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um roteiro de
Rodrigo de Oliveira
e
Vitor Graize
Tratamento final
junho/2010
AS HORAS VULGARES
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diante do altar, e reza, mas à distância só podemos ouvir
sussurros indistintos.
CLARA
Senhor, protegei-nos, porque somos
os eleitos, ou somos os cães.
CLARA
Bem-vindo ao seu novo lar.
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LAURO
É tão estranho ver o lugar vazio
assim. É como se fosse outro, como
se fosse a primeira vez que o vejo.
CLARA
E você cuide muito bem daqui, viu?
LAURO
Claro, claro. Tem pedaços de mim em
cada canto dessa casa. Seus também.
Dos amigos todos, né.
CLARA
Você vai ser feliz aqui, Lauro.
Feliz de um jeito que você não
conhece ainda.
LAURO
Clara, você precisa de ajuda com
alguma coisa?
CLARA
Não, não... Só pega uma outra caixa
igual a essa aqui que tá lá no
banheiro, por favor. O resto já foi
com o pessoal da mudança.
CLARA
Deixa ela aqui do lado da outra, eu
preciso levar isso.
LAURO
O que foi?
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CLARA
Duas coisas. Primeiro...
CLARA
Primeiro era isso.
CLARA
Você nunca me pintou. Eu queria que
você fizesse isso agora. Essa é a
segunda coisa.
LAURO
Mas não tenho nada aqui...
CLARA
Um esboço só. Depois você me manda
quando ficar pronto.
CLARA
Tá aqui a primeira mobília da sua
casa nova!
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de fazê-la objeto de sua arte também a tornasse nova, inédita
para ele.
LAURO
Eu não saberia, Clara... Eu não
saberia como.
CLARA
Eu queria te pedir uma outra coisa
então... Eu gostaria que você
chorasse.
LAURO
Por que?
CLARA
Porque acho que eu me emocionaria.
Pela última vez, pelo menos.
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que Lauro finalmente termine o retrato. Num suspiro, Lauro
abre pela primeira vez um sorriso largo, indicando o fim da
tarefa, mas não vemos o resultado do trabalho. Na banda
sonora, ouvimos em off o RUÍDO DE UM MOTOR DE BARCO E DE ÁGUA
SENDO AGITADA.
THÉO
(ainda ofegante)
É isso que vai me sobrar dela, né?
Um barquinho ficando cada vez menor
e mais distante.
LAURO
Ela só pediu uma coisa. Ela pediu
que você escrevesse pra ela,
sempre. Sempre.
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TELA PRETA
CRÉDITOS DE INÍCIO
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quatro ou cinco toques que conferem a afinação desta última
oitava a que se dedicava.
9
Pouco tempo depois, Théo decide seguir na direção do ponto de
ônibus. Desatento, não parece esperar por nenhuma linha em
particular. Entra logo no primeiro veículo que aparece.
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Enquanto os meninos encontram seu lugar por alguns dos bancos
agora já vazios de novo, o policial permanece na dianteira do
veículo, conversando com o motorista.
THÉO
Lauro. Lauro...
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Do outro lado da calçada LAURO para, e vira-se para Théo.
Este atravessa a rua e vai ao encontro do amigo, que está num
dos pontos mais escuros do lugar. Lauro veste uma jaqueta,
uma camiseta, os cabelos mais curtos que nas seqüências
iniciais, e está sem óculos. Lauro recebe Théo com um
sorriso, e se dão um abraço longo. Terão sempre os rostos
muito próximos um do outro agora, Lauro eventualmente
alcançando o pescoço e os ombros de Théo, como que chamando
atenção para o que diz. Lauro está muito agitado, sua fala é
descompassada, às vezes afobada, às vezes se perdendo no meio
dos pensamentos.
LAURO
Como eu senti a sua falta, cara.
Outro dia mesmo eu fui no parque,
estava todo mundo lá menos você,
achei tão estranho... Perdi seu
telefone, não te encontrava. Tanta
coisa pra falar contigo, tanta
coisa. Que bom te ver hoje. Era
justamente quem eu queria encontrar.
THÉO
Também senti sua falta. Ninguém mais
te viu, ninguém sabia o que estava
fazendo.
LAURO
Ah, cara, eu estou sempre por aqui.
E a Clara, tem falado com ela?
THÉO
Sim, claro. A gente ainda tá junto.
LAURO
Claro, sempre estiveram.
THÉO
Sempre estivemos.
LAURO
A Clara é alguém de quem não se
esquece. E como ela está, está bem?
THÉO
(rindo)
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Sim, tá bem sim. Ela vai ficar feliz
de saber que você não esqueceu dela.
Ela sempre pergunta de você, cara.
Ela se preocupa muito contigo,
Lauro.
LAURO
Ela soube?
THÉO
Todo mundo soube.
LAURO
Mas eu estou bem já, muito melhor.
Tenho pintado muito. E tão bem!
Pintado cores, muitas cores. Você
precisa ir lá em casa ver um dia.
THÉO
Faz tempo que eu não vejo as suas
coisas. Duvido até dessas cores
aí... E faz tempo que não vejo a
Érika também. Não me lembro nem da
última vez...
LAURO
(rindo)
A Erika sente sua falta também. Mas
pode deixar que eu não vou contar
pra ela que você esqueceu.
THÉO
A Clara tem um ciúme danado dela,
mas sempre finge pra mim que não.
LAURO
A Clara... Era com ela que eu mais
gostaria de ficar esta noite, cara.
Mas ela está tão longe, né? Onde ela
está agora?
THÉO
Lá mesmo.
LAURO
Lá mesmo...
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THÉO
Ela diz que é muito bonito, mas eu
não saberia dizer.
LAURO
Você é como um irmão pra mim, cara.
Meu irmão mais velho. E eu nunca te
disse isso antes. De vez em quando a
gente precisa de um irmão do nosso
lado. De um irmão, de uma irmã. E é
uma coincidência fodida eu te
encontrar aqui hoje. O que foi?
THÉO
Nada. Estranho você sem óculos.
LAURO
Ficam no bolso agora.
LAURO
Ficam melhor em você.
THÉO
E pra onde você estava indo?
LAURO
Andando, só. Anda comigo.
TELA PRETA
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CORTA PARA/
THÉO
Agora o teatro tá com piano novo,
então vou ficar mais por aqui mesmo.
Mas eu gostava de viajar. O afinador
mais barato do Estado, todo mundo me
chamava.
LAURO
E você tem tocado?
THÉO
Só quando ninguém está ouvindo.
LAURO
Tem sempre alguém ouvindo, rapaz. Eu
te escuto toda hora, mesmo que você
nunca tenha tocado pra mim.
THÉO
Amanhã de manhã...
LAURO
Você pode pelo menos me dizer até
quando eu vou ter que ficar
esperando por um amanhã que seja
realmente um amanhã de manhã?
THÉO
A noite faz a gente ter idéias
diferentes, cara. Mas a verdade
mesmo a gente conhece de dia.
LAURO
E que transformação a luz do sol vai
fazer nisso aqui?
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Lauro diz esta última frase apontando para o horizonte do
centro, já bem no meio do viaduto. Théo se debruça no
parapeito, olhando para a rua lá embaixo. Lauro chega pela
esquerda do quadro e também se debruça ali. Agora vemos os
dois a partir do exterior do viaduto.
LAURO
Eu olho pra essa cidade vazia,
sempre vazia, e só consigo ver
locais de crime. Crimes que a gente
nunca viu, cometidos por pessoas que
a gente nunca vai conhecer. Mas eu
vejo o lastro, cara. Você não vê? É
tão óbvio. Cada canto dessa cidade
testemunhou algo terrível, e é por
isso que ela se cala desse jeito. Só
pode ser por isso...
THÉO
Ela já estava assim quando a gente
chegou, e você também achava que
isso era bom. Era um gesto de
gentileza, você sempre me dizia: “a
cidade fica quieta pra que a gente
possa falar”.
THÉO
Nós também somos culpados por esses
crimes que você fala. A gente
escolheu não ser inocente e esse
lugar perdoou cada falta nossa.
LAURO
Mas isso é pouco, cara. O que é que
eu e você podemos fazer pra
retribuir essa gentileza toda?
LAURO
É por isso que eu gosto da chuva.
