preestabelecidos.
Seja-me novamente permitido apresentar alguns exemplos. Em
filogenia, Waddington12 e outros demonstraram cabalmente que uma
única mutação genética favorável pode atuar como um gatilho para
liberar uma espécie de reação em cadeia que afeta de maneira
harmoniosa todo um órgão. Em ontogenia, a punção com uma fina
agulha de platina em um ovo não fertilizado de rã ou de ovelha
desencadeia a partenogênese. Os genes agem como gatilhos químicos,
catalisando reações. O implícito alfabeto de quatro letras da cadeia
ADN é desdobrado no explícito alfabeto de vinte letras dos
aminoácidos. Os indutores ou evocadores, inclusive os "organizadores
gerais" de Spemann, mais uma vez demonstram ser agentes químicos
relativamente simples que não necessitam ser específicos da espécie
para ativar os potenciais genéticos do tecido. Em comportamento
instintivo, existem disparadores de um tipo muito simples — o ventre
306
vermelho do esgana-gata [um peixe de água doce], a marca sob o bico
de uma espécie de gaivotas — que desencadeiam o comportamento
apropriado13. Na utilização de habilidades adquiridas, temos o mesmo
processo de gradual execução dos detalhes dos comandos implícitos
emanados do ápice da hierarquia, comandos tais como "risque um
fósforo e acenda este cigarro", ou "assine seu nome", ou "use sua
máquina geradora de sentenças" para transformar uma imagem não
verbalizada em inervações das cordas vocais.
O ponto a enfatizar é que esse processo de explicação, da intenção
para a execução, não pode ser descrito em termos de uma cadeia linear
de unidades E—R, mas apenas como uma série de etapas discretas de
um "abre-te, sésamo", ativado por uma fechadura com segredo, para
outro "abre-te, sésamo". Esse hólon ativado, seja um departamento do
governo seja um rim vivo, possui seu cânon próprio que determina o
padrão de sua atividade. Logo, o sinal vindo de escalões superiores
não necessita especificar o que o hólon deve fazer; o sinal precisa
apenas impelir o hólon a agir, mediante uma mensagem codificada.
Uma vez lançado à ação, o hólon concretizará o comando implícito
numa forma explícita, ativando suas subunidades em ordem
estratégica apropriada, guiado por realimentações e provimentos
advindos de seu meio ambiente. Falando de modo geral, o hólon é um
sistema de relações que é representado no seguinte nível superior
como uma unidade, isto é, como um "relatum".
Se nos detivermos agora nas hierarquias de entrada da percepção,
as operações procedem, naturalmente, na direção inversa, dos ramos
periféricos da árvore para o seu ápice, e em vez de disparadores de
gatilhos temos o tipo oposto de mecanismos: uma série de filtros,
esquadrinhadores ou classificadores, através dos quais o tráfego de
entrada deve passar em sua subida da periferia para o córtex. De
início, temos a inibição lateral, a familiarização e, presumivelmente,
algum controle eferente dos receptores. Nos níveis superiores estão os
mecanismos responsáveis pelos fenômenos da estabilidade visual e
acústica, os instrumentos de esquadrinhamento e filtragem que
respondem pela identificação de padrões no espaço e no tempo, além
de nos capacitarem a abstrair os universais e eliminar os particulares.
A queixa informal: "Minha memória parece uma peneira" pode ser o
fruto de uma compreensão intuitiva desses instrumentos de filtragem
que operam primeiro ao longo dos canais de entrada e depois ao longo
dos canais de estocagem.
Como captamos um único instrumento numa sinfonia? A grande
307
miscelânea de sons que chegam ao tímpano é comprimida numa onda
de pressão linear, com uma única variável. Para reconstituir o timbre
de um instrumento, para identificar harmonias e melodias, para
apreciar o fraseado, o estilo e o humor, devemos abstrair padrões no
tempo, assim como abstraímos padrões visuais no espaço. Mas, como
o sistema nervoso faz isso? Vou tocar para vocês os compassos
iniciais do Trio do Arquiduque. Analisem suas reações, pois nenhum
manual de psicologia que eu conheço apresentará a vocês a mais tênue
indicação. [Ouvem-se os acordes iniciais do Trio do Arquiduque, de
Beethoven.] Se alguém examinar o disco com lentes de aumento,
sentir-se-á tentado a fazer a ingênua pergunta por que o sistema
nervoso não produz engramas por esse método simples de codificação,
em vez de ser tão absurdamente complicado. Naturalmente, a resposta
é que um engrama linear desse tipo seria completamente inútil para
fins de análise, comparação e reconhecimento de padrões de entrada.
A cadeia é um modelo sem valia; não podemos prescindir do modelo
da árvore.
Nas hierarquias motoras, uma intenção implícita ou um comando
generalizado é particularizado, pormenorizado passo a passo, em sua
descida para a periferia. Nas hierarquias perceptivas, deparamos com
o processo oposto. A entrada periférica é mais e mais
desparticularizada, despida de irrelevâncias durante sua subida para o
centro. A hierarquia de saída concretiza, a hierarquia de entrada
abstrai. A primeira opera por meio de dispositivos de disparo e a
segunda, por meio de dispositivos de filtragem ou esquadrinhamento.
Quando penso em escrever a letra R um gatilho ativa um hólon
funcional, um padrão automático de contrações musculares, que
produz a letra R segundo minha caligrafia específica. Quando eu leio,
um dispositivo de filtragem em meu córtex visual identifica a letra R,
a despeito da mão específica que a escreveu. Os gatilhos liberam
produtos complexos, por meio de um simples sinal codificado. Os
filtros funcionam de maneira oposta: convertem entradas complexas
em simples sinais codificados.

"ABSTRAÇÃO" E "LUMINOSIDADE"

Permitam-me abordar com brevidade os fenômenos da memória e


inquirir se o enfoque hierárquico é capaz de projetar alguma luz
adicional sobre eles. Uma pessoa assiste a um programa de televisão.
308
As palavras exatas de cada ator são esquecidas quando ele pronuncia a
frase seguinte, conservando-se apenas o significado delas. Um dia
depois, consegue-se apenas relembrar a seqüência das cenas que
formaram o enredo. Decorrido um mês, tudo o que se recorda é que se
tratava da fuga de um gangster ou de dois homens e uma senhora
numa ilha deserta. O mesmo ocorre geralmente com o conteúdo de
romances que lemos e de episódios que vivemos. A experiência
original foi despojada de seus detalhes, reduzida a um esboço
esquemático. Ora, essa esqueletização da estrada antes de ser
armazenada e a gradual deteriorização do material estocado
significariam um terrível empobrecimento da memória, caso esta fosse
a história completa — a memória não passaria de uma coleção de
empoeirados resumos, qual borra ressequida no fundo de um copo de
vinho cujo sabor se evolara. Mas existem mecanismos
compensadores. Eu consigo reconhecer uma melodia, independente do
instrumento em que é tocada, e posso reconhecer o timbre de um
instrumento, independente da melodia que nele se executa. Várias
hierarquias entrosadas estão em ação, cada uma delas utilizando seus
próprios critérios de relevância. Uma abstrai a melodia e trata tudo o
mais como ruído, a outra abstrai o timbre e trata a melodia como
ruído. Por conseguinte, nem toda a informação rejeitada como
irrelevante por um sistema de filtragem fica irremediavelmente
perdida, pois ela pode ter sido armazenada por outra hierarquia de
filtragem com diferentes cânones de relevância. Portanto, a recordação
tomar-se-ia possível mediante a cooperação de várias hierarquias
entrosadas, as quais podem pertencer a diferentes modalidades de
sentidos — por exemplo, a visão e o olfato. Ou, o que parece menos
óbvio, também pode haver algumas hierarquias distintas, com
diferentes critérios ou relevâncias, operando dentro da mesma
modalidade de sentido. A recordação poderia, pois, ser comparada ao
processo de impressão policromada, pela superposição de vários
blocos de cores. Naturalmente, isso é especulação, embora uma parca
evidência a favor da hipótese possa ser encontrada numa série de
experiências realizadas por J. J. Jenkins e por mim14*. Outros testes
nesta direção podem ser elaborados sem grandes dificuldades.
* Ver Apêndice II.
Estou ciente de que a hipótese está em aparente contradição com
os experimentos realizados por Penfield, os quais provocam o que
parece uma total recordação de experiências passadas, mediante
estímulos elétricos aplicados em determinados pontos do lóbulo
309
temporal do paciente. Mas a contradição pode ser eliminada se
incluirmos entre os critérios de relevância também critérios de
relevância emocional que decidem se uma entrada é digna de ser
armazenada. Um detalhe pode ser emocionalmente relevante (num
nível consciente ou inconsciente) e será retido com clareza quase
fotográfica ou cinematográfica. Podemos chamar a isso de tipo
luminoso de memória, que é impressa, tornando-se distinta da
memória abstrativa, que esquematiza. Memórias luminosas podem ser
relacionadas às imagens eidéticas, e podem até, ao contrário das
memórias abstrativas, originar-se no sistema límbico.16

ARBORIZAÇÃO E RETICULAÇÃO

Tenho usado os termos hierarquias "entrosadas" ou "entrelaçadas".


Naturalmente, as hierarquias não operam num vácuo. Esse truísmo
relativo à interdependência de processos num organismo é,
provavelmente, a principal causa de confusão que dificulta a visão de
sua estrutura hierárquica. É como se a visão da folhagem de galhos
entrelaçados numa floresta nos levasse a esquecer que os galhos
pertencem a árvores distintas. As árvores são estruturas verticais. Os
pontos de contato dos galhos de árvores vizinhas formam redes
horizontais em vários níveis. Sem as árvores, não haveria nem
entrelaçamento nem rede. Sem as redes, cada árvore permaneceria
isolada, e não haveria integração de funções. A arborização e a
reticulação parecem ser princípios complementares na arquitetura dos
organismos. Nos universos simbólicos do discurso, a arborização está
representada na denotação "vertical" (definição) dos conceitos e a
reticulação, em suas conotações "horizontais" em redes associativas.
Isso nos traz à mente a sugestão de Hyden, segundo a qual o mesmo
neurônio, ou a mesma população de neurônios, pode ser membro de
vários "clubes" funcionais.

