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AS HORAS VULGARES

um roteiro de
Rodrigo de Oliveira
e
Vitor Graize

Baseado no romance Reino dos Medas


de Reinaldo Santos Neves

Tratamento final
junho/2010
AS HORAS VULGARES

SEQÜÊNCIA 1 – RUAS DO CENTRO DE VITÓRIA - EXT/DIA

Vitória, início dos anos 2000.

Um carro antigo segue pela zona portuária de Vitória. O


trânsito pouco intenso permite que o carro cruze as pistas
com alguma facilidade, até entrar pela região do Parque
Moscoso e iniciar um trajeto de subidas e descidas pelas
ladeiras da Cidade Alta, no centro da cidade. Vemos sempre o
carro a partir de seu exterior, seguindo-o e acompanhando seu
movimento. Algo está colocado no porta-malas do carro, de
modo que ele permaneça parcialmente aberto durante todo o
trajeto, preso por umas poucas cordas, mas ainda assim é
impossível distinguir o que se trata.

No cruzar de uma esquina, passamos a ver o carro pela


lateral. Não há porta no lado do motorista, e assim podemos
ver inteiramente o condutor. É LAURO, vinte e oito anos,
branco de cabelo castanho claro, óculos redondos de armação
preta, roupa casual. No banco de trás agora se vê um enorme
contrabaixo acústico atravessando quase toda a extensão do
carro, com seu braço protegido por alguns panos e o porta-
malas entreaberto. Com a câmera já dentro do carro, variamos
os pontos de vista entre a lateral, a frente e os fundos.
Lauro dirige com calma, e no ponto da cidade em que está
agora já não há trânsito nenhum. Ao fim de uma ladeira muito
íngreme, ele finalmente estaciona.

SEQÜÊNCIA 2 – IGREJA DE SÃO GONÇALO - INT/DIA

É uma igreja ampla, com um pé direito altíssimo, mas


completamente destituída dos adornos tradicionais, vitrais ou
qualquer tipo de decoração – as paredes são todas brancas,
lisas. Existem apenas os bancos de madeira enfileirados,
formando um corredor no centro do lugar, e ao fundo um
modesto altar com uma imagem de São Gonçalo e outra de Jesus
Cristo. As enormes portas frontais e laterais da igreja
deixam o ambiente muito iluminado.

Não há ninguém mais na igreja a não ser CLARA. Branca,


cabelos castanhos, vinte e sete anos, vestido preto de alças
finas, ela está ajoelhada na extremidade do primeiro banco

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diante do altar, e reza, mas à distância só podemos ouvir
sussurros indistintos.

Agora estamos próximos do rosto de Clara, e a inversão de


ângulo nos dá a ver as portas e a rua lá fora. De olhos
fechados e mãos afastadas e apoiadas sobre o encosto do
banco, Clara segue rezando.

CLARA
Senhor, protegei-nos, porque somos
os eleitos, ou somos os cães.

A frase é repetida aos sussurros, várias vezes. Segundos


depois, Clara faz um sinal da cruz, e então abre os olhos
pela primeira vez. Seu olhar atravessa a imagem, na direção
do altar que está fora de quadro. Ouvimos PASSOS cada vez
mais se aproximando de onde Clara está, e logo ela desviará
seu olhar para o lado oposto, e com um sorriso dirá baixinho
um “vamos?”.

SEQÜÊNCIA 3 – IGREJA DE SÃO GONÇALO - EXT/DIA

De mãos dadas, saem da igreja CLARA e LAURO. Conversam algo


que não podemos ouvir. Eles atravessam o pequeno pátio
gradeado na frente da igreja e descem a rua paralela a ela.
Ao fundo vemos o mesmo carro da seqüência 1 estacionado. Os
dois caminham até ele, entram e o carro parte.

SEQÜÊNCIA 4 – APARTAMENTO DE LAURO - INT/DIA

É uma espécie de loft, com um grande espaço aberto, sem


divisórias ou quartos fechados. Há apenas uma cama colocada
de pé contra uma parede, alguns sacos de lixo num canto, uma
caixa de papelão com alguns objetos e uma mala de viagem no
lado oposto. As janelas sem cortinas deixam o ambiente tomado
pela luz do dia. Um RUÍDO DE CHAVES NA FECHADURA, e logo
CLARA entra no apartamento, esperando que Lauro entre também.
É ele quem fecha a porta. Lauro observa o ambiente.

CLARA
Bem-vindo ao seu novo lar.

Depois do abraço, os dois se separam. Clara caminha até as


janelas, para fechá-las, mas a luz do dia segue preenchendo o
ambiente da mesma maneira.

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LAURO
É tão estranho ver o lugar vazio
assim. É como se fosse outro, como
se fosse a primeira vez que o vejo.

CLARA
E você cuide muito bem daqui, viu?

LAURO
Claro, claro. Tem pedaços de mim em
cada canto dessa casa. Seus também.
Dos amigos todos, né.

CLARA
Você vai ser feliz aqui, Lauro.
Feliz de um jeito que você não
conhece ainda.

Os dois se entreolham, e sorriem. Clara agora organiza os


sacos de lixo, fechando-os.

LAURO
Clara, você precisa de ajuda com
alguma coisa?

CLARA
Não, não... Só pega uma outra caixa
igual a essa aqui que tá lá no
banheiro, por favor. O resto já foi
com o pessoal da mudança.

Lauro caminha na direção do banheiro, e o seguimos. Com a


caixa nos braços, volta ao espaço central, e encontra Clara
parada no centro.

CLARA
Deixa ela aqui do lado da outra, eu
preciso levar isso.

Lauro abaixa-se e deixa a caixa no chão. Os dois estão de


frente agora. O silêncio dura alguns instantes, e é quebrado
por um riso meio constrangido de Lauro.

LAURO
O que foi?

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CLARA
Duas coisas. Primeiro...

Clara alcança em seu pescoço um pequeno cordão dourado com um


pingente. Ela o retira de si, colocando-o agora em Lauro. A
maneira como Clara conduz a situação é quase ritualística, e
Lauro permanece imóvel, deixa-se envolver pelo cordão e pelas
mãos da amiga. Quando o cordão já está preso em seu pescoço,
podemos ver seus rostos bem próximos um ao outro.

CLARA
Primeiro era isso.

Clara ajeita o cordão no peito de Lauro, e então o coloca


para dentro da camisa do rapaz. Sua mão permanece no peito
dele.

CLARA
Você nunca me pintou. Eu queria que
você fizesse isso agora. Essa é a
segunda coisa.

LAURO
Mas não tenho nada aqui...

CLARA
Um esboço só. Depois você me manda
quando ficar pronto.

Clara abaixa-se e começa a mexer na caixa maior. De lá tira


um calhamaço de folhas de desenho e três lápis de carvão.
Agora já está novamente de pé, diante de Lauro.

CLARA
Tá aqui a primeira mobília da sua
casa nova!

Ambos riem. Ela oferece as folhas e os lápis a ele. Lauro


parece sem jeito, pego de surpresa. Ainda um pouco atônito,
ele se afasta até encontrar um pequeno banco de madeira que
estava no canto oposto da sala. Arrastando-o, Lauro se senta
bem no centro do lugar. Clara caminha de costas, devagar, até
encostar-se numa parede.

Os dois não param de se olhar nem por um segundo. Lauro ainda


tenta checar as pontas dos lápis, mas seus olhos são atraídos
o tempo todo para a figura de Clara, como se a possibilidade

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de fazê-la objeto de sua arte também a tornasse nova, inédita
para ele.

Clara então remove uma das alças do vestido. Sua imagem se


alonga, e podemos ouvir em off o RUÍDO DO LÁPIS e de FOLHAS
SENDO VIRADAS no calhamaço.

De volta a Lauro, ele parece ainda mais indeciso quanto ao


que desenhar. Num impulso, ele se levanta e vai até a parede.
De frente para Clara, seus rostos estão a poucos centímetros
de distância.

LAURO
Eu não saberia, Clara... Eu não
saberia como.

CLARA
Eu queria te pedir uma outra coisa
então... Eu gostaria que você
chorasse.

LAURO
Por que?

CLARA
Porque acho que eu me emocionaria.
Pela última vez, pelo menos.

Com uma das mãos, Lauro acaricia os cabelos de Clara, retira


sua franja de frente da testa, atinge delicadamente o
contorno de seus olhos. Lauro então volta até o banco de
madeira. Clara então retira a parte de cima do vestido e,
segurando-o à altura da cintura, tem agora o peito nu.

Vemos agora apenas o rosto de Lauro. Ele olha na direção onde


Clara está e calmamente inicia alguns traços, a princípio sem
sequer olhar para o papel. O plano se alonga, e agora Lauro
já começa a desenhar de maneira mais rápida, baixando os
olhos até o papel e depois retornando à visão de Clara. Na
terceira vez em que repete este movimento, uma lágrima
escorre pelo rosto de Lauro. Daqui para adiante, seu choro
aumenta de intensidade. Os olhos vermelhos, transtornados
pelas lágrimas, eventualmente um leve sorriso, e a dedicação
aos traços do retrato, cada vez mais firmes. Em algum
momento, Lauro tenta enxugar as lágrimas afastando um pouco
seus óculos com os dedos, e podemos ver sua mão completamente
manchada pelo negro do carvão. E não saímos do rosto dele até

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que Lauro finalmente termine o retrato. Num suspiro, Lauro
abre pela primeira vez um sorriso largo, indicando o fim da
tarefa, mas não vemos o resultado do trabalho. Na banda
sonora, ouvimos em off o RUÍDO DE UM MOTOR DE BARCO E DE ÁGUA
SENDO AGITADA.

SEQÜÊNCIA 5 – PÍER À BEIRA-MAR - EXT/DIA

É um pequeno píer que se estende alguns metros para dentro do


mar. O ruído do motor que terminava a seqüência anterior
agora se justifica: há um barco ligado atracado ali, com o
BARQUEIRO já em seu posto. Ainda em terra firme, num deque de
madeira diante do píer, LAURO está segurando a caixa de
papelão grande que víramos antes. No chão, a mala de viagem e
a caixa menor. CLARA está de frente para Lauro, e os dois
conversam algo que não ouvimos. Lauro então equilibra a caixa
com uma das mãos e com a outra alcança a mala de viagem.
Clara vem logo atrás dele com a caixa menor, e os dois
atravessam o píer na direção do barco.

As caixas e a mala são colocadas no interior da embarcação.


Com um longo abraço, Lauro e Clara se despedem, e ela entra
no barco. Instantes depois, o barqueiro zarpa, e vemos o
barco se afastar da costa.

Lauro fica parado à beira do píer, observando o barco se


afastar. No fundo do quadro vemos um homem correr na direção
dele. Aproximando-se de Lauro, sua figura ganha mais
definição. É THÉO, vinte e nove anos, moreno claro, cabelos
negros, que chega esbaforido. Lauro vira-se para Théo e o
envolve com o braço.

THÉO
(ainda ofegante)
É isso que vai me sobrar dela, né?
Um barquinho ficando cada vez menor
e mais distante.

LAURO
Ela só pediu uma coisa. Ela pediu
que você escrevesse pra ela,
sempre. Sempre.

Agora vemos apenas o rosto de Théo olhando para o mar, o


braço de Lauro ainda aparecendo ao redor de seu pescoço. Ele
acompanha o movimento do barco com os olhos.

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TELA PRETA

LETREIROS: “VOCÊ PEDIU QUE EU ESCREVESSE. E AQUI ESTOU EU,


CLARA”.

CRÉDITOS DE INÍCIO

SEQÜÊNCIA 6 – THEATRO CARLOS GOMES - INT/DIA

Um ano e vinte dias após a partida de Clara.

Vemos THÉO em plano muito próximo, apenas seu rosto à medida


que atravessa um corredor escuro nos bastidores do teatro.
Tem a barba por fazer e os cabelos mais curtos que na
seqüência anterior. Por vezes olha para suas mãos no fora de
quadro, como se estivesse regulando um objeto qualquer. Logo
a escuridão é substituída pela luz quente do palco. Seguimos
sempre com o rosto de Théo, até que ele se aproxime do centro
do palco e, por sua movimentação, vejamos que agora está no
entorno de um piano.

Com movimentos muito suaves, Théo se abaixa e se levanta na


direção da cauda do piano, e a cada nova ação tomamos mais
conhecimento da extensão do instrumento e do local em que ele
se encontra.

Num plano mais aberto, vemos a cauda do piano por inteiro,


sua tampa levantada, Théo debruçado sobre as cordas. Veste um
cinto de ferramentas de onde tira eventualmente uma lixa,
algodão, niveladores de tamanhos diversos.

Agora estamos diante das cordas do piano, e o corpo de Théo


invade e abandona o quadro à medida que seu trabalho
continua. Théo está terminando de afinar o piano, e o
silêncio absoluto do lugar é quebrado apenas por pequenos
testes de som que ele realiza nas cordas, enquanto lixa
delicadamente um dos martelos ou então quando prende o
nivelador num dos batentes.

Do ponto de vista do palco, podemos agora ver o piano


compondo o cenário de uma orquestra esvaziada: estão ali
apenas as cadeiras dos músicos, alguns pedestais, o púlpito
do maestro, mas não há nenhum instrumento a não ser aquele em
que Théo trabalha. Ele finalmente alcança as teclas do piano,

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quatro ou cinco toques que conferem a afinação desta última
oitava a que se dedicava.

Um plano geral tomado do lado oposto ao palco registra agora


o teatro em toda sua grandeza. Os balcões, a platéia, o
enorme lustre sob a cúpula clássica preenchida por afrescos.
Não há ninguém por ali a não ser Théo. Ouvimos apenas seus
PASSOS sobre a madeira velha do palco, o RUÍDO DE SUAS
FERRAMENTAS à medida que as guarda numa mochila encostada ao
pé do piano. Movimentando-se pelo espaço, Théo agora
atravessa as cadeiras lentamente, como se estudasse a
localização geográfica de cada um daqueles músicos
imaginários. Num pedestal à direita detém-se no livro de
partituras colocado ali. Depois de folhear algumas páginas,
parece ter encontrado o que procurava. Théo então volta ao
piano, e agora senta-se nele. O livro de partituras é
colocado sobre o teclado, e depois de alguns segundos de
concentração, Théo começa a dedilhá-lo, como se estivesse
fazendo um teste final para seu trabalho de afinação. A
melodia invade aos poucos a imagem, e é a GNOSSIENNE #1 de
Erik Satie que Théo executa. Seus movimentos são calmos e
calculados, como se qualquer gesto mais brusco pudesse
impedir a avaliação da vibração e da harmonia de seu
trabalho. Mas tão logo alcance a virada da primeira para a
segunda parte da música, Théo interrompe bruscamente a
execução da peça. Rapidamente ele tampa o teclado do piano,
recolhe sua mochila e, checando por uma última vez a cauda
ainda aberta do instrumento, sai pela coxia.

SEQÜÊNCIA 7 – PRAÇA COSTA PEREIRA/AV. BEIRA MAR - EXT/DIA

THÉO sai pela porta da frente do teatro. Atravessa a rua e


atinge a Praça Costa Pereira, onde várias pessoas seguem com
a vida, alguns velhos jogando dominó, crianças brincando
perto de suas mães, alguns policiais próximos da guarita,
gente apressada cruzando a extensão da praça, uma senhora
evangélica fazendo a pregação para fiéis desatentos. Devagar,
Théo caminha na direção da avenida. Parado diante de um sinal
de trânsito, logo se mistura à multidão.

Alguns segundos depois, Théo está diante do mar e do porto de


Vitória. O sol de fim de tarde dá um brilho particular à
vista. Théo acende um cigarro encostado na mureta de proteção
da avenida. Observa o trânsito por um tempo, automóveis e
ônibus cruzando a rua à sua frente, os RUÍDOS da urbanidade
se chocando diretamente contra o silêncio secular do teatro.

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Pouco tempo depois, Théo decide seguir na direção do ponto de
ônibus. Desatento, não parece esperar por nenhuma linha em
particular. Entra logo no primeiro veículo que aparece.

SEQÜÊNCIA 8 – ÔNIBUS - INT/DIA

O ônibus está relativamente vazio para o horário. THÉO cruza


a roleta e se senta num banco na parte traseira. É agora a
partir de seu ponto-de-vista que veremos a movimentação dos
passageiros dentro do veículo, sempre conjugados com imagens
do próprio Théo tomadas contra a janela e a paisagem
cambiante da cidade lá fora.

O ônibus cruza a cidade. Pelos vidros vemos as longas


avenidas do Centro à Praia do Suá. Parando no ponto do
shopping, a aglomeração de gente do lado de fora é grande. Um
GRUPO DE QUATRO MENINAS entra no ônibus. São todas falantes,
despertam aquele espaço da calmaria original. À frente segue
uma MENINA LOIRA, quinze anos de idade, ainda de uniforme de
colégio, como o das amigas. Todas elas se sentam bem próximas
ao trocador, e continuam a conversa.

Já estamos na altura da Praia de Camburi. Théo segue


mergulhado na paisagem da janela até que o ônibus pare
novamente em outro ponto. UM VELHO entra no ônibus, e tem
dificuldades de subir. UM HOMEM NEGRO que sentava-se à
frente, próximo ao motorista, levanta-se para ajudá-lo. Logo
depois de acomodá-lo, o homem negro confere com ele qual será
seu destino, sopra algumas palavras para o motorista e então
atravessa a roleta e passa por Théo até atingir a porta de
saída nos fundos do veículo.

O ônibus entra agora pela Mata da Praia, e a configuração dos


passageiros já se alterou completamente. As meninas do
colégio já não estão mais ali, e em seu lugar UMA MULHER pede
informações ao trocador enquanto seu MARIDO senta-se com um
BEBÊ no colo.

Já estamos na Reta da Penha, e agora o ônibus está mais cheio


do que nunca. UM CARTEIRO, depois de passar pela roleta, vem
se desviando de alguns passageiros que estão de pé até se
sentar ao lado de Théo.