Ela vem e preenche esse espaço que a
gente não quer mais habitar. Parece
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que as coisas têm um outro sentido.
Dá sempre a impressão de que tudo
mudou, e que agora tudo vai
melhorar. Ou pelo menos ela vai
lavar de vez o rastro deixado por
esses criminosos todos... Por nós
todos.
LAURO
Mas se for pra ter um cúmplice na
vida, eu prefiro que seja a chuva.
LAURO
Eu sei que não melhora porra
nenhuma, nunca. Mas mesmo assim eu
nunca chego a me decepcionar. Se não
foi dessa vez, vai ser da próxima.
Eu posso esperar, você também pode,
cara. É uma espécie de superstição,
claro. Mas a gente precisa acreditar
em alguma coisa. Tem gente que
acredita em gatos, tem gente que
acredita em Deus, tem gente que
acredita no fogo. Você acredita na
Clara, no amor que sente pela Clara.
Eu acredito na chuva.
THÉO
Mas hoje não vai chover. E o que a
gente faz com tudo isso?
CORTA PARA/
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cabelo e barba aloirados, NEGRO, vinte e sete anos, homem
alto, de mãos largas e gestos expansivos, JÚLIA, vinte e sete
anos, pele muito alva, cabelos castanhos e longos, ERIC,
vinte e dois anos, moreno franzino, cabelos crespos, e
ROGÉRIO, loiro de cabelos longos e corpo esguio, além de
LUISA, SANDRO e LINCOLN. Todos os outros quiosques estão
fechados e não há movimento nenhum na Curva a não ser pelo
grupo de amigos. No lugar em que estão, vemos uma porta do
bar aberta, luz saindo de lá, um ATENDENTE solitário que
surge de relance à medida que se movimenta no interior.
JÚLIA
Negro, vem! Vai começar.
NEGRO
Eu vou pular essa, Julinha, pode ser?
ERIC
Não posso deixar meu chefe beber
sozinho, né?
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Eric se aproxima de Negro, e bebe do copo dele. O grupo
começa então a brincadeira: um por um, os amigos fazem ao
grupo perguntas simples que só podem ser respondidas com sim
ou não, ajudando cada um a descobrir a personalidade pregada
na testa, “é mulher?”, “é homem?”, “nasceu nesse século?”, “é
brasileiro?”, “é estrangeiro?”, até que partam para perguntas
mais específicas. Vemos a interação entre os olhares, os
pequenos sorrisos de suspeição e graça trocados de parte a
parte, a tentativa de ocultar o segredo, de dificultar a
descoberta do outro, alguma pista sugerida num piscar de
olhos, num movimento de corpo que imite a personalidade
escolhida. Rogério é o primeiro da roda, e logo mata sua
charada. Com poucos gestos, retira o papel da testa, levanta-
se calmamente, como se não quisesse perturbar a continuidade
do jogo, e se retira da roda quase como se pedisse desculpas
por abandoná-los ali. Dirige-se ao lugar em que Negro e Eric
estão – juntos agora o baterista, o saxofonista e o pianista
da banda de jazz deste grupo de amigos.
NEGRO
Mais um pra filar do meu copo. Mas
vocês dois podem.
ROGÉRIO
E agora, cara, o que a gente faz?
NEGRO
A gente faz o que a gente fez sempre.
A gente toca junto. A gente ainda
toca junto.
ERIC
Junto como? Sem o Gil não tem mais
“junto”, cara.
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ROGÉRIO
Eu vou embora. Ele sempre dizia que
eu tinha que sair daqui, tinha que
estudar. Vou juntar uma grana e sair
daqui.
NEGRO
Estuda o Gil. Ainda tem uma pasta com
uma porrada de música inédita dele,
coisa que a gente nunca tocou. Como
você vai embora sem tocar o que ele
escreveu pra gente?
ROGÉRIO
E pra quem eu olho quando eu não
souber o que fazer, cara? Pra quem eu
olho quando eu precisar que soprem
uma nota pra mim no meio da música?
NEGRO
Olha pra mim.
ERIC
Pode olhar pra mim também, Rogério.
ROGÉRIO
Que merda, cara... Que merda isso
tudo.
NEGRO
A merda é que ele morreu. A gente tá
aqui ainda, e deve ter algum sentido
nisso... A gente estuda junto com
você. Mas aqui, aqui.
ROGÉRIO
Você tem cigarro aí?
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ROGÉRIO
O Negro estava escondendo o cigarro
da gente esse tempo todo. Mas toma
aqui que eu tô tentando parar. Trouxe
foi pra você mesmo.
FRA
Eu lá sei nome de músico de cor!
LAURO
Júlia, tá quase igual. Mas o Gil
batia com os dedos na madeira também,
sabe? Uma percussãozinha assim.
JÚLIA
Ah, Lauro! Não era pra falar!
FRA
Mané...
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THÉO
Então você consertou mesmo o carro?
LAURO
Claro, tá novinho. Quase, né.
THÉO
E pôs uma porta nele finalmente?
LAURO
Não, não. Aí não seria mais o carro
do nosso amigo...
THÉO
A menina está aí há um tempão.
LAURO
Então é ela?
THÉO
É. A Julinha estava esperando você
chegar. Alguém precisa ir buscar
ela.
LAURO
A Julinha é um doce.
LAURO
Das ist der beste platz in diesem
moment zu sein. (“Aqui é mesmo o
melhor lugar pra se estar nesse
momento.”)
ERIKA
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So bist du derjenige... (“Então é
você...”)
LAURO
É, acho que sou eu.
ERIKA
Onde você aprendeu alemão?
LAURO
Livros de filosofia barata.
ERIKA
Eles te ensinaram o bastante.
LAURO
E você é a amiga austríaca da
Julinha?
ERIKA
Austríaca do interior do estado,
duas horas daqui. Mas gosto que as
pessoas pensem isso.
LAURO
Seu segredo está guardado comigo.
ERIKA
(apontando pro céu)
Você está vendo aquilo ali?
LAURO
(acompanhando-a no olhar)
O que?
ERIKA
É a Nebulosa do Olho de Gato. Ela
fica na constelação do Dragão. Tem
uma dúzia dessas por aí, mas essa é
vermelha, e é preciso sempre
preferir as vermelhas sobre todas
as outras.
LAURO
Mas está chovendo.
ERIKA
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E você não consegue ver mesmo
assim?
ERIKA
Essas explosões de luz, estrelas que
nascem, que irradiam sei lá o que,
isso não me interessa muito. O que
eu acho mais incrível é que a gente
só consegue medir uma nebulosa
dessas usando o tempo. Ela não tem
quilômetros, não tem metros. O
tamanho exato dela é de 20 minutos.
20 minutos!
LAURO
Você está inventando isso.
ERIKA
E isso importa?
LAURO
Onde você está morando?
ERIKA
Pra que você quer saber?
LAURO
Pra poder te encontrar de novo,
quando a chuva parar.
ERIKA
Die deutsche sprache kann unser
heimliches territorium sein. Finden
mich dort.(“O alemão pode ser nosso
território secreto. Me encontre
lá.”)
Lauro observa Erika, que sorri para ele. Agora estão os dois
olhando para o céu novamente. Depois de algum tempo Lauro
fecha os olhos.
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Passaram-se alguns meses desde o primeiro encontro de Lauro e
Erika.
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no lado oposto, e a luz do banheiro é a única fonte de
iluminação do lugar.
CORTA PARA/
JÚLIA
Erika? Por que você não bateu?
ERIKA
Foi besteira minha vir aqui. Por isso
já estava indo...
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JÚLIA
O que houve?
ERIKA
Queria saber do Lauro. Três dias que
não vejo ele, que não aparece em
casa. Ele veio aqui, por acaso?
JÚLIA
Não, ainda não. Mas com certeza essa
noite ele aparece. Tomara...
ERIKA
Vai ter festa aí, né?
JÚLIA
É, não sei. Sempre tem. Sempre tem
gente em casa... Eu não tô legal hoje
não, estava indo deitar já. Mas eles
ficam por aí. Fica também. Fica aqui
hoje, que ele já chega.
ERIKA
Não, não... Esse é um momento dele.
Dele com vocês, com quem estiver aí.
Ele só precisa de mim quando vocês
não estão por perto.