ORDEM HIERÁRQUICA E CONTROLE DE


REALIMENTAÇÃO

O exemplo mais evidente de hierarquias entrosadas é o sistema


sensório-motor. A hierarquia sensitiva processa informações e as
310
transmite num constante fluxo ascendente, algumas das quais atingem
o ego consciente localizado no ápice. O ego toma decisões que são
decifradas pela corrente descendente de impulsos sobre a hierarquia
motora. Mas o ápice não é o único ponto de contato entre os dois
sistemas. Eles estão unidos por redes entrelaçadas em vários níveis
inferiores. No nível ínfimo, a rede consiste em reflexos semelhantes
ao rotuliano. São atalhos entre o fluxo ascendente e o descendente,
comparáveis às vias de acesso que permitem a conexão entre opostas
correntes de tráfego numa auto-estrada. No seguinte nível superior
encontram-se as redes de habilidades e hábitos sensório-motores, tais
como os de datilografar ou de dirigir um carro, que não requerem a
atenção dos centros mais altos — exceto quando algum distúrbio os
descontrola. Mas basta um pequeno cachorro cruzar de inopino a
estrada escorregadia bem defronte ao motorista, e este ver-se-á na
contingência de tomar uma decisão "de alto nível": ou afundar o pé
nos freios, pondo em risco a segurança dos passageiros, ou atropelar o
cachorro. É nesse nível, quando os prós e os contras se equilibram de
maneira precária, que desponta a experiência subjetiva da livre
escolha e da responsabilidade moral.
Mas as rotinas ordinárias da existência não requerem tais decisões
morais, e nem mesmo demasiada atenção consciente. Elas operam por
intermédio de rampas de realimentação e rampas dentro de rampas,
que formam as redes entrelaçadas e de muitos níveis entre as
hierarquias de entrada e de saída. Enquanto tudo corre bem e nenhum
cachorro cruza a estrada, a estratégia de andar de bicicleta ou de
dirigir um carro pode ser deixada para o piloto automático do sistema
nervoso — o timoneiro cibernético. Deve-se, contudo, evitar usar
como uma fórmula mágica o princípio do controle de realimentação.
O conceito de realimentação sem o conceito de ordem hierárquica é
semelhante ao sorriso sem o gato. Todas as rotinas adquiridas seguem
um padrão preestabelecido, segundo certas regras do jogo. Estas são
fixas, mas permitem contínuos ajustamentos a situações variáveis do
ambiente. A realimentação pode operar somente dentro dos limites
estabelecidos pelas regras — pelo cânon da habilidade. A parte
desempenhada pela realimentação é a de controlar, a cada passo, o
progresso da operação, para saber se esta ultrapassa ou não atinge o
objetivo, para saber como mantê-la equilibrada, quando intensificar o
ritmo e quando parar. Mas a realimentação não pode alterar o padrão
intrínseco da habilidade. Citando as palavras de Paul Weiss17, no
Simpósio de Hixon:
A estrutura da entrada não produz a estrutura da saída, mas
311
simplesmente modifica atividades nervosas intrínsecas, que
possuem uma organização estrutural própria.

Uma das diferenças vitais entre os conceitos E — R e AOHA é


que, segundo o primeiro, o ambiente determina o comportamento,
enquanto, segundo o conceito AOHA, a realimentação produzida pelo
ambiente apenas guia ou corrige ou estabiliza padrões de
comportamento preexistentes.
Além disso, o intercâmbio entre as hierarquias sensitiva e motora
funciona em ambos os sentidos. A entrada orienta a saída e a mantém
em equilíbrio; mas a atividade motriz, por seu turno, guia a percepção.
O olho deve filtrar. Seus movimentos, grandes e pequenos —
flutuação, oscilação, tremor — são indispensáveis à visão, pois uma
imagem estabilizada na retina se desintegra em escuridão18. O mesmo
ocorre com a audição: quando se tenta recordar um tom, o que se faz?
Começa-se a cantarolá-lo. Os estímulos e as respostas foram
absorvidos pelas rampas dentro das rampas de realimentação, nas
quais os impulsos correm em círculos, como os gatinhos que
perseguem suas caudas.

UMA HIERARQUIA EM AMBIENTES

Vamos conduzir mais um passo à frente essa pesquisa sobre o


significado da atual terminologia e investigar o que exatamente quer
significar esta adequada palavra "ambiente". Quando estou dirigindo
meu carro, o ambiente em contato com meu pé direito é o pedal do
acelerador, e sua elástica resistência à pressão fornece uma
realimentação táctil que ajuda a manter estável a velocidade do carro.
O mesmo se aplica à "sensação" do volante em minhas mãos. Mas os
meus olhos abrangem um ambiente muito mais vasto que o de meus
pés e de minhas mãos; eles determinam a estratégia global da ação de
dirigir. A criatura hierarquicamente organizada que eu sou está, de
fato, funcionando numa hierarquia de ambientes, guiada por uma
hierarquia de realimentações.
Uma vantagem dessa interpretação operacional reside no fato de
que a hierarquia de ambientes pode ser ampliada indefinidamente.
Quando o enxadrista olha fixamente o tabuleiro à sua frente, tentando
visualizar várias situações nos três próximos movimentos, é guiado
por realimentações extraídas de ambientes imaginários. A maior parte
de nossos pensamentos, planos e criações opera em tais ambientes
312
imaginários. Mas — para citar Bartlett19 — "todas as nossas
percepções são construções inferenciais", coloridas pela imaginação e
por isso a diferença é mera questão de graus. A hierarquia está aberta
no topo.
MECANIZAÇÃO E LIBERDADE
Uma atividade aprendida, como a de escrever uma carta,
subdivide-se em subabilidades que, em níveis sucessivamente
inferiores da hierarquia, se tornam cada vez mais mecanizados,
estereotipados e previsíveis. É vasta a escolha de assuntos a serem
tratados numa carta. O passo seguinte, a construção de frases, ainda
oferece um grande número de alternativas, embora esteja mais
delimitado pelas regras da gramática, pelo conhecimento pessoal do
vocabulário etc. As regras de ortografia são fixas, não permitindo
espaço livre para estratégias flexíveis. E, finalmente, as contrações
musculares que comprimem os tipos da máquina de escrever são
inteiramente automatizadas. Portanto, uma subabilidade ou hólon
comportamental no nível (n) da hierarquia tem mais graus de
liberdade (uma variedade maior de escolhas estratégicas alternativas,
permitidas pelo cânon) do que um hólon no nível (n-1).
Entretanto, todas as habilidades, com o aumento do domínio e
com a prática, tendem a tornar-se rotinas automatizadas. Enquanto
adquirimos uma habilidade, precisamos concentrar-nos em cada
detalhe daquilo que estamos fazendo. A seguir, a aprendizagem
começa a condensar-se em hábito, assim como o vapor se condensa
em gotas. Com o aperfeiçoamento da prática, nós lemos, escrevemos,
datilografamos, dirigimos "automaticamente" ou "mecanicamente".
Por isso, estamos a todo momento transformando atividades "mentais"
em "mecânicas". Em circunstâncias inesperadas, porém, o processo
pode ser invertido. Dirigir o carro por uma estrada conhecida é uma
rotina automatizada. Mas quando aquele cachorro cruza a estrada,
deve ser feita uma escolha estratégica que está acima da competência
da rotina automatizada, para a qual o piloto automático em meu
sistema nervoso não foi programado, e a decisão deve ser entregue a
escalões superiores. A mudança de controle de uma atividade em
andamento, de um nível para outro nível superior da hierarquia — do
comportamento "mecânico" para o "consciente" — parece constituir a
essência da tomada consciente de decisões e da experiência subjetiva
do livre arbítrio.
313
A tendência para a progressiva mecanização de habilidades
apresenta um lado positivo: ela se ajusta ao princípio da parcimônia.
Se eu não conseguisse bater "automaticamente" os tipos da máquina
de escrever, não poderia concentrar-me no sentido. Do lado negativo,
a mecanização, assim como o rigor mortis, afeta primeiro as
extremidades — os ramos subordinados mais baixos da hierarquia —
mas também tende a espalhar-se para cima. Se uma habilidade é
executada nas mesmas condições invariáveis, seguindo o mesmo
curso invariável, ela tende a degenerar para uma rotina estereotipada e
seus graus de liberdade se congelam. A monotonia acelera a
escravidão ao hábito. E, se a mecanização invade o ápice da
hierarquia, o resultado é o rígido formalista, o homme automate de
Bergson. Como escreveu von Bertalanffy, "os organismos não são
máquinas, mas podem, até certo ponto, tornar-se máquinas, congelar-
se como máquinas20.
Vice-versa, um ambiente variável exige um comportamento
flexível e reverte a tendência para a mecanização. No entanto, o
desafio do ambiente pode exceder um limite crítico, onde não mais é
possível enfrentá-lo com as costumeiras rotinas, embora flexíveis,
porque as tradicionais "regras do jogo" não se mostram mais
adequadas para resolver a situação. Então surge uma crise. Como
resultado teremos ou um colapso do comportamento, ou
alternativamente o surgimento de novas formas de comportamento, de
soluções originais. Estas têm sido observadas em todo o reino animal,
começando pelos insetos, passando pelos ratos até chegar aos
chimpanzés, e apontam para a existência de inesperados potenciais no
organismo vivo, os quais permanecem inibidos ou adormecidos nas
rotinas normais da existência, e só aparecem nas circunstâncias
excepcionais. Esses potenciais prenunciam os fenômenos da
criatividade humana, que devem continuar incompreensíveis para o
teórico do E—R, mas surgem sob uma nova luz quando tratados do
ponto de vista hierárquico.
AUTO-AFIRMAÇÃO E INTEGRAÇÃO
Os hólons constituintes de uma hierarquia orgânica ou social são
entidades com face de Jano: voltados para cima, em direção ao ápice,
funcionam como partes dependentes de um todo maior; voltados para
baixo, funcionam como todos completos, de pleno direito. Neste
contexto, "autonomia" significa que as organelas, as células, os
músculos, os neurônios, os órgãos, todos possuem ritmo e padrão
intrínsecos, muitas vezes manifestados espontaneamente, sem
314
estímulo externo, e significa ainda que todos tendem a manter e a
afirmar seu característico padrão de atividade. A tendência auto-
afirmativa é uma característica fundamental e universal dos hólons,
manifestada em todos os níveis de cada tipo de hierarquia: nas
propriedades reguladoras do campo morfogenético, desafiando o
transplante e a mutilação experimental; na persistência dos rituais
instintivos, dos hábitos adquiridos, das tradições tribais e dos
costumes sociais; e até mesmo na caligrafia de uma pessoa, que esta
pode modificar, mas não o suficiente para enganar um perito. Sem
essa tendência auto-afirmativa de suas partes, os organismos e as
sociedades perderiam sua articulação e estabilidade.
O aspecto oposto do hólon é sua tendência integrativa a funcionar
como parte integral de um todo mais amplo, existente ou em evolução.
Suas manifestações também são universais, desde a "docilidade" dos
tecidos embrionários, passando pela simbiose das organelas na célula,
até chegarmos às variadas formas de laços coesivos, seja nos
rebanhos, seja nas famílias de insetos, seja ainda nas tribos humanas.
Assim chegamos a uma polaridade entre a tendência auto-
afirmativa e a integrativa dos hólons em todos os níveis. Essa
polaridade tem fundamental importância para o conceito de AOHA.
De fato, ela está implícita no modelo da hierarquia de muitos níveis,
porque a estabilidade da hierarquia depende do equilíbrio das duas
tendências opostas de seus hólons. Empiricamente, a polaridade
postulada pode ser traçada em todos os fenômenos da vida. Em seu
aspecto teórico, ela não provém de nenhum dualismo metafísico, mas
pode antes ser considerada como uma aplicação da Terceira Lei do
Movimento, de Newton (ação e reação), aos sistemas hierárquicos.
Podemos até estender a polaridade à natureza inanimada: onde quer
que exista um sistema dinâmico relativamente estável, dos átomos às
galáxias, a estabilidade é mantida pelo equilíbrio de forças opostas,
uma das quais pode ser centrífuga ou separativa ou de inércia e a
outra, uma força centrípeta ou atrativa ou coesiva, e essas forças
conservam as partes em seu devido lugar no todo maior, mantendo-o
unido.
O mais fértil campo de aplicação do esquema AOHA talvez seja o
estudo das emoções e desordens emocionais na escala individual e
social. Em situações de grande tensão, a parte afetada de um
organismo pode tornar-se superestimulada e tender a escapar do
controle coibitivo do todo21. Isso pode levar a mudanças patológicas
de natureza irreversível, comparáveis aos tumores malignos com
proliferação incontrolável de tecidos, que fugiram aos freios
315
genéticos. Numa situação extremada, praticamente qualquer órgão ou
função pode fugir temporária e parcialmente ao controle. No ódio e no
pânico, o mecanismo simpático-renal sobrepõe-se aos centros
superiores que normalmente coordenam o comportamento; quando o
sexo é excitado, parece que as gônadas sobrepujam o cérebro. A idée
fixe, a obsessão do maníaco, são hólons cognitivos praticando
excessos. Existe toda uma gama de desordens mentais em que alguma
parte subordinada da hierarquia mental exerce seu domínio tirânico
sobre o todo, começando pela insidiosa dominação dos complexos
"reprimidos" e indo até as grandes psicoses, nas quais grandes nacos
da personalidade parecem ter-se "separado", levando uma existência
quase independente. As aberrações da mente humana provêm, com
freqüência, da perseguição obsessiva a alguma meia-verdade, tratada
como se fosse a verdade completa — um hólon disfarçando-se num
todo.
Quando passamos das hierarquias orgânicas para as hierarquias
sociais, novamente descobrimos que, em situações normais, os hólons
(clãs, tribos, nações, classes sociais, grupos profissionais) vivem numa
espécie de equilíbrio dinâmico com seu ambiente natural e social.
Contudo, em situações de forte pressão, quando as tensões
ultrapassam um limite crítico, algum hólon social pode tornar-se
superexcitado e tender a afirmar-se a si mesmo, em detrimento do
todo, assim como ocorre com um órgão superexcitado. Deve-se
ressaltar que o cânon que define a identidade dos hólons sociais e lhes
dá coerência (suas leis, linguagens, tradições, regras de condutas,
sistemas de crença) representa não apenas restrições negativas
impostas a suas ações, mas também preceitos positivos, máximas e
imperativos morais.
Cada indivíduo constitui o ápice da hierarquia orgânica e, ao
mesmo tempo, a ínfima unidade da hierarquia social. Olhando para
dentro, o indivíduo se vê como um todo único e auto-suficiente e
olhando para fora, vê-se uma parte dependente. Homem algum é uma
ilha, cada qual é um hólon. Sua tendência auto-afirmativa é a
manifestação dinâmica de sua totalidade como indivíduo. Sua
tendência integrativa expressa sua dependência de um todo mais
amplo ao qual pertence. Em situações normais, as duas tendências
opostas permanecem mais ou menos equilibradas. Em situações de
grande tensão, o equilíbrio é rompido, como se evidencia no
comportamento emocional. As emoções provocadas pelas tendências
auto-afirmativas pertencem ao bem conhecido tipo agressivo-
defensivo, a fome, a raiva e o medo, incluindo o componente
316
possessivo do sexo. As emoções provenientes da tendência,
integrativa têm sido grandemente negligenciadas pela psicologia
contemporânea, e podemos chamá-las de tipos de emoções
transcendentes ou participativas. Estas nascem da necessidade que o
hólon humano sente de ser uma parte integral de algum todo mais
amplo — que pode ser um grupo social, um vínculo pessoal, um
sistema de crença, a Natureza ou a anima mundi. Os processos
psicológicos, pelos quais essa categoria de emoções opera, recebem as
mais variadas denominações, como projeção, identificação, empatia,
conformidade hipnótica, devotamento, amor. Uma das ironias da
condição humana é o fato de que tanto suas glórias como seus
atributos parecem emanar não do potencial auto-afirmativo, mas do
potencial integrativo da espécie. As glórias da arte e da ciência e os
holocaustos da História provocados por devotamento mal orientado,
todos são nutridos pelas emoções autotranscendentes.
Para concluir, mesmo este fragmentário esboço deveria servir para
demonstrar que no modelo AOHA não há lugar para concepções tais
como a de um instinto agressivo ou destrutivo nos organismos. E
muito menos esse modelo admite a materialização do instinto sexual
como a única força integrativa da sociedade humana ou animal. O
Eros e Tânatos de Freud são elementos relativamente tardios no palco
da evolução: uma multidão de criaturas que se multiplicaram por
fissão ou germinação ignoram por completo a ambos. Na presente
visão, Eros é um produto da tendência integrativa e Tânatos, da
tendência auto-afirmativa, enquanto Jano simboliza a polaridade
dessas duas propriedades irredutíveis da matéria viva — aquela
coincidentia oppositorum que von Bertalanffy tanto gosta de
mencionar e que é inerente às hierarquias abertas da vida.