Diante da Escola Técnica, na Avenida Vitória, UM GRUPO DE


ESTUDANTES entra no ônibus, seguidos por um policial fardado.

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Enquanto os meninos encontram seu lugar por alguns dos bancos
agora já vazios de novo, o policial permanece na dianteira do
veículo, conversando com o motorista.

O trajeto longo e aleatório de Théo acompanha o entardecer, o


sol cada vez mais baixo. Um ponto da Avenida Jerônimo
Monteiro anuncia que Théo está de volta ao Centro. Junto com
alguns outros passageiros, Théo faz fila para descer do
ônibus. O Centro agora já está se esvaziando, as calçadas
mais livres. Théo caminha sob as marquises das lojas, algumas
já fechadas, outras ainda com movimento. Na pequena ruela
diante da Escola Fafi, Théo dobra a esquina e o perdemos de
vista.

SEQÜÊNCIA 9 – CENTRO DE VITÓRIA - EXT/ANOITECER

THÉO atravessa a Rua Sete, os bares ainda fechados,


pouquíssimas pessoas pelo lugar. O céu ainda está
relativamente claro, algumas nuvens negras se acumulam por
sobre os prédios. Num boteco ele conversa com um ATENDENTE no
interior e, depois de alguns segundos, tira uma nota do bolso
e recebe uma cerveja de garrafa.

Andando por uma praça onde algumas crianças brincam de bola


na quadra de futebol cimentada, ele alcança um banco, e se
senta. Junto com a cerveja, agora acende um cigarro. Observa
a rua, praticamente deserta, poucos carros estacionados.

Agora Théo avança por uma ladeira íngreme. A noite se


aproxima, o céu já mais escuro, e a pouca iluminação pública
deixa a rua quase na escuridão completa. Ouvimos apenas os
PASSOS de Théo, sua RESPIRAÇÃO, o ruído da GARRAFA DE VIDRO
batendo contra o fundo de uma lata de lixo que ele cruza no
caminho.

Descendo a ladeira na calçada oposta, vemos o vulto de um


homem, indistinto. Suas feições se revelam e se apagam à
medida que atravesse alguns pontos de iluminação mais
intensa. Mais próximo de Théo, que segue subindo a ladeira, a
figura do homem se perde completamente no breu. O homem passa
por Théo, que para, se vira na direção da figura que já lhe
dá as costas, e murmura.

THÉO
Lauro. Lauro...

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Do outro lado da calçada LAURO para, e vira-se para Théo.
Este atravessa a rua e vai ao encontro do amigo, que está num
dos pontos mais escuros do lugar. Lauro veste uma jaqueta,
uma camiseta, os cabelos mais curtos que nas seqüências
iniciais, e está sem óculos. Lauro recebe Théo com um
sorriso, e se dão um abraço longo. Terão sempre os rostos
muito próximos um do outro agora, Lauro eventualmente
alcançando o pescoço e os ombros de Théo, como que chamando
atenção para o que diz. Lauro está muito agitado, sua fala é
descompassada, às vezes afobada, às vezes se perdendo no meio
dos pensamentos.

LAURO
Como eu senti a sua falta, cara.
Outro dia mesmo eu fui no parque,
estava todo mundo lá menos você,
achei tão estranho... Perdi seu
telefone, não te encontrava. Tanta
coisa pra falar contigo, tanta
coisa. Que bom te ver hoje. Era
justamente quem eu queria encontrar.

THÉO
Também senti sua falta. Ninguém mais
te viu, ninguém sabia o que estava
fazendo.

LAURO
Ah, cara, eu estou sempre por aqui.
E a Clara, tem falado com ela?

THÉO
Sim, claro. A gente ainda tá junto.

LAURO
Claro, sempre estiveram.

THÉO
Sempre estivemos.

LAURO
A Clara é alguém de quem não se
esquece. E como ela está, está bem?

THÉO
(rindo)

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Sim, tá bem sim. Ela vai ficar feliz
de saber que você não esqueceu dela.
Ela sempre pergunta de você, cara.
Ela se preocupa muito contigo,
Lauro.

LAURO
Ela soube?

THÉO
Todo mundo soube.

LAURO
Mas eu estou bem já, muito melhor.
Tenho pintado muito. E tão bem!
Pintado cores, muitas cores. Você
precisa ir lá em casa ver um dia.

THÉO
Faz tempo que eu não vejo as suas
coisas. Duvido até dessas cores
aí... E faz tempo que não vejo a
Érika também. Não me lembro nem da
última vez...

LAURO
(rindo)
A Erika sente sua falta também. Mas
pode deixar que eu não vou contar
pra ela que você esqueceu.

THÉO
A Clara tem um ciúme danado dela,
mas sempre finge pra mim que não.

LAURO
A Clara... Era com ela que eu mais
gostaria de ficar esta noite, cara.
Mas ela está tão longe, né? Onde ela
está agora?

THÉO
Lá mesmo.

LAURO
Lá mesmo...

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THÉO
Ela diz que é muito bonito, mas eu
não saberia dizer.

Lauro agora prende as duas mãos nos cabelos de Théo, leva


algum tempo acariciando-os, desce as mãos até o rosto do
amigo. Théo não tira os olhos de Lauro.

LAURO
Você é como um irmão pra mim, cara.
Meu irmão mais velho. E eu nunca te
disse isso antes. De vez em quando a
gente precisa de um irmão do nosso
lado. De um irmão, de uma irmã. E é
uma coincidência fodida eu te
encontrar aqui hoje. O que foi?

THÉO
Nada. Estranho você sem óculos.

LAURO
Ficam no bolso agora.

Lauro se afasta um pouco de Théo, e busca no bolso da jaqueta


seus óculos. Abrindo a armação, coloca os óculos em Théo.

LAURO
Ficam melhor em você.

Théo retira os óculos, e os coloca ele mesmo de volta no


bolso de Lauro.

THÉO
E pra onde você estava indo?

LAURO
Andando, só. Anda comigo.

Os dois então seguem descendo a ladeira, lado a lado, vistos


sempre de costas.

TELA PRETA

LETREIROS: “E NESSA RUA O LAURO ME DIZ QUE ESTA É A NOITE EM


QUE VAI MORRER”.

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CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 10 – VIADUTO CARAMURU - EXT/NOITE

THÉO e LAURO descem outra ladeira, que desemboca no viaduto


por onde agora caminharão. Pegamos a conversa dos dois já
pelo meio.

THÉO
Agora o teatro tá com piano novo,
então vou ficar mais por aqui mesmo.
Mas eu gostava de viajar. O afinador
mais barato do Estado, todo mundo me
chamava.

LAURO
E você tem tocado?

THÉO
Só quando ninguém está ouvindo.

LAURO
Tem sempre alguém ouvindo, rapaz. Eu
te escuto toda hora, mesmo que você
nunca tenha tocado pra mim.

THÉO
Amanhã de manhã...

Lauro fala agora com absoluta calma.

LAURO
Você pode pelo menos me dizer até
quando eu vou ter que ficar
esperando por um amanhã que seja
realmente um amanhã de manhã?

THÉO
A noite faz a gente ter idéias
diferentes, cara. Mas a verdade
mesmo a gente conhece de dia.

LAURO
E que transformação a luz do sol vai
fazer nisso aqui?

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Lauro diz esta última frase apontando para o horizonte do
centro, já bem no meio do viaduto. Théo se debruça no
parapeito, olhando para a rua lá embaixo. Lauro chega pela
esquerda do quadro e também se debruça ali. Agora vemos os
dois a partir do exterior do viaduto.

LAURO
Eu olho pra essa cidade vazia,
sempre vazia, e só consigo ver
locais de crime. Crimes que a gente
nunca viu, cometidos por pessoas que
a gente nunca vai conhecer. Mas eu
vejo o lastro, cara. Você não vê? É
tão óbvio. Cada canto dessa cidade
testemunhou algo terrível, e é por
isso que ela se cala desse jeito. Só
pode ser por isso...

THÉO
Ela já estava assim quando a gente
chegou, e você também achava que
isso era bom. Era um gesto de
gentileza, você sempre me dizia: “a
cidade fica quieta pra que a gente
possa falar”.

Théo fica ereto agora, falando para um Lauro de costas, ainda


debruçado no parapeito.

THÉO
Nós também somos culpados por esses
crimes que você fala. A gente
escolheu não ser inocente e esse
lugar perdoou cada falta nossa.

LAURO
Mas isso é pouco, cara. O que é que
eu e você podemos fazer pra
retribuir essa gentileza toda?

Théo permanece imóvel, não olha para Lauro. Na rua, nenhum


sinal de movimento.

LAURO
É por isso que eu gosto da chuva.
Ela vem e preenche esse espaço que a
gente não quer mais habitar. Parece

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que as coisas têm um outro sentido.
Dá sempre a impressão de que tudo
mudou, e que agora tudo vai
melhorar. Ou pelo menos ela vai
lavar de vez o rastro deixado por
esses criminosos todos... Por nós
todos.

Théo agora olha fixamente para Lauro.

LAURO
Mas se for pra ter um cúmplice na
vida, eu prefiro que seja a chuva.

Lauro lança um sorriso e um afago no ombro de Théo ao falar


esta última frase. E então prossegue.

LAURO
Eu sei que não melhora porra
nenhuma, nunca. Mas mesmo assim eu
nunca chego a me decepcionar. Se não
foi dessa vez, vai ser da próxima.
Eu posso esperar, você também pode,
cara. É uma espécie de superstição,
claro. Mas a gente precisa acreditar
em alguma coisa. Tem gente que
acredita em gatos, tem gente que
acredita em Deus, tem gente que
acredita no fogo. Você acredita na
Clara, no amor que sente pela Clara.
Eu acredito na chuva.

THÉO
Mas hoje não vai chover. E o que a
gente faz com tudo isso?

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 11 – PRAIA DA CURVA DA JUREMA - EXT/NOITE

Alguns dias após a partida de Clara.

A chuva acaba de cessar, temos apenas algumas goteiras aqui e


ali, o chão ainda molhado. Abrigados sob o telhado de um
quiosque estão THÉO, FRA, rapaz alto, vinte e três anos,

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cabelo e barba aloirados, NEGRO, vinte e sete anos, homem
alto, de mãos largas e gestos expansivos, JÚLIA, vinte e sete
anos, pele muito alva, cabelos castanhos e longos, ERIC,
vinte e dois anos, moreno franzino, cabelos crespos, e
ROGÉRIO, loiro de cabelos longos e corpo esguio, além de
LUISA, SANDRO e LINCOLN. Todos os outros quiosques estão
fechados e não há movimento nenhum na Curva a não ser pelo
grupo de amigos. No lugar em que estão, vemos uma porta do
bar aberta, luz saindo de lá, um ATENDENTE solitário que
surge de relance à medida que se movimenta no interior.

Os amigos brincam de “Quem Sou Eu?”, jogo em que os


participantes recebem um papel colado na testa onde se lê o
nome de uma personalidade que têm de adivinhar a partir de
pistas perguntadas aos outros na roda. Uma rodada acaba de
terminar, e os amigos se divertem com o resultado da partida
enquanto retiram os papeizinhos da testa e se rearranjam nos
bancos de madeira. É Júlia quem comanda o jogo, pegando agora
outro bloco de papel na bolsa e começando a escrever ali os
nomes da próxima rodada. Nesse momento Negro se levanta e
busca mais uma cerveja com o atendente, juntando o casco da
cerveja recém-terminada a um grupo de garrafas vazias
colocadas ao lado do grupo, numa mesa separada. Théo se
levanta junto com ele, mas vai para o lado oposto do
quiosque, ficando à beira do telhado, onde ainda goteja água.
Théo olha para o mar.

Júlia distribui os papéis pelas testas dos amigos, colando-os


com sua própria saliva, motivo para mais piadas e gargalhadas
do grupo. Negro não retorna, indo se sentar mais afastado
deles e servindo a cerveja apenas para si.

JÚLIA
Negro, vem! Vai começar.

NEGRO
Eu vou pular essa, Julinha, pode ser?

Lincoln e Sandro rechaçam a opção de Negro em não participar.


Júlia havia guardado o papelzinho de Negro mas, diante de sua
negativa, substitui aquele que vemos colado em Fra por um
onde se lê “Gil”. Eric se levanta logo depois.

ERIC
Não posso deixar meu chefe beber
sozinho, né?

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Eric se aproxima de Negro, e bebe do copo dele. O grupo
começa então a brincadeira: um por um, os amigos fazem ao
grupo perguntas simples que só podem ser respondidas com sim
ou não, ajudando cada um a descobrir a personalidade pregada
na testa, “é mulher?”, “é homem?”, “nasceu nesse século?”, “é
brasileiro?”, “é estrangeiro?”, até que partam para perguntas
mais específicas. Vemos a interação entre os olhares, os
pequenos sorrisos de suspeição e graça trocados de parte a
parte, a tentativa de ocultar o segredo, de dificultar a
descoberta do outro, alguma pista sugerida num piscar de
olhos, num movimento de corpo que imite a personalidade
escolhida. Rogério é o primeiro da roda, e logo mata sua
charada. Com poucos gestos, retira o papel da testa, levanta-
se calmamente, como se não quisesse perturbar a continuidade
do jogo, e se retira da roda quase como se pedisse desculpas
por abandoná-los ali. Dirige-se ao lugar em que Negro e Eric
estão – juntos agora o baterista, o saxofonista e o pianista
da banda de jazz deste grupo de amigos.

NEGRO
Mais um pra filar do meu copo. Mas
vocês dois podem.

Contra a ironia da primeira frase, Negro diz a segunda com


absoluto carinho, afaga Rogério no ombro e lhe oferece o copo
cheio de cerveja. Rogério toma um trago e passa o copo a
Eric, quase como num ritual. Eric toma outro gole e o devolve
a Negro, que bebe de uma vez o que sobrou. Começa a encher o
copo de novo.

ROGÉRIO
E agora, cara, o que a gente faz?

A pergunta de Rogério instaura outro clima entre o trio de


amigos. Todos se olham, pensativos, e respondem apenas com
silêncio. Demora até que Negro tome a iniciativa de continuar
o papo.

NEGRO
A gente faz o que a gente fez sempre.
A gente toca junto. A gente ainda
toca junto.

ERIC
Junto como? Sem o Gil não tem mais
“junto”, cara.

19
ROGÉRIO
Eu vou embora. Ele sempre dizia que
eu tinha que sair daqui, tinha que
estudar. Vou juntar uma grana e sair
daqui.

NEGRO
Estuda o Gil. Ainda tem uma pasta com
uma porrada de música inédita dele,
coisa que a gente nunca tocou. Como
você vai embora sem tocar o que ele
escreveu pra gente?

ROGÉRIO
E pra quem eu olho quando eu não
souber o que fazer, cara? Pra quem eu
olho quando eu precisar que soprem
uma nota pra mim no meio da música?

NEGRO
Olha pra mim.

ERIC
Pode olhar pra mim também, Rogério.

ROGÉRIO
Que merda, cara... Que merda isso
tudo.

NEGRO
A merda é que ele morreu. A gente tá
aqui ainda, e deve ter algum sentido
nisso... A gente estuda junto com
você. Mas aqui, aqui.

Negro diz essas palavras como quem consola a um irmão. O copo


cheio de cerveja é entregue novamente a Rogério. Dessa vez
ele não bebe: com o copo na mão, olha para seus companheiros
de banda. Passa o copo para Eric.

ROGÉRIO
Você tem cigarro aí?

Negro tira o maço do bolso e passa a Rogério. Ele tira um


isqueiro do bolso e o acende. Devolvendo o maço a Negro, se
afasta do grupo na direção de Théo. Rogério se coloca ao lado
dele, e dá duas tragadas seguidas, passando o cigarro a Théo.

20
ROGÉRIO
O Negro estava escondendo o cigarro
da gente esse tempo todo. Mas toma
aqui que eu tô tentando parar. Trouxe
foi pra você mesmo.

Théo recebe o cigarro de Rogério e continua a fumá-lo.


Rogério então volta à brincadeira do grupo. Ficamos no rosto
de Théo, que segue olhando para o mar.

Pelo fundo do quadro vemos um carro estacionar na rua,


próximo ao quiosque – é o mesmo carro da seqüência inicial.
LAURO sai de dentro dele e se aproxima do grupo lentamente,
ainda fora de foco.

No grupo de amigos, a brincadeira quase chega ao fim. Fra é o


único que ainda não descobriu qual é a personalidade que lhe
coube. Depois de insistir com algumas perguntas que não lhe
dão pista alguma, Júlia intervém. Luisa, Sandro, Lincoln e
Rogério concordam, e Júlia começa a fazer mímicas para ajudar
o amigo. Ela imita os movimentos de um contrabaixista,
emulando a postura de Gil. Júlia faz dedilhados imaginários
no ar, fecha e abre os olhos à medida que avança nas notas de
seu instrumento invisível.

FRA
Eu lá sei nome de músico de cor!

Nesse momento, Lauro finalmente chega ao grupo. Alheio à


brincadeira, estraga o jogo sem querer.

LAURO
Júlia, tá quase igual. Mas o Gil
batia com os dedos na madeira também,
sabe? Uma percussãozinha assim.

Lauro começa a realizar os movimentos de que fala.

JÚLIA
Ah, Lauro! Não era pra falar!

FRA
Mané...

Théo se aproxima de Lauro, enquanto este distribui atrasado


os sorrisos de cumprimento para cada um dos presentes.

21
THÉO
Então você consertou mesmo o carro?

LAURO
Claro, tá novinho. Quase, né.

THÉO
E pôs uma porta nele finalmente?

LAURO
Não, não. Aí não seria mais o carro
do nosso amigo...

Lauro fala esta última frase com um sorriso de alegria


genuína. Théo puxa Lauro para a posição em que estava. Vendo
a praia agora, percebemos que há uma mulher parada no quebra-
mar. Está sozinha, olhando para o céu.

THÉO
A menina está aí há um tempão.

LAURO
Então é ela?

THÉO
É. A Julinha estava esperando você
chegar. Alguém precisa ir buscar
ela.

