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Números naturais e cardinalidade

Roberto Imbuzeiro M. F. de Oliveira∗

5 de Janeiro de 2008

Resumo

1 Axiomas de Peano e o princı́pio da indução


Intuitivamente, o conjunto N dos números naturais corresponde aos números
1, 2, 3, . . . . Os chamados axiomas de Peano descrevem as propriedades fun-
damentais destes números em termos abstratos, através de três propriedades
intuitivas básicas.

1. Existência de sucessor: todo elemento n ∈ N tem um sucessor, chamado


provisoriamente de s(n). Dois elementos distintos de N têm sucessores
também distintos. [Isto implica que a função s : N → N que leva cada
natural em seu sucessor é injetiva.]

2. Existência de um primeiro elemento. Existe um elemento de N, chamado


de 1, tal que 1 6= s(n) para todo n ∈ N (isto é, 1 não é o sucessor de
número algum em N).

3. Princı́pio da indução: seja X ⊂ N um subconjunto tal que 1 ∈ X e


s(n) ∈ X para todo n ∈ X. Então X = N.

O último axioma é o de mais difı́cil compreensão. Um exemplo do seu


uso é dado logo a seguir.

Teorema 1. Para todo n ∈ N, s(n) 6= n.



IMPA, Rio de Janeiro, RJ, Brazil, 22430-040. rimfo@impa.br

1
Prova: Seja
X = {n ∈ N : s(n) 6= n}.
Veja que X é um subconjunto de N. Provaremos que X = N usando o
axioma 3.

1. 1 ∈ X, já que, pelo segundo axioma, 1 6= s(1).

2. Se n ∈ X, então s(n) 6= n. Como s é injetiva, para todos x, y ∈ N com


x 6= y tem-se s(x) 6= s(y). Em particular, para n ∈ X como acima,
vê-se que s(s(n)) 6= s(n) (tome x = s(n), y = n). Donde concluı́mos
que s(n) ∈ X. Portanto, s(n) ∈ X para qualquer n ∈ X.

2 Soma, produto e ordem


Agora mostramos como as operações básicas sobre os naturais podem ser
definidas a partir dos axiomas. Começamos com a adição. Ela é uma
operação que leva um par de números na sua soma, portanto é uma função
de N × N em N:
soma : N × N → N.

Fato 1. Existe uma única função soma como acima tal que para todo p ∈ N:

• soma(p, 1) = s(p); e

• seja n ∈ N. Então soma(p, s(n)) = s(soma(p, n)).

Fato 2. Existe uma única função prod : N × N → N tal que para todo p ∈ N:

• prod(p, 1) = p; e

• Seja n ∈ N. Então prod(p, s(n)) = soma(prod(p, n), p).

Em geral escreveremos p + n no lugar de soma(p, n) e pn ou p.n no lugar


de prod(p, n). Os seguintes fatos são essenciais.

Teorema 2 (Associatividade da soma). Para todos p, q, r ∈ N, soma(soma(p, q), r) =


soma(p, soma(q, r)). Ou seja, (p + q) + r = p + (q + r).

2
Prova: Fixe p, q ∈ N. Mostraremos que o conjunto

X = Xp,q ≡ {r ∈ N : (p + q) + r = p + (q + r)}

é igual a N. Como p, q são arbitrários, isto prova o teorema.


Note primeiro que 1 ∈ X, já que, usando as duas propriedades da soma
(a primeira, a segunda e a primeira nesta ordem):

soma(soma(p, q), 1) = s(soma(p, q)) = soma(p, s(q)) = soma(p, soma(q, 1)).

Provaremos agora que n ∈ X implica que s(n) ∈ X; deste modo, X = N


seguirá por indução. Veja que se n ∈ X, então

soma(soma(p, q), n) = soma(p, soma(q, n)).