SUMÁRIO. ALGUMAS PROPRIEDADES GERAIS DA


AUTO-REGULADORA ORDEM HIERÁRQUICA
ABERTA
1. O Hólon
1.1 O organismo, em seu aspecto estrutural, não é apenas uma
agregação de partes elementares e, em seus aspectos funcionais, não é
uma cadeia de unidades elementares de comportamento.
1.2 O organismo deve ser visto como uma hierarquia de muitos
níveis de subtodos semi-autônomos, que se ramificam em subtodos de
um nível inferior, e assim por diante. Os subtodos de qualquer nível da
hierarquia recebem o nome de hólons.
317
1.3 Partes e todos, em sentido absoluto, não existem nos domínios
da vida. O conceito de hólon destina-se a conciliar os enfoques
atomista e holista.
1.4 Os hólons biológicos são sistemas abertos auto-reguladores
que possuem tanto propriedades autônomas de todos como
propriedades dependentes de partes. Essa dicotomia está presente em
cada nível de cada tipo de organização hierárquica, e recebe a
denominação de "fenômeno de Jano".
1.5 De modo mais geral, o termo "hólon" pode ser aplicado a
qualquer subtodo biológico ou social estável, que apresenta
comportamento governado por regras e/ou constância gestáltica
estrutural. Em conseqüência, as organelas e os órgãos homólogos são
hólons evolutivos; os campos morfogenéticos são hólons
ontogenéticos; os "padrões fixos de ação" dos etólogos e as sub-
rotinas das habilidades adquiridas são hólons comportamentais;
fonemas, morfemas, palavras e sentenças são hólons lingüísticos;
indivíduos, famílias, tribos e nações são hólons sociais.

2. Dissecabilidade
2.1 As hierarquias são "dissecáveis" em suas ramificações
constitutivas, nas quais os hólons formam os nódulos. As linhas de
ramificação representam os canais de comunicação e controle.
2.2 O número de níveis que uma hierarquia alcança é a medida de
sua "profundidade". E o número de hólons em qualquer um dos níveis
recebe o nome de "envergadura" (Simon).

3. Regras e Estratégias
3.1 Hólons funcionais são governados por conjuntos fixos de
regras e apresentam estratégias mais ou menos flexíveis.
3.2 As regras — denominadas como cânon do sistema —
determinam suas propriedades invariáveis, sua configuração estrutural
e/ou seu padrão funcional.
3.3 Enquanto o cânon define os passos permitidos na atividade do
hólon, a seleção estratégica do passo concreto entre as escolhas
permitidas é guiada pelas contingências do ambiente.
3.4 O cânon determina as regras do jogo, a estratégia decide o
curso do jogo.
3.5 O processo evolutivo apresenta variações sobre um número
limitado de temas canônicos. As limitações impostas pelo cânon
318
evolutivo se exprimem pelos fenômenos da homologia, homoplasia,
paralelismo, convergência e pela loi du balancement.
3.6 Na ontogenia, os hólons em níveis sucessivos representam
sucessivos estádios do desenvolvimento dos tecidos. A cada passo do
processo de diferenciação, o cânon genético impõe novas limitações
aos potenciais de desenvolvimento do hólon, mas este mantém
suficiente flexibilidade para seguir um ou outro caminho alternativo
de desenvolvimento, dentro do alcance de sua competência, guiado
pelas contingências do ambiente.
3.7 Estruturalmente, um organismo adulto é uma hierarquia de
partes dentro de partes.
3.8 Funcionalmente, o comportamento dos organismos é
governado por "regras do jogo", que respondem por sua coerência,
estabilidade e padrão específico.
3.9 As habilidades, quer inatas quer adquiridas, são hierarquias
funcionais, com subabilidades como hólons, governadas por sub-
regras.

4. Integração e Auto-afirmação
4.1 Cada hólon possui a dupla tendência de preservar e afirmar sua
individualidade como um todo quase autônomo e de funcionar como
parte integrada de um todo maior (existente ou em evolução). Essa
polaridade entre as tendências auto-afirmativa e integrativa é inerente
ao conceito de ordem hierárquica, e também é uma característica
universal da vida.
As tendências auto-afirmativas são a expressão dinâmica da
totalidade do hólon e as tendências integrativas manifestam sua
parceria.
4.2 Uma polaridade análoga existe na interação das forças
coesivas e separativas dos sistemas inorgânicos estáveis, desde os
átomos até as galáxias.
4.3 A manifestação mais comum das tendências integrativas
consiste na anulação da Segunda Lei da Termodinâmica pelos
sistemas abertos que absorvem entropia negativa (Schrödinger) e na
tendência evolutiva em direção a "estados que espontaneamente
marcham para maior heterogeneidade e complexidade" (Herrick).
4.4 Suas manifestações específicas em diferentes níveis variam
desde a simbiose das organelas e dos organismos coloniais, passando
pelas forças coesivas das multidões e rebanhos, até chegar aos liames
integrativos das famílias de insetos e das sociedades de primatas. As
319
manifestações complementares das tendências auto-afirmativas são a
concorrência, o individualismo e as forças separativas da organização
tribal, do nacionalismo etc.
4.5 Na ontogenia, a polaridade reflete-se na disciplina e
determinação dos tecidos em crescimento.
4.6 No comportamento adulto, a tendência auto-afirmativa dos
hólons funcionais manifesta-se na persistência de rituais instintivos
(padrões fixos de ação), de hábitos adquiridos (a caligrafia pessoal, o
sotaque) e nas rotinas estereotipadas de pensamento. A tendência
integrativa revela-se nas adaptações flexíveis, nas improvisações e nos
atos criativos que iniciam novas formas de comportamento.
4.7 Em situações de tensão, a tendência auto-afirmativa manifesta-
se no tipo de emoções adrenérgico, agressivo-defensivo, e a tendência
integrativa, no autotranscendente (participativo, identificativo), tipo de
emoções.
4.8 No comportamento social, o cânon de um hólon social não
apenas representa as limitações impostas às suas ações, mas também
encarna as máximas de conduta, os imperativos morais e os sistemas
de valores.