LAURO
A Julinha é um doce.

Lauro caminha pela areia na direção de Erika, até finalmente


alcançá-la. Ela vira o rosto para ele rapidamente, e logo
segue observando o céu. Venta muito, mas ela não parece se
abalar com o frio. Só depois de alguns segundos Lauro
interrompe o silêncio.

LAURO
Das ist der beste platz in diesem
moment zu sein. (“Aqui é mesmo o
melhor lugar pra se estar nesse
momento.”)

ERIKA

22
So bist du derjenige... (“Então é
você...”)

LAURO
É, acho que sou eu.

ERIKA
Onde você aprendeu alemão?

LAURO
Livros de filosofia barata.

ERIKA
Eles te ensinaram o bastante.

LAURO
E você é a amiga austríaca da
Julinha?

ERIKA
Austríaca do interior do estado,
duas horas daqui. Mas gosto que as
pessoas pensem isso.

LAURO
Seu segredo está guardado comigo.

ERIKA
(apontando pro céu)
Você está vendo aquilo ali?

LAURO
(acompanhando-a no olhar)
O que?

ERIKA
É a Nebulosa do Olho de Gato. Ela
fica na constelação do Dragão. Tem
uma dúzia dessas por aí, mas essa é
vermelha, e é preciso sempre
preferir as vermelhas sobre todas
as outras.

LAURO
Mas está chovendo.

ERIKA

23
E você não consegue ver mesmo
assim?

Erika continua olhando para o céu, como se estivesse


hipnotizada. Lauro não desvia a atenção do rosto dela.

ERIKA
Essas explosões de luz, estrelas que
nascem, que irradiam sei lá o que,
isso não me interessa muito. O que
eu acho mais incrível é que a gente
só consegue medir uma nebulosa
dessas usando o tempo. Ela não tem
quilômetros, não tem metros. O
tamanho exato dela é de 20 minutos.
20 minutos!

LAURO
Você está inventando isso.

ERIKA
E isso importa?

LAURO
Onde você está morando?

ERIKA
Pra que você quer saber?

LAURO
Pra poder te encontrar de novo,
quando a chuva parar.

ERIKA
Die deutsche sprache kann unser
heimliches territorium sein. Finden
mich dort.(“O alemão pode ser nosso
território secreto. Me encontre
lá.”)

Lauro observa Erika, que sorri para ele. Agora estão os dois
olhando para o céu novamente. Depois de algum tempo Lauro
fecha os olhos.

SEQÜÊNCIA 12 – RUA/PRÉDIO DE LAURO – EXT-INT/NOITE

24
Passaram-se alguns meses desde o primeiro encontro de Lauro e
Erika.

LAURO atravessa a calçada e chega à portaria de seu prédio,


abre o portão e atravessa o hall com alguma pressa. Tem a
aparência cansada, mas está muito agitado. Aperta o botão do
elevador, mas não suporta os segundos de espera e decide
tomar as escadas.

O ambiente escuro não o impede de subi-las com rapidez,


sempre segurando-se no corrimão e dando pequenos saltos nas
mudanças de piso. O breu é invadido pela luz tão logo ele
alcance a porta que dá acesso a seu andar, e a presença da
luminosidade forte depois de tanto tempo na escuridão freia a
agitação de Lauro.

Com a mão sobre os olhos, ele caminha devagar pelo corredor.


Ele para diante da porta de seu apartamento. Com as mãos
pousadas nos batedores da porta, ele agora abaixa a cabeça, e
toma alguns segundos nesta posição. Num impulso, retorna às
escadas, novamente correndo.

Agora estamos na rua, na calçada oposta à do prédio de Lauro.


Ele está encostado nas grades que cercam o Parque Moscoso,
iluminado e com alguma movimentação. Lauro observa uma janela
no quarto andar, a janela de seu apartamento, que está acesa.

Temos agora seu ponto-de-vista, apenas a janela acesa no meio


de todas as outras que estão apagadas.

De volta ao rosto de Lauro, ele termina o cigarro, e apaga-o


com um pisão.

Num corte, estamos novamente na porta de acesso ao corredor


do andar de seu apartamento. Lauro já não se protege da luz
forte, apenas caminha na direção da porta, e sem hesitar,
abre e entra.

SEQÜÊNCIA 13 – APARTAMENTO DE LAURO – INT/NOITE

O apartamento que víramos vazio na seqüência 4 agora está


totalmente mobiliado. São vários quadros espalhados pelo
lugar, nenhum deles pregado na parede: estão colocados no
chão, embrulhados com lençóis, dois deles postos sobre um
cavalete. Um sofá e alguns bancos de madeira estão colocados

25
no lado oposto, e a luz do banheiro é a única fonte de
iluminação do lugar.

Deitada na cama de casal está ERIKA, dormindo. A luz do


banheiro não a atinge, e seu corpo é iluminado apenas pelas
luzes da noite que invadem o ambiente pela janela. LAURO está
sentado numa poltrona ao lado da cama. Seu rosto está
totalmente escuro, podemos distinguir apenas sua silhueta. O
único ruído que ouvimos é o SOM DE SUA RESPIRAÇÃO.

Com o tempo, Lauro parece se acalmar. Seu peito está menos


arfante, a respiração já não tão pesada. Mudando de posição
na poltrona, ele agora apóia os cotovelos nos joelhos e
coloca seu rosto mais à frente, uma região mais iluminada.
Finalmente podemos distinguir sua expressão, e ele segue
olhando Erika, sereno. Depois de algum tempo, Lauro levanta-
se e sai de quadro. Permanecemos com Erika deitada, e em off
ouvimos o RUÍDO DA PORTA SENDO ABERTA.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 14 – HALL DO APARTAMENTO DE JÚLIA – INT/NOITE

Este é um momento do presente, uma ação simultânea ao


encontro de Lauro e Théo na seqüência 10.

JÚLIA termina de abrir a porta de seu apartamento junto com o


ruído que encerrara a seqüência anterior. Veste roupas de
dormir, cabelos presos e levemente desarrumados como se
tivesse acabado de levantar, expressão tranqüila. Fica parada
por alguns instantes olhando para fora de quadro antes que se
pronuncie.

JÚLIA
Erika? Por que você não bateu?

Vemos agora o ponto-de-vista de Júlia, e ali está ERIKA,


parada de costas para ela, já no segundo degrau das escadas,
como se ainda se decidisse se desceria ou não. Ao ouvir a
pergunta da amiga, Erika se vira e vai até ela. As duas se
dão um abraço mudo e longo.

ERIKA
Foi besteira minha vir aqui. Por isso
já estava indo...

26
JÚLIA
O que houve?

ERIKA
Queria saber do Lauro. Três dias que
não vejo ele, que não aparece em
casa. Ele veio aqui, por acaso?

JÚLIA
Não, ainda não. Mas com certeza essa
noite ele aparece. Tomara...

ERIKA
Vai ter festa aí, né?

JÚLIA
É, não sei. Sempre tem. Sempre tem
gente em casa... Eu não tô legal hoje
não, estava indo deitar já. Mas eles
ficam por aí. Fica também. Fica aqui
hoje, que ele já chega.

ERIKA
Não, não... Esse é um momento dele.
Dele com vocês, com quem estiver aí.
Ele só precisa de mim quando vocês
não estão por perto.

JÚLIA
Hoje a gente vai estar por perto,
pode deixar. Mas a gente precisa de
você também.

Erika sorri em agradecimento pela tentativa da amiga.

ERIKA
E como você está?

JÚLIA
Ah... É muito menino pra eu tomar
conta, sabe!

ERIKA
Mas você gosta, que eu sei.

JÚLIA

27
É, eu não sei o que eu faria sem
eles...

ERIKA
Mas eu perguntei de você, Júlia.

JÚLIA
Eu sou esses meninos.

É a vez de Júlia sorrir agora.

ERIKA
Se ele aparecer, diz pra ir pra casa,
tá bom?

JÚLIA
Levo ele lá pessoalmente.

ERIKA
Mas você já está indo dormir...

JÚLIA
Não tem problema. Só vou descansar um
pouco, trabalhei o dia inteiro, deu
uma merda lá... Mas quando tudo
terminar, eu levo ele.

ERIKA
Aproveita aí, então. O que der pra
aproveitar.

Erika se despede de Júlia com outro abraço. Agora sim ela


toma o rumo das escadas, e a seguimos até que a pouca
claridade do lugar deixe a tela escura.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 15 – APARTAMENTO DE LAURO – INT/NOITE

Seqüência em continuidade com a número 13.

A seqüência começa exatamente com a mesma imagem com que a 13


terminara: Erika está deitada na cama, a luz da lua
recortando seu corpo sob os lençóis. Ela agora se mexe aos
poucos até ficar descoberta e despertar. Sentada à beira da
cama, ela toma um tempo olhando pela janela. Logo se levanta

28
e sai de quadro, para voltar logo depois trazendo um par de
fones de ouvido grande, que coloca em volta da cabeça. Ela
conecta os fones num aparelho de som colocado ao pé da cama,
contra a janela, num pequeno móvel. Passando os dedos
rapidamente pela pilha de discos colocada sobre uma das
caixas de som, ela escolhe um e o coloca no aparelho. Por
alguns instantes, ficará ouvindo música, às vezes de olhos
fechados, às vezes balbuciando a letra de uma canção, sentada
no chão com as pernas cruzadas e totalmente mergulhada na luz
branca da lua.

Na porta do apartamento, vemos LAURO entrando novamente. Seus


passos são curtos e silenciosos, imagina que Erika ainda
dorme e não a viu à janela. Ele busca na sala uma jaqueta que
esquecera de pegar, mas quando atravessa o espaço e vê sua
mulher abandona a ideia.

Erika vira o rosto levemente, notando a presença de Lauro,


mas logo volta a se concentrar na música. Lauro se aproxima,
entra em quadro e se senta à beira da cama, pernas abertas em
torno de Erika. Ele levanta um dos fones de seu ouvido e diz
um “boa noite” sussurrado. Sem se virar, Erika chega mais
para trás e se envolve nas pernas dele, que agora a abraça.
Por alguns segundos eles ficam nessa posição, até que a
música termine e Erika tire os fones de ouvido. Lauro então
se senta a seu lado no chão. Eles se beijam.

LAURO
Você me viu entrando? Antes?

ERIKA
Não sabia se eu tava sonhando com
aquilo...

LAURO
Eu não queria atrapalhar seu sono.

ERIKA
Não, tudo bem.

Os dois se olham e ficam em silêncio por alguns segundos.

ERIKA
Eu tenho medo de fechar os olhos,
dormir de vez, e você ir embora de
novo.

29
LAURO
Eu nunca vou embora...

ERIKA
Você vem me ver dormindo, eu finjo
que você é imaginação... Pra onde
isso vai?

Erika diz estas últimas frases com profundo pesar. Lauro


desvia a conversa, mudando de assunto.

LAURO
Você tá com fome?

ERIKA
Tô. Faz alguma coisa pra mim.

Lauro se dirige à cozinha, Erika se senta à mesa, observando-


o de longe. Em silêncio, ele separa os pães, pega um pedaço
de queijo na geladeira, retira uma geleia do armário, prepara
a mesa limpando a toalha.

Com tudo pronto, Lauro acende o fogão para esquentar o


queijo. Erika se levanta e vai até ele.

ERIKA
Acho que vou descer um pouquinho
enquanto você termina aí...

LAURO
Fazer o que na rua a essa hora?

ERIKA
Comprar uma coca, sei lá... Eu volto
rapidinho.

LAURO
Você vai sentir frio...

Lauro acompanha Erika com o olhar. Ela se levanta e segue na


direção da porta. No caminho, ela pega a jaqueta de Lauro e a
veste. Sua saída de quadro é a deixa para o corte.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 16 – RUAS DA CIDADE ALTA – EXT/NOITE

30
ERIKA caminha na direção da Cidade Alta, para numa pracinha,
compra um refrigerante numa banca de bebidas e churrasquinho.
Erika atravessa a rua. Numa esquina, a câmera a perde de
vista.

Agora veremos imagens das ruas da Cidade Alta, completamente


vazias. São imagens rápidas, sempre em plano geral, compondo
os elementos da cidade. Uma ladeira, as luzes de um prédio,
becos, a descida pela lateral do Palácio Anchieta, um navio
atracando no porto ao fundo.

Avançamos no tempo, e estamos na noite em que Lauro e Théo se


reencontram. Nesta noite nem todos tiveram a sorte de
esbarrar com um amigo na rua: numa das ladeiras, na sacada de
uma casa modesta de dois andares, vemos ERIC sozinho sentado
no parapeito, seu saxofone abraçado no peito, olhando a rua
deserta. Neste momento começamos a ouvir um assobio, ainda
distante.

Na Rua Gama Rosa algum sinal de movimento, bares ainda


abertos ao fundo. Subindo a rua do Fórum, alguns GUARDADORES
DE CARRO conversam num canto, são poucos os veículos
estacionados. E é com o som do assobio sobre a imagem da rua
que a seqüência se encerra.

SEQÜÊNCIA 17 – RUA DA CAPELA DE SANTA LUZIA – EXT/NOITE

Seqüência em continuidade com a número 10.

LAURO está sentado no muro de pedra que cerca a Capela de


Santa Luzia, ele assobia a melodia 245, do saxofonista
americano Eric Dolphy. A pouca iluminação que incide sobre
seu rosto vem da luz fria de um poste na calçada ao lado.
Ouvimos PASSOS de uma aproximação, e algum tempo depois THÉO
senta-se ao lado de Lauro.

LAURO
Você sabe muito bem o que eu acho
dessa porra de ficar mijando na
rua.

THÉO
(rindo)
Ah, vai te foder...

31
Por alguns instantes, os dois ficam parados, observando a
rua. O silêncio é quebrado por Théo.

THÉO
Por que você não vai pra casa?

LAURO
Daqui a pouco. Daqui a pouco eu vou
pra casa.

THÉO
Eu vou contigo até lá.

LAURO
É uma caminhada longa, não precisa
ir comigo. Pra mim não vai ser nada,
eu vou acabar chegando. E a Erika
vai me ouvir chegando, abre logo a
porta, me abraça, a gente se beija.
Daí eu levo ela pro sofá, a gente se
deita, ela vai pedir de um jeito que
eu não resisto, e aí vou contar tudo
o que está acontecendo comigo. E
depois ela vai me dizer que chegou
uma carta pra mim. Pode ser uma
carta da Clara, pode ser uma carta
sua. Vai dizer que três dias é tempo
demais pra eu ficar sem saber da
minha correspondência, e que eu
volte mais rápido da próxima vez
porque a Clara ou você não tem razão
de esperar tanto por uma resposta.

Lauro busca uma pedra qualquer próxima dos pés, e a atira na


direção da rua.

LAURO
Daqui a pouco eu leio a sua carta,
Théo, calma.

Lauro levanta-se, e começa a descer a rua, andando


paralelamente ao muro de pedras. Volta a assobiar o tema de
Dolphy.

Na calçada, Théo ainda está sentado. Ele olha para frente, e


vemos seu rosto de muito perto. Está tenso, e precisa de
alguns segundos até tomar forças para se levantar e seguir

32
atrás de Lauro. Mas Lauro já cruzou a esquina e sumiu de
vista.

Théo caminha com pressa na direção em que Lauro seguira. Tão


logo dobre a esquina encontra Lauro encostado num poste,
conversando com FRA. Lauro recebe Théo com gestos largos,
está animado.

LAURO
Olha só quem o vento trouxe!

FRA
Foi o Dolphy que você tava
assobiando aí, rapaz. E aí, tudo
bem?

Théo responde com um sorriso frouxo.

FRA
Então, vocês vão pra casa da Julinha
também? É a melhor coisa pra se
fazer hoje, quarta-feira de merda.

THÉO
Hoje é segunda-feira.

FRA
É, segunda. O lugar dos desgarrados
é na casa da Julinha, hoje. Vocês
vão também?

LAURO
É, por que não? Quando não tem nada
pra fazer, a gente vai pra qualquer
lugar. E quando se tem também. Que
importam os lugares, né? A gente não
pode estar em lugar nenhum. E o
lugar certo não existe.

FRA
(sorrindo)
Mas eu acho que vale à pena ir na
Julinha. Eu acho.

LAURO
Qualquer lugar serve, Fra. Desde que
haja paz, uma cadeira, alguma coisa

33
pra beber e nenhum relógio, qualquer
lugar serve. O resto a gente
constrói.

THÉO
É, a gente constrói.

Fra ri, e puxa Théo na direção da rua um tanto bruscamente.


Lauro vai atrás deles. E seguem os três ladeira abaixo, até
que desapareçam da vista.

SEQÜÊNCIA 18 – APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

Um salto para o passado, um ano antes.

É um apartamento amplo, com janelas grandes e uma porta que


dá para uma varanda ao fundo. No centro da sala está JÚLIA,
com um pequeno microfone à sua frente. Ao lado dela está
ERIC, com um saxofone alto pendurado em seu corpo por uma
alça, terminando de montá-lo. Os dois conversam algo que não
podemos ouvir, enquanto Eric aponta para o papel preso a uma
pasta de música colocada num tripé diante de ambos. Ouvimos o
RUÍDO DE UMA PORTA SENDO ABERTA E FECHADA, e seguindo o fim
do ruído, Júlia olha para o fora-de-quadro, abrindo um leve
sorriso. De volta a Eric, ela agora cochicha algo no ouvido
do saxofonista, que faz sinais de positivo com a cabeça e
agora também sorri, mais discreto. A postos diante do
microfone, mas virada para Eric, Júlia começa a entoar o
CANTO DE SHEMA, numa versão tradicional do hino judeu em que
os versos são repetidos em hebraico. Eric acompanha a
flutuação da voz de Júlia com notas suaves e precisas no
saxofone. Ambos têm os olhos fechados, e parecem entrar numa
espécie de transe. Na segunda repetição do tema, Júlia abre
os olhos e agora olha na direção do fora-de-quadro.