Tomando o sucessor dos dois lados da igualdade,

s(soma(soma(p, q), n)) = s(soma(p, soma(q, n))). (1)

Note agora que, pela segunda propriedade da soma, o lado esquerdo de (1)
é igual a
soma(soma(p, q), s(n)),
enquanto o lado direito é igual a

soma(p, s(soma(q, n))) = soma(p, soma(q, s(n)))

onde a igualdade decorre da prop. 2 da soma usada mais uma vez. Segue
que:
soma(soma(p, q), s(n)) = soma(p, soma(q, s(n))),
logo s(n) ∈ X, como desejado. 2

Teorema 3 (Comutatividade da soma). Para todos m, n ∈ N, m + n =


n + m.

Prova: Fixe um n ∈ N e defina o conjunto dos elementos de N que comutam


com n.
Cn ≡ {m ∈ N : m + n = n + m}.
Nosso objetivo é provar que Cn = N para todo n ∈ N.
Primeiro provaremos que 1 ∈ Cn para todo n, o que equivale a provar
que C1 = N. Para isso, usaremos indução. Veja que 1 ∈ C1 trivialmente, já
que 1 + 1 = 1 + 1.

3
Seja agora n ∈ C1 ; provaremos que s(n) ∈ C1 (donde seguirá C1 = N).
Veja que 1 + n = n + 1 (pois n ∈ C1 ), logo s(1 + n) = s(n + 1) = n + s(1)
pela primeira propriedade da soma. Além disso, s(1 + n) = 1 + s(n), pela
segunda propriedade. Unindo as duas igualdades, temos 1 + s(n) = n + s(1).
Mas note que n + s(1) = n + (1 + 1) = (n + 1) + 1 por associatividade, e como
(n + 1) = s(n), temos n + s(1) = s(n) + 1. Segue, portanto, que s(n) ∈ C1 ,
como querı́amos demonstrar.
A partir do que provamos, o princı́pio da indução mostra que C1 = N.
Agora mostraremos que, dado um n ∈ N fixo, temos Cn = N. Novamente
usaremos indução, notando que 1 ∈ Cn segue do que vimos acima. Agora
note que, se m ∈ Cn , temos (pela segunda prop. da soma):

n + s(m) = s(n + m) = s(m + n) (já que m ∈ Cn ) = m + s(n).

Além disso, m + s(n) = m + (n + 1) = m + (1 + n), já que 1 + n = n + 1


(ou seja, n ∈ C1 , provado acima). Por sua vez a associatividade implica que
m + (1 + n) = (m + 1) + n = s(m) + n. Deduzimos que n + s(m) = s(m) + n
(isto é, s(m) ∈ Cn ) sempre que m ∈ Cn . Como 1 ∈ Cn ⊂ N, o princı́pio da
indução implica que Cn = N, como desejado. 2
O Exercı́cio 1 abaixo prova que:

Proposição 4. Também valem a comutatividade e associatividade da mul-


tiplicação, assim como a distributividade.

3 Ordem
Definimos o que chamamos de ordem.

Definição 5 (Ordem). Se n, m ∈ N, dizemos que n < m (ou equivalente-


mente m > n) se existe algum p ∈ N tal que m = n + p.

Proposição 6. [1 é menor que qualquer outro natural] Para todo n ∈ N, ou


1 = n ou 1 < n.

Prova: Seja X o seguinte subconjunto de N:

X = {n ∈ N : n = 1 ou 1 < n}.

Provaremos que X = N por indução. De fato, 1 ∈ X já que 1 = 1. Além


disso, se n ∈ X, temos duas alternativas:

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1. A primeira alternativa é n 6= 1. Neste caso, 1 < n, já que n ∈ X. Deste
modo, existe p ∈ N tal que 1 + p = n. Pelas regras da soma, vemos
que s(n) = s(1 + p) = 1 + s(p), logo existe um elemento p0 = s(p) ∈ N
tal que s(n) = 1 + s(p). Daı́ se deduz que se n ∈ X e n 6= 1, s(n) > 1,
logo s(n) ∈ X.