5. Gatilhos e Filtros
5.1 De modo geral, as hierarquias de saída operam segundo o
princípio do disparador de gatilho, onde um sinal relativamente
simples, implícito ou codificado, aciona mecanismos complexos e
preestabelecidos.
5.2 Em filogenia, uma favorável mutação do gene pode, mediante
a homeorese (Waddington), afetar de maneira harmoniosa o
desenvolvimento de todo um órgão.
5.3 Em ontogenia, disparadores químicos (enzimas, indutores,
hormônios) libertam os potenciais genéticos de tecidos
diferenciadores.
5.4 No comportamento instintivo, disparadores-sinais de um tipo
simples acionam mecanismos disparadores inatos (Lorenz).
5.5 No desempenho de habilidades aprendidas, inclusive as
habilidades verbais, um comando implícito e generalizado é decifrado
em termos explícitos por sucessivos escalões inferiores que, uma vez
postos em ação, impulsionam suas subunidades na ordem estratégica
apropriada, guiadas por realimentação.
5.6 Um hólon no nível n de uma hierarquia de saída é representado
320
como uma unidade no nível (n + 1), e posto em ação como unidade.
Em outras palavras, um hólon é um sistema de relações que é
representado no seguinte nível superior como um "relatum".
5.7 Os mesmos princípios aplicam-se às hierarquias sociais
(militares, administrativas).
5.8 As hierarquias de entrada operam segundo o princípio inverso.
Em vez de gatilhos, elas estão equipadas com dispositivos do tipo
"filtro" (esquadrinhadores, "ressoadores", classificadores) que filtram
a entrada de ruídos, abstraem e condensam seus conteúdos relevantes,
segundo os critérios de relevância dessa específica hierarquia. Os
"filtros" operam em cada escalão pelo qual o fluxo de informação
deve passar em sua subida da periferia para o centro, tanto nas
hierarquias sociais como no sistema nervoso.
5.9 Os gatilhos transformam sinais codificados em complexos
padrões de saída. Os filtros convertem complexos padrões de entrada
em sinais codificados. Podemos comparar os primeiros aos
conversores digitais para análogos e os últimos, aos conversores
análogos para digitais22.
5.10 Nas hierarquias perceptivas, os dispositivos de filtragem
variam desde a familiarização e o controle eferente dos receptores,
mediante os fenômenos da constância, até chegar ao reconhecimento
padrão no espaço ou no tempo, e à decifração da lingüística e de
outras formas de significado.
5.11 As hierarquias de saída interpretam, concretizam,
particularizam. As hierarquias de entrada condensam, abstraem,
generalizam.
6. Arborização e Reticulação
6.1 As hierarquias podem ser consideradas como estruturas
"verticalmente" arborizantes, cujos ramos se entrelaçam com os de
outras hierarquias numa multiplicidade de níveis e formam redes
"horizontais". Arborização e reticulação são princípios
complementares da arquitetura dos organismos e das sociedades.
6.2 A experiência consciente é enriquecida pela cooperação de
diversas hierarquias perceptivas, em diferentes modalidades de sentido
e dentro da mesma modalidade de sentido.
6.3 As memórias abstrativas são armazenadas em forma
esqueletizada, despidas de detalhes irrelevantes, segundo os critérios
de relevância de cada hierarquia perceptiva.
6.4 Os detalhes vividos que conservam uma clareza quase eidética
são estocados em razão de sua relevância emocional.
321
6.5 O empobrecimento da experiência da memória é
contrabalançado até certo ponto pela cooperação, na recordação, de
diferentes hierarquias perceptivas, com critérios de relevância
diferentes.
6.6 Na coordenação sensório-motora, os reflexos locais são
atalhos no nível inferior, semelhantes a desvios de retorno que ligam
correntes de tráfego opostas de uma rodovia.
6.7 As rotinas sensório-motoras especializadas operam em níveis
superiores através de redes de rampas dentro de rampas de
realimentação proprioceptivas e exteroceptivas, as quais funcionam
como servomecanismos e mantêm o ciclista em sua bicicleta num
estado de homeostase cinética auto-reguladora.
6.8 Enquanto na teoria E — R as contingências do ambiente
determinam o comportamento, na presente teoria elas simplesmente
guiam, corrigem e estabilizam padrões preexistentes de
comportamento (Weiss).
6.9 Enquanto as realimentações sensórias orientam as atividades
motoras, a percepção depende, por sua vez, dessas atividades, tal
como ocorre com os vários movimentos esquadrinhadores dos olhos
ou o trauteio de uma melodia em ajuda de sua recordação auditiva. As
hierarquias perceptivas e motoras cooperam tão intimamente em cada
nível que se torna sem sentido traçar uma distinção categórica entre
"estímulos" e "respostas". Ambos converteram-se em "aspectos de
rampas de realimentação" (Miller e outros).
6.10 Os organismos e as sociedades operam numa hierarquia de
ambientes, desde o ambiente local de cada hólon até o "campo total",
que pode incluir ambientes imaginários derivados da extrapolação no
espaço e no tempo.
7. Canais de Regulagem
7.1 Normalmente, os escalões superiores de uma hierarquia não
estão em contato direto com os inferiores e vice-versa. Os sinais são
transmitidos através de "canais de regulagem", um degrau de cada
vez.
7.2 As pseudo-explicações, de que o comportamento verbal e
outras habilidades humanas seriam mera manipulação de palavras ou
encadeamento de operantes, deixam um vazio entre o ápice da
hierarquia e seus ramos terminais, entre o pensamento e a
interpretação.
7.3 A ligação direta entre níveis intermediários, mediante a
direção da atenção consciente para processos que funcionam
322
automaticamente, tende a provocar distúrbios que vão desde o
embaraço até as perturbações psicossomáticas.
8. Mecanização e Liberdade
8.1 Em níveis sucessivamente mais elevados da hierarquia, os
hólons apresentam padrões de atividade cada vez mais complexos,
mais flexíveis e menos previsíveis, ao passo que em níveis
sucessivamente inferiores encontramos padrões cada vez mais
mecanizados, estereotipados e previsíveis.
8.2 Todas as habilidades, sejam inatas sejam adquiridas, com a
intensificação da prática tendem a tornar-se rotinas automatizadas. Tal
processo pode ser descrito como a transformação contínua de
atividades "mentais" em "orgânicas".
8.3 Mantendo-se iguais os outros fatores, um ambiente monótono
facilita a mecanização.
8.4 Inversamente, contingências novas ou inesperadas exigem que
as decisões sejam submetidas a níveis superiores da hierarquia, o que
implica uma deslocação de controles para cima, das atividades
"mecânicas" para as "conscientes".
8.5 Cada mudança para cima reflete-se numa consciência mais
vívida e mais precisa da atividade em andamento. E, visto que a
variedade de escolhas alternativas aumenta com a crescente
complexidade dos níveis superiores, cada deslocação para cima vem
acompanhada pela experiência subjetiva da liberdade de decisão.
8.6 O enfoque hierárquico substitui as teorias dualistas por uma
hipótese seriada, em que "mental" e "mecânico" surgem como
atributos complementares de um processo unitário, onde a dominância
de um ou de outro depende das mudanças no nível de controle.
8.7 A consciência surge como uma qualidade emergente na
filogenia e na ontogenia, qualidade essa que, desde os remotos
primórdios, evolui para estados mais complexos e precisos. Ela é a
mais elevada manifestação da tendência integrativa para extrair a
ordem da desordem e a informação do ruído.
8.8 O ego jamais pode ser completamente representado em sua
própria consciência, nem podem suas ações ser inteiramente previstas
por qualquer dispositivo concebível de processamento de informações.
Ambas as tentativas conduzem a um regresso infinito.
9. Equilíbrio e Desordem
9.1 Diz-se que um organismo ou uma sociedade está em equilíbrio
dinâmico se as tendências auto-afirmativas e integrativas de seus
hólons se contrabalançam mutuamente.
323
9.2 Num sistema hierárquico, o termo "equilíbrio" não se refere a
relações entre partes de um mesmo nível, mas à relação entre a parte e
o todo (sendo o todo representado pelo agente que controla a parte,
desde o seguinte nível superior).
9.3 Os organismos vivem pelas transações com o seu ambiente.
Em condições normais, as tensões surgidas nos hólons envolvidos na
transação são de natureza transitória e, ao seu término, o equilíbrio
será restaurado.
9.4 Se o desafio apresentado ao organismo ultrapassa um limite
crítico, o equilíbrio pode ser perturbado, o superexcitado hólon pode
tender a fugir ao controle e a auto-afirmar-se em detrimento do todo,
ou a monopolizar suas funções — seja o hólon um órgão, uma
estrutura cognitiva (idée fixe), um indivíduo ou um grupo social. O
mesmo pode ocorrer se os poderes coordenadores do todo são
enfraquecidos a tal ponto que ele não é mais capaz de controlar suas
partes (Child).
9.5 O tipo oposto de perturbação ocorre quando o poder do todo
sobre suas partes corrói a autonomia e a individualidade destas. Isso
pode conduzir a uma regressão das tendências integrativas, desde as
formas maduras de integração social, às formas primitivas de
identificação e aos quase hipnóticos fenômenos da psicologia de
grupo.
9.6 O processo de identificação pode despertar emoções vicárias
do tipo agressivo.
9.7 As normas de conduta de um hólon social não são redutíveis às
normas de conduta de seus membros.
9.8 O egotismo do hólon social nutre-se do altruísmo de seus
membros.

10. Regeneração
10.1 Os desafios críticos a um organismo ou a uma sociedade
podem produzir efeitos degenerativos ou regenerativos.
10.2 O potencial regenerativo dos organismos e das sociedades
manifesta-se em flutuações que vão desde o mais elevado nível de
integração até os níveis mais antigos e primitivos, subindo novamente
para um padrão novo e modificado. Os processos desse tipo parecem
desempenhar um importante papel na evolução biológica e mental, e
são simbolizados na mitologia pelo motivo universal da morte e
renascimento.
324
II

Uma experiência de percepção*


*Ver Capítulo I, 13 e pág. 297. Reimpresso com a permissão de Psycon Sci,
1965, vol. 3, pp. 75-76.

Arthur Koestler e James J. Jenkins

Os autores agradecem a Donald Foss que recolheu e codificou os


dados. Expressam também seus agradecimentos ao Prof. Douglas
Lawrence e ao Prof. Ernest Hilgard, da Universidade Stanford, e ao
Prof. Arnold Mechanic e Joanne D'Andrea, do California State
College, de Harward, por sua generosa colaboração para este estudo.

SÍNTESE

A experiência sugere que a inversão ou transposição de dois ou


mais itens adjacentes é um erro comum no processamento de
seqüências visuais. Tal fenômeno insinua que a informação a respeito
da identidade dos itens e de suas posições pode ser parcialmente
separável. Uma experiência de percepção foi realizada com exposição
taquistoscópica de seqüências de 5, 6 e 7 dígitos. Surgiram com
grande evidência os erros de transposição. Em seguida, tais erros
foram distribuídos numa curva de posição seriada, muito semelhante à
encontrada para erros de itens isolados.