Tão logo a canção termine, ouvimos aplausos efusivos vindos


do fora-de-quadro. Ainda fixos no rosto de Júlia, ela abre
seu sorriso mais largo.

JÚLIA
Esta foi pro nosso judeu errante
mais querido.

À medida que avança pelo quadro, Júlia é acompanhada pela


câmera até que vejamos LAURO, também de sorriso largo. Os

34
dois se cumprimentam num longo abraço, e então conversam
rapidamente, os rostos muito próximos um do outro.

LAURO
Eu não sabia dessa sua habilidade.
Tão linda!

JÚLIA
Que bom que vocês estão aqui. Um
tempão sem te ver, sem saber de você.
Entra, entra, pega uma coisa pra
beber. Os meninos estavam te
esperando, vão tocar daqui a pouco.

Júlia e Lauro olham-se por mais alguns instantes, e se dão um


novo abraço. Lauro avança pela sala, e é agora THÉO que entra
em quadro e recebe um abraço de Júlia, igualmente efusivo.

JÚLIA
Tem bebida ali. Umas coisas de comer.
Enfim, vocês sabem.

Atravessando a sala, Théo agora acompanha Lauro. Podemos ver


melhor o ambiente: há uma bateria armada próximo à janela, um
contrabaixo acústico postado um pouco à frente, suspenso por
um suporte no chão, um pequeno piano elétrico do lado oposto.
No centro, o microfone em que Júlia acabara de cantar e um
pequeno amplificador cheio de cabos espalhados a seu redor.
Ainda mexendo na pasta de música, Eric interrompe sua
pesquisa para cumprimentar Lauro e Théo.

Agora sentado na bateria está NEGRO. Parece compenetrado em


ajeitar os tambores de seu instrumento, mas tão logo aviste
Lauro se aproximar, se levanta e o cumprimenta num aperto de
mão demorado e sem palavras. Ambos se olham longamente. A
Théo, Negro dedica apenas um menear de cabeça, respondido
rapidamente por ele.

Vindo da varanda ao fundo, surge GIL, cabelos bagunçados


contrastando com sua camisa de botão bastante asseada, um
copo na mão. Lauro o recebe com uma gargalhada, e os dois se
abraçam e dão um beijo na bochecha um do outro. Théo recebe
cumprimento idêntico. Num gole rápido, Gil toma do copo e
então o repassa para Théo. Com um sinal do polegar indica que
precisa ir para perto da banda.

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Algo em torno de vinte pessoas estão espalhadas pelo lugar,
entre a sala em que os instrumentos estão montados, a varanda
ao fundo e os cômodos adjacentes. Todos têm entre vinte e
trinta anos, e ouvimos o BURBURINHO de suas conversas. Uma
mesa posta no canto tem uma dúzia de garrafas cheias e
vazias, vários copos espalhados, e um pequeno buffet
improvisado em travessas de madeira, com pão, queijo e
biscoitos. A partir daqui, veremos pequenos instantâneos
desta festa.

Deitados num tapete encostado contra a parede, com várias


almofadas espalhadas, estão QUATRO AMIGOS, que conversam
animadamente sobre algo que não ouvimos.

O casal EDUARDO e KARINA está no fim de uma discussão,


sentados num sofá. A menina está abatida, a aparência de que
acabou de chorar, os olhos ainda tristonhos e os cabelos
jogados sobre o rosto. Eduardo está distante dela, mas
alcança seu rosto com a mão, e faz carinho em seus cabelos,
tenta ajeitá-los, olhando sempre fixamente para ela. O que
quer que tenham discutido, esse parece o momento em que
começa a reconciliação. Eles conversam aos sussurros.

EDUARDO
Dois meses é tempo demais.

Eduardo agora pega nas mãos de Karina, a acaricia.

EDUARDO
Mas eu só não te falei antes porque
tive medo.

KARINA
Eu tô com medo agora.

EDUARDO
A gente vai se falar todo dia.

KARINA
Eu vou me acostumar a ouvir seu
sorriso só pelo telefone. Vou sim.

Ambos sorriem. É Karina agora quem acaricia o rosto de


Eduardo.

Negro e Eric estão de pé próximos a uma estante. Negro


vasculha alguns porta-retratos postos ali, Eric toma um gole

36
de vodca. Júlia chega com uma caixa nas mãos, onde encontram-
se vários álbuns de fotografia e algumas imagens soltas. Ela
entrega a caixa a Negro, e lhe dá um beijo. Ele agradece,
Júlia sai de quadro. Eric está curioso, e de dentro da caixa
Negro tira uma fotografia, que não vemos. Fala sobre ela.

NEGRO
Olha aqui ela, bem no topo dessa
bagunça. A gente tinha a sua idade
hoje, tá vendo? Foi logo depois que
a gente ganhou o concurso da escola.
A gente viajava numa Kombi fodida,
pelo estado inteiro, tirando essas
fotos assim. Um monte de moleque sem
ninguém pra vigiar. Foi lindo. Olha
a Julinha de cabelo curtinho, uma
cara de criança. Lindo.

Na cozinha que se estende às suas costas, GUSTAVO está


encostado no armário de madeira observando DIANA e MARIANA
prepararem mais petiscos para a festa.

DIANA
Mari, corta os pães agora. Deixa que
eu termino o patê.

MARIANA
Você não confia em mim nem pra
misturar um negócio, hein...

DIANA
Exatamente!

Diana dá um beijo carinhoso em Mariana, que se direciona para


os pães. FERNANDA chega com uma sacola de cerveja e coca-
cola, distribuindo beijos entre os três. Gustavo a ajuda a
colocar no freezer.

FERNANDA
Olha, eu nem sei com que cara vou
olhar pro meu pastor quando ele
souber que eu comprei cerveja pra
esses desgarrados!

GUSTAVO
A cerveja tá ungida, amiga, relaxa.

37
FERNANDA
Fala isso não, menino. Vou eu pro
céu sozinha, sem vocês. Vai ser um
saco lá.

Ambos riem, e Fernanda agora vai até as amigas na pia.

FERNANDA
Precisa de ajuda aí?

MARIANA
Se você conseguir mexer em alguma
coisa sem a Di te dar um tapa na
mão...

Gil se aproxima do grupo em silêncio, e vai direto no patê


que Diana está preparando. Rápido, passa o dedo no molho e
prova imediatamente. Diana não consegue impedi-lo.

DIANA
Vai azedar o negócio todo, menino!

Gil sorri, dá um beijo em Diana e sai sem falar nada. As


meninas seguem próximas à pia.

Num canto da sala vemos ALICE sendo cortejada por SANDRO, que
faz gestos vastos, e eventualmente lhe sussurrando coisas ao
ouvido, recebendo dela sempre um olhar entre a compaixão e a
reprovação.

Sentado numa cadeira, sozinho, fumando um cigarro, está FRA.


Depois de alguns segundos Lauro se aproxima dele. O amigo se
agacha próximo a Fra. Eles se olham longamente.

LAURO
Tá tudo bem, cara?

Fra sorri a melhor de suas respostas.

LAURO
Me dá um cigarro?

FRA
Você fuma ele aqui do meu lado?

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É a vez de Lauro consentir com um sorriso. Fra lhe passa um
cigarro e o isqueiro. E assim os amigos ficam, em silêncio,
fumando.

Próximos a um aparelho de som, podemos ver um grupo de três


rapazes. DAVI e TOMÁS conversam, enquanto PEDRO, alheio ao
papo, se debate com vários discos nas mãos.

DAVI
Não, isso foi agora! No ano-novo
agora. O cara ficou apavorado, os
computadores do mundo todo iam
travar, as paradas eletrônicas. Ele
jogou tudo fora. Pôs tudo na rua.
Ficou só com o fogão, a geladeira e
o aparelho de vinil.

TOMÁS
Eu já vi esse cara no Golias. Ele já
tomou um disco da minha mão! Tudo
bem que eu nem ia comprar, mas,
porra, você não faz isso com
ninguém.

DAVI
Perturbado pra caralho. Mas é
maneiro. Imagina, fogão, geladeira e
uma porrada de vinil. Pra que mais?

PEDRO
(com um disco nas mãos)
Aí, vai ser esse mesmo.

Os amigos consentem, e Pedro coloca o disco para tocar no


aparelho. Logo ouvimos os primeiros acordes de BABY DOLL.

A música segue tocando em off, mas agora vemos um grupo de


pessoas dançando algo completamente diferente. É Fra quem
puxa a turma, investido de energia completamente diferente da
que o víramos há pouco. A câmera segue Fra, que dança com
gestos largos e sorrisos longos, passando por Karina e
Eduardo, felizes e abraçados, LINCOLN, LUISA, Gustavo,
Mariana e Diana, todos em movimento.

Vemos agora Lauro cercado por mais TRÊS AMIGOS, conversando


animadamente sobre algo que não ouvimos.

39
Rogério está sentado próximo a seu teclado, e Luisa está à
sua frente, sentada de lado numa cadeira que puxou até ali.

ROGÉRIO
Não, não, o negão é do Rio. Claro, tá
na cara que é do Rio. Tocava samba, e
tal. Quando ele chegou aqui o Gil
jurou que ia educar ele com jazz, pra
ele esquecer essa porra. E agora tá
todo mundo ouvindo Monsueto, vou
dormir ouvindo Monsueto por causa
dele. É lindo, você tem que ouvir.

LUISA
O menino do sax é muito novinho.

ROGÉRIO
Ah, o Eric é cria do Negro. Achou
esse moleque numa banda de escola
militar. Chama ele de pai e o
caralho. Não conta pra ele, mas ele é
o melhor de nós quatro. Menino ainda.

LUISA
E você?

ROGÉRIO
Eu sou isso que você está vendo. Mas
eu não sei dizer o que é.

LUISA
Então você é desse tipo?

ROGÉRIO
Que tipo?

LUISA
Desses com quem a gente conversa a
madrugada toda, depois diz que está
na hora de dormir porque tem que
trabalhar cedo. Daí eu digo que eu
não tenho, você ri. Eu durmo na sala,
e quando acordo você sumiu. Voou.

ROGÉRIO
Eu também gosto muito dessa música.

40
LUISA
Se você disser que prefere a versão
do Milton, eu até topo dormir na sua
sala.

ROGÉRIO
O sofá é bem confortável.

Rogério diz esta última frase com uma quase inocência, como se
não percebesse o flerte. Depois de alguns segundos em
silêncio, continua.

ROGÉRIO
Como você chama?

LUISA
Luisa.

Os dois se cumprimentam com um aperto de mão irônico da parte


dela, desajeitado da parte dele.

No quarto de Júlia estão reunidos Théo, Mariana, Patrícia,


Davi, Tomás e Eduardo. Mariana termina de enrolar um cigarro
de maconha, e passa para que Théo o acenda. Ele pega o
isqueiro oferecido por Davi, e dá a primeira tragada.
Segundos depois Júlia entra no quarto. Ela abre um sorriso
quando vê a situação, todos os amigos aglomerados em cima de
sua cama, e logo vai a Théo, pedindo também uma tragada.
Depois de fumar, vai até a mesa e pega um gravador de fita. A
roda de maconha continua.

JÚLIA
Termina aí e vamos lá. Vai começar!
Vem, Théo.

Vinda do corredor Júlia carrega o gravador, com Théo atrás de


si. Ela segue na direção da banda, enquanto Théo se afasta
até a mesa com bebidas. Ajoelhada próxima ao pequeno
amplificador, Júlia conecta alguns cabos ao gravador e com um
gesto diz um “tá pronto!” para a banda. Gil termina de
conferir a afinação de seu contrabaixo, e este é o tempo para
que toda a gente dispersa pela casa até então se reúna em
torno deles. O burburinho cessa quase imediatamente, todos os
olhos voltados para a banda. Gil vai ao microfone.

GIL

41
Vamos chegando... Vamos chegando que
vai começar. Bem, a gente tá tocando
junto há um tempão, vocês sabem
disso, mas a gente nunca tinha
gravado as nossas músicas. Hoje aqui,
por causa da Julinha, a gente vai
registrar nosso som pela primeira
vez. Se acomodem aí, a gente só vai
checar umas últimas coisas e já
começamos.

Gil reúne a banda em torno de Negro, que permanece sentado.


Conversam algo que não ouvimos, mas todos os gestos apontam
para Rogério, que consente o que foi ali combinado com um
sorriso.

Do outro lado, Lauro sussurra alguma coisa no ouvido de Théo.

LAURO
Quer que eu te diga que música é
essa? A primeira que eles vão tocar?

THÉO
Não. E como eu posso saber se não
começou ainda?

Nesse momento, Gil entra em quadro. Com a mão aperta


carinhosamente o ombro de Lauro, mas é a Théo que se dirige.

GIL
E aí, rapaz?

THÉO
Tá lindo isso aqui, cara.

GIL
Toca a próxima com a gente?

Théo parece surpreso. Lauro dá um passo atrás, como se


entendesse que aquele momento diz respeito exclusivamente a
Théo.

THÉO
Imagina... O Rogério tá aí, como é
que vou tocar no lugar dele?

42
GIL
Ele ficou feliz, olha ele lá. Ele
quer que você toque. Eu quero que
você toque.

THÉO
Eu não sei qual...

GIL
É aquela música que eu te mostrei,
Théo. Eu te mostrei primeiro. Você
sabe ela de cor.

THÉO
Eu só li aquilo uma vez, Gil...

GIL
Você sabe, cara. Vem tocar com a
gente.

Théo olha para Lauro, atônito. Lauro consente com o olhar,


apontando para o lugar em que o piano elétrico está. Lá, de
pé, vemos Rogério, sorriso aberto convidando Théo a tomar seu
lugar nessa música. Abraçando Théo, Gil o conduz para o
centro da banda. Negro agora se levanta e vai cumprimentá-lo
ali. Eric lhe dá dois tapinhas nas costas, e Rogério já o
recebe com a partitura nas mãos. Théo se senta no banco
diante do piano elétrico, e agora Gil vem lhe explicar alguma
coisa da música, dedo correndo pelo papel da partitura
escrita à mão, onde lê-se no alto, em letras maiores,
“MADELEINE”.

NEGRO
Tudo certo aí? Vamos começar?

Théo consente com a cabeça. Rogério se posiciona atrás do


piano elétrico, e logo Lauro cruza o ambiente e se coloca
ali, ao lado dele, ambos às costas de Théo.

GIL
É contigo, negão. A hora que quiser.

Negro e Gil sorriem. E Negro de fato começa, criando pequenos


climas com os pratos e toques suaves na caixa. Eric dá os
primeiros sopros no sax, e com um gesto de cabeça de Gil, ele
e Théo entram juntos na música, com harmonizações sutis. É o
começo da “Madeleine”.

43
Pelos primeiros cinco minutos da música, variamos entre a
interação dos membros da banda, sua relação com os
companheiros e com os instrumentos, os olhares para a
plateia, os gestos, sempre vendo seus rostos e corpos em
planos mais abertos. A platéia composta por amigos também
merece atenção, cada um dos participantes desta festa tem seu
momento e reage de maneiras distintas: alguns dançam, outros
escutam de olhos fechados a música, outros os tem bem abertos
e direcionados à banda. Há quem fume, quem encha mais um copo
de bebida, quem precise de um amigo para assistir à
apresentação abraçado ou quem prefira ficar sozinho e
concentrado neste momento. A sintonia entre banda, plateia e
música é perfeita, e novamente os veremos em planos de
conjunto, mais abertos, englobando vários elementos de cena.

Uma menina sentada de pernas cruzadas entre a bateria e a


porta da varanda é a última pessoa que vemos em detalhe. É
magra, branca de cabelos longos, rosto arredondado, expressão
infantil. O plano se alonga e então, pela primeira vez em
todo o filme, um zoom-in nos aproxima ainda mais do rosto
dela. Esta menina é ANA.

E é sobre o rosto de Ana que chegamos à explosão de angústia


e beleza do saxofone de Eric, em torno do minuto 5’05’’ da
canção. Ela está maravilhada. No entanto, um corte brusco nos
retira do tempo da execução da música e nos leva ao futuro
imediato.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 19 – SALA/HALL DO APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

A suíte de preparação para o desfecho da “Madeleine” segue


tocando na trilha sonora. E sobre os dedilhados do
contrabaixo vemos agora o fim desta festa. Neste momento, a
gravação já se deu, mais músicas foram tocadas, a madrugada
já vai longa e alguns dos participantes já foram até embora.
Todas as seqüências a seguir mostram ações curtas e pontuais,
e preenchem exatamente os dois minutos desta suíte. Não
ouvimos os diálogos, apenas a melodia da música.

Primeiro vemos LAURO desmontando a bateria, como fazia quando


era mais novo, mas dessa vez ensina como guardar pratos e
tambores a FRA, como se estivesse passando o bastão para o
rapaz mais novo do grupo.

44
Num canto, NEGRO e ROGÉRIO conversam. LUISA E LINCOLN passam
por eles e se despedem rapidamente.

THÉO ajuda JÚLIA a desmontar os equipamentos de gravação


enquanto ERIC retira os microfones. A maleta em que guarda
seu sax está aberta ao seu lado, e logo EDUARDO se aproxima
com KARINA, se agacha até ela e conversa com Eric sobre o
instrumento.

Na cozinha, DAVI, TOMÁS e PEDRO agora lavam o resto da louça


que sobrou. DIANA vai até a cozinha e acende um cigarro
direto na boca do fogão, depois de pedir sem sucesso por um
isqueiro entre os rapazes. Ela volta ao corredor e na
passagem para a varanda encontra GIL, a quem abraça
fortemente, comentando sobre a apresentação. Gil se
desvencilha rápido da moça, está com pressa para ir embora,
cansado.

Num canto da sala vemos ANA. Ela segura o contrabaixo de Gil,


já protegido por uma capa. Ele troca palavras rápidas com ela
e então se despede de todos os que ainda estão na sala com
carinho igual.

De volta a Ana, ela parece pedir para carregar o contrabaixo


para ele. Gil ainda insiste, mas a menina se adianta na
direção da porta, sem se despedir de ninguém, e sai com o
instrumento na mão, carregando-o com alguma dificuldade. Gil
segue logo atrás.