JÚLIA
Hoje a gente vai estar por perto,
pode deixar. Mas a gente precisa de
você também.
ERIKA
E como você está?
JÚLIA
Ah... É muito menino pra eu tomar
conta, sabe!
ERIKA
Mas você gosta, que eu sei.
JÚLIA
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É, eu não sei o que eu faria sem
eles...
ERIKA
Mas eu perguntei de você, Júlia.
JÚLIA
Eu sou esses meninos.
ERIKA
Se ele aparecer, diz pra ir pra casa,
tá bom?
JÚLIA
Levo ele lá pessoalmente.
ERIKA
Mas você já está indo dormir...
JÚLIA
Não tem problema. Só vou descansar um
pouco, trabalhei o dia inteiro, deu
uma merda lá... Mas quando tudo
terminar, eu levo ele.
ERIKA
Aproveita aí, então. O que der pra
aproveitar.
CORTA PARA/
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e sai de quadro, para voltar logo depois trazendo um par de
fones de ouvido grande, que coloca em volta da cabeça. Ela
conecta os fones num aparelho de som colocado ao pé da cama,
contra a janela, num pequeno móvel. Passando os dedos
rapidamente pela pilha de discos colocada sobre uma das
caixas de som, ela escolhe um e o coloca no aparelho. Por
alguns instantes, ficará ouvindo música, às vezes de olhos
fechados, às vezes balbuciando a letra de uma canção, sentada
no chão com as pernas cruzadas e totalmente mergulhada na luz
branca da lua.
LAURO
Você me viu entrando? Antes?
ERIKA
Não sabia se eu tava sonhando com
aquilo...
LAURO
Eu não queria atrapalhar seu sono.
ERIKA
Não, tudo bem.
ERIKA
Eu tenho medo de fechar os olhos,
dormir de vez, e você ir embora de
novo.
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LAURO
Eu nunca vou embora...
ERIKA
Você vem me ver dormindo, eu finjo
que você é imaginação... Pra onde
isso vai?
LAURO
Você tá com fome?
ERIKA
Tô. Faz alguma coisa pra mim.
ERIKA
Acho que vou descer um pouquinho
enquanto você termina aí...
LAURO
Fazer o que na rua a essa hora?
ERIKA
Comprar uma coca, sei lá... Eu volto
rapidinho.
LAURO
Você vai sentir frio...
CORTA PARA/
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ERIKA caminha na direção da Cidade Alta, para numa pracinha,
compra um refrigerante numa banca de bebidas e churrasquinho.
Erika atravessa a rua. Numa esquina, a câmera a perde de
vista.
LAURO
Você sabe muito bem o que eu acho
dessa porra de ficar mijando na
rua.
THÉO
(rindo)
Ah, vai te foder...
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Por alguns instantes, os dois ficam parados, observando a
rua. O silêncio é quebrado por Théo.
THÉO
Por que você não vai pra casa?
LAURO
Daqui a pouco. Daqui a pouco eu vou
pra casa.
THÉO
Eu vou contigo até lá.
LAURO
É uma caminhada longa, não precisa
ir comigo. Pra mim não vai ser nada,
eu vou acabar chegando. E a Erika
vai me ouvir chegando, abre logo a
porta, me abraça, a gente se beija.
Daí eu levo ela pro sofá, a gente se
deita, ela vai pedir de um jeito que
eu não resisto, e aí vou contar tudo
o que está acontecendo comigo. E
depois ela vai me dizer que chegou
uma carta pra mim. Pode ser uma
carta da Clara, pode ser uma carta
sua. Vai dizer que três dias é tempo
demais pra eu ficar sem saber da
minha correspondência, e que eu
volte mais rápido da próxima vez
porque a Clara ou você não tem razão
de esperar tanto por uma resposta.
LAURO
Daqui a pouco eu leio a sua carta,
Théo, calma.
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atrás de Lauro. Mas Lauro já cruzou a esquina e sumiu de
vista.
LAURO
Olha só quem o vento trouxe!
FRA
Foi o Dolphy que você tava
assobiando aí, rapaz. E aí, tudo
bem?
FRA
Então, vocês vão pra casa da Julinha
também? É a melhor coisa pra se
fazer hoje, quarta-feira de merda.
THÉO
Hoje é segunda-feira.
FRA
É, segunda. O lugar dos desgarrados
é na casa da Julinha, hoje. Vocês
vão também?
LAURO
É, por que não? Quando não tem nada
pra fazer, a gente vai pra qualquer
lugar. E quando se tem também. Que
importam os lugares, né? A gente não
pode estar em lugar nenhum. E o
lugar certo não existe.
FRA
(sorrindo)
Mas eu acho que vale à pena ir na
Julinha. Eu acho.
LAURO
Qualquer lugar serve, Fra. Desde que
haja paz, uma cadeira, alguma coisa
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pra beber e nenhum relógio, qualquer
lugar serve. O resto a gente
constrói.
THÉO
É, a gente constrói.
JÚLIA
Esta foi pro nosso judeu errante
mais querido.
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dois se cumprimentam num longo abraço, e então conversam
rapidamente, os rostos muito próximos um do outro.
LAURO
Eu não sabia dessa sua habilidade.
Tão linda!
JÚLIA
Que bom que vocês estão aqui. Um
tempão sem te ver, sem saber de você.
Entra, entra, pega uma coisa pra
beber. Os meninos estavam te
esperando, vão tocar daqui a pouco.
JÚLIA
Tem bebida ali. Umas coisas de comer.
Enfim, vocês sabem.
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Algo em torno de vinte pessoas estão espalhadas pelo lugar,
entre a sala em que os instrumentos estão montados, a varanda
ao fundo e os cômodos adjacentes. Todos têm entre vinte e
trinta anos, e ouvimos o BURBURINHO de suas conversas. Uma
mesa posta no canto tem uma dúzia de garrafas cheias e
vazias, vários copos espalhados, e um pequeno buffet
improvisado em travessas de madeira, com pão, queijo e
biscoitos. A partir daqui, veremos pequenos instantâneos
desta festa.
EDUARDO
Dois meses é tempo demais.
EDUARDO
Mas eu só não te falei antes porque
tive medo.
KARINA
Eu tô com medo agora.
EDUARDO
A gente vai se falar todo dia.
KARINA
Eu vou me acostumar a ouvir seu
sorriso só pelo telefone. Vou sim.
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de vodca. Júlia chega com uma caixa nas mãos, onde encontram-
se vários álbuns de fotografia e algumas imagens soltas. Ela
entrega a caixa a Negro, e lhe dá um beijo. Ele agradece,
Júlia sai de quadro. Eric está curioso, e de dentro da caixa
Negro tira uma fotografia, que não vemos. Fala sobre ela.
NEGRO
Olha aqui ela, bem no topo dessa
bagunça. A gente tinha a sua idade
hoje, tá vendo? Foi logo depois que
a gente ganhou o concurso da escola.
A gente viajava numa Kombi fodida,
pelo estado inteiro, tirando essas
fotos assim. Um monte de moleque sem
ninguém pra vigiar. Foi lindo. Olha
a Julinha de cabelo curtinho, uma
cara de criança. Lindo.
DIANA
Mari, corta os pães agora. Deixa que
eu termino o patê.
MARIANA
Você não confia em mim nem pra
misturar um negócio, hein...
DIANA
Exatamente!
FERNANDA
Olha, eu nem sei com que cara vou
olhar pro meu pastor quando ele
souber que eu comprei cerveja pra
esses desgarrados!
GUSTAVO
A cerveja tá ungida, amiga, relaxa.
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FERNANDA
Fala isso não, menino. Vou eu pro
céu sozinha, sem vocês. Vai ser um
saco lá.
FERNANDA
Precisa de ajuda aí?
MARIANA
Se você conseguir mexer em alguma
coisa sem a Di te dar um tapa na
mão...
DIANA
Vai azedar o negócio todo, menino!
Num canto da sala vemos ALICE sendo cortejada por SANDRO, que
faz gestos vastos, e eventualmente lhe sussurrando coisas ao
ouvido, recebendo dela sempre um olhar entre a compaixão e a
reprovação.
LAURO
Tá tudo bem, cara?
LAURO
Me dá um cigarro?
FRA
Você fuma ele aqui do meu lado?