O PROBLEMA
Enquanto, nos últimos anos, o processamento da informação na
percepção visual tem recebido atenção cada vez maior1, parece ter
sido esquecido um fenômeno comum de processamento errôneo que
pode apresentar algum significado teórico. Referimo-nos à inversão
(ou transposição) de itens adjacentes de uma seqüência de números
mostrados num taquistoscópio. Embora esses erros sejam bastante
comuns em contabilidade e tenham merecido especial atenção dos
revisores de provas, estão ausentes dos debates sobre percepção visual
ou âmbito da memória, em livros básicos como os de Osgood2 e
Woodworth e Schlosberg3.
325
A apreensão de uma série de numerais e a subseqüente repetição
deles em sua correta seqüência deve envolver ou o armazenamento
ordenado dos itens individuais ou o armazenamento da informação
relativa a essa ordem. Tanto a informação que identifica um item
como a informação que define seu lugar na seqüência devem estar à
disposição de P [Pessoa testada], para o êxito da realização da tarefa.
Não é fácil demonstrar a potencial separabilidade dessas duas
espécies de informação envolvidas. Se uma pessoa comete um único
erro de identidade, apresentando ou um número incorreto ou um
espaço vazio, isso pode indicar que ela apenas perdeu a informação da
identidade. Tal argumento, no entanto, não é conclusivo, pois o
resultado teria sido o mesmo, caso a pessoa não tivesse recebido
informação alguma sobre o item errado, mas tivesse informações
completas sobre os demais itens. Por outro lado, a inversão de dois
dígitos ou a permuta de três ou mais dígitos proporciona um
argumento concludente porque demonstra, prima facie, que a
informação da identidade está correta, ao passo que a informação da
posição está incompleta ou distorcida.
O presente estudo tem por objetivos demonstrar que o fenômeno
da transposição pode ser analisado em testes de laboratório e
determinar o local de suas prováveis ocorrências numa determinada
seqüência.

O MÉTODO

Os materiais de estímulo eram 80 fichas de 4 x 6, nas quais


constavam seqüências de dígitos datilografadas em tipo elite. As 80
seqüências estavam divididas em quatro conjuntos de 20 fichas cada.
O primeiro conjunto mostrava seqüências de 5 dígitos, de comprido; o
segundo e o terceiro conjuntos continham seqüências de 6 dígitos; o
quarto conjunto apresentava seqüências de 7 dígitos. As seqüências
continham os dígitos 1 — 9, e nunca, numa determinada ficha,
repetia-se mais que um só dígito. O dígito repetido, quando havia,
nunca aparecia sem ocorrer pelo menos um outro dígito intercalado.
Os conjuntos eram apresentados na ordem dada acima. De cada
conjunto fazia-se um arranjo fortuito. Esse arranjo era utilizado na
ordem seqüencial para a metade das Ps e em ordem inversa para as
demais. Os materiais eram apresentados num taquistoscópio do tipo
espelho.
326
As Ps eram 14 universitários dos cursos introdutórios de
psicologia. Cada P segurava um interruptor que ligava o
taquistoscópio. O A [Aplicador do teste] fazia um sinal quando a ficha
de estímulo estava colocada no lugar. A P acionava o taquistoscópio
quando estava pronta para começar. Ela fora instruída para dizer a
seqüência dos dígitos em voz alta imediatamente após a projeção, e
era encorajada a adivinhar quando não tivesse certeza de um ou mais
itens. P sempre sabia quantos dígitos foram mostrados. As respostas
eram registradas num gravador. Fazia-se apenas uma exposição de
cada seqüência, e a P não recebia nenhuma informação sobre a
exatidão de sua resposta.
Duas seqüências de exercício, com limites crescentes, eram
apresentadas à P, para que se familiarizasse com o aparelho e para que
o A obtivesse alguma informação sobre o limiar. A seguir, os
conjuntos do teste eram apresentados. Após cada conjunto,
concediam-se períodos de descanso de um minuto.
A duração da exposição era ajustada individualmente para cada P.
Um trabalho-piloto mostrara que as transposições ocorriam mais
facilmente no ponto em que a P estava começando a perder dígitos
isolados na seqüência. Por isso, o A cuidava para que o intervalo de
exposição fosse bastante longo para permitir que o número exato de
dígitos fosse transmitido, mas também bastante curto para que esses
dígitos não fossem sempre transmitidos com toda a exatidão. Após
cada cinco fichas, o A decidia se mantinha ou se modificava o tempo
de exposição. Caso surgissem efeitos de prática no desempenho da
tarefa e caso a tarefa se tornasse consideravelmente mais difícil, o A
continuava a modificar o tempo de apresentação no decurso da
experiência. Nessas mudanças, utilizavam-se geralmente degraus de
10-mseg, mas com uma ou outra P, cuja atuação fosse notadamente
inferior, a extensão do degrau era aumentada.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As respostas foram transcritas das fitas e tabuladas. Utilizaram-se


os seguintes critérios:

C — correto
E — erro grave
327
I — um dígito incorreto, ou "vazio" assinalado para um único
dígito faltante
T — transposição de pares de dígitos adjacentes, com o resto da
seqüência correto
T1 — transposição de três ou mais dígitos, com os demais corretos
IT — transposição de dois ou mais dígitos e um dígito incorreto
O — outros erros, geralmente erros da experiência ou do
equipamento
Os resultados são apresentados segundo esses critérios de
tabulação, no Quadro I. Um exame do quadro mostra que a
transposição proporciona uma importante fonte de erros. No entanto, é
difícil descobrir um modelo estatístico que possibilite uma avaliação
exata do significado estatístico de tais erros. Como ressaltaram
Woodworth e Schlosberg4 em seu debate sobre o registro da extensão
da memória, qualquer sistema de tabulação que tente atribuir crédito
separado à exatidão e à ordem é arbitrário. Portanto, qualquer modelo
estatístico deve fazer conjeturas a respeito das estratégias da P, por um
lado (por exemplo: notou a P que os dígitos podem repetir-se numa
seqüência e, se isso ocorreu, tal fato alterou de maneira correta seu
comportamento de adivinhação?) e a respeito das inter-relações dos
tipos de erro (que nós ainda não conhecemos), por outro lado.
Felizmente, essa questão não é crucial para os objetivos presentes. A
única pergunta que deve ser feita aqui é se há mais transposição do
que se esperaria que houvesse, ao acaso (seja qual for a definição que
se der a acaso).

QUADRO I. Distribuição das Respostas por Critérios para Cada


Conjunto de Estímulos (280 itens):

Critérios 5 dígitos 6 dígitos 6 dígitos 7 dígitos


C 130 60 65 12
E 21 67 47 122
I 50 43 50 21
T 23 23 32 12
T¹ 2 14 5 9
IT 44 64 73 96
O 10 9 8 8
328
Cremos que a resposta a isso é clara. Dos 140 erros nas seqüências
de 5 dígitos, 69 referem-se a transposições; dos 211 e 207 erros nas
seqüências de 6 dígitos, 101 e 110, respectivamente, contêm
transposições; dos 260 erros no conjunto de 7 dígitos, 117 contêm
uma transposição. É evidente que, até o ponto em que a tarefa se torna
excessivamente difícil (e a resposta imponderável), aproximadamente
a metade dos erros envolve transposições. Nenhum modelo razoável
de "adivinhação" ou de acaso que nós imaginamos pode esclarecer
essa descoberta. Parece mais simples concluir que, numa grande parte
dos erros, a P tem a informação exata sobre a identidade de alguns
dígitos, mas perdeu a informação sobre sua posição correta.
Como primeiro passo na descrição do fenômeno, fez-se a
distribuição dos erros sobre posições, para os erros mais simples de
ambos os tipos. O Quadro II mostra a localização do erro para cada
caso, quando um dígito estava incorreto (erro I). O Quadro III dá a
localização do par de itens transpostos, quando uma única
transposição foi observada (erro T). Pode-se ver que ambos os
conjuntos de distribuições para toda a extensão da seqüência mostram
o mesmo efeito serial de posição, sugerindo que ambas as espécies de
erro são sujeitas à mesma forma de interferência. Se alguém dispõe de
todos os itens individuais, é menos provável que tenha a informação
exata da posição na última metade da seqüência. Inversamente, se a
essa pessoa falta a identidade de um item, é mais provável que seja a
de um item cuja posição esteja na última metade da lista. A mais
provável transposição, em qualquer extensão específica de seqüência,
parece envolver a inversão da ordem do item situado na posição mais
difícil da seqüência e do item imediatamente anterior a ele.
Não está de forma alguma esclarecida a natureza psicológica de
cada espécie de erro, mas parece verossímil que futuras pesquisas
ajudarão a reduzir as alternativas. Seria particularmente interessante
saber, por exemplo, se a transposição é igualmente comum quando a
experiência é realizada segundo o método de Sperling ou segundo um
método seqüencial rápido, tal como o utilizado na pesquisa da
memória de curta duração.
Embora, no momento, não possamos tomar nenhuma decisão
quanto à natureza implícita do fenômeno da transposição, julgamos
que esse experimento coincide com a experiência comum, ao detectar
uma distorção muito difundida da percepção visual e do sistema de
relatar, distorção essa que as teorias do processamento da informação
devem levar em conta.
329
QUADRO II. Posição dos Erros nos Casos de um Único
Dígito Incorreto
Posição
Seqüência 1 2 3 4 5 6 7
5 dígitos 0 1 4 34 10 — —
6 dígitos 0 2 1 4 31 6 —
6 dígitos 0 1 3 11 25 10 —
7 dígitos 0 0 2 0 7 8 4

QUADRO III. Posição dos Dígitos Transpostos nos Casos de


Erros Relativos a uma Única Transposição

Posições transpostas
Seqüência 1-2 2-3 3-4 4-5 5-6 6-7
5 dígitos 0 2 18 3 — —
6 dígitos 0 2 1 17 3 —
6 dígitos 0 5 1 21 5 —
7 dígitos 0 0 0 3 7 2

III
Notas sobre o sistema
nervoso autônomo*
* Ver pág. 154

Em geral (mas existem, como já vimos, importantes exceções), a


ação das duas divisões é mutuamente antagônica: uma equilibra a
outra. A divisão simpática prepara o animal para reações de
emergência, sob a tensão da fome, da dor, da raiva e do medo. Ela
acelera o pulso, aumenta a pressão sangüínea, fornece mais açúcar ao
sangue, como fonte de energia. A divisão parassimpática faz
exatamente o oposto, em quase todos os sentidos: abaixa a pressão
sangüínea, diminui a pulsação do coração, neutraliza o excesso de
açúcar no sangue, facilita a digestão e a eliminação dos detritos
corporais, ativa as glândulas lacrimais — em geral, é calmante e
catártica.
Ambas as divisões do sistema nervoso autônomo são controladas
pelo cérebro límbico (o hipotálamo e as estruturas adjacentes).