No hall do prédio de Júlia uma imagem rápida: lado a lado,


Gil e Ana caminham na direção da porta, o contrabaixo já
aparentemente domado por ela.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 20 – APARTAMENTO DE ANA - INT/NOITE

São vários instantâneos da vida dos irmãos Ana e Gil,


cobrindo algumas semanas de sua convivência na casa herdada
dos pais, onde os dois vivem agora sozinhos.

A primeira imagem é imediatamente posterior à seqüência 17.


Gil abre a porta do apartamento e Ana entra com o contrabaixo
na mão, pousando-o sobre um sofá. Gil está visivelmente

45
cansado, e deita-se ao lado do instrumento enquanto Ana
insiste que ele se troque e tome um banho antes de dormir.

CORTA PARA/

A segunda imagem traz Ana na cozinha, preparando um pequeno


lanche para Gil, que passa por ela com uma toalha pendurada
no pescoço, cabelos molhados e sem camisa, recém-saído do
banho. Eles comem juntos, sentados numa pequena mesa.

CORTA PARA/

A terceira imagem se dá uma semana depois. Ana está de


uniforme do colégio, e atravessa o corredor ainda escuro da
casa, procurando por Gil. Ele está deitado em seu quarto,
numa cama de solteiro, pernas arqueadas, lendo alguma coisa.
Ana entra e logo se esparrama pela cama, tirando da mochila
um monte de papéis que espalha por ali, mostrando algo para
Gil que ele parece não entender muito bem, mas ainda assim se
mostrando interessado e atencioso. Sem falar uma palavra, ele
organiza os papéis de Ana calmamente, e só então lhe oferece
o livro que estava lendo. Ela agora ocupa o espaço dele na
cama. Gil se levanta, põe os papéis da menina de volta na
mochila e sai do quarto.

CORTA PARA/

Duas semanas depois disso, e agora Ana está cortando o cabelo


de Gil no banheiro. Jornais espalhados pelo chão para não
sujá-lo, uma cadeirinha posta no centro do lugar, Gil
tentando instruí-la mesmo com a insistência dela de que ele
não se mexa.

CORTA PARA/

Quase um mês depois da primeira imagem, Gil está sentado à


janela, afinando o contrabaixo. Lá fora, a vista para o
Parque Moscoso. Aqui dentro, Ana sentada no canto oposto da
sala, pernas dobradas e cobertas pelo vestido, observando o
irmão. Ela se levanta e se despede dele com um beijo no topo
da cabeça. Ele diz que vai sair, pergunta pelas chaves do
carro, que estão no quarto dela. Ana então o leva até seu
quarto, maior que o dele, com uma cama de casal e mobília
antiga. Numa gaveta, ela pega as chaves e entrega para Gil. É
a vez dele dar um beijo na testa dela. Gil sai, Ana corre à
janela para vê-lo.

46
CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 21 – AVENIDA BEIRA-MAR, ALTURA DO SENAI - EXT/NOITE

A rua está deserta. No fundo do quadro, sobre o canteiro que


separa as duas pistas, o carro de Gil está capotado. São
longos segundos num plano fixo à distância, marcas de pneu na
pista levando até o lugar em que o carro está, alguma fumaça
ainda saindo do motor, vidros quebrados. Demora até que o
primeiro carro pare para prestar socorro, e quando o
MOTORISTA desce para avaliar a situação, um RAPAZ vem
correndo pelo outro lado da rua para ajudá-lo. Um corte seco
nos leva de volta à festa.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 22 – APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

Seqüência em continuidade com a número 18.

Voltamos exatamente no momento em que a “Madeleine” se


encaminha para o trecho final, no minuto 7’15’’, justamente
sobre um dedilhado de GIL, a quem vemos em close longo.
Contra a tragédia anunciada no plano anterior, o que vemos é
Gil experimentando a plenitude da vida, a execução de uma
composição sua para uma plateia formada por aqueles que ama.
Ele está feliz e emocionado.

Até o fim da música voltamos a ver os amigos no chão da sala


e os músicos, agora todos em closes como os de Gil: rosto a
rosto, as expressões deste grupo único. Só vamos ao plano
geral quando os músicos derem os últimos acordes. Os aplausos
são gerais, e estes amigos nunca foram tão felizes quanto
neste exato momento.

SEQÜÊNCIA 23 – VARANDA DO APARTAMENTO DE JÚLIA - EXT/NOITE

A partir da varanda, comprida e ampla, vemos o conjunto de


prédios que se impõem à vista. Alguns poucos apartamentos têm
as luzes acesas. Algumas janelas, largas e sem cortinas, dão
a ver a movimentação dos moradores no interior. Logo também
haverá a rua, deserta e com pouquíssimos carros estacionados,
um sujeito que perambula pela calçada verificando as latas de

47
lixo presas aos postes em busca de alguma coisa qualquer,
dois carros furtivos que cruzam o quadro e interrompem a
escuridão com seus faróis. Ouvimos ainda OS SONS DA FESTA,
vozes indistintas, conversas, o burburinho dos amigos no
apartamento.

TELA PRETA

LETREIROS: “O ESCURO É UMA PÁTRIA. E NAQUELA NOITE, NAQUELE


ESCURO, A GENTE PÔDE SER FELIZ. HOJE NÃO.”.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 24 – VARANDA DO APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

Salto para o presente, um ano depois da festa e da gravação


os três amigos estão de volta ao apartamento de Júlia.
Seqüência em continuidade com a número 17.

LAURO está no parapeito da varanda, de costas para a rua.


Depois de algum tempo, senta-se num pequeno sofá velho
colocado lateralmente, onde THÉO está sentado com um prato
apoiado nos joelhos, onde restam alguns pedaços de pão. Do
lado oposto da varanda é possível ver a silhueta de DOIS
RAPAZES E DE UMA MENINA, que conversam animadamente.

Uma cadeira invade o canto do quadro, e logo vemos FRA, que


se senta de frente para os outros dois. Traz uma garrafa de
vodca numa mão e mal consegue equilibrar os três copos que
traz na outra, distribuindo-os para Lauro e Théo.

FRA
Caralho, é bom a gente estar sentado de
novo! Sentado numa boa e confortável
cadeira de verdade. Bicho, como eu
andei hoje, o dia todo.

Fra está agitado e logo muda sua cadeira de posição, virando-


a ligeiramente na direção do grupo que está do outro lado da
varanda.

FRA
(apontando o dedo)
Sabe o nome daquela garota ali?

THÉO

48
Não. Quem é?

FRA
Talvez seja a minha irmã. Quem sabe?
Talvez seja. É o tipo de lugar onde ela
estaria, vai ver que é ela.

Lauro começa novamente a assobiar a 245 de Eric Dolphy,


alheio à conversa.

FRA
Talvez seja ela mesma. Bem, tudo é
possível neste mundo, tudo.

Fra puxa um cigarro do bolso e o estende a Lauro e Théo,


ambos rejeitando a oferta.

FRA
Minha filosofia. Ouçam a minha
filosofia. Fuma enquanto você pode
fumar, bebe enquanto você pode beber,
trepa enquanto você pode trepar, e não
perde nenhuma oportunidade que
aparecer. Senta enquanto você pode
sentar, dorme só quando você estiver
muito cansado, e não perde tempo. Só
reza quando tiver tempo de sobra,
confia em Deus que Deus tem lá seu
apelo. Pensa nas flores, e do futuro só
espere o sol, que já basta. Viva
enquanto agüentar viver, faz o que
tiver vontade, cospe pro que disserem
de você, e que se foda o resto. E quem
de vocês pode dizer que não é uma
filosofia razoável? Porque é.

Fra dá um gole em seu copo como quem tivesse terminado um


discurso de horas, e parece aguardar uma resposta de seus
amigos, mas eles seguem indiferentes.

THÉO
Você viu a Luisa lá dentro, Lauro?

LAURO
Que que tem a Luisa? Ela não me
interessa mais.

49
THÉO
Você gostava dela.

LAURO
Eu gostava de todo mundo.

FRA
(interrompendo)
Talvez seja mesmo ela. Eu fui pegar a
cadeira e reparei nela, meio sem
querer. Caralho, é parecida demais com
a minha irmã, e aí eu pensei, “bom, é
capaz de ser ela mesmo”. É capaz. Tem o
mesmo jeitinho dela de empinar o nariz.

LAURO
Como é o nome dela mesmo? Fernanda?

FRA
Não, cara, essa que você está pensando
é outra irmã minha, a Fe, ela é mais
velha. Essa aí é a caçula, a Te. A mais
nova lá de casa, isso não tem nem
dezesseis anos ainda, bicho. Vai fazer
no Natal, o aniversário dela é bem no
dia do Natal. E já ta aí, com esses
caras que eu nem sei quem são, que eu
nunca vi na vida. E pra onde você pensa
que eles vão levar ela depois, cara? E
ela nem se incomoda. Fica aí, exibindo
os dezesseis anos na cara desses
sujeitos, e na minha cara. Ela não tem
mais noção nenhuma do que é sagrado,
cara, o que ela quer é isso mesmo.

Lauro levanta-se abruptamente, e seu movimento demove Fra do


discurso. Fra observa o amigo, que se aproxima dele. Lauro dá
a volta na cadeira em que Fra está sentado e, abaixando-se, o
abraça pelos ombros e aproxima sua cabeça da de Fra.

LAURO
Você é uma peça de sonho, Fra.

Um beijo no alto da cabeça de Fra e um toque carinhoso em


seus cabelos são a deixa para que Lauro se afaste.

LAURO

50
Mais vodca.

Lauro sai de quadro enquanto Fra diz esta última frase


dirigindo-se a Théo.

FRA
Falta muito pra amanhecer?

SEQÜÊNCIA 25 – SALA DO APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

A sala que víramos na seqüência 18 está, um ano depois,


completamente diferente. Vazia, a mesa antes ocupada por
garrafas e copos agora tem diversos papéis e livros
espalhados sobre ela. Alguns quadros e pôsteres que estavam
pendurados nas paredes agora estão apoiados no chão. Não há
banda, não há instrumentos, e também já não há pessoas.
Retornando a todos os cantos já conhecidos desse espaço, os
encontramos vazios, transformados pela ausência. LAURO
caminha até o centro da sala, e onde antes havia um
amplificador e alguns microfones agora existe um aparelho de
som, com duas caixas grandes ao lado, um tocador de vinil
antigo e por cima dele um pequeno aparelho de CD, com um
disco a girar. Lauro senta-se ao lado de uma das caixas de
som, e com o braço direito a envolve num quase abraço. No
momento em que se senta, ouvimos da caixa de som os ruídos de
uma gravação caseira, no exato momento em que uma canção
termina e aplausos irrompem. Acompanhando o silêncio entre
faixas, Lauro fecha os olhos.

Uma nova música se inicia, e é a mesma “Madeleine” que


ouvimos ser gravada ao vivo na seqüência 18. Estamos muito
próximos do rosto de Lauro quando ele finalmente abre os
olhos, e sorri na direção do fora-de-quadro. Um plano mais
aberto dá a ver que agora THÉO também está sentado no chão, a
seu lado.

LAURO
No dia que o Gil escreveu essa música,
ele correu até lá em casa, chegou
suado, ofegante, sacudindo um papel na
mão. A Erika riu, é o que ela faz
diante dos nossos amigos. Ele entrou
dizendo que tinha feito uma música pra
mim, e eu perguntei como eu poderia
ouvi-la. Ele me ofereceu o papel, disse
que as músicas primeiro se vêem e se

51
tocam, ouvir é algo superestimado. Era
uma partitura! O Gil era um homem do
século XIX, acreditava no papel, no
desenho das notas, nos rabiscos.

A canção segue no aparelho de som, e é possível perceber o


caráter artesanal da gravação, os ecos, os pequenos ruídos, a
equalização precária dos instrumentos. Lauro toma um gole de
seu copo, e continua.

LAURO
Ele tinha essa obsessão cristã, e acho
que não é possível mesmo ser um cristão
real sem ser um pouco obsessivo. E
vinha falar comigo e me oferecer essa
música, que ele chamava de “Madeleine”,
uma música sobre um amor interditado,
esse de Cristo com a mulher que o
acompanhava, e Gil disse que eu, como
judeu, talvez entendesse. Mas ele mesmo
nunca entendeu, ou nunca soube, que de
judeu em mim só resta um sobrenome.

Ao dizer estas últimas frases, Lauro recolhe o sorriso e a


expressão tranqüila. Volta a fechar os olhos, volta ao
silêncio. A angústia de lembrar do amigo morto neste espaço
de uma alegria que pertence exclusivamente ao passado, não ao
presente, parece abalá-lo. É a primeira fissura mais séria
nesta armadura que ele se impôs ao longo da noite. Théo
percebe seu amigo a ponto de ruir. Essa é uma história de
Théo também: Gil já nos alertara na seqüência 18 que foi a
Théo que ele mostrou primeiro essa música. E assim, incapaz
de deixar essa memória se perder no começo do fim do amigo, é
ele quem continua.

THÉO
E a música era sobre esse sujeito que
nasceu num lugar fodido, desértico, num
país sem importância.

Lauro se surpreende com a atitude do amigo, e abre novamente


os olhos, observando docemente a aventura de narrador do
amigo. É por esse tipo de gesto carinhoso que Lauro ama Théo.

THÉO
E então o Gil se levantava e dizia como
se fosse uma verdade secreta: “Mas os

52
grandes homens às vezes nascem em
países sem importância!”. Daí surge
essa mulher de olhos profundos iguais
aos dele, iguais aos do nosso amigo,
uma mulher que ele tinha ajudado uma
vez, e o Gil escreveu a música pra
entender como um homem pôde amar a
humanidade inteira e não podia amar
essa mulher. E era um homem puro,
talvez o mais puro que já existiu. Um
homem completamente deslocado no tempo
e no espaço, e que morria quase por
desistência. Não era a hora dele.

Lauro olha para Théo, e sorri como quem diz “obrigado”. Ele
agora já pode voltar a lembrar e contar sem temer uma queda.

LAURO
E ele andava pela sala e sacudia o
papel, e você sabe como o Gil era o
mais calmo dos nossos amigos, mas lá
estava com o papel na mão, me
perguntando quem poderia traduzir os
motivos da morte de um deus, e me
olhava como se esperasse uma resposta.
No fim se sentou do meu lado – do nosso
lado - e disse que a música era o lugar
onde aquele amor interditado podia
existir.

Num impulso, Lauro levanta-se e aumenta o volume no aparelho


de som, e a música assume a banda sonora extra-diegética,
como se a estivéssemos ouvindo ao vivo novamente. Com a mão,
ele puxa Théo, ajudando-o também a se levantar. Com a canção
espalhada pelo ambiente, Lauro vaga em círculos, e assim
percebemos que existe um pequeno grupo de pessoas na cozinha
ao fundo e outro na varanda, do lado oposto. Théo observa o
amigo, à medida que percebe que os círculos que o outro forma
giram em torno dele.

LAURO
E na música que ele fez pra mim, tem
você. Tem você o tempo todo.

Lauro imita os toques no teclado do piano de Théo, e é o


momento em que estão mais próximos um do outro.

53
Surgindo da varanda, FRA interrompe a harmonia daquele
movimento, falando a Théo. Está ainda mais agitado que antes.

FRA
Nem dezesseis anos ainda, cara! A gente
fazia castelo de areia junto até pouco
tempo atrás, e dormia junto de tarde na
rede. Isso tem que significar alguma
coisa! E eu não sou o pai, não sou a
mãe, eu sou só o irmão, e isso me custa
tanto, cara...

Mais calmo no fim de seu discurso apaixonado, Fra chega-se a


Lauro.

FRA
Acho que a bebida acabou. Vou ver com a
Julinha onde tem mais.

Lauro oferece seu copo a Fra, ainda há um resto de vodca


nele. Com um sorriso largo, faz um sinal com a cabeça
indicando que Fra siga em sua procura por mais bebida. O
sorriso não se desfaz até que Fra também consinta com a
cabeça, e saia de quadro.

TELA PRETA

LETREIROS: “CLARA, O QUE PODE HAVER DE TÃO EXCEPCIONAL NO


SORRISO DE UM HOMEM?”.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 26 – VARANDA DO APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

Vemos agora com clareza o grupo que se colocava do lado


oposto ao que Lauro, Théo e Fra estavam anteriormente. Há um
HOMEM de pé, mais de trinta anos, e é o mais falante do
grupo. Gesticula largamente, acompanhando com as mãos o que
quer que esteja contando ao RAPAZ MAIS NOVO, sentado no chão
e encostado no parapeito, sempre com a cabeça erguida na
direção do outro, e ANA, numa pequena poltrona de pano,
pernas cruzadas, com roupas e uma amarração no cabelo
diferentes de como a víramos na seqüência 18. Ana reage às
falas do homem de pé sempre com sorrisos e expressões
bastante delicadas. Nada ouvimos do que falam, temos deles
apenas a interação de rostos e corpos.

54
LAURO (OFF)
Hoje eu passei a tarde toda dentro
de um ônibus, rodando pra cima e
pra baixo. A tarde toda, e todas as
viagens pareciam a mesma, até os
passageiros pareciam os mesmos.
Sempre tinha uma loirinha, às vezes
de uniforme de colégio. Um velho,
um cara negro, um casal com bebê no
colo, um policial andando de graça.
E o ônibus sempre passava pela
praia. O mar é das coisas mais
incríveis que eu conheço. Mas não
se pode basear uma vida toda no
mar, nem no sol, nem nas nebulosas
da Erika. Nós não somos... Estava
ali o ônibus, quer dizer, existem
meios pra uma fuga, mas existirão
mesmo lugares para onde se fugir?

O som da SIRENE DE UM NAVIO vindo do porto, insistente e


repetitivo, ocupa o lugar deixado pelo silêncio de Lauro. Na
imagem, o grupo na varanda segue conversando animadamente, e
seguindo o ruído da sirene, eles apontam para o horizonte, na
direção onde o porto deve estar, e agora parecem falar sobre
isso.