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É a vez de Lauro consentir com um sorriso. Fra lhe passa um
cigarro e o isqueiro. E assim os amigos ficam, em silêncio,
fumando.
DAVI
Não, isso foi agora! No ano-novo
agora. O cara ficou apavorado, os
computadores do mundo todo iam
travar, as paradas eletrônicas. Ele
jogou tudo fora. Pôs tudo na rua.
Ficou só com o fogão, a geladeira e
o aparelho de vinil.
TOMÁS
Eu já vi esse cara no Golias. Ele já
tomou um disco da minha mão! Tudo
bem que eu nem ia comprar, mas,
porra, você não faz isso com
ninguém.
DAVI
Perturbado pra caralho. Mas é
maneiro. Imagina, fogão, geladeira e
uma porrada de vinil. Pra que mais?
PEDRO
(com um disco nas mãos)
Aí, vai ser esse mesmo.
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Rogério está sentado próximo a seu teclado, e Luisa está à
sua frente, sentada de lado numa cadeira que puxou até ali.
ROGÉRIO
Não, não, o negão é do Rio. Claro, tá
na cara que é do Rio. Tocava samba, e
tal. Quando ele chegou aqui o Gil
jurou que ia educar ele com jazz, pra
ele esquecer essa porra. E agora tá
todo mundo ouvindo Monsueto, vou
dormir ouvindo Monsueto por causa
dele. É lindo, você tem que ouvir.
LUISA
O menino do sax é muito novinho.
ROGÉRIO
Ah, o Eric é cria do Negro. Achou
esse moleque numa banda de escola
militar. Chama ele de pai e o
caralho. Não conta pra ele, mas ele é
o melhor de nós quatro. Menino ainda.
LUISA
E você?
ROGÉRIO
Eu sou isso que você está vendo. Mas
eu não sei dizer o que é.
LUISA
Então você é desse tipo?
ROGÉRIO
Que tipo?
LUISA
Desses com quem a gente conversa a
madrugada toda, depois diz que está
na hora de dormir porque tem que
trabalhar cedo. Daí eu digo que eu
não tenho, você ri. Eu durmo na sala,
e quando acordo você sumiu. Voou.
ROGÉRIO
Eu também gosto muito dessa música.
40
LUISA
Se você disser que prefere a versão
do Milton, eu até topo dormir na sua
sala.
ROGÉRIO
O sofá é bem confortável.
Rogério diz esta última frase com uma quase inocência, como se
não percebesse o flerte. Depois de alguns segundos em
silêncio, continua.
ROGÉRIO
Como você chama?
LUISA
Luisa.
JÚLIA
Termina aí e vamos lá. Vai começar!
Vem, Théo.
GIL
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Vamos chegando... Vamos chegando que
vai começar. Bem, a gente tá tocando
junto há um tempão, vocês sabem
disso, mas a gente nunca tinha
gravado as nossas músicas. Hoje aqui,
por causa da Julinha, a gente vai
registrar nosso som pela primeira
vez. Se acomodem aí, a gente só vai
checar umas últimas coisas e já
começamos.
LAURO
Quer que eu te diga que música é
essa? A primeira que eles vão tocar?
THÉO
Não. E como eu posso saber se não
começou ainda?
GIL
E aí, rapaz?
THÉO
Tá lindo isso aqui, cara.
GIL
Toca a próxima com a gente?
THÉO
Imagina... O Rogério tá aí, como é
que vou tocar no lugar dele?
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GIL
Ele ficou feliz, olha ele lá. Ele
quer que você toque. Eu quero que
você toque.
THÉO
Eu não sei qual...
GIL
É aquela música que eu te mostrei,
Théo. Eu te mostrei primeiro. Você
sabe ela de cor.
THÉO
Eu só li aquilo uma vez, Gil...
GIL
Você sabe, cara. Vem tocar com a
gente.
NEGRO
Tudo certo aí? Vamos começar?
GIL
É contigo, negão. A hora que quiser.
43
Pelos primeiros cinco minutos da música, variamos entre a
interação dos membros da banda, sua relação com os
companheiros e com os instrumentos, os olhares para a
plateia, os gestos, sempre vendo seus rostos e corpos em
planos mais abertos. A platéia composta por amigos também
merece atenção, cada um dos participantes desta festa tem seu
momento e reage de maneiras distintas: alguns dançam, outros
escutam de olhos fechados a música, outros os tem bem abertos
e direcionados à banda. Há quem fume, quem encha mais um copo
de bebida, quem precise de um amigo para assistir à
apresentação abraçado ou quem prefira ficar sozinho e
concentrado neste momento. A sintonia entre banda, plateia e
música é perfeita, e novamente os veremos em planos de
conjunto, mais abertos, englobando vários elementos de cena.
CORTA PARA/
44
Num canto, NEGRO e ROGÉRIO conversam. LUISA E LINCOLN passam
por eles e se despedem rapidamente.
CORTA PARA/
45
cansado, e deita-se ao lado do instrumento enquanto Ana
insiste que ele se troque e tome um banho antes de dormir.
CORTA PARA/
CORTA PARA/
CORTA PARA/
CORTA PARA/
46
CORTA PARA/
CORTA PARA/
47
lixo presas aos postes em busca de alguma coisa qualquer,
dois carros furtivos que cruzam o quadro e interrompem a
escuridão com seus faróis. Ouvimos ainda OS SONS DA FESTA,
vozes indistintas, conversas, o burburinho dos amigos no
apartamento.
TELA PRETA
CORTA PARA/
FRA
Caralho, é bom a gente estar sentado de
novo! Sentado numa boa e confortável
cadeira de verdade. Bicho, como eu
andei hoje, o dia todo.
FRA
(apontando o dedo)
Sabe o nome daquela garota ali?
THÉO
48
Não. Quem é?
FRA
Talvez seja a minha irmã. Quem sabe?
Talvez seja. É o tipo de lugar onde ela
estaria, vai ver que é ela.
FRA
Talvez seja ela mesma. Bem, tudo é
possível neste mundo, tudo.
FRA
Minha filosofia. Ouçam a minha
filosofia. Fuma enquanto você pode
fumar, bebe enquanto você pode beber,
trepa enquanto você pode trepar, e não
perde nenhuma oportunidade que
aparecer. Senta enquanto você pode
sentar, dorme só quando você estiver
muito cansado, e não perde tempo. Só
reza quando tiver tempo de sobra,
confia em Deus que Deus tem lá seu
apelo. Pensa nas flores, e do futuro só
espere o sol, que já basta. Viva
enquanto agüentar viver, faz o que
tiver vontade, cospe pro que disserem
de você, e que se foda o resto. E quem
de vocês pode dizer que não é uma
filosofia razoável? Porque é.
THÉO
Você viu a Luisa lá dentro, Lauro?
LAURO
Que que tem a Luisa? Ela não me
interessa mais.
49
THÉO
Você gostava dela.
LAURO
Eu gostava de todo mundo.
FRA
(interrompendo)
Talvez seja mesmo ela. Eu fui pegar a
cadeira e reparei nela, meio sem
querer. Caralho, é parecida demais com
a minha irmã, e aí eu pensei, “bom, é
capaz de ser ela mesmo”. É capaz. Tem o
mesmo jeitinho dela de empinar o nariz.
LAURO
Como é o nome dela mesmo? Fernanda?
FRA
Não, cara, essa que você está pensando
é outra irmã minha, a Fe, ela é mais
velha. Essa aí é a caçula, a Te. A mais
nova lá de casa, isso não tem nem
dezesseis anos ainda, bicho. Vai fazer
no Natal, o aniversário dela é bem no
dia do Natal. E já ta aí, com esses
caras que eu nem sei quem são, que eu
nunca vi na vida. E pra onde você pensa
que eles vão levar ela depois, cara? E
ela nem se incomoda. Fica aí, exibindo
os dezesseis anos na cara desses
sujeitos, e na minha cara. Ela não tem
mais noção nenhuma do que é sagrado,
cara, o que ela quer é isso mesmo.
LAURO
Você é uma peça de sonho, Fra.
LAURO
50
Mais vodca.
FRA
Falta muito pra amanhecer?