330
Autores diferentes têm descrito suas funções em termos diferentes.
Allport ¹ relacionou as emoções agradáveis à divisão parassimpática e
as desagradáveis, à simpática. Olds2 estabelece uma distinção entre
sistemas emotivos "positivos" e "negativos", ativados respectivamente
pelos centros parassimpático e simpático do hipotálamo. Partindo de
um enfoque teórico bem diferente, Hebb também chegou à conclusão
de que se deve fazer uma distinção entre as duas categorias de
emoção, "aquelas em que a tendência é de manter ou aumentar as
condições originais de estímulo (emoções agradáveis ou integrativas)"
e "aquelas cuja tendência é eliminar ou diminuir o estímulo (raiva,
medo, desgosto)3". Pribram propôs uma distinção semelhante entre
emoções "preparatórias" (preventivas) e "participatórias"4. Hebb e
Gellhorn diferenciam um sistema ergotrópico (consumidor de energia)
que opera mediante a divisão simpática para resguardar-se contra
estímulos ameaçadores, de um sistema trofotrópico (conservador de
energia) que opera mediante a divisão parassimpática, em resposta a
estímulos pacíficos ou atraentes5.
Gellhorn resumiu os efeitos emocionais de dois diferentes tipos de
drogas: por um lado, as "pílulas estimulantes", tais como a benzedrina,
e por outro, as tranqüilizantes, tais como a clorpromazina. O primeiro
tipo ativa a divisão simpática e o segundo, a parassimpática. Quando
administrados em pequenas doses, os tranqüilizantes provocam "leves
desvios do equilíbrio hipotalâmico para o lado parassimpático,
resultando em calma e contentamento, semelhante na aparência ao
estado que antecede o adormecimento, ao passo que alterações mais
marcantes levam para um estado depressivo"6. Por outro lado, as
drogas do tipo benzedrina ativam a divisão simpática, provocam o
aumento da agressividade nos animais e, no homem, se aplicadas em
pequenas doses, levam a um estado de leveza e euforia; mas grandes
doses causam superexcitação e comportamento maníaco. Finalmente,
Cobb condensou o contraste implícito numa fórmula penetrante: "O
ódio é denominado a reação mais adrenérgica e o amor, a reação
caracteristicamente parassimpática mais colinérgica"7.
O que este breve resumo indica, em primeiro lugar, é uma
tendência geral das autoridades neste assunto a distinguir entre duas
categorias básicas de emoção, embora sejam diferentes as definições
das categorias. Em segundo lugar, existe um sentimento geral de que
as duas categorias estão relacionadas com as duas divisões do sistema
nervoso autônomo.
331
IV
OVNIs — Um festival
de disparates*
*Ver Capítulo XIV.

Na mente do povo, existe uma conexão compreensível mas


questionável entre a CETI (comunicação com inteligências
extraterrestres) e os OVNIs (objetos voadores não identificados,
vulgarmente chamados discos voadores). Durante a conferência sobre
CETI realizada em 1971**, os OVNIs foram mencionados apenas de
passagem, e nenhum dos participantes sugeriu que eles são de origem
extraterrestre. As principais razões desse ceticismo, o astrofísico Carl
Sagan assim as resumiu:
**Cfr.pág. 295, nota.

Tais civilizações (extraterrestres e desenvolvidas) devem


estar inconcebivelmente mais avançadas que a nossa. Basta
que consideremos as mudanças havidas na humanidade nos
últimos 104 anos e as dificuldades que nossos ancestrais da era
plistocena encontrariam para se ajustar à nossa atual
sociedade, para compreendermos o que representa um
insondável hiato de 108 a 1010 anos, mesmo com uma
minúscula taxa de avanço intelectual. Tais sociedades terão
descoberto leis da Natureza e inventado tecnologias cujas
aplicações nos parecerão indiscerníveis da mágica. Subsiste o
grave problema de saber se tais sociedades estão interessadas
em comunicar-se conosco, mais do que nós estamos
interessados em comunicar-nos com nossos antepassados
protozoários ou bactérias. Podemos estudar os
microorganismos, mas geralmente não nos comunicamos com
eles. Por isso, eu levanto a possibilidade de que exista um
horizonte no interesse de comunicações na evolução de
sociedades tecnológicas, e de que uma civilização muito mais
desenvolvida que a nossa esteja engajada num intenso tráfego
de comunicações com seus iguais; mas não conosco, e nem
por meio de tecnologias acessíveis a nós. Podemos
332
assemelhar-nos aos habitantes dos vales da Nova Guiné que se
comunicam por mensageiros ou tambores, mas ignoram o
imenso tráfego internacional de rádio e cabogramas que passa
sobre eles, ao redor e através deles. (O grifo é meu)1