LAURO (OFF)
Mas você sabe o que a Erika deve
estar fazendo agora, cara?

Passamos agora a ver Lauro, em close. No fundo, apenas os


borrões das luzes da cidade e dos poucos apartamentos ainda
ativos no prédio em frente.

LAURO
Essa aí não é a irmã do Fra. Ele só
tem uma irmã, que eu conheço muito
bem. Fui no casamento dela, faz um
tempo já. Cadê aquele merda? Já
devia ter trazido uma garrafa cheia
pra cá, faz um século que foi
buscar. Eu vou lá.

55
Agora vemos Théo, que está na mesma posição em que Lauro se
encontrava anteriormente. Acompanha a movimentação do amigo,
já fora de quadro.

LAURO (OFF)
E a Clara, bicho? Como ela tá?

THÉO
Você já me perguntou isso hoje,
Lauro.

LAURO (OFF)
É... desculpa, eu esqueci. Ela tá
bem, claro.

Théo parece irritado, e reage apenas com um leve sinal de


positivo com a cabeça. Lauro parece se afastar, e seguimos
com a imagem do rosto de Théo, que segue olhando para o fora-
de-quadro, na direção em que o amigo saíra. O plano se
alonga.

ANA (OFF)
O que há com o seu amigo?

Théo se surpreende com a intervenção daquela voz, e pela


primeira vez desvia seu olhar para esta interlocutora de
última hora, ainda que não a vejamos.

THÉO
Ah... nada, nada. Ele precisa
falar, só isso. Precisa dizer tudo
o que puder.

ANA (OFF)
E você precisa ouvir?

THÉO
Eu não preciso. Eu só ouço.

A imagem permanece tomada pelo rosto de Théo, que toma alguns


instantes até continuar.

THÉO
E quer saber... por que eu não vou
embora agora? Pra aproveitar que
agora eu tô aqui, sozinho. Por que
eu não deixo eles por aí, esses

56
sujeitos absurdos, e eles que
construam aí o que quiserem
construir, sem a minha presença. Que
se bebam e se riam e se afoguem por
aí, ou que só esperem o dia começar,
e que se fodam. E que se fodam de
tal forma que eu não precise nunca
mais sonhar com nenhuma parte do
corpo ou da alma deles.

TELA PRETA

LETREIROS: “EM NENHUM SONHO MEU, CLARA”.

Num corte, da tela preta vamos agora para o contraplano, até


aqui interditado, deste diálogo de Théo, e é com o rosto de
Ana que ficamos.

ANA
Ainda não chegou a parte em que a
gente fala de sonhos, rapaz. E você
não está sozinho. Vamos lá pra
dentro que seu amigo deve estar
sentindo falta dessa sua gentileza.

Ana acompanha sua ironia com um sorriso, e logo veremos Théo


entrar na imagem, sendo puxado por ela pelas mãos na direção
do fundo do quadro, onde se pode ver a porta da cozinha da
casa, lugar onde algumas pessoas se reúnem. Seus corpos saem
de foco à medida que atravessam a sala.

THÉO
Você realmente não parece nada com o
Fra.

ANA
O que?

THÉO
(rindo)
Nada, nada.

SEQÜÊNCIA 27 – COZINHA DO APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

Na pequena cozinha, NEGRO está de pé encostado na pia,


enquanto LAURO busca na geladeira algumas pedras de gelo. O
casal FERNANDA e PATRÍCIA está sentado num banquinho no fundo

57
do lugar, uma no colo da outra. Por cima da porta da
geladeira ainda aberta, Lauro estica o pescoço e abre um
sorriso tão logo percebe a aproximação de THÉO e ANA.

LAURO
Resolveu vir também, rapaz. Pensei
que ia ficar lá fora, se fingindo de
Deus.

Lauro fecha a porta da geladeira, copo com gelo na mão, e se


serve de uma garrafa que está na pia ao lado de Negro. É o
tempo para que Théo cruze o quadro, sendo cumprimentado por
Negro com um leve tapa nas costas, e se coloque ao fundo,
próximo às duas garotas. Ana se aproxima de Negro, que a
aconchega com um dos braços.

NEGRO
Essa é a menina de quem eu te
falava, Lauro.

LAURO
Ah, a menina de muitos nomes. Muito
prazer!

Lauro e Negro riem.

NEGRO
Um dia ela me chega, tinha acabado
de terminar um show nosso lá na
Curva, e sem dizer “oi” nem nada,
começa a listar de cabeça os nomes
de todos os bateristas de jazz do
mundo. Elvin Jones, Dannie, Tony
Williams, Ben Riley, a porra toda.
Daí me olha no olho e diz: “e eu
acho você melhor que todos eles”. E
eu pensando: “essa menina não tem
nem dezoito anos!”.

Alheio à conversa, Théo intervém lá do fundo.

THÉO
Dezesseis. Faz dezesseis no Natal.

Negro e Ana se entreolham, sem saber o que aquilo significa,


e então ele continua.

58
NEGRO
E isso já faz dois meses. Dois,
quase três.

LAURO
O que, pros seus parâmetros, é o
que? Um casamento?

NEGRO
Rapaz, não fala isso perto dela. Ela
ainda acredita que eu sou um bom
sujeito, né?

Negro vira-se para Ana, que responde apenas com um carinho em


seu rosto.

NEGRO
E você, Lauro, o que tem feito? As
meninas estavam reclamando que você
tinha sumido.

LAURO
Eu não tenho feito nada, cara.

NEGRO
Nada?

LAURO
É.

NEGRO
Se não tem feito nada, é porque
talvez já tenha feito tudo, né?

LAURO
“Fazer” é um troço superestimado.

NEGRO
Eu vi que você estava curtindo o som
da gente ali na sala... Aquela
música que o Gil dizia que era sua.

LAURO
O Gil... Eu também faria de cabeça
uma lista de contrabaixistas fodas
desse mundo, e diria no fim que ele
era melhor que todos.

59
NEGRO
Todas as listas, um dia, acabam
virando um catálogo de
desaparecidos.

LAURO
É toda uma geração de desaparecidos,
cara.

NEGRO
Você lembra da Júlia, Lauro? Pra
onde é que ela foi, você sabe?

LAURO
Não... Talvez tenha ido pra França,
ela sempre falava em ir pra França.

NEGRO
Foi gravar bandas de gênios que só
meia dúzia conhecem... Tá na França
dizendo os nomes de cor, antes que
desapareçam também.

LAURO
Aqui ela sempre morreu de tédio.
Vitória é o lugar pra onde as
pessoas vêm só pra ter certeza que
precisam ir embora logo depois.

ANA
(olhando para Negro)
Gente, a Júlia tá no quarto, foi
dormir mais cedo.

NEGRO
É, eu sei.

LAURO
Sinto saudade da Julinha.

FRA entra de repente na cozinha. Muito próximo de Ana, ele a


observa com estupefação, ignorando todo o resto do grupo. Ela
devolve o olhar, e só alguns instantes depois interrompe esse
diálogo mudo para então buscar Théo e Lauro.

60
FRA
Já deu aqui, né?

NEGRO
Calma, moleque. Sei que tá tarde,
mas antes de ir eu queria perguntar
um negócio pro nosso Lauro aqui.

LAURO
Manda.

Fra se acomoda num canto da cozinha.

NEGRO
Tem quantos anos que a gente se
conhece? Uns dez, né. Isso era um
pivete na escola, tá lembrado? A
gente foi tocar um dia, minha
primeira banda, eu não tava longe de
ser um pivete também. Daí me aparece
esse cara no fim do show,
perguntando se podia ajudar a gente
a carregar as coisas. Tá lembrado?

LAURO
Claro.

NEGRO
E aí virou nosso garoto, nosso boy.
Tava sempre com a gente. E era
lindo, um menino lindo, dizia que
era da banda pra pegar umas garotas.

LAURO
Dez anos, caralho.

NEGRO
E aí você envelhece e não sabe o que
fazer da vida, cara? Um sujeito como
você não tem esse direito.

Lauro pela primeira vez se sente acuado. Suas respostas são


curtas, gaguejadas.

LAURO

61
Não é uma questão de direitos,
Negro. Você sabe bem disso.

NEGRO
Você tem inveja de mim, Lauro? Será
que você tem inveja de mim?

LAURO
Não, não sei. Não sei dizer...

NEGRO
Precisa saber, cara. Precisa saber.
E a Erika, Lauro? Ela continua
contigo?

LAURO
Continua.

NEGRO
(falando para Ana)
Você sabe que este cara aqui é foda.
Meu amigo de dez anos, né. Dez anos,
você falou, ou eu que falei? Sei lá.
Dez anos que seja, um cara em quem
eu confio. Nem bom nem mau, um rapaz
normal. E tá aqui agora, cheio de um
peso que a gente não sabe de onde
vem, e eu não vejo esse cara há
meses, amor. Essa noite só existiu
pra que a gente pudesse selar essa
amizade, Lauro.

LAURO
Ahn?

NEGRO
Selar essa amizade de dez anos, ou
até mais, vai saber. Velhos amigos,
antes de todo mundo aqui.

Negro diz um “vem cá” para Ana e, com os braços, a posiciona


de frente pra si. Move o braço em torno do pescoço dela e a
beija, um beijo demorado. Pequena, Ana parece ser tragada
pelo corpo enorme de Negro. O beijo termina, e Ana parece
confusa com a situação. Como se procurasse abrigo para esta
confusão, se aperta contra o corpo de Negro.

62
NEGRO
Agora você, Lauro. Pra selar a nossa
amizade.

Negro afasta o corpo de Ana, levando-a na direção de Lauro.


Os dois estão completamente imobilizados pela atitude de
Negro.

NEGRO
Em nome dos aparecidos e dos
desaparecidos, das viagens pra
França e dos contrabaixistas fodas,
dá um beijo nela.

Lauro e Ana se entreolham.

NEGRO
Beija ele, é meu amigo mais antigo,
o único que sobreviveu dos meus
amigos mais antigos. Nós somos
amigos, não somos? Pode beijar ela,
cara, ela não se incomoda. Ela me
ama, mais do que todos os outros
caras da lista. Vai.

A situação parece chegar no limite. Ana já está muito próxima


de Lauro, e os dois absolutamente constrangidos. Théo
permanece imóvel no fundo da cozinha, apenas observa a
situação, e as duas garotas já cochilam no colo uma da outra,
alheias ao que se dá ali. Fra é o único que faz menção de
interromper aquela cena, estica o braço e toca o ombro de
Lauro como quem pede um favor a um amigo. E é exatamente o
toque de Fra que parece trazer alguma calma a Lauro. Fra se
recolhe ao canto em que estava, Lauro respira profundamente,
encara Negro por longos segundos, e então volta-se a Ana.

Frente a frente, Lauro inclina-se. Ana fecha os olhos, e os


dois se beijam, um beijo leve e rápido.

NEGRO
Dez anos sacramentados aqui, meu
caro! Que tal?

Lauro não tem qualquer expressão. Mas agora é firme com as


palavras. Ana está de novo encolhida junto ao corpo de Negro.
Lauro responde com um menear de cabeça.

63
NEGRO
A verdadeira amizade, não é?

LAURO
É.

NEGRO
Eu também já beijei a Erika, muitas
vezes. Você acredita nisso, cara? O
que você diz disso, cara?

LAURO
O que você quer que eu diga?

NEGRO
Mas e ela? Não é incrível?

LAURO
Incrível.

NEGRO
Eu sempre digo isso a ela. Não amo
essa garota à toa.

Ana finalmente parece reagir. Fala algo no ouvido de Negro,


que consente com um sorriso. Logo ela sai da cozinha. Passa
por Fra, encostado na porta, que imediatamente a segue.

NEGRO
Bem, os mortos que fiquem com a
noite agora. Eu vou embora. Vocês
ainda ficam?

LAURO
A gente já vai. Preciso ir ao
banheiro antes.

Lauro cumprimenta Negro com um aperto forte em seu ombro,


seguido de dois tapinhas, e sai. Negro vai à pia, enche um
copo de água da torneira, que bebe de um gole só, e vai até o
fundo da cozinha, convocando as duas meninas que ainda estão
ali.

NEGRO
Vamos?

64
As meninas despertam e seguem devagar pela cozinha, seguidas
por Negro. Resta apenas Théo ali, sentado com as costas
apoiadas na parede, braços cruzados. Segue sem expressão
alguma, pisca os olhos bem devagar, tem a respiração
relaxada.

SEQÜÊNCIA 28 – BANHEIRO/QUARTO DO APARTAMENTO DE JÚLIA -


INT/NOITE

É um banheiro amplo, de decoração antiga, com azulejos


cobrindo todas as paredes, um bidê e uma velha banheira.
LAURO está diante do espelho, lavando o rosto na pia. Seus
movimentos são lentos, pesarosos, suas mãos escorrem devagar
pelo rosto. São longos segundos nesse quase ritual.

Pela porta localizada ao lado da pia, entra JÚLIA. Está de


pijamas, sonolenta, cabelos amassados de quem estava
dormindo, olhos entreabertos. Lauro se surpreende com a
entrada dela, e leva algum tempo até que Júlia se dê conta da
presença dele ali.

JÚLIA
Meu Deus! Meu Deus! Eu não acredito
que você tá aqui. Lauro, Lauro...

Júlia parece não acreditar no que vê, e com a mão sobre o


rosto começa a chorar. É um choro miúdo, lamentoso, e Lauro a
acolhe nos braços, um abraço carinhoso.

LAURO
Júlia, Júlia... Eu tô aqui, calma.
Julinha, calma.

JÚLIA
Você não pode desaparecer e
reaparecer assim. Onde você esteve
esse tempo todo? Lauro, eu tô tão
cansada...

LAURO
Eu sei, amor, eu sei.

JÚLIA
Eu tô tão cansada, tão cansada.

LAURO

65
Eu sei, eu sei.

JÚLIA
A Erika veio aqui hoje atrás de
você. Você não pode fazer isso. Não
pode fazer isso com a gente...

Depois de algum tempo, tentando conter o choro da amiga,


Lauro pega a toalha de rosto do banheiro, começa a secar as
lágrimas de Júlia, dá umas risadas, no que ela também o
acompanha.

LAURO
Pronto, vamos. Eu vou te botar na
cama, vamos.

Abraçados, os dois saem do banheiro e andam por um pequeno


corredor até o quarto de Júlia. Ela se deita e Lauro a cobre
com uma manta que estava jogada ao pé da cama, e logo depois
se ajoelha a seu lado.

LAURO
Você tá dormindo ainda, calma. É só
fechar o olho que você volta pro
lugar onde estava. Fecha os olhos,
Julinha.

JÚLIA
As coisas precisavam ser mais leves,
Lauro. Só isso que eu queria.

LAURO
Eu sei, Julinha, eu sei. Agora
dorme, vai.

Lauro ajeita o cabelo de Júlia sobre seu rosto, seca com os


dedos as últimas lágrimas da amiga.

LAURO
Dorme, e amanhã quando você acordar
passa lá em casa que eu tenho um
negócio pra você. Não esquece de
passar lá.

Lauro segue fazendo carinho em Júlia. Ela murmura um


“obrigado” e vira-se no travesseiro. Lauro ainda toma um

66
tempo de pé no quarto, e então sai. A câmera fica no quarto,
a luz da porta entreaberta se fechando sobre o corpo de Júlia
até que o quarto esteja completamente escuro.

SEQÜÊNCIA 29 – SALA DO APARTAMENTO DE JÚLIA - INT/NOITE

Já não há mais ninguém no apartamento, apenas Théo, de pé no


centro da sala. Lauro surge do corredor, transtornado. Seus
olhos estão marejados, está tremendo.

THÉO
O que houve, cara?

LAURO
A Julinha.

THÉO
O que é que tem a Julinha?

LAURO
Falou comigo agora, do jeito que já
falou tantas vezes. E eu lembro de
todas elas, cara. Eu guardo de cor o
sofrimento da Julinha. Da Julinha e
de tantas outras pessoas... Alguém
tem que fazer isso, alguém tem que
lembrar deles e do sofrimento deles,
sofrer com eles.

THÉO
Mas por quê?

Lauro resmunga um “vamos”, e segue pela porta do apartamento.


Théo o segue.

TELA PRETA

LETREIROS: “LAURO NÃO RESPONDEU. E TINHA RAZÃO.”

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 30 – PARQUE MOSCOSO - EXT/NOITE

As ruas no entorno do Parque Moscoso estão completamente


desertas. Não há sequer carros estacionados. FRA e ANA estão
parados na calçada, distantes. Faz algum frio, e Ana está

67
abraçada na cintura de Fra. THÉO segue até eles, caminhando
sozinho, devagar, com a cabeça baixa. Finalmente chega a
eles.

FRA
Ela decidiu ficar com a gente. O
Lauro não veio contigo?

THÉO
Ele tá vindo.

FRA
Nós vamos pra casa da Ana, é perto
daqui, a gente pode dormir um
pouco.

ANA
Vai buscar ele, tô morrendo de
frio...

THÉO
Tá, tá...

No mesmo ritmo lento com que viera, Théo refaz seu caminho
até ali. Na outra extremidade do parque, sentado ao pé de uma
árvore, podemos ver LAURO. No meio do trajeto até ele,
ouvimos no off o GRITO de Fra, chamando o nome de Lauro por
duas vezes. Logo após o primeiro grito, Théo levanta a cabeça
e a vira na direção em que Fra estava, e por um tempo segue
nessa posição, até voltar novamente a cabeça para a direção
de Lauro, agora olhando para ele, e não para o chão. Já está
bastante próximo.

THÉO
Você não vem com a gente, cara? Você
não vai ficar aí, vai? Vem com a
gente, rapaz, vamos pra casa da
“irmã do Fra”.

Théo diz estas últimas palavras com um riso de ironia, mas


não consegue demover Lauro de seu estado. Olhos fixos na rua,
vermelhos, tremendo, Lauro tem a aparência devastada.

THÉO
Vem, é melhor do que ficar aqui.