LAURO
No dia que o Gil escreveu essa música,
ele correu até lá em casa, chegou
suado, ofegante, sacudindo um papel na
mão. A Erika riu, é o que ela faz
diante dos nossos amigos. Ele entrou
dizendo que tinha feito uma música pra
mim, e eu perguntei como eu poderia
ouvi-la. Ele me ofereceu o papel, disse
que as músicas primeiro se vêem e se
51
tocam, ouvir é algo superestimado. Era
uma partitura! O Gil era um homem do
século XIX, acreditava no papel, no
desenho das notas, nos rabiscos.
LAURO
Ele tinha essa obsessão cristã, e acho
que não é possível mesmo ser um cristão
real sem ser um pouco obsessivo. E
vinha falar comigo e me oferecer essa
música, que ele chamava de “Madeleine”,
uma música sobre um amor interditado,
esse de Cristo com a mulher que o
acompanhava, e Gil disse que eu, como
judeu, talvez entendesse. Mas ele mesmo
nunca entendeu, ou nunca soube, que de
judeu em mim só resta um sobrenome.
THÉO
E a música era sobre esse sujeito que
nasceu num lugar fodido, desértico, num
país sem importância.
THÉO
E então o Gil se levantava e dizia como
se fosse uma verdade secreta: “Mas os
52
grandes homens às vezes nascem em
países sem importância!”. Daí surge
essa mulher de olhos profundos iguais
aos dele, iguais aos do nosso amigo,
uma mulher que ele tinha ajudado uma
vez, e o Gil escreveu a música pra
entender como um homem pôde amar a
humanidade inteira e não podia amar
essa mulher. E era um homem puro,
talvez o mais puro que já existiu. Um
homem completamente deslocado no tempo
e no espaço, e que morria quase por
desistência. Não era a hora dele.
Lauro olha para Théo, e sorri como quem diz “obrigado”. Ele
agora já pode voltar a lembrar e contar sem temer uma queda.
LAURO
E ele andava pela sala e sacudia o
papel, e você sabe como o Gil era o
mais calmo dos nossos amigos, mas lá
estava com o papel na mão, me
perguntando quem poderia traduzir os
motivos da morte de um deus, e me
olhava como se esperasse uma resposta.
No fim se sentou do meu lado – do nosso
lado - e disse que a música era o lugar
onde aquele amor interditado podia
existir.
LAURO
E na música que ele fez pra mim, tem
você. Tem você o tempo todo.
53
Surgindo da varanda, FRA interrompe a harmonia daquele
movimento, falando a Théo. Está ainda mais agitado que antes.
FRA
Nem dezesseis anos ainda, cara! A gente
fazia castelo de areia junto até pouco
tempo atrás, e dormia junto de tarde na
rede. Isso tem que significar alguma
coisa! E eu não sou o pai, não sou a
mãe, eu sou só o irmão, e isso me custa
tanto, cara...
FRA
Acho que a bebida acabou. Vou ver com a
Julinha onde tem mais.
TELA PRETA
CORTA PARA/
54
LAURO (OFF)
Hoje eu passei a tarde toda dentro
de um ônibus, rodando pra cima e
pra baixo. A tarde toda, e todas as
viagens pareciam a mesma, até os
passageiros pareciam os mesmos.
Sempre tinha uma loirinha, às vezes
de uniforme de colégio. Um velho,
um cara negro, um casal com bebê no
colo, um policial andando de graça.
E o ônibus sempre passava pela
praia. O mar é das coisas mais
incríveis que eu conheço. Mas não
se pode basear uma vida toda no
mar, nem no sol, nem nas nebulosas
da Erika. Nós não somos... Estava
ali o ônibus, quer dizer, existem
meios pra uma fuga, mas existirão
mesmo lugares para onde se fugir?
LAURO (OFF)
Mas você sabe o que a Erika deve
estar fazendo agora, cara?
LAURO
Essa aí não é a irmã do Fra. Ele só
tem uma irmã, que eu conheço muito
bem. Fui no casamento dela, faz um
tempo já. Cadê aquele merda? Já
devia ter trazido uma garrafa cheia
pra cá, faz um século que foi
buscar. Eu vou lá.
55
Agora vemos Théo, que está na mesma posição em que Lauro se
encontrava anteriormente. Acompanha a movimentação do amigo,
já fora de quadro.
LAURO (OFF)
E a Clara, bicho? Como ela tá?
THÉO
Você já me perguntou isso hoje,
Lauro.
LAURO (OFF)
É... desculpa, eu esqueci. Ela tá
bem, claro.
ANA (OFF)
O que há com o seu amigo?
THÉO
Ah... nada, nada. Ele precisa
falar, só isso. Precisa dizer tudo
o que puder.
ANA (OFF)
E você precisa ouvir?
THÉO
Eu não preciso. Eu só ouço.
THÉO
E quer saber... por que eu não vou
embora agora? Pra aproveitar que
agora eu tô aqui, sozinho. Por que
eu não deixo eles por aí, esses
56
sujeitos absurdos, e eles que
construam aí o que quiserem
construir, sem a minha presença. Que
se bebam e se riam e se afoguem por
aí, ou que só esperem o dia começar,
e que se fodam. E que se fodam de
tal forma que eu não precise nunca
mais sonhar com nenhuma parte do
corpo ou da alma deles.
TELA PRETA
ANA
Ainda não chegou a parte em que a
gente fala de sonhos, rapaz. E você
não está sozinho. Vamos lá pra
dentro que seu amigo deve estar
sentindo falta dessa sua gentileza.
THÉO
Você realmente não parece nada com o
Fra.
ANA
O que?
THÉO
(rindo)
Nada, nada.
57
do lugar, uma no colo da outra. Por cima da porta da
geladeira ainda aberta, Lauro estica o pescoço e abre um
sorriso tão logo percebe a aproximação de THÉO e ANA.
LAURO
Resolveu vir também, rapaz. Pensei
que ia ficar lá fora, se fingindo de
Deus.
NEGRO
Essa é a menina de quem eu te
falava, Lauro.
LAURO
Ah, a menina de muitos nomes. Muito
prazer!
NEGRO
Um dia ela me chega, tinha acabado
de terminar um show nosso lá na
Curva, e sem dizer “oi” nem nada,
começa a listar de cabeça os nomes
de todos os bateristas de jazz do
mundo. Elvin Jones, Dannie, Tony
Williams, Ben Riley, a porra toda.
Daí me olha no olho e diz: “e eu
acho você melhor que todos eles”. E
eu pensando: “essa menina não tem
nem dezoito anos!”.
THÉO
Dezesseis. Faz dezesseis no Natal.
58
NEGRO
E isso já faz dois meses. Dois,
quase três.
LAURO
O que, pros seus parâmetros, é o
que? Um casamento?
NEGRO
Rapaz, não fala isso perto dela. Ela
ainda acredita que eu sou um bom
sujeito, né?
NEGRO
E você, Lauro, o que tem feito? As
meninas estavam reclamando que você
tinha sumido.
LAURO
Eu não tenho feito nada, cara.
NEGRO
Nada?
LAURO
É.
NEGRO
Se não tem feito nada, é porque
talvez já tenha feito tudo, né?
LAURO
“Fazer” é um troço superestimado.
NEGRO
Eu vi que você estava curtindo o som
da gente ali na sala... Aquela
música que o Gil dizia que era sua.
LAURO
O Gil... Eu também faria de cabeça
uma lista de contrabaixistas fodas
desse mundo, e diria no fim que ele
era melhor que todos.
59
NEGRO
Todas as listas, um dia, acabam
virando um catálogo de
desaparecidos.
LAURO
É toda uma geração de desaparecidos,
cara.
NEGRO
Você lembra da Júlia, Lauro? Pra
onde é que ela foi, você sabe?
LAURO
Não... Talvez tenha ido pra França,
ela sempre falava em ir pra França.
NEGRO
Foi gravar bandas de gênios que só
meia dúzia conhecem... Tá na França
dizendo os nomes de cor, antes que
desapareçam também.
LAURO
Aqui ela sempre morreu de tédio.
Vitória é o lugar pra onde as
pessoas vêm só pra ter certeza que
precisam ir embora logo depois.
ANA
(olhando para Negro)
Gente, a Júlia tá no quarto, foi
dormir mais cedo.
NEGRO
É, eu sei.
LAURO
Sinto saudade da Julinha.
60
FRA
Já deu aqui, né?