As palavras que eu grifei referem-se — como o indica o contexto


— à hipótese de que os OVNIs sejam veículos espaciais ou sondas
automáticas lançadas de bases espaciais maiores (como os terráqueos
lançam satélites das bases orbitais Viking). A despeito das acrobacias
aéreas que, segundo se afirma, eles realizam, o aspecto e o
comportamento dos OVNIs estão muito próximos das "tecnologias
acessíveis a nós" para serem qualificados como exclusivos dos
mágicos. Quanto ao argumento de que somos demasiadamente
primitivos para merecermos algum estudo, poder-se-ia, naturalmente,
objetar que nossos etólogos e antropólogos não partilham dessa
arrogante atitude com relação às formas inferiores de vida e cultura.
Mas, de novo, existe um contra-argumento: se a nossa galáxia está tão
repleta de vida como no-lo afirmam os astrofísicos, então deve haver
algum sistema de prioridades para os programas de inspeção
exploratória dos mágicos e, mesmo entre as civilizações mais baixas,
nós podemos não despertar especial interesse. Se, por outro lado,
somos tão interessantes quanto nosso chauvinismo terreno martela aos
nossos ouvidos, por que então os OVNIs evitam tão acintosamente o
contato conosco, seja por rádio, seja por lasers, seja por hologramas
— para não mencionar algumas avançadas técnicas de PES? Na
verdade, a fuga aos contatos é a principal característica e o elemento
comum nas artimanhas dos discos voadores. E quanto aos poucos
casos em que se alega um contato com passageiros "humanóides" de
OVNI, eles representam, como escreveu um renomado ovnólogo, "um
verdadeiro festival de disparates"2.
Então, por que abordar este assunto tão desacreditado? Em
primeiro lugar, porque me parece que seria uma covardia deixar em
silêncio o tema dos OVNIs, após haver abordado o das civilizações
extraterrestres — conquanto, como disse, os dois assuntos podem não
estar relacionados. Em segundo lugar, os OVNIs — objetos voadores
não identificados (ou não explicados, diferentes dos OVIs (objetos
voadores identificados) — parecem existir, seja qual for sua origem.
Aparentemente, essa crença é partilhada por quase a metade dos
astrônomos americanos. O seguinte excerto é de um artigo da New
Scientist:
333
Os objetos voadores não identificados (OVNIs)
"certamente", "provavelmente" ou ao menos "possivelmente"
merecem um estudo científico, disseram 80% das respostas a um
questionário enviado aos membros da prestigiosa Sociedade
Astronômica Americana (SAA). Dentre os 2.611 membros,
1.356 responderam e só 20% deles julgaram o estudo
desnecessário.
Isso significa que cerca de 40% dos membros da SAA
apoiariam uma investigação sobre os OVNIs. Sessenta e duas
pessoas que responderam ao questionário também afirmaram ter
visto um OVNI, diz um relatório da Universidade de Stanford,
Califórnia, onde foi realizada a pesquisa...
Em cinco das mencionadas visões, os objetos foram vistos
por telescópios e em três casos, por binóculos. Em sete casos
havia fotografias. O organizador da pesquisa, Prof. Peter
Sturrock, astrofísico de Stanford, acredita que apenas para duas
delas pode apresentar explicações não relacionadas com os
OVNIs.
Sturrock é um forte defensor de uma renovada investigação
sobre os OVNIs. Ele critica o Condor Report de 1969, que
rejeitou o fenômeno OVNI e encerrou o Project Blue Book, a
listagem feita pela Força Aérea Americana sobre a visão de
OVNIs tida por seu pessoal. "È fundamental que os cientistas
iniciem uma troca de informações importantes, diz Sturrock, se
pretendem contribuir para a solução do problema dos OVNIs"3.
O que particularmente impressiona são aqueles sessenta e dois
astrônomos — isto é, 5% dos questionados — que afirmam ter
realmente visto um OVNI. Isso é muito mais admirável que a última
pesquisa Gallup sobre o assunto, feita em 1973, a qual indica que 15
milhões de americanos afirmaram ter visto OVNIs e que 51 % da
população acreditava que existe o fenômeno do ÓVNI4. Quando o
grosso da população está incluído, tais números sempre podem ser
explicados, ou interpretados, como o resultado de uma histeria de
massa e de ilusões ópticas. Mas presume-se que astrônomos
profissionais estejam imunes a tais erros.
O termo "ovniologia"* foi criado pelo Marechal do Ar Sir Victor
Goddard em 1946, quando representou a Royal Air Force no comitê
consultivo dos Chefes de Estados-Maiores, em Washington. Na época,
* Por questão de coerência, pois traduzimos UFO por OVNI, adotamos também o
termo ovniologia para expressar a idéia contida em ufology. (N. dos T.)
334
ele pensava que os OVNIs eram um engano, e colaborou para
persuadir o Presidente Truman a cancelar a procura de OVNIs feita
pela Força Aérea Americana, Que o presidente havia ordenado para
comprovar os rumores da existência de invasores no espaço aéreo
americano. Mais tarde, porém, Goddard mudou de idéia. Em seu livro,
Flight Towards Reality, ele escreve:
Em quase trinta anos deve ter havido duzentas mil declarações
de visões de OVNI registradas em pelo menos cem países. Esse é o
tipo de base estatística dos OVNIs disponível agora na América do
Norte e do Sul. Relatórios sobre dez mil análises exaustivas
constituem uma evidência que nos leva a duas conclusões: a
primeira é que apenas 6% das assim chamadas visões de OVNI
continuam insolúveis e inexplicadas. A segunda é que, entre os
casos insolúveis — doze mil não identificados até agora — alguns,
sem dúvida, devem ser considerados exatamente o que eles
afirmam ser — objetos reais, embora desconhecidos em sua origem
e tecnologia... Portanto, eram OVNI — nada mais — e isso não
pode ser negado nem pelo mais convicto dos céticos5.
Em vários países da Europa e da América, existem agora grupos
de pesquisa do OVNI, a maioria deles dirigidos por astrônomos e
outros cientistas, à guisa de passatempo. O USA Center for UFO
Studies [Centro Americano de Estudos do OVNI] possui um arquivo
de computador com cerca de 80.000 relatórios catalogados e
classificados. Este centro foi criado e é dirigido pelo Dr. J. Allen
Hynek, Diretor do Departamento de Astronomia, da Universidade
North-Western, anteriormente Diretor Adjunto do Observatório
Astrofísico Smithsonian e Astrônomo Consultor da Força Aérea
Americana para o Project Blue Book, de registros de visões de
OVNIs.
Então, à vista de tudo isso, por que a ovniologia ainda continua
sem prestígio? Parte da resposta é fornecida por uma alegre analogia
histórica. O excerto seguinte provém de Principies of Meteoritics, de
E. L. Krinov:
Durante o período de grande desenvolvimento científico
havido no séc. XVIII, os cientistas chegaram à conclusão de
que é impossível a queda de meteoritos sobre a Terra. Todos
os relatos sobre tais casos foram declarados como ficção
absurda. Assim, por exemplo... o mineralogista suíço J. A.
335
Deluc afirmou que "se ele visse a queda de um meteorito, não
acreditaria em seus próprios olhos." Mas particularmente
estarrecedor é o fato de que até o renomado químico Lavoisier
assinou, em 1772, um memorando com cientistas da
Academia de Ciências de Paris, o qual concluía... que "a
queda de pedras do céu é fisicamente impossível".
Finalmente, quando o meteorito Barbotan caiu na França, em
1790, e a queda foi presenciada pelo prefeito e pelo conselho
municipal, o cientista francês Berthollet escreveu: "Como é
triste o fato de toda a municipalidade introduzir contos
populares num relatório oficial, apresentando-os como algo
realmente visto, embora não possam ser explicados nem pelos
físicos nem por nada racional"6.
Se pensarmos bem, para as mentes do séc. XVIII os meteoros não
eram mais fáceis de "engolir" do que os OVNIs para nós. Por isso, a
mesma sufocante e incoerente reação. Isso ficou particularmente em
evidência no decorrer do assim chamado escândalo Condon Report,
que se tornou uma espécie de Watergate acadêmico. Um dos melhores
resumes desse complicado episódio — que levou ao arquivamento do
Project Blue Book da Força Aérea Americana e ao tabu oficial sobre
os OVNIs — foi escrito por Charles H. Gibbs-Smith, eminente
historiador da aviação. Eis aqui uma versão resumida de seu relato
(com os grifos do original):7
Para os objetivos deste artigo, não me interessa saber se os
OVNIs são veículos do espaço exterior, hambúrgueres lançados
de balões, ou manchas diante dos olhos de neuróticos gatinhos
listados. Estou preocupado com o status e a posição de um
relatório científico, o Condon Report of the Scientific Study of
Unidentified Flying Objects, terminado em 1968 e apresentado
à Imprensa em janeiro de 1969.
A 9 de agosto de 1966, um memorando confidencial foi
escrito por um tal Sr. Robert J. Low aos dirigentes da
Universidade de Colorado, a respeito do proposto contrato
entre essa Universidade e a Força Aérea Americana, para a
primeira realizar uma pesquisa sobre OVNIs, sendo paga por
esse projeto com fundos públicos até a quantia de quase meio
milhão de dólares. O projeto devia ficar sob a direção do Dr.
Edward U. Condon, com o Sr. Low (membro do corpo docente
da Universidade) atuando como coordenador do projeto e como
336
"homem-chave das operações." O memorando em questão foi
escrito antes de o contrato ser assinado entre a Universidade e a
Força Aérea.
O memorando de Low intitulava-se "Algumas Idéias sobre
o Projeto OVNI", e incluía as seguintes passagens (os grifos
são meus):
"... Nosso estudo deverá ser realizado quase exclusivamente
por descrentes que, embora possivelmente não consigam
provar um resultado negativo, poderão e provavelmente
haverão de acrescentar uma impressionante quantidade de
provas de que não existe veracidade nas observações. O golpe
seria, penso eu, o de descrever o projeto de tal forma que, para
o público, apareceria como um estudo totalmente objetivo mas,
para a comunidade científica, apresentaria a imagem de um
grupo de descrentes tentando ao máximo ser objetivo,mas
tendo uma expectativa quase igual a zero de encontrar um disco
voador. Um modo de fazer isso seria o de dar ênfase à
investigação, não dos fenômenos físicos, mas do povo que faz a
observação — psicologia e sociologia das pessoas e dos grupos
que afirmam ter visto OVNIs. Se a ênfase for posta aqui, em
vez de no exame da velha questão da realidade física do disco
voador, penso que a comunidade científica logo captaria a
mensagem... Neste primeiro estágio, estou propenso a imaginar
que, se organizarmos bem o assunto e se nos esforçarmos para
envolver as pessoas exatas e se tivermos êxito em apresentar a
imagem que desejamos apresentar à comunidade científica,
poderíamos executar a tarefa em nosso benefício..."
Esse memorando foi casualmente descoberto por um
pesquisador em fins de 1967, e foi revelado ao público pela
revista Look, em maio de 1968...
O memorando Low só pode ser visto como um ato
deliberado e calculado para enganar; primeiro, para enganar
a comunidade científica e, por ela, o público em geral. Não
tenho conhecimento de nenhum caso moderno paralelo de um
ato de duplicidade tão cínico, engendrado por um professor de
universidade... Pela simples feitura de tal documento, ficou
destruída de antemão a integridade de todo o projeto. As
palavras do Sr. Low revelam que tudo no relatório —
desconhecido pelo leitor, seja ele cientista ou leigo — poderia,
337
em última análise, exercer seu papel na apresentação do caso
distorcido, por meio do qual a "comunidade científica haveria
de captar de imediato a mensagem". Isso, em linguagem clara,
significa que foi planejada uma deturpação deliberada da
verdade antes de ser assinado o contrato com a Força Aérea. O
que, por seu turno, evidencia a existência de um acordo com
alguém ou com algum grupo sobre como deveria ser a
"mensagem." Portanto, o espírito de perversão deve
inevitavelmente ter contaminado toda a elaboração do relatório,
condicionando o que nele foi incluído e o que foi excluído, o
que foi ressaltado e o que foi negligenciado, o que foi dito de
maneira específica e o que não foi dito, o que foi subentendido
e o que não o foi.
O memorando Low também encerra em si um desprezo
implícito pelo assunto dos OVNIs, para cuja investigação a
Universidade estava sendo generosamente paga...
O que realça a desonestidade que cerca todo o projeto é o
fato de, em nenhum momento, o memorando Low ter sido
repudiado, nem mesmo deplorado, por qualquer das partes do
negócio. Nem a Universidade do Colorado nem a Força Aérea
tiveram uma palavra para oferecer sobre o comportamento que
corta pela raiz a integridade científica.
Não é difícil encontrar a explicação para esta conspiração —
parece não existir outra palavra melhor para descrever isso. Alguns
dos cientistas participantes da comissão sentiam verdadeiro pavor de
se verem envolvidos com "pequenos homens verdes de Vênus" e
recusavam-se a estabelecer uma distinção entre a pesquisa séria sobre
OVNI e as fábulas dos loucos e embusteiros. Na história da Ciência,
existem inúmeros precedentes para tal atitude. Muito antes da negação
dos meteoros, alguns astrônomos colegas de Galileu negaram a
existência das luas de Júpiter que ele havia descoberto, e recusaram-se
até a olhar por seu telescópio, porque eles tinham certeza de que
aquelas luas eram uma ilusão ótica*.
* Ver The Sleepwalkers. Cap. VIII, 6.
Quanto à Força Aérea e outras agências oficiais, todas ainda se
lembravam muito bem da histeria de massa e do pânico provocados
por uma transmissão de Orson Welles, em 1938, sobre uma invasão
marciana, e tinham todo o interesse em impedir a repetição de tal fato.
Além disso, os setores governamentais não gostam de admitir que há
objetos sobrevoando o espaço aéreo da nação, objetos que eles não
conseguem explicar. O desfecho de tudo isso foi que, em dezembro de
338
1969, o ministro americano da Aeronáutica anunciou oficialmente que
ulteriores pesquisas "não podem ser justificadas com base na
segurança nacional nem pelo interesse da Ciência", e encerrou o
Project Blue Book.
Contrastando com a atitude americana, as agências do governo
francês admitiram francamente que alimentavam um vivo interesse
pelos OVNIs, encorajaram a população a relatar as visões aos guardas
mais próximos e ordenou aos soldados que, pelos canais oficiais,
apresentassem os relatórios de suas investigações. Mais que isso:
numa notável entrevista radiofônica, em 1975, o ministro francês da
Defesa, Robert Galley, insistiu repetidas vezes sobre a necessidade de
"manter a mente aberta" e afirmou que, em sua opinião, os fenômenos
em questão continuavam "até o momento inexplicados ou mal
explicados." Ele também manifestou-se a favor de uma sugestão
apresentada por Claude Poher, Chefe de Pesquisa da Agência
Nacional de Pesquisa Espacial, no sentido de construir postos
automáticos de observação para estabelecer correlações entre as
variações do campo magnético da Terra e as passagens dos OVNIs. E
ainda se pensa que os franceses constituam uma nação de céticos.
O que devemos concluir disso? Os cientistas de mentalidade
aberta, quando se defrontam com uma evidência prima facie sobre
fenômenos que não conseguem explicar, continuam a coletar dados,
na esperança de eventualmente encontrar uma explicação. Essa
esperança pode ser espúria, um produto da ilusão racionalista, mas na
Ciência não existe outra estratégia alternativa — exceto a da avestruz
que segue a máxima: "O que eu não posso explicar não pode existir."
Persuadidos de que mesmo os casos mais bem documentados de
OVNI parecem um "festival de disparates", devemos também
compreender que, ao nos aproximarmos das fronteiras da Ciência, seja
em PES, seja em física quântica, seja em ovniologia, devemos esperar
encontrar fenômenos que se nos apresentam como paradoxais ou
absurdos. Quero citar mais uma vez Aimé Michel:8
Jamais se deve esquecer que, em qualquer manifestação de
natureza sobre-humana, o que se deve esperar é o
aparentemente absurdo. "Por que você tanto se preocupa com
sua comida ou com sua moradia?", perguntou-me certo dia um
de meus gatos. "Que exagero absurdo, quando se pode
encontrar de tudo num latão de lixo e há bons abrigos sob os
carros."
339 e 340
REFERÊNCIAS

Prólogo: O Novo Calendário (págs. \5 a 34)

1. Time, Nova York, 29 de janeiro de 1965.


2. Vaihinger(1911).
3. von Bertalanffy(1956).
4. MacLean(1962).
5. MacLean(1973).
6. MacLean(1958).
7. Gaskell (1908), págs. 65-67.
8. Wood Jones e Porteus (1929), págs. 27-28.
9. Lorenz(1966).
10. Russell(1950), pág. 141.

PARTE 1: ESBOÇO DE UM SISTEMA

Capítulo I: A Holarquia (págs. 37 a 69)

1. Frankl (1969), págs. 397-398.


2. Morris (1967).
3. Citado por Frankl (1969).
4. Smuts(1926).
5. Pattee(1970).
6. Weiss(1969), pág. 193. 7.Needham,J.(1936). 8.Needham,J.(1945).
9. Koestler(1964, 1967).
10. Koestler(1967).
11. Jevons(1972), pág. 64.
12. Ruyer(1974).
13. Gerard(1957).
14. Gerard(1969), pág. 228.
15. Thorpe(1974), pág. 35.
16. Bonner (1965), pág. 136.
341
17. Waddington(1957).
18. St. Hilaire (1818). '.9. Simon(1962).
20. Miller(1964).
21. Koestler (1969a).
22. Jaensch(1930).
23. Kluever (1933).
24. Penfield e Roberts (1959).
25. Frankl(1969).

Capitulo II: Para Além de Eros e Tânatos (págs. 70 a 82)


1. Freud(1920), pág.63.
2. Ibid., págs. 3-5.
3. Jones (1953), Vol. I, pág. 142.
4. Horney(1939).
5. Pearl, in Enc. Brit., 14ª ed.
6. Ibid.
7. Thomas (1974), pág. 28.
8. Ibid.
9. Ibid., págs. 28-30.