2. A segunda alternativa é n = 1. Neste caso, pelas propriedades da


soma s(1) = 1 + 1 e como acima vê-se que s(1) ∈ X.

Obviamente, se n ∈ X, n = 1 ou n 6= 1. Nos dois casos, vimos que s(n) ∈ X.


Logo ∀n ∈ X, s(n) ∈ X. Como 1 ∈ X, o Princı́pio da Indução mostra que
X = N, como querı́amos demonstrar. 2

Observação 7. A demonstração acima lista todas as possibilidades para


n ∈ X e prova a afirmação desejada em cada um dos casos. Esta técnica
chama-se análise de casos e é extremamente útil, embora algo cansativa.

Proposição 8 (Cancelamento). Sejam dados quatro números a, b, c, d ∈ N.


Então a = b é equivalente a a + c = b + c e a ad = bd. Do mesmo modo,
a < b equivale a a + c < b + c e a ad < bd.

Prova: Provaremos apenas a equivalência entre a = b e a + c = b + c. O


resto fica como exercı́cio.

Seja

H = {c ∈ N : ∀a, b ∈ N “a + c = b + c” ⇒ “a = b”}.

Provaremos que H = N pelo princı́pio da indução.


1 ∈ H porque para quaisquer a, b ∈ N, “a + 1 = b + 1”equivale a
“s(a) = s(b)”; e como pelos axiomas de Peano, naturais distintos têm suces-
sores distintos, vê-se que “s(a) = s(b)”é equivalente a a = b. Donde con-
cluı́mos que a = b equivale a a + 1 = b + 1, isto é, 1 ∈ H.

Agora veja que se c ∈ H , para todos a, b ∈ N,

a+c = b+c ⇔ s(a+c) = s(b+c) (s é injetiva) ⇔ a+s(c) = b+s(c) (prop. 2 da soma).

Em particular, a + s(c) = b + s(c) ⇒ a + c = b + c ⇒ a = b onde a segunda


equivalência corresponde ao fato que c ∈ H. Deduzimos que c ∈ H ⇒ s(c) ∈
H, o que, junto com o resultado do parágrafo anterior, implica que H = N.
2

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Proposição 9 (Transitividade da ordem). Se a, b, c ∈ N satisfazem a < b e
b < c, então a < c.
Prova: Se a, b, c são como acima, existem p1 , p2 ∈ N com b = a + p1 , c =
b + p2 . Deduzimos que:

c = (a + p1 ) + p2 = a + (p1 + p2 ) (por assoc.) = a + p, onde p ≡ p1 + p2 ∈ N.

Donde a < c, como desejado. 2

Proposição 10 (Tricotomia da ordem). Se a, b ∈ N, então há exatamente


três possibilidades possı́veis e mutuamente excludentes: a < b, a = b ou
a > b.
Prova: Chame a de tricotômico se para todo b ∈ N a tricotomia acima se
verifica. Provaremos por indução que T = N.
Prova de que 1 ∈ T : para todo b ∈ N temos a dicotomia fundamental:
ou b = 1, ou b 6= 1. O segundo caso implica que b > 1. Logo a tricotomia
não vale se e somente se b > 1 ⇒ b 6= 1, pois neste caso “ou b = 1, ou
b > 1”é uma dicotomia equivalente á anterior. Mas veja que b > 1 implica
que 1 + p = b para algum p ∈ N, logo b = p + 1 = s(p) para o mesmo p.
Portanto, b é o sucessor de p, o que implica (pelos axiomas de Peano) que
b 6= 1.