NEGRO
Calma, moleque. Sei que tá tarde,
mas antes de ir eu queria perguntar
um negócio pro nosso Lauro aqui.
LAURO
Manda.
NEGRO
Tem quantos anos que a gente se
conhece? Uns dez, né. Isso era um
pivete na escola, tá lembrado? A
gente foi tocar um dia, minha
primeira banda, eu não tava longe de
ser um pivete também. Daí me aparece
esse cara no fim do show,
perguntando se podia ajudar a gente
a carregar as coisas. Tá lembrado?
LAURO
Claro.
NEGRO
E aí virou nosso garoto, nosso boy.
Tava sempre com a gente. E era
lindo, um menino lindo, dizia que
era da banda pra pegar umas garotas.
LAURO
Dez anos, caralho.
NEGRO
E aí você envelhece e não sabe o que
fazer da vida, cara? Um sujeito como
você não tem esse direito.
LAURO
61
Não é uma questão de direitos,
Negro. Você sabe bem disso.
NEGRO
Você tem inveja de mim, Lauro? Será
que você tem inveja de mim?
LAURO
Não, não sei. Não sei dizer...
NEGRO
Precisa saber, cara. Precisa saber.
E a Erika, Lauro? Ela continua
contigo?
LAURO
Continua.
NEGRO
(falando para Ana)
Você sabe que este cara aqui é foda.
Meu amigo de dez anos, né. Dez anos,
você falou, ou eu que falei? Sei lá.
Dez anos que seja, um cara em quem
eu confio. Nem bom nem mau, um rapaz
normal. E tá aqui agora, cheio de um
peso que a gente não sabe de onde
vem, e eu não vejo esse cara há
meses, amor. Essa noite só existiu
pra que a gente pudesse selar essa
amizade, Lauro.
LAURO
Ahn?
NEGRO
Selar essa amizade de dez anos, ou
até mais, vai saber. Velhos amigos,
antes de todo mundo aqui.
62
NEGRO
Agora você, Lauro. Pra selar a nossa
amizade.
NEGRO
Em nome dos aparecidos e dos
desaparecidos, das viagens pra
França e dos contrabaixistas fodas,
dá um beijo nela.
NEGRO
Beija ele, é meu amigo mais antigo,
o único que sobreviveu dos meus
amigos mais antigos. Nós somos
amigos, não somos? Pode beijar ela,
cara, ela não se incomoda. Ela me
ama, mais do que todos os outros
caras da lista. Vai.
NEGRO
Dez anos sacramentados aqui, meu
caro! Que tal?
63
NEGRO
A verdadeira amizade, não é?
LAURO
É.
NEGRO
Eu também já beijei a Erika, muitas
vezes. Você acredita nisso, cara? O
que você diz disso, cara?
LAURO
O que você quer que eu diga?
NEGRO
Mas e ela? Não é incrível?
LAURO
Incrível.
NEGRO
Eu sempre digo isso a ela. Não amo
essa garota à toa.
NEGRO
Bem, os mortos que fiquem com a
noite agora. Eu vou embora. Vocês
ainda ficam?
LAURO
A gente já vai. Preciso ir ao
banheiro antes.
NEGRO
Vamos?
64
As meninas despertam e seguem devagar pela cozinha, seguidas
por Negro. Resta apenas Théo ali, sentado com as costas
apoiadas na parede, braços cruzados. Segue sem expressão
alguma, pisca os olhos bem devagar, tem a respiração
relaxada.
JÚLIA
Meu Deus! Meu Deus! Eu não acredito
que você tá aqui. Lauro, Lauro...
LAURO
Júlia, Júlia... Eu tô aqui, calma.
Julinha, calma.
JÚLIA
Você não pode desaparecer e
reaparecer assim. Onde você esteve
esse tempo todo? Lauro, eu tô tão
cansada...
LAURO
Eu sei, amor, eu sei.
JÚLIA
Eu tô tão cansada, tão cansada.
LAURO
65
Eu sei, eu sei.
JÚLIA
A Erika veio aqui hoje atrás de
você. Você não pode fazer isso. Não
pode fazer isso com a gente...
LAURO
Pronto, vamos. Eu vou te botar na
cama, vamos.
LAURO
Você tá dormindo ainda, calma. É só
fechar o olho que você volta pro
lugar onde estava. Fecha os olhos,
Julinha.
JÚLIA
As coisas precisavam ser mais leves,
Lauro. Só isso que eu queria.
LAURO
Eu sei, Julinha, eu sei. Agora
dorme, vai.
LAURO
Dorme, e amanhã quando você acordar
passa lá em casa que eu tenho um
negócio pra você. Não esquece de
passar lá.
66
tempo de pé no quarto, e então sai. A câmera fica no quarto,
a luz da porta entreaberta se fechando sobre o corpo de Júlia
até que o quarto esteja completamente escuro.
THÉO
O que houve, cara?
LAURO
A Julinha.
THÉO
O que é que tem a Julinha?
LAURO
Falou comigo agora, do jeito que já
falou tantas vezes. E eu lembro de
todas elas, cara. Eu guardo de cor o
sofrimento da Julinha. Da Julinha e
de tantas outras pessoas... Alguém
tem que fazer isso, alguém tem que
lembrar deles e do sofrimento deles,
sofrer com eles.
THÉO
Mas por quê?
TELA PRETA
CORTA PARA/
67
abraçada na cintura de Fra. THÉO segue até eles, caminhando
sozinho, devagar, com a cabeça baixa. Finalmente chega a
eles.
FRA
Ela decidiu ficar com a gente. O
Lauro não veio contigo?
THÉO
Ele tá vindo.
FRA
Nós vamos pra casa da Ana, é perto
daqui, a gente pode dormir um
pouco.
ANA
Vai buscar ele, tô morrendo de
frio...
THÉO
Tá, tá...
No mesmo ritmo lento com que viera, Théo refaz seu caminho
até ali. Na outra extremidade do parque, sentado ao pé de uma
árvore, podemos ver LAURO. No meio do trajeto até ele,
ouvimos no off o GRITO de Fra, chamando o nome de Lauro por
duas vezes. Logo após o primeiro grito, Théo levanta a cabeça
e a vira na direção em que Fra estava, e por um tempo segue
nessa posição, até voltar novamente a cabeça para a direção
de Lauro, agora olhando para ele, e não para o chão. Já está
bastante próximo.
THÉO
Você não vem com a gente, cara? Você
não vai ficar aí, vai? Vem com a
gente, rapaz, vamos pra casa da
“irmã do Fra”.
THÉO
Vem, é melhor do que ficar aqui.
68
Lauro agora olha para Théo, olhos completamente
transtornados. Sua fala é pausada, a voz levemente embargada.
LAURO
Eu não sei... Eu queria. Eu
queria... Eu tô com tanto medo,
cara. Medo de ir e medo de sair
daqui correndo, voltar pra casa da
Julinha, chorar junto com a Julinha.
Me ajuda, cara, você tem que me
ajudar.
THÉO
Você quer que a gente te leve até a
Erika? É isso que você quer? A gente
te leva em casa.
LAURO
Como eu vou saber se ela está lá?
Talvez tenha saído, talvez esteja
ocupada. Talvez ela não me queira
lá hoje, vai saber. Talvez tanta
coisa... A Erika é a coisa que mais
me afeta nesse mundo, cara, e eu
tenho medo que ela não perceba isso
a tempo.
THÉO
Então você não vai lá hoje, Lauro.
Vai amanhã, outro dia que você
quiser. Hoje você fica com a gente.
A gente fica bebendo e conversando
até o dia chegar.
LAURO
Não adianta...
THÉO
Anda. Vem com a gente.
LAURO
Bem, o que eu tenho a perder, né?
Nada. Eu só estou cansado, cansado
demais, cara.
THÉO
69
Levanta.
LAURO
Eu conversava com a Clara sobre isso
tudo, eu me lembro. E ela sempre
dizia que sabia que tinha pessoas
que nasciam pra morrer, e perguntava
se era possível que eu fosse um
deles. Eu nunca soube, cara. Eu só
tinha uma única vocação, essa de ser
um bom sujeito. E acabei não dando
certo, um bom sujeito que não deu
certo. Você não me entende, entende?
THÉO
É o que eu tenho feito a noite toda,
cara.