Capítulo IV: Ad Majorem Gloriam... (págs. 90 a 110)


1. Hayek(1966).
2. Milgram (1975), pág. 18.
3. Ibid.
4. Milgram (1974), pág. 166.
5. Ibid., pág. 71
6. Ibid., pág. 167.
7. Ibid.
8. Ibid., pág. 131.
9. Ibid., pág. 132.
10. Ibid.
11. Ibid., pág. 8.
12. Ibid., pág. 9.
13. Ibid., pág. 148.
14. Milgram (1975), pág. 20.
15. Milgram (1974), pág. 188.
16. Calder( 1976), págs. 124-127.
17. Calder(1976).
18. Calder( 1976a), pág. 127.
342
19. Prescott (1964), pág. 62.
20. The Times, Londres, 27 de julho de 1966.

Capítulo V: Uma Alternativa para o Desespero (págs. 111 a 119)


l.Hyden(1961).
2. Koestler(1967).

PARTE II: A MENTE CRIATIVA

Capítulo VI: Humor e Espírito (págs. 123 a 144)

l.Koestler(1948, 1959, 1964 e 1967).


2. Koestler(1974).
3.de Boulogne(1862).
4. Foss(1961).
5. Freud(1940),Vol.VI.
6. Huxley, A. (1961).

Capitulo VIII: As Descobertas da Arte (págs. 151 a 175)


1. Jones (1957), Vol. 3, pág. 364.
2. Pribram e outros (1960), pág. 9.
3.Gellhorn(1957).
4. Veja Koestler (1964), Livro I, Caps. V-XI.
5. Hadamard(1949).
6. Popper(1975).
7. Ibid.
8. Koestler (1964, 1968 etc).
9. Szent-Györgyi(1957).
10. Gombrich (1962), págs. 9, 120.

PARTE III: EVOLUÇÃO CRIATIVA


Capítulo IX: Cidadelas em Ruínas (págs. 179 a 206)
l.Skinner (1953), págs. 30-31.
2.Jaynes(1976), pág. XX.
3. Watson (1928), págs. 198 ss.
4.Skinner(1953),pág.252.
5. Ibid., págs. 108-109.
6. Skinner(1957), pág. 163.
7. Ibid., pág. 438.
343
8. Ibid., pág. 439.
9. Ibid., pág. 150.
10. Ibid., pág. 206.
11. Koestler(1967), pág. 12, nota.
12. Chomsky(1959).
13. Cfr.,p. ex.,Macbeth(1971).
14. Huxley, J. (1957), citado por Eisley (1961), pág. 336.
15. Waddington (1957), págs. 64-65.
16. von Bertalanffy (1969), pág. 67.
17. Ibid.
18. Hardy (1965), pág. 207.
19. von Bertalanffy (1969), pág. 65.
20. Huxley, J. (1954), pág. 14.
21. Waddington (1952).
22. Monod (1971), pág. 121.
23. Ibid., pág. 122.
24. Ibid.
25. Ibid., pág. 146.
26. Darwin, citado por Macbeth (1971), pág. 101.
27. Koestler( 1967), págs. 128-129.
28. Grasse (1973).
29. Tinbergen(1951), pág. 189.
30. Ibid., pág. 9.
31. Macbeth (1971), págs. 71-72.
32. von Bertalanffy (1969), pág. 66.
33. Jenkin(1867).
34. Hardy (1965), pág. 80.
35. Darwin, F., citado por Hardy (1965), pág. 81.
36. Bateson (1902).
37. Grasse (1973), pág. 21.
38. Ibid., pág. 351.
39. Ibid.
40. Ibid.
41. Bateson, G.. comunicado particular, 2 de julho de 1970.
42. Bateson, W. (1913), pág. 248.
43. Johannsen (1923), pág. 140.
44. Butler(ed. 1951), pág. 167, citado por Himmelfarb (1959), pág362
45. Monod (1971), pág. 118.
46. Beadle(1963).
344
47. Grasse (1973), pág. 369.
48. Simpson, Pittendrigh e Tiffany (1957), pág. 330.
49. Grasse (1973).
50. Gorini(1966).
51.Koestler (1967), pág. 133 — baseado em de Beer (1940) pág. 148,
e Hardy (1965), pág. 212.
52. Cannon (1958), pág. 118.
53. Monod(1971), pág.9.
54. Ibid., págs. 21-22.
55. Grasse (1973), pág. 277.

Capítulo X: Lamarck Revisitado (págs. 207 a 218)


1. Kammerer, in New York Evening Post, 23 de fevereiro de 1924.
2. Simpson (1950), citado por Hardy (1965), pág. 14.
3. Thomson (1908), citado por Wood Jones (1943), pág. 9.
4. Darlington, no Prefácio da reedição de On the Origin of Species
(1950).
5. Spencer(1893), Vol. I, pág. 621.
6. Haldane (1940), pág. 39.
7. Huxley.J. (1954), pág. 14.
8. McConnell(1965).
9. The Times, Londres, 26 de junho de 1970.
10. Grasse (1973), pág. 366.
11. Ibid., pág. 367.
12. Koestler (1971), pág. 130.
13. Koestler (1967), págs. 158-159.
14. Waddington (1957), pág. 182.
15. Ibid.
16. Koestler e Smythies (1969), págs. 382 ss.
17. Wood Jones (1943), pág. 22.
18. Citado por Smith (1975), págs. 162-163.

Capítulo XI: Estratégias e Propósito na Evolução (págs. 219 a 240)


1. Simpson, Pittendrigh e Tiffany (1957), pág. 472.
2. Simpson (1949), pág. 180.
3. Spurway(1949).
4. Whyte(1965).
5. Waddington (1957), pág. 79.
6. Hardy (1965), pág. 211.
7. Koestler (1967), págs. 148-149.
345
8. Simpson (1950), citado por Hardy (1965), pág. 14.
9. Sinnott(1961),pág.45.
10. Muller (1943), citado por Sinnott (1961), pág. 45.
11.Coghill(1929).
12. Hardy (1965), pág. 176.
13. Ibid.,págs. 172, 192-193.
14. Huxley,J. (1964), pág. 13.
15. Hardy (1965), de Beer (1940), Takhtajan (1972) e Koltsov (1936).
16. Koestler(1967),págs. 163-164.
17. Young (1950), pág. 74.
18. de Beer (1940), pág. 118.
19. Citado por Takhtajan (1972).
20. Ibid. 21.Koestler(1967),pág. 166.
22. Hamburger(1973).
23. Herrick(1961).
24. Schrödinger(1944), pág. 72.
25. Szent-Györgyi(1974).
26. Ibid.
27. Grasse (1973), pág. 401.
28. Waddington(1961).

PARTE IV: NOVOS HORIZONTES

Capítulo XII: Livre-Arbítrio num Contexto Hierárquico (págs. 243 a


254)
1. Hardy (1965), pág. 229.
2. Thorpe (1966a).
3. Heisenberg (1969), pág. 113.
4. Pauli (1952), pág. 164.
5. Popper(1950).
6. Polanyi(1966).
7. MacKay(1966).

Capítulo XIII: Física e Metafísica (págs. 255 a 286)


1. New Scientist, 25 de janeiro de 1973, pág. 209.
2. Capra (1975), pág. 52.
3. Newton, citado por Capra (1975), pág. 57.
4. Russell(1927), pág. 163.
5. Capra (1975), pág. 77.
6. Koestler (1972, 1973 e 1976).
346
7. Heisenberg, citado por Burt (1967), pág. 80.
8. Heisenberg (1969), págs. 63-64.
9. Koestler (1972), pág. 51.
10. Eccles (1953), pág. 276-277.
11.Ibid.,pág. 279.
12. Firsoff (1967), págs. 102-103.
13. Dobbs(1967).
14. Walker(1973).
15. Heisenberg (1958), págs. 48-49.
16.Jeans(1937).
17. Hoyle(1966).
18. Wheeler, citado por Chase (1972).
19. Wheeler (1967), pág. 246.
20. Margenau (1967), pág. 218.
21.Bohm e Hiley(1974).
22. Margenau (1967), pág. 218.
23. Jung (1960), pág. 318.
24. Ibid., pág. 435.
25. Ibid., pág. 420.
26. Kammerer (1919), pág. 93.
27. Ibid., pág. 165.
28. Ibid., pág. 456.
29. Citado por Przibram (1926).
30. Koestler (1973), págs. 191-193.
31.Pauli(1952).
32. Ibid., pág. 164.
33. Jung (1960), pág. 514.
34. Schopenhauer(1859).
35. delia Mirandola (1557), pág. 40.
36. Weaver(1963).
37. Bohm(1951).
38. Schrödinger (1944), pág. 83.
39. Harvie (1973), pág. 133.
40. Price, citado por Dobbs (1967), pág. 239.
41.Dobbs(1967),pág. 239.
42. Burt (1968), págs. 50, 58-59.
43. Grasse (1973), pág. 401.
Capítulo XIV: Uma Espiadela pelo Buraco da Fechadura (págs. 287
a 299)
1. Wallace, citado por Macbeth (1971), pág. 103.
347
2. Citado por Macbeth (1971), pág. 103.
3. Herrick (1961), págs. 398-399.
4. Wallace, citado por Macbeth (1971), pág. 103.
5. Koestler (1967), págs. 297 ss.
6. Koestler (1959), pág. 55 e (1964), pág. 342.
7. Butterfield (1924), pág. 104.
8. Huxley,J. (1954), pág. 12.
9. Margenau (1967), págs. 223-224.
10. Price (1949), págs. 105-113.
11. New Scientist, 21 de abril de 1977.
12. Ibid.
13. Ibid.
14. Koestler (1937 e 1954).

APÊNDICES

Apêndice I.Além do Atomismo e do Holismo — O Conceito de Hólon


(págs. 300 a 324)
1. von Bertalanffy(1952).
2. Koestler (1967).
3. Koestler e Smythies, edits. (1969).
4. Chomsky(1965).
5. Tinbergen (1951); Thorpe (1956).
6. Herrick (1961); Weiss, edit. (1950) etc.
7. Simon(1962).
8. Thompson (1942).
9. Koestler (1967).
10. von Bertalanffy(1952).
11. Waddington(1957).
12. Ibid.
13. Tinbergen (1951).
14. Koestler e Jenkins (1965).
15. Penfield e Roberts(1969).
16. MacLean(1958).
17. Wiess, in Jefress, edit. (1951).
18. Hebb(1958).
19. Bartlett(1958).
20. von Bertalanffy(1952).
21.Child(1925).
22. Miller e outros (1960).
348
Apêndice II: Uma Experiência de Percepção (págs. 325 a 330)
1. P. ex.: Sperling (1960), Averbach (1963), Broadbent (1963).
2. Osgood(1953).
3. Woodworth e Schlosberg (1954).
4. Ibid., pág. 697.

Apêndice III: Notas sobre o Sistema Nervoso Autônomo (págs., 330 a


331)
1. Allport(1924). 2.Olds(1960).
3. Hebb(1949).
4. Pribram(1966).
5. Gellhorn(1963).
6. Ibid.
7. Cobb(1950).
8. Pribram(1966), pág. 9.
9. Gellhorn(1957).

Apêndice IV: OVNIs — Um Festival de Disparates (págs. 332 a 339)


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