Prova de ∀n ∈ T, s(n) ∈ T : Seja n ∈ T . Tome b ∈ N. Se b = 1,


sabemos pelos axiomas que s(n) 6= 1, logo s(n) > b sempre e esta é a única
possibilidade. Se b 6= 1, então b = s(c) = c + 1 para algum c ∈ N (também
pelos axiomas). Pelas propriedade de cancelamento, vemos que b < n + 1,
b = n + 1 e b > n + 1 são respectivamente equivalentes a c < n, c = n e
c > n. Como n ∈ T , estas três últimas possibilidades são tricotômicas, de
modo que b < n + 1, b = n + 1 e b > n + 1 também o são. Donde deduzimos
que s(n) = n + 1 ∈ T também. 2

4 A segunda forma da indução


Antes de prosseguir, provaremos uma forma modificada da propriedade de
indução, que usaremos posteriormente.
Teorema 11 (Segunda forma da indução). Seja X ⊂ N um subconjunto de
N com 1 ∈ X e

∀i ∈ N, se j ∈ X para todo j ≤ i, então i + 1 ∈ X.

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Então X = N.
Prova: Considere X como acima. Seja Y = {n ∈ N : ∀x ≤ n, x ∈ X}.
Note que N ⊃ X ⊃ Y . Provaremos pela indução tradicional que de fato
Y = N (em particular, X = Y = N).
Veja que 1 ∈ Y , já que todo x ∈ N com x ≤ 1 é igual a 1, e além disso
1 ∈ X. Agora suponha que n ∈ Y . Veja que então ∀j ≤ n, j ∈ X, de modo
que, por hipótese, n + 1 = s(n) ∈ X. Para mostrar que s(n) ∈ Y , basta ver
que todo x < n também está em x. Para isto, consideramos dois casos:
1. se x = 1, então x ∈ X por hipótese;
2. se x > 1, então x = a + 1 para algum a ∈ N (isto é, x é o sucessor de
algum a) e além disso, como x < n+1, temos x+p = n+1 para algum
p ∈ N. Vemos que (usando assoc., comut, assoc e cancelamento)

n+1 = x+p = (a+1)+p = a+(1+p) = a+(p+1) = (a+p)+1 ⇒ n = a+p ⇒ n > a.

Deste modo, usando um exercı́cio abaixo, sabemos que ou n > a + 1 =


x, ou n = x. De qualquer maneira, vê-se que x ≤ n e, como n ∈ Y ,
x ∈ X.
Deduzimos que n ∈ Y implica x ∈ X para todo x ≤ s(n), logo s(n) ∈ Y .
2

5 O mı́nimo de um conjunto
Proposição 12 (Existência do elemento mı́nimo). Todo subconjunto não-
vazio X de N possui um único elemento x = min X, chamado de elemento
mı́nimo, tal que para todo y ∈ X\{x}, tem-se y > x.
Prova: Defina:

R ≡ {z ∈ N : ∀X ⊂ N “z ∈ X” ⇒ “∃!x ∈ X : ∀y ∈ X\{x}, x < y”}.

Provaremos pela segunda forma da indução que R = N, o que implica o


teorema.
Veja que 1 ∈ R: se X contem 1, então min X = 1 é o único min de X:
qualquer outro elemento de X é maior que 1, como vimos acima.
Suponha agora que n ∈ N é tal que para todo a ≤ n, a ∈ R. Provaremos
que n + 1 ∈ N. Para isto, basta mostrar que qualquer conjunto X ⊂ N
contendo n + 1 tem um único mı́nimo. Seja então X como acima. Temos
duas possibilidades:

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1. Existe a < n + 1 contido em X. Neste caso, pelo Exercı́cio 2, a ≤ n,
logo a ∈ R por hipótese da indução. Como a ∈ X, isto significa que
“∃!x ∈ X : ∀y ∈ X\{x}, x < y”, como desejado.

2. Para todo a ∈ X, a ≥ n + 1. Mas então todo y ∈ X\{n + 1} é


diferente de n + 1 e não é menor que ele, donde (tricotomia) é maior:
y > n + 1. Concluı́mos que neste caso x = n + 1 é o mı́nimo de X,
com as propriedades desejadas.