LAURO
Não, não entende. Mas não é porque
você não deu certo também. Você é um
irmão, um irmão. É que não é preciso
entender uma morte, um final. Só é
preciso que alguém morra por morrer,
de vez em quando, e eu sou um
desses, diz isso pra Clara quando
estiver com ela. Um desses que
morrem por uma razão que não se
entende, por uma fé que ninguém
realmente acredita, por uma
esperança qualquer, impossível.
Demorou pra eu descobrir que
precisava justamente não ter razão
nenhuma pra fazer tudo o que eu
fazia. E se eu tivesse um motivo pra
fazer alguma coisa, o que é que ia
adiantar? Não sei se você me
entende, mas a Clara, apesar de
tudo, parece que me entendia um
pouco.
70
Agora estamos de frente para Lauro e Théo. A rua deserta,
silenciosa, e a voz de Lauro cada vez mais calma, mais
serena. Seus olhos já estão aquietados, não treme mais. Andam
os dois, lentamente, uma avenida e um parque inteiros sendo
deixados para trás.
LAURO
Os meus quadros tem a cor de uma
noite assim.
LAURO
Teve essa tela que eu pintei uma
vez, com o Dolphy tocando sax, assim
no primeiro plano, e atrás tudo mais
ou menos misturado, o baixista, o
pianista. Todo mundo gostou muito,
inclusive a Erika, que não entendia
a cor dessa noite nem a cor daquela
tela. E um dia ela me diz baixinho,
quase como numa confidência, que eu
devia conhecer o vermelho, que o
cinza, o marrom o preto e o azul se
dariam bem na companhia dele, e
depois ri um riso de compaixão...
Joga o riso bem na minha cara. E eu
sei que não era um grande quadro, eu
não sou capaz de grandes quadros. O
que eu sei fazer é pintar, só isso.
Eu quis ser um gênio, como todo
mundo, mas no começo. Demora até
você aprender que não precisa disso,
que é só seguir em frente. E o pior
da minha vida sempre foi quando eu
não conseguia nem isso. A Clara
lembra bem dessa época, pergunta pra
ela depois, uma fase terrível, três,
quatro meses sem pintar nada. A
Erika viu um pouco disso também, já
bem depois. E eu não conseguia
pintar nada, não saía nada, por mais
que eu tentasse, nada que eu
gostava. Destruía uma tela atrás da
outra. Até que eu descobri o rio.
Foi num sábado, com a Clara ou com a
71
Erika, depois confirma isso com uma
delas, mas eu lembro que era um
sábado e a gente foi dar uma volta
de carro, e andamos pra caralho, até
que eu descobri o rio. Fiquei louco
com aquele lugar, ali por dentro, no
meio das montanhas, um rio que
aparecia e desaparecia sem nunca
dizer quem era. Só estava ali. E eu
pensei que era um lugar pra mim,
sabe? Não sei se você entende, mas
eu tenho certeza que eu não sonhei
isso. Pelo menos isso eu não sonhei.
Isso aqui, talvez.
LAURO
Eu passei meses indo lá todo fim de
semana. E ia de ônibus, cheio de
gente parecendo de outro país, e eu
conversava com eles sobre tanta
coisa. Eles gostavam de mim porque
eu falava alemão, e falava mal,
então havia sempre um erro meu que
iniciava uma nova conversa. Eu
saltava na estrada e descia até o
rio, ficava lá. Não levava nada,
tela, tinta, nada, e chegava em casa
e não pintava natureza nenhuma, mas
o rio estava sempre lá, em algum
lugar no meio das tintas ele estava.
Um dia eu quis ver o rio de cima, e
subi a montanha. Umas três horas pra
subir. O céu parecia tão perto, era
um ar diferente, uma imagem que eu
nunca tinha visto das coisas, e eu
quis rezar, a Clara me ensinou a
rezar uma vez, pergunta pra ela.
Escreve pra ela e pergunta. E eu fiz
do jeito que ela me mandou, agora
acho que foi com a Erika, porque a
72
Clara já tinha ido embora nessa
época. Do jeito que ela mandou, e eu
não consegui. Tudo tão perto, nunca
estive tão perto, e não consegui,
cara. Você não imagina como eu
tentei, o máximo que pude.
TELA PRETA
CORTA PARA/
LAURO
Eu não quero subir, cara. Não tenho
o que fazer lá.
THÉO
Vai ser rápido, daqui a pouco
amanhece, a gente vai embora.
LAURO
E então, é aqui? Fra, leva o Théo
contigo, que eu preciso falar com a
Ana um pouquinho.
LAURO
73
Você é a irmã do Gil, não é?
ANA
Isso.
LAURO
Eu lembro de você. Sempre foi linda.
ANA
Vocês se conheceram como?
LAURO
O Gil tentou me ensinar a tocar
quando eu era moleque, mas não teve
jeito. Sabe, é o tipo de instrumento
que me encanta. As descobertas, as
criações são mais difíceis, eu
sempre quis isso, e o Gil foi o
único que percebeu.
ANA
Eu lembro de você naquela festa na
casa da Julinha, ano passado, quando
eles gravaram. Você cantou, eu
lembro de ver você e o Gil se
olhando como se fossem mais amigos
um do outro que todo mundo ali. Mas
não sabia quem era você.
LAURO
O que eu queria te dizer é que o
contrabaixo dele tá comigo, eu não
sei se ele chegou a te falar.
ANA
Não, não falou. Mas se tá contigo é
porque era pra estar mesmo.
LAURO
Tá, tá comigo. Eu não vou subir não,
vou dar uma volta. Só diz pro Théo
que a gente se vê daqui a pouco.
Daqui a uma hora na igreja. Diz isso
pra ele, por favor?
ANA
Digo sim.
74
LAURO
Não esquece não. No amanhecer. Antes
não.
ANA
O Lauro foi dar uma volta.
FRA
E ele falou alguma coisa sobre as
flores?
ANA
Não, nada.
FRA
(tomando um outro gole)
Que merda... Esse é o problema dessa
cidade. Ela decide sozinha quando
quer te oferecer as coisas ou não.
Eu precisei hoje das flores e não
havia flor em lugar nenhum. Era o
que eu estava fazendo quando
encontrei vocês mais cedo, cara. A
minha mulher chega hoje e eu sempre
tenho flores, eu levo na casa dela.
E hoje esconderam todas de mim, só
75
porque ela chega e eu estou aqui
afundado nesse sofá sem ter com o
que recebê-la.
FRA
Ontem eu quis demais estar com ela.
Mas ela me ligou dizendo que só
chegava hoje, e não tinha ninguém na
rua, eu não encontrei com nenhum de
vocês, e aí eu fui pra praia, que é
um bom lugar pra se ir quando elas
ligam desmarcando. Onde vocês
estavam, que eu precisava tanto
falar com alguém? E é uma praia em
que a gente sempre é feliz, né,
cara? É a praia do Lauro e da Erika,
da Julinha, do Negro reclamando...
Essa praia não é sua não, Ana. Você
não estava naquele dia, acho que não
conhecia a gente ainda, mas ele
estava. Os dias são sempre felizes
na Curva, mesmo quando chove e não
tem um puto de um quiosque aberto
pra gente comprar uma cerveja. E ela
gosta tanto de mim, cara... É como
uma irmã mais velha, torna o mundo
tão mais fácil, tão mais agradável.
E essa merda dessa noite que não
acaba...
ANA
Ela logo chega, rapaz... Mas a sua
irmã mais nova aqui vai dormir.
Deitar, pelo menos. Tenta dormir
você também, daqui a pouco.
76
THÉO
A impressão que eu tenho é que o sol
um dia acaba morrendo de velho, e só
as noites assim é que vão
sobreviver, Fra. Me diz se tem um
outro lugar pra você existir assim
se não uma noite como essa, meu
amigo?
FRA
Eu podia ser um astrônomo, cara. Eu
podia ser.
THÉO
Fra, deve ter alguma loja aberta já,
certeza que tem.
FRA
Eu vou lá ver, cara. Eu vou lá ver.
THÉO
Seu nome é só Ana?
ANA
É, só Ana.
THÉO
77
E mora aqui sozinha?
ANA
É, agora sim.
ANA
Você está pensando no Lauro?
THÉO
Não teria como não pensar.