68
Lauro agora olha para Théo, olhos completamente
transtornados. Sua fala é pausada, a voz levemente embargada.

LAURO
Eu não sei... Eu queria. Eu
queria... Eu tô com tanto medo,
cara. Medo de ir e medo de sair
daqui correndo, voltar pra casa da
Julinha, chorar junto com a Julinha.
Me ajuda, cara, você tem que me
ajudar.

THÉO
Você quer que a gente te leve até a
Erika? É isso que você quer? A gente
te leva em casa.

LAURO
Como eu vou saber se ela está lá?
Talvez tenha saído, talvez esteja
ocupada. Talvez ela não me queira
lá hoje, vai saber. Talvez tanta
coisa... A Erika é a coisa que mais
me afeta nesse mundo, cara, e eu
tenho medo que ela não perceba isso
a tempo.

THÉO
Então você não vai lá hoje, Lauro.
Vai amanhã, outro dia que você
quiser. Hoje você fica com a gente.
A gente fica bebendo e conversando
até o dia chegar.

LAURO
Não adianta...

THÉO
Anda. Vem com a gente.

LAURO
Bem, o que eu tenho a perder, né?
Nada. Eu só estou cansado, cansado
demais, cara.

THÉO

69
Levanta.

Lauro obedece Théo, mas permanece ainda algum tempo escorado


em uma árvore, já de pé. Théo o pega pela mão, e os dois dão
alguns passos de mãos dadas. Fra e Ana já vão longe, e os
dois agora caminham pela rua. Sempre os veremos de costas.

LAURO
Eu conversava com a Clara sobre isso
tudo, eu me lembro. E ela sempre
dizia que sabia que tinha pessoas
que nasciam pra morrer, e perguntava
se era possível que eu fosse um
deles. Eu nunca soube, cara. Eu só
tinha uma única vocação, essa de ser
um bom sujeito. E acabei não dando
certo, um bom sujeito que não deu
certo. Você não me entende, entende?

THÉO
É o que eu tenho feito a noite toda,
cara.

LAURO
Não, não entende. Mas não é porque
você não deu certo também. Você é um
irmão, um irmão. É que não é preciso
entender uma morte, um final. Só é
preciso que alguém morra por morrer,
de vez em quando, e eu sou um
desses, diz isso pra Clara quando
estiver com ela. Um desses que
morrem por uma razão que não se
entende, por uma fé que ninguém
realmente acredita, por uma
esperança qualquer, impossível.
Demorou pra eu descobrir que
precisava justamente não ter razão
nenhuma pra fazer tudo o que eu
fazia. E se eu tivesse um motivo pra
fazer alguma coisa, o que é que ia
adiantar? Não sei se você me
entende, mas a Clara, apesar de
tudo, parece que me entendia um
pouco.

70
Agora estamos de frente para Lauro e Théo. A rua deserta,
silenciosa, e a voz de Lauro cada vez mais calma, mais
serena. Seus olhos já estão aquietados, não treme mais. Andam
os dois, lentamente, uma avenida e um parque inteiros sendo
deixados para trás.

LAURO
Os meus quadros tem a cor de uma
noite assim.

Lauro faz um pequeno gesto circular com o dedo, e toma algum


tempo antes de continuar.

LAURO
Teve essa tela que eu pintei uma
vez, com o Dolphy tocando sax, assim
no primeiro plano, e atrás tudo mais
ou menos misturado, o baixista, o
pianista. Todo mundo gostou muito,
inclusive a Erika, que não entendia
a cor dessa noite nem a cor daquela
tela. E um dia ela me diz baixinho,
quase como numa confidência, que eu
devia conhecer o vermelho, que o
cinza, o marrom o preto e o azul se
dariam bem na companhia dele, e
depois ri um riso de compaixão...
Joga o riso bem na minha cara. E eu
sei que não era um grande quadro, eu
não sou capaz de grandes quadros. O
que eu sei fazer é pintar, só isso.
Eu quis ser um gênio, como todo
mundo, mas no começo. Demora até
você aprender que não precisa disso,
que é só seguir em frente. E o pior
da minha vida sempre foi quando eu
não conseguia nem isso. A Clara
lembra bem dessa época, pergunta pra
ela depois, uma fase terrível, três,
quatro meses sem pintar nada. A
Erika viu um pouco disso também, já
bem depois. E eu não conseguia
pintar nada, não saía nada, por mais
que eu tentasse, nada que eu
gostava. Destruía uma tela atrás da
outra. Até que eu descobri o rio.
Foi num sábado, com a Clara ou com a

71
Erika, depois confirma isso com uma
delas, mas eu lembro que era um
sábado e a gente foi dar uma volta
de carro, e andamos pra caralho, até
que eu descobri o rio. Fiquei louco
com aquele lugar, ali por dentro, no
meio das montanhas, um rio que
aparecia e desaparecia sem nunca
dizer quem era. Só estava ali. E eu
pensei que era um lugar pra mim,
sabe? Não sei se você entende, mas
eu tenho certeza que eu não sonhei
isso. Pelo menos isso eu não sonhei.
Isso aqui, talvez.

E ao dizer esta última frase, Lauro repete o movimento


circular com o dedo.

Agora veremos os rostos de Lauro e Théo se alternarem na


imagem, sempre muito próximos, a rua cada vez mais indistinta
no fundo do quadro.

LAURO
Eu passei meses indo lá todo fim de
semana. E ia de ônibus, cheio de
gente parecendo de outro país, e eu
conversava com eles sobre tanta
coisa. Eles gostavam de mim porque
eu falava alemão, e falava mal,
então havia sempre um erro meu que
iniciava uma nova conversa. Eu
saltava na estrada e descia até o
rio, ficava lá. Não levava nada,
tela, tinta, nada, e chegava em casa
e não pintava natureza nenhuma, mas
o rio estava sempre lá, em algum
lugar no meio das tintas ele estava.
Um dia eu quis ver o rio de cima, e
subi a montanha. Umas três horas pra
subir. O céu parecia tão perto, era
um ar diferente, uma imagem que eu
nunca tinha visto das coisas, e eu
quis rezar, a Clara me ensinou a
rezar uma vez, pergunta pra ela.
Escreve pra ela e pergunta. E eu fiz
do jeito que ela me mandou, agora
acho que foi com a Erika, porque a

72
Clara já tinha ido embora nessa
época. Do jeito que ela mandou, e eu
não consegui. Tudo tão perto, nunca
estive tão perto, e não consegui,
cara. Você não imagina como eu
tentei, o máximo que pude.

A fala de Lauro termina quando seu rosto está ocupando a


imagem.

TELA PRETA

LETREIROS: “E O LAURO CAMINHA COM OS BRAÇOS CRUZADOS CONTRA O


PEITO, MORANDO NO DIA EM QUE TENTOU SER COMO VOCÊ, CLARA.”.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 31 – RUA DO PRÉDIO DE ANA - EXT/NOITE

FRA e ANA estão parados em frente à portaria do prédio, e


esperam a aproximação de LAURO e THÉO, que seguem agora pela
calçada. Falando baixo, antes que cheguem até os outros,
Lauro se dirige a Théo.

LAURO
Eu não quero subir, cara. Não tenho
o que fazer lá.

THÉO
Vai ser rápido, daqui a pouco
amanhece, a gente vai embora.

Antes que Lauro possa responder, eles chegam à portaria.

LAURO
E então, é aqui? Fra, leva o Théo
contigo, que eu preciso falar com a
Ana um pouquinho.

Théo e Fra ficam surpresos com o pedido. Ana lhes entrega a


chave de casa. Fra sai na frente, sempre olhando para Lauro e
Ana, que ficam à rua. Théo abre a porta principal do prédio,
e os dois entram. Pelo vidro da porta, são agora duas figuras
distantes e distorcidas.

LAURO

73
Você é a irmã do Gil, não é?

ANA
Isso.

LAURO
Eu lembro de você. Sempre foi linda.

ANA
Vocês se conheceram como?

LAURO
O Gil tentou me ensinar a tocar
quando eu era moleque, mas não teve
jeito. Sabe, é o tipo de instrumento
que me encanta. As descobertas, as
criações são mais difíceis, eu
sempre quis isso, e o Gil foi o
único que percebeu.

ANA
Eu lembro de você naquela festa na
casa da Julinha, ano passado, quando
eles gravaram. Você cantou, eu
lembro de ver você e o Gil se
olhando como se fossem mais amigos
um do outro que todo mundo ali. Mas
não sabia quem era você.

LAURO
O que eu queria te dizer é que o
contrabaixo dele tá comigo, eu não
sei se ele chegou a te falar.

ANA
Não, não falou. Mas se tá contigo é
porque era pra estar mesmo.

LAURO
Tá, tá comigo. Eu não vou subir não,
vou dar uma volta. Só diz pro Théo
que a gente se vê daqui a pouco.
Daqui a uma hora na igreja. Diz isso
pra ele, por favor?

ANA
Digo sim.

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LAURO
Não esquece não. No amanhecer. Antes
não.

Ana se despede com um aceno, Lauro solta um sorriso quase


constrangido, refaz seu caminho pela calçada e se afasta até
sair de foco.

SEQÜÊNCIA 32 – SALA DO APARTAMENTO DE ANA - INT/NOITE

Na sala há um sofá velho, uma poltrona onde FRA está sentado


de maneira desleixada e sobre a qual se abre uma janela
grande, algumas cadeiras reunidas em torno de uma pequena
mesa de madeira e um aparador com uma televisão. Da sala se
vêem as portas para os dois quartos da casa. ANA entra pela
porta principal, e Fra logo se senta direito, olhando-a como
se esperasse alguma explicação. THÉO sai de um dos quartos
alguns segundos depois.

ANA
O Lauro foi dar uma volta.

Théo encosta-se no batente da porta. Fra alcança uma garrafa


sobre a mesa, e bebe direto do gargalo. Está claramente
bêbado.

FRA
E ele falou alguma coisa sobre as
flores?

ANA
Não, nada.

FRA
(tomando um outro gole)
Que merda... Esse é o problema dessa
cidade. Ela decide sozinha quando
quer te oferecer as coisas ou não.
Eu precisei hoje das flores e não
havia flor em lugar nenhum. Era o
que eu estava fazendo quando
encontrei vocês mais cedo, cara. A
minha mulher chega hoje e eu sempre
tenho flores, eu levo na casa dela.
E hoje esconderam todas de mim, só

75
porque ela chega e eu estou aqui
afundado nesse sofá sem ter com o
que recebê-la.

Théo segue de pé à porta, e agora Ana tira os sapatos e


senta-se no chão. O cansaço em todos eles é aparente. Fra
insiste com a garrafa e com sua história.

FRA
Ontem eu quis demais estar com ela.
Mas ela me ligou dizendo que só
chegava hoje, e não tinha ninguém na
rua, eu não encontrei com nenhum de
vocês, e aí eu fui pra praia, que é
um bom lugar pra se ir quando elas
ligam desmarcando. Onde vocês
estavam, que eu precisava tanto
falar com alguém? E é uma praia em
que a gente sempre é feliz, né,
cara? É a praia do Lauro e da Erika,
da Julinha, do Negro reclamando...
Essa praia não é sua não, Ana. Você
não estava naquele dia, acho que não
conhecia a gente ainda, mas ele
estava. Os dias são sempre felizes
na Curva, mesmo quando chove e não
tem um puto de um quiosque aberto
pra gente comprar uma cerveja. E ela
gosta tanto de mim, cara... É como
uma irmã mais velha, torna o mundo
tão mais fácil, tão mais agradável.
E essa merda dessa noite que não
acaba...

Numa pausa de Fra para beber um pouco mais, Ana se levanta.


Ela atravessa a sala e dá um beijo na testa de Fra.

ANA
Ela logo chega, rapaz... Mas a sua
irmã mais nova aqui vai dormir.
Deitar, pelo menos. Tenta dormir
você também, daqui a pouco.

Ana entra no quarto oposto ao que Théo estava. É ele agora


que atravessa a sala e vai para a janela, próxima a Fra. Théo
olha para o céu.

76
THÉO
A impressão que eu tenho é que o sol
um dia acaba morrendo de velho, e só
as noites assim é que vão
sobreviver, Fra. Me diz se tem um
outro lugar pra você existir assim
se não uma noite como essa, meu
amigo?

Fra solta uma gargalhada, mas logo se cala, como se fosse


surpreendido por esse momento de alegria. Théo olha o amigo
afundado na poltrona, seu corpo cada vez mais diminuído e
encolhido. Até que Fra sussurre algumas palavras.

FRA
Eu podia ser um astrônomo, cara. Eu
podia ser.

Théo sacode os cabelos de Fra como se tentasse animá-lo, e


logo toma dele a garrafa, dando também um gole direto no
gargalo. Segundos depois, Fra se levanta e agora encara Théo
de frente.

THÉO
Fra, deve ter alguma loja aberta já,
certeza que tem.

FRA
Eu vou lá ver, cara. Eu vou lá ver.

Fra cruza a sala e sai do apartamento. Théo ainda leva algum


tempo antes de se encaminhar para o quarto em que Ana está.

SEQÜÊNCIA 33 – QUARTO DE ANA - INT/NOITE

ANA está deitada na cama, de lado, e THÉO deita-se ao lado


dela, de barriga para cima. Ela logo se vira para ele, mas os
dois ficam em silêncio por algum tempo.

THÉO
Seu nome é só Ana?

ANA
É, só Ana.

THÉO

77
E mora aqui sozinha?

ANA
É, agora sim.

Os dois novamente ficam em silêncio. Théo segue olhando para


o teto, e Ana não desvia a atenção dele.

ANA
Você está pensando no Lauro?

THÉO
Não teria como não pensar.

ANA
E vocês são amigos há muito tempo?

THÉO
Mais tempo do que eu consigo me
lembrar.

ANA
E ele sempre foi assim, meio triste?

THÉO
(rindo)
Não, não... Não sei se algum dia ele
foi triste, realmente não sei. Ele
só não acredita mais. Eu sempre
achei que os olhos dele viam
verdades que a gente não consegue
enxergar, ou pelo menos inventavam
verdades melhores que as nossas.
Quer dizer, eu não achava isso, foi
a Clara que me falou.

ANA
Quem é Clara?

THÉO
Clara é a mulher que eu amo, e que o
Lauro ama como eu. Eles estavam aqui
muito antes de eu chegar, e vão
continuar muito tempo depois que eu
for embora. Foi assim que eu fiquei
amigo dele, amando o amor que ele
dividia com a Clara. E ele gosta

78
muito, sabe, ele gosta muito da
gente, dos homens. E ele espera
deles alguma mudança de rumo. Ele me
diz isso e eu consigo ver os olhos
dele inventando essa verdade pra
mim. Que a gente está desperdiçando
toda uma possibilidade de pureza em
troca de uma forma de viver que é
revoltante, que não tem lógica, que
é absurda. Ele gosta dos homens pelo
que eles poderiam ser, e acho que
tem medo de começar a odiá-los
demais.

ANA
Eu não consigo vê-lo odiando
ninguém.

THÉO
Claro, ele não conseguiria. Nunca
conseguiu. Por isso que ele fica
sempre tão irritado quando está
feliz.

ANA
Ninguém fica irritado com
felicidade.

Théo pela primeira vez encara Ana nos olhos, e sorri.

THÉO
Fala você agora.

Depois de alguns instantes, Ana se levanta da cama num salto.

ANA
Só se eu te falar de um segredo. Mas
você não pode falar pra ninguém.

THÉO
Eu não prometo não, viu.

Ana vai até uma cômoda que fica do lado oposto da cama e de
uma das gavetas tira uma caixinha. Escondendo-se do olhar de
Théo, ela fica de costas, retira o conteúdo da caixinha e
então vira-se rapidamente. Na mão direita ela exibe um anel
de ouro com uma pequena pedra branca no centro.

79
ANA
Eu uso às vezes, saio com ele na rua,
pra fingir que sou noiva. Finjo pra
mim também, que dá no mesmo. Mas eu
não sei por quê.

Théo senta-se à beira da cama, de frente para Ana. Ela está


em seu momento mais infantil até aqui, tímida, retraída,
envergonhada. Théo alcança-lhe a mão com o anel e dá um
beijo. Ana se aproxima de Théo, e agora ele a abraça pela
cintura. Ela acaricia seu cabelo, e por algum tempo os dois
ficam ali, em silêncio.

SEQÜÊNCIA 34 – APARTAMENTO DE LAURO - INT/NOITE

Seqüência em continuidade com a número 31.

O apartamento está completamente escuro e LAURO se movimenta


com cuidado para não fazer barulho. ERIKA está dormindo no
quarto, torso nu, usando apenas uma calcinha. De Lauro vemos
apenas a silhueta. Ele tem um pincel e uma pequena lata de
tinta nas mãos, e vemos com detalhes ele buscando cada um de
seus quadros espalhados pela sala. O ritual é sempre o mesmo:
Lauro pega uma tela e no verso rabisca alguma coisa com o
pincel. São dez os quadros, e é apenas quando atinge um que
se encontra debaixo de uma janela, onde a luz da rua permite
uma visão melhor, que perceberemos que Lauro está escrevendo
nomes de pessoas com o pincel.

No quarto, Erika desperta e acende um abajur. Ela chama Lauro


pelo nome, e ele vai até ela. Ainda com o pincel na mão, ele
se deita ao lado de Erika, e a beija longamente.

ERIKA
Onde você estava?

LAURO
Encontrei o Théo mais cedo na rua,
fomos na casa da Julinha.

ERIKA
Por que você não me ligou?

LAURO
Não sei, amor.

80
Por alguns instantes, Lauro observa Erika, ainda sonolenta. A
luz do abajur incide sobre seu corpo, e Lauro não resiste
àquela visão. Com o pincel, escreve seu nome à altura dos
seios de Erika.

ERIKA
Was bedeutet das?
(“O que isso significa?”)

LAURO
Agora você está endereçada a mim.
Não tem mais jeito. Meu nome está
escrito aqui, não tem mais jeito.