Logo n + 1 ∈ R sempre que j ∈ R para todo j ≤ n. Portanto, R = N, como


desejado. 2

6 Cardinalidade de conjuntos finitos


Os seguintes conjuntos são fundamentais para a contagem de elementos de
outros conjuntos.

Definição 13. Se n ∈ N, chamamos de [n] ou In o seguinte conjunto:

In = [n] ≡ {m ∈ N : m ≤ n}.

Proposição 14 (Ordem e conjuntos). Para n, m ∈ N, n ≤ m se e somente


se [n] ⊂ [m]. Se n < m, então [n] ⊂ [m] mas [n] 6= [m].

Prova: Exercı́cio simples. 2

Definição 15. Dizemos que um conjunto não-vazio X é finito se existe uma


função injetiva fk : X → [k] para algum k ∈ N. Seja UX ⊂ N o conjunto
de todos os k ∈ N para os quais existe uma fk deste tipo (UX 6= ∅ se X é
finito). Chamamos min UX de número de elementos (ou cardinalidade) de
X (#X ou card(X)). Se X não é finito, é dito infinito.

Note que #∅ ainda não foi definida (deveria ser 0, claro, mas este número
ainda não nos foi apresentado).

Proposição 16. Sejam X, Y conjuntos finitos. Se há uma injeção de X


em Y , então #X ≤ #Y . Se há uma sobrejeção, #X ≥ #Y . Se há uma
bijeção, #X = #Y .

Prova: Primeira afirmação: Seja ψ : X → Y uma injeção e k = #Y .


Sabemos que existe uma injeção f : Y → [k]. A compisição g = f ◦ ψ é uma
injeção de X em [k], logo #X ≤ k.

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Segunda afirmação: Seja η : X → Y uma sobrejeção e f : X → [k] uma
injeção, onde k = #X. Isto significa que para todo y ∈ Y ,
Sy ≡ {i ∈ [k] : ∃x ∈ X “f (x) = i” ∧ “η(x) = y”}.
é não vazio, já que existe algum x com η(x) = y. Defina:
α: Y → [k]
y 7 → α(y) ≡ min Sy .
Note que isto está bem definido porque Sy 6= ∅ é um subconjunto de N.
Provaremos que α é uma injeção, de modo que #Y ≤ k = #X c.q.d. De
fato, sejam y, z ∈ Y com α(y) = α(z). Então Sy ∩ Sz 6= ∅, já que os dois
conjuntos têm o mesmo mı́nimo. Isto implica que existe algum x ∈ X com
η(x) = y e η(x) = z, donde vemos que y = z. Provamos, portanto, que
∀y, z ∈ Y α(z) = α(y) ⇒ z = y,
ou seja, α é injetiva.

Terceira afirmação: Se há uma bijeção h : X → Y , então h é injetiva e


sobrejetiva, logo #X ≤ #Y e #X ≥ #Y . Dito de outro modo, #X 6> #Y
e #X 6< #Y . Deduzimos da tricotomia da ordem que #X = #Y . 2

Proposição 17. Suponha que A ⊂ [n] é não vazio mas A 6= [n]. Então
#A < n.
Prova: Note (exercı́cio) que n > 1. Logo existe m ∈ N com n = m + 1. Seja
agora v um elemento de [n]\A (ele existe porque sabemos que A 6= [n], logo
[n]\A 6= ∅). Seja
g : [n] → [n]

 y, y 6∈ {v, n};
y 7→ v, y = n;
n, y = v.