ANA
E vocês são amigos há muito tempo?
THÉO
Mais tempo do que eu consigo me
lembrar.
ANA
E ele sempre foi assim, meio triste?
THÉO
(rindo)
Não, não... Não sei se algum dia ele
foi triste, realmente não sei. Ele
só não acredita mais. Eu sempre
achei que os olhos dele viam
verdades que a gente não consegue
enxergar, ou pelo menos inventavam
verdades melhores que as nossas.
Quer dizer, eu não achava isso, foi
a Clara que me falou.
ANA
Quem é Clara?
THÉO
Clara é a mulher que eu amo, e que o
Lauro ama como eu. Eles estavam aqui
muito antes de eu chegar, e vão
continuar muito tempo depois que eu
for embora. Foi assim que eu fiquei
amigo dele, amando o amor que ele
dividia com a Clara. E ele gosta
78
muito, sabe, ele gosta muito da
gente, dos homens. E ele espera
deles alguma mudança de rumo. Ele me
diz isso e eu consigo ver os olhos
dele inventando essa verdade pra
mim. Que a gente está desperdiçando
toda uma possibilidade de pureza em
troca de uma forma de viver que é
revoltante, que não tem lógica, que
é absurda. Ele gosta dos homens pelo
que eles poderiam ser, e acho que
tem medo de começar a odiá-los
demais.
ANA
Eu não consigo vê-lo odiando
ninguém.
THÉO
Claro, ele não conseguiria. Nunca
conseguiu. Por isso que ele fica
sempre tão irritado quando está
feliz.
ANA
Ninguém fica irritado com
felicidade.
THÉO
Fala você agora.
ANA
Só se eu te falar de um segredo. Mas
você não pode falar pra ninguém.
THÉO
Eu não prometo não, viu.
Ana vai até uma cômoda que fica do lado oposto da cama e de
uma das gavetas tira uma caixinha. Escondendo-se do olhar de
Théo, ela fica de costas, retira o conteúdo da caixinha e
então vira-se rapidamente. Na mão direita ela exibe um anel
de ouro com uma pequena pedra branca no centro.
79
ANA
Eu uso às vezes, saio com ele na rua,
pra fingir que sou noiva. Finjo pra
mim também, que dá no mesmo. Mas eu
não sei por quê.
ERIKA
Onde você estava?
LAURO
Encontrei o Théo mais cedo na rua,
fomos na casa da Julinha.
ERIKA
Por que você não me ligou?
LAURO
Não sei, amor.
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Por alguns instantes, Lauro observa Erika, ainda sonolenta. A
luz do abajur incide sobre seu corpo, e Lauro não resiste
àquela visão. Com o pincel, escreve seu nome à altura dos
seios de Erika.
ERIKA
Was bedeutet das?
(“O que isso significa?”)
LAURO
Agora você está endereçada a mim.
Não tem mais jeito. Meu nome está
escrito aqui, não tem mais jeito.
ERIKA
Küss es mal.
(“Dá um beijo!”)
ERIKA
Geh fort.
(“Saia daqui”)
LAURO
Ich werde, meine Prinzessin.
(“Eu saio, minha princesa”)
ANA
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Sabe, houve uma época em que eu era
bem mais feliz. Muito feliz. Não era
assim tão sozinha como hoje.
THÉO
Quem era ele?
ANA
Meu irmão. Mas ele morreu. Ele tinha
um carro sem uma das portas... Andei
muito naquele carro velho dele.
THÉO
O Gil era seu irmão?
ANA
Era.
THÉO
Eu conhecia ele, mas não lembro de
você.
ANA
O Lauro lembrou... O Gil ficava em
casa comigo, a maior parte do tempo.
Daí a gente saía naquele carro
louco, íamos à praia. O Gil gostava
de apostar corrida com outros
carros, ganhava sempre. Sabia
correr, adorava correr. Foi a
primeira pessoa que me beijou. Eu
era tão feliz com ele... Mas foi uma
morte bonita. Sempre achei que foi a
morte que ele queria ter.
THÉO
Eu me lembro do acidente.
ANA
E eu conheço o Lauro por causa do
Gil. Um dia ele chegou em casa
bêbado, estava com aquela pastinha
de música dele. E ficava me falando
desse cara com quem ele tinha
passado a noite, um tal de Lauro, e
repetia toda hora uma frase do
Lauro, uma frase que ele anotou e
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que não podia esperar pra fazer
música dela. Chegou aqui e ficou com
o contrabaixo a madrugada toda.
CORTA PARA/
Vemos o rosto de LAURO, que caminha pela rua. Faz frio, e ele
tem os braços cruzados e os ombros encolhidos. Seu trajeto é
preenchido pela continuação da fala de Ana na seqüência
anterior, agora em off.
ANA (OFF)
“Somos tantos e não somos bons”, era
a frase. Foi legal ter colocado um
rosto por trás dessa frase hoje.
TELA PRETA
CORTA PARA/
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se, respiram no mesmo compasso. Os movimentos são delicados,
calmos, apaixonados.
THÉO
Há quanto tempo você não sorri um
sorriso desses?
THÉO
Eu já vi dois sorrisos assim. O
primeiro foi em Belo Horizonte, era
um menino se despedindo dos pais na
estação. O segundo foi aqui, primeiro
dia da faculdade, esse mesmo menino
vendo pela primeira vez os amigos da
sua vida. A família nova dele. E os
dois sorrisos eram meus.
ANA
(apontando para o rosto de Théo)
Olha o terceiro aí!
84
Pouco tempo depois, ANA o encontra à janela. Vestida, ela
traz a camisa de Théo nas mãos, e em silêncio o ajuda a
colocá-la. Ela enxuga algumas das lágrimas de seu rosto.
THÉO
Tenho que ir atrás do Lauro...
ANA
Ele pediu que você o encontrasse na
igreja quando amanhecesse. Me mandou
te dizer isso só quando amanhecesse.
Acho que chegou a hora.
THÉO
Eu vou lá, eu vou lá agora.
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jaqueta. São três facadas que Lauro se dá na barriga, e
novamente só percebemos isso por causa do movimento de seu
braço e dos ruídos que seu ato produz. Seus olhos se fecham,
o corpo se recosta na parede da igreja, e agora é possível
ver uma enorme mancha de sangue que toma sua camisa. Lauro
abre os olhos ainda algumas vezes, e então os fecha
definitivamente. Sua respiração diminui aos poucos até
cessar.
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sentado na poltrona à janela, com a camisa marcada pelo
sangue de Lauro. Virando o corpo para a janela, ele fecha a
cortina.
Instantes depois Ana volta, e atrás dela vem NEGRO. Ele vai
até o corpo de Lauro, passa-lhe a mão na testa, e vai se
sentar numa cadeira ao lado de Fra.
ALICE
Ele tinha parado de fumar.
THÉO
Como você tá?
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JÚLIA
Acabei de me demitir. Antes de vir
pra cá.
THÉO
França?
JÚLIA
França.
ERIKA
Você nunca mais apareceu, né? O
Lauro até reclamava disso. Entra,
entra...
ERIKA
Você foi o último a vir. O último
dos vulgares.
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THÉO
Como?
ERIKA
Era como o Lauro chamava o tempo que
ele passava com os amigos. As horas
vulgares da vida dele. E ele falava
muito de você. O último dos vulgares
a vir aqui.
THÉO
Eu não pude vir antes.
ERIKA
Eu entendo. Mas vieram todos. Havia
um nome escrito em cada coisa do
Lauro, cada quadro, cada disco. Eles
vinham, procuravam o nome, e
levavam, um a um. Os quadros todos.
THÉO
Não tem nada com o meu nome.
ERIKA
Não.
ERIKA
Tem o nome da Clara, e o Lauro
sempre dizia que o seu nome e o dela
significavam a mesma coisa.
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mesmo que víramos na seqüência 5. O RUÍDO DO MOTOR é intenso.
Acompanhamos este trajeto por alguns segundos.
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De volta à cozinha, Théo prepara um macarrão, mas impede que
Clara lave sua louça enquanto isso: é ele quem cuida de tudo,
mexendo o molho e a massa ao mesmo tempo em que ajeita as
coisas na pia. À porta, Clara o observa.
THÉO (OFF)
Quer que eu te diga que música é
essa?
FIM
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