Erika ri, e depois olha com cuidado as letras pintadas por


Lauro.

ERIKA
Küss es mal.
(“Dá um beijo!”)

E Lauro assim procede, beijando cada uma das letras, e


ficando com os lábios marcados pela tinta negra. Erika limpa
um pouco da tinta da boca de Lauro.

ERIKA
Geh fort.
(“Saia daqui”)

LAURO
Ich werde, meine Prinzessin.
(“Eu saio, minha princesa”)

Lauro levanta-se e apaga a luz do abajur. Erika se vira na


cama, voltando à posição em que dormia antes. Com passos
lentos, Lauro cruza o apartamento, abre a porta principal e
sai.

SEQÜÊNCIA 35 – QUARTO DE ANA - INT/NOITE

THÉO e ANA seguem sobre a cama, agora mais próximos um do


outro.

ANA

81
Sabe, houve uma época em que eu era
bem mais feliz. Muito feliz. Não era
assim tão sozinha como hoje.

THÉO
Quem era ele?

ANA
Meu irmão. Mas ele morreu. Ele tinha
um carro sem uma das portas... Andei
muito naquele carro velho dele.

THÉO
O Gil era seu irmão?

ANA
Era.

THÉO
Eu conhecia ele, mas não lembro de
você.

ANA
O Lauro lembrou... O Gil ficava em
casa comigo, a maior parte do tempo.
Daí a gente saía naquele carro
louco, íamos à praia. O Gil gostava
de apostar corrida com outros
carros, ganhava sempre. Sabia
correr, adorava correr. Foi a
primeira pessoa que me beijou. Eu
era tão feliz com ele... Mas foi uma
morte bonita. Sempre achei que foi a
morte que ele queria ter.

THÉO
Eu me lembro do acidente.

ANA
E eu conheço o Lauro por causa do
Gil. Um dia ele chegou em casa
bêbado, estava com aquela pastinha
de música dele. E ficava me falando
desse cara com quem ele tinha
passado a noite, um tal de Lauro, e
repetia toda hora uma frase do
Lauro, uma frase que ele anotou e

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que não podia esperar pra fazer
música dela. Chegou aqui e ficou com
o contrabaixo a madrugada toda.

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 36 – RUAS DA CIDADE ALTA - EXT/NOITE

Seqüência em continuidade com a número 34.

Vemos o rosto de LAURO, que caminha pela rua. Faz frio, e ele
tem os braços cruzados e os ombros encolhidos. Seu trajeto é
preenchido pela continuação da fala de Ana na seqüência
anterior, agora em off.

ANA (OFF)
“Somos tantos e não somos bons”, era
a frase. Foi legal ter colocado um
rosto por trás dessa frase hoje.

Lauro está subindo uma ladeira que já víramos antes, a mesma


em que um dia estacionou o carro sem porta para buscar Clara
na igreja. Parece não mais sentir frio, já tem os braços
soltos ao lado do corpo e caminha com mais vigor.

TELA PRETA

LETREIROS: “SOMOS TANTOS, CLARA, E NÃO SOMOS BONS.”

CORTA PARA/

SEQÜÊNCIA 37 – QUARTO DE ANA - INT/NOITE

ANA e THÉO estão abraçados, de pé. Ela afaga os cabelos dele,


ele a envolve com os braços pela cintura, e beijam-se
longamente. Durante o beijo, pequenos movimentos de seus
corpos sugerem o início de uma dança. Tão logo terminem de se
beijar, os dois de fato embarcam numa espécie de valsa, com
passos curtos, espremidos entre a cama e a cômoda, mas
completamente harmônicos. Ana tira dos ombros as alças de seu
vestido, e então desabotoa a camisa de Théo. Enquanto se
deitam, os dois terminam de se despir. A cama está mal
iluminada, e vemos apenas o desenho dos corpos durante o
sexo. Ana e Théo permanecem abraçados o tempo todo, beijam-

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se, respiram no mesmo compasso. Os movimentos são delicados,
calmos, apaixonados.

A transa dura alguns minutos, mas os dois permanecem


abraçados mesmo depois que ela acaba. Na penumbra, se
entreolham.

THÉO
Há quanto tempo você não sorri um
sorriso desses?

Théo ajeita os cabelos de Ana por detrás das orelhas.

THÉO
Eu já vi dois sorrisos assim. O
primeiro foi em Belo Horizonte, era
um menino se despedindo dos pais na
estação. O segundo foi aqui, primeiro
dia da faculdade, esse mesmo menino
vendo pela primeira vez os amigos da
sua vida. A família nova dele. E os
dois sorrisos eram meus.

ANA
(apontando para o rosto de Théo)
Olha o terceiro aí!

Até aqui não o vimos desse jeito, pleno, sorrindo pelos


encontros e pelas despedidas, exatamente como no relato que
acaba de fazer. Théo e Ana se beijam, e logo depois se
posicionam lado a lado, rostos de frente um para o outro. Ana
sussurra um “dorme”, e passando os dedos sobre a face de
Théo, fecha seus olhos.

SEQÜÊNCIA 38 – SALA DO APARTAMENTO DE ANA - INT/AMANHECER

Pela janela é possível ver os primeiros sinais do dia


clareando lá fora. Sobre a poltrona vazia, está a garrafa que
uma vez já pertencera a Fra, ainda pela metade. Depois de
alguns segundos, THÉO entra em quadro, coloca-se à beira da
janela. Está sonolento ainda, sem a camisa, cabelos
amassados, expressão cansada. Acende um cigarro. Théo olha
para a rua, e depois de algum tempo começa a chorar, um choro
mudo.

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Pouco tempo depois, ANA o encontra à janela. Vestida, ela
traz a camisa de Théo nas mãos, e em silêncio o ajuda a
colocá-la. Ela enxuga algumas das lágrimas de seu rosto.

THÉO
Tenho que ir atrás do Lauro...

ANA
Ele pediu que você o encontrasse na
igreja quando amanhecesse. Me mandou
te dizer isso só quando amanhecesse.
Acho que chegou a hora.

Théo se perturba com a informação.

THÉO
Eu vou lá, eu vou lá agora.

Ana consente com a cabeça. Théo cruza a sala e sai.

SEQÜÊNCIA 39 – RUA DO PRÉDIO DE ANA - EXT/AMANHECER

THÉO desce correndo as escadarias na portaria do prédio,


atravessa o portão e logo chega à rua. Seu movimento é
interrompido bruscamente quando passa por FRA e para poucos
metros à frente dele. Fra tem nas mãos um buquê de
margaridas.

Os dois não se falam. Apenas mantém alguma distância um do


outro e se olham diretamente. Logo Théo se vira, e segue
correndo. Fra entra no prédio.

SEQÜÊNCIA 40 – IGREJA DE SÃO GONÇALO - EXT/NOITE

Seqüência em continuidade com a número 36.

A noite ainda é intensa. LAURO chega à mesma igreja que


víramos na seqüência 2. O lugar está escuro e completamente
deserto. Lauro salta a pequena grade que cerca o lugar e
entra no pátio. Senta-se no chão de ladrilhos.

Agora vemos apenas o rosto de Lauro. São longos segundos de


uma expressão serena. Lauro respira devagar, mantém o olhar
sempre num mesmo ponto, relaxa os ombros. Pelo movimento de
seu braço, vemos que pega alguma coisa no bolso de sua

85
jaqueta. São três facadas que Lauro se dá na barriga, e
novamente só percebemos isso por causa do movimento de seu
braço e dos ruídos que seu ato produz. Seus olhos se fecham,
o corpo se recosta na parede da igreja, e agora é possível
ver uma enorme mancha de sangue que toma sua camisa. Lauro
abre os olhos ainda algumas vezes, e então os fecha
definitivamente. Sua respiração diminui aos poucos até
cessar.

SEQÜÊNCIA 41 – RUAS DA CIDADE ALTA/IGREJA - EXT/AMANHECER

Seqüência em continuidade com a número 39.

THÉO refaz o percurso de Lauro até a igreja. A noite ainda


resiste, mas o céu já dá sinais de claridade. Théo corre
pelas ladeiras ainda escuras.

Théo finalmente chega à igreja, e toma ainda algum tempo do


lado de fora do cercado. Observa o corpo do amigo encostado
na parede, no fundo do quadro. Num salto invade o pátio, e se
aproxima de Lauro. Agachado, Théo afasta os cabelos de Lauro
da testa. Há uma gota de sangue presa no canto de seu olho, e
com o dedo Théo a retira dali. Com cuidado, ele tenta erguer
o amigo. Suspende Lauro pelos braços e os envolve em torno de
seu pescoço. Agora está de pé, carregando-o nas costas.

SEQÜÊNCIA 42 – PARQUE MOSCOSO - EXT/AMANHECER

THÉO carrega Lauro pelo mesmo caminho que antes fizeram


juntos na seqüência 30. É um trecho longo, e Théo faz esforço
para manter o amigo desfalecido seguro. As ruas ainda estão
vazias, e só ouvimos seus PASSOS e a RESPIRAÇÃO OFEGANTE de
Théo. Seu trajeto dura alguns minutos, e o veremos primeiro
lateralmente, e então de frente, com a cabeça de Lauro
pousada em seu ombro.

SEQÜÊNCIA 43 – SALA DO APARTAMENTO DE ANA - INT/AMANHECER

O dia já surge mais claro pela janela. O corpo de LAURO está


deitado no sofá. ANA está sentada no chão, descalça e com as
pernas dobradas, dormindo encostada no sofá à altura dos pés
de Lauro. FRA está de pé na soleira da porta de um dos
quartos, e na mesa ao lado as margaridas que conseguiu
comprar estão colocadas dentro de um vaso com água. THÉO está

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sentado na poltrona à janela, com a camisa marcada pelo
sangue de Lauro. Virando o corpo para a janela, ele fecha a
cortina.

Depois de alguns momentos, Ana desperta. Devagar, ela vai até


a porta principal do apartamento e a abre. Ana sai, mas deixa
a porta aberta, e por ali entra a luminosidade que Théo
tentava negar fechando a cortina. Théo acompanha a
movimentação dela com o olhar, sem entender para onde ela
vai.

Instantes depois Ana volta, e atrás dela vem NEGRO. Ele vai
até o corpo de Lauro, passa-lhe a mão na testa, e vai se
sentar numa cadeira ao lado de Fra.

Numa série de imagens, veremos várias das pessoas encontradas


por Théo, Lauro e Fra em sua jornada pelas noites do passado
e do presente chegando ao apartamento: ROGÉRIO, LUISA,
SANDRO, LINCOLN, PEDRO, TOMÁS, MARIANA, ALICE, PATRÍCIA.
Todas elas cumprem o mesmo ritual: aproximam-se do corpo, e
depois de algum tempo buscam um lugar para se acomodar na
sala, cada vez mais cheia.

A luz do sol agora já é incontornável, e quando JÚLIA chega


ao apartamento, vai até a janela e abre a cortina antes mesmo
de chegar próxima a Lauro.

Do bolso da jaqueta de Lauro, veremos ERIC tirar seus óculos


de armação preta, e colocá-los.

Alice busca no outro bolso os cigarros de Lauro, para logo


acender um deles. Ela vai até Tomás, com quem divide um
trago.

ALICE
Ele tinha parado de fumar.

Saindo de um dos quartos, Sandro veste agora a jaqueta de


Lauro.

Théo, por último, retira do amigo o cordão dourado com


pingente, presente de Clara para Lauro. Théo vai até o quarto
de Ana, e na porta encontra Júlia, muito abatida.

THÉO
Como você tá?

87
JÚLIA
Acabei de me demitir. Antes de vir
pra cá.

Júlia solta um sorriso no meio das lágrimas que começam a


saltar dos olhos.

THÉO
França?

JÚLIA
França.

Théo e Júlia se abraçam longamente. Ela se afasta, e agora


ele entra no quarto de Ana. Lá busca uma gaveta da cômoda,
pega a caixinha de onde antes Ana havia tirado seu anel e
guarda ali o cordão.

A sala está cheia de gente, e saindo do quarto, Théo cruza o


ambiente na direção da porta principal.

SEQÜÊNCIA 44 – APARTAMENTO DE LAURO - INT/DIA

A porta está aberta, e THÉO ainda dá algumas batidas nela


antes de entrar. Veste uma camiseta de malha, jeans, está com
os cabelos mais curtos. ERIKA logo o avista, e vem
cumprimentá-lo com um abraço. Seu cabelo está amarrado numa
trança, usa um vestido branco leve e está descalça. O
apartamento, antes repleto de telas, agora não tem mais
nenhuma.

ERIKA
Você nunca mais apareceu, né? O
Lauro até reclamava disso. Entra,
entra...

Erika indica a direção da cozinha, e os dois caminham até lá.


Em silêncio, Erika pega um copo na pia, enche de água e bebe.
Oferece o mesmo a Théo com um gesto de cabeça, mas ele
recusa. Os movimentos de Erika são todos observados
atentamente por Théo.

ERIKA
Você foi o último a vir. O último
dos vulgares.

88
THÉO
Como?

ERIKA
Era como o Lauro chamava o tempo que
ele passava com os amigos. As horas
vulgares da vida dele. E ele falava
muito de você. O último dos vulgares
a vir aqui.

THÉO
Eu não pude vir antes.

ERIKA
Eu entendo. Mas vieram todos. Havia
um nome escrito em cada coisa do
Lauro, cada quadro, cada disco. Eles
vinham, procuravam o nome, e
levavam, um a um. Os quadros todos.

THÉO
Não tem nada com o meu nome.

ERIKA
Não.

Erika passa por Théo e segue na direção do quarto. Ele a


segue.

ERIKA
Tem o nome da Clara, e o Lauro
sempre dizia que o seu nome e o dela
significavam a mesma coisa.

Erika busca um pano de tela ainda sem moldura no aparador


onde está o abajur. O pano está enrolado por uma fita, e
podemos ver o nome de Clara escrito com tinta preta. Erika
entrega o pano à Théo, que abre a fita e o estende. Ali
podemos ver o retrato de Clara, vestido negro caído à
cintura, seios à mostra, encostada numa parede.

SEQÜÊNCIA 45 – ALTO-MAR - EXT/DIA

É um dia claro de sol forte. THÉO está num barco à motor,


navegando próximo à costa. Com ele há apenas o BARQUEIRO, o

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mesmo que víramos na seqüência 5. O RUÍDO DO MOTOR é intenso.
Acompanhamos este trajeto por alguns segundos.

SEQÜÊNCIA 46 – PRAIA - EXT/DIA

THÉO e o BARQUEIRO atracam no quebra-mar: calças dobradas até


o joelho, saltam do barco e o puxam até a areia. Ao fundo não
há qualquer sinal de urbanidade, apenas uma grande colina
coberta de vegetação. Com uma mochila nas costas, Théo
atravessa algumas pedras e segue na direção da colina.

SEQÜÊNCIA 47 – TRILHA NA MATA - EXT/DIA

THÉO caminha com alguma dificuldade por uma pequena trilha


formada no meio da vegetação alta.

SEQÜÊNCIA 48 – CASA DE UM SÍTIO – EXT-INT/DIA

THÉO se aproxima de uma casa rústica, pequena, mas bem


conservada, construída no alto de uma colina, com vista para
o mar. Surgindo pelo meio da mata, nos fundos da casa, ele
sobe alguns degraus até chegar a um pequeno gramado. Nos
varais colocados ali estão pendurados alguns lençóis e outras
roupas, que ele recolhe com delicadeza, dobrando-as e
formando uma pequena pilha. Théo agora sobe outra escada e
avança pelo pátio até chegar à porta da cozinha.

CLARA o espera na porta. Ela o observara nesse tempo todo,


sem que ele percebesse. Théo se aproxima, Clara recolhe as
roupas dobradas de sua mão, agradece com um sorriso e as
coloca num pequeno móvel ao lado do tanque. Os dois
finalmente se abraçam.

Os dois entram juntos pela cozinha. Há uma bancada grande,


oposta a pia, forrada em parte por uma toalha quadriculada.
Sobre ela algumas frutas, pão e queijo, alguns legumes. Clara
oferece algo de beber, mas Théo nega. Clara segue então com
ele pela casa, apresentando cada um dos cômodos. Deixa Théo
no quarto dela, diz para que pouse ali sua mochila, e sai de
quadro. Sozinho, Théo vai até a janela, donde se vê o mar.
Clara volta, e tem nas mãos um dos lençóis que Théo recolhera
antes. Juntos e em silêncio, os dois estendem o lençol novo
sobre a cama, arrumam travesseiros, enfim.

90
De volta à cozinha, Théo prepara um macarrão, mas impede que
Clara lave sua louça enquanto isso: é ele quem cuida de tudo,
mexendo o molho e a massa ao mesmo tempo em que ajeita as
coisas na pia. À porta, Clara o observa.

Na mesa de jantar, Théo e Clara conversam depois da refeição


já terminada.

Levantando-se da mesa, Clara convida Théo a observar alguns


dos objetos de motivos náuticos que estão espalhados pela
sala de jantar. Ele faz menção de sentar-se no sofá, mas ela
retruca oferecendo-lhe a varanda.

Vemos agora pela primeira vez a frente da casa. Uma varanda


em estilo colonial, alguns bancos, uma rede posta entre duas
árvores. Clara propõe que se sentem nos degraus que dão
acesso à varanda. Lado a lado, os dois olham para a frente,
mas vemos apenas seus rostos. Eles se olham, se namoram,
perdem e retomam suspiros e carinhos.

Agora a imagem toma o ponto-de-vista deles. Um imenso gramado


se estende diante da casa. UM RUÍDO DE ÁGUA CORRENTE ocupa
levemente a banda sonora. Do lado oposto está LAURO. Sentado
num banquinho, ele impunha um enorme contrabaixo acústico. A
imagem se aproxima dele, e Lauro começa a tocar, com bastante
desenvoltura, a melodia de baixo da “Madeleine”. É uma
melodia triste, e não poderia ser diferente. Corte seco, tela
preta.

THÉO (OFF)
Quer que eu te diga que música é
essa?

FIM

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