Ou seja, g troca v e n de lugar, mantendo todos os outros elementos de [n]


parados. Note que g é bijeção de [n], logo sua restrição g |A é injetiva. Além
disso, a imagem de A por g está contida em [m], já que
∀a ∈ A : a 6= v ⇒ g(a) 6= g(v) = n ⇒ g(a) ∈ [n]\{n} = [m] (por Exercı́cio 2).
De fato, Exercı́cio 2 entra na última igualdade acima porque
∀x ∈ N : “x ∈ [n]”\{n} ⇔ “x ≤ n”∧“x 6= n” ⇔ “x < n” (tric.) ⇔ “x ≤ m” (pelo ex.).
Deduzimos que (exercı́cio) g |A pode ser tomada como uma função injetiva
de A em [m], logo #A ≤ m < n. 2

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Proposição 18. Um conjunto finito X tem cardinalidade [n] se e somente
se existe uma bijeção entre X e [n].

Prova: Se: Suponha que #X = n. Neste caso, existe uma função injetiva
fn : X → [n]. Considere a imagem A = f (X) de X, isto é, o conjunto dos
a ∈ [n] para os quais existe x ∈ X com f (x) = a. Afirmamos que A = [n],
o que significa que A é sobrejetiva e portanto uma bijeção, como queremos
demonstrar.
De fato, suponha (para chegar a uma contradição) que A 6= [n]. Como
A ⊂ [n], a Proposição 17 implica que #A < n, de modo que existe uma
função injetiva g : A → [m] para algum m < n. Defina então r(x) ≡ g(f (x)),
para x ∈ X. r define uma função de X em [m], já que f (x) ∈ A para todo
x ∈ X e g(a) ∈ [m] para todo a ∈ A. Além disso, r é injetiva, já que f e
g o são. A existência de r : X → [m] injetiva implica que #X ≤ m < n
(transitividade), o que contradiz o fato que #X = n já que, pela tricotomia,
#X < n ⇒ #X 6= n. A contradição implica que f : X → [n] é sobrejetiva,
logo bijetiva.
Somente se: Como há uma bijeção entre X e [n], temos #X = #[n] pela
Proposição 16. Logo basta mostrar que #[n] = n para todo n ∈ N.
Faremos isto por indução. Seja W o conjunto dos n ∈ N satisfazendo
#[n] = n. Note que 1 ∈ W (exercı́cio). Para n ∈ W , [n] ⊂ [n + 1] mas
n + 1 6∈ [n] (já que n + 1 > n), de modo que n = #[n] < #[n + 1] pela
Proposição 17. Além disso, #[n + 1] ≤ n + 1, já que a função u definida por
u(j) = j (j ∈ [n + 1]) é injetiva. Segue que #[n + 1] ≤ n + 1 e #[n + 1] > n,
donde #[n + 1] = n + 1 pelo Exercı́cio 2. Logo n ∈ W ⇒ n + 1 ∈ W . 2

7 Cardinalidade de conjuntos não necessariamente


finitos
Há uma noção de cardinalidade de conjuntos infinitos que permite que se
associe algum valor a expressões como #X < #Y . Não definiremos o que é
a cardinalidade de um conjunto, mas apenas comparações de cardinalidades.

Definição 19. Sejam X, Y conjuntos. Diremos que #X ≤ #Y se existe


uma função injetiva de X em Y . Se existe uma função sobrejetiva, diremos
que #X ≥ #Y . Por fim, diremos que #X = #Y se há uma bijeção entre
X e Y . Também escreveremos que #X < #Y se #X ≤ #Y e #X 6= #Y ,
etc.

É um fato não trivial de teoria de conjuntos que:

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Teorema 20 (Cantor). Para quaisquer X, Y como acima:

“#X = #Y ” ⇔ “#X ≤ #Y ” ∧ “#Y ≤ #X”.

Não provaremos este resultado no curso, mas o usaremos a seguir.

Definição 21. Um conjunto não-vazio X é dito enumerável se e somente


se #X = #N.

Veja que todo conjunto enumerável é infinito.

Definição 22. Dado um conjunto X, o conjunto das partes de X (P(X))


é o conjunto cujos elementos são os subconjuntos A ⊂ X.

Teorema 23. Para todo conjunto X, #P(X) > #X. Em particular, P(N)
é infinito e não-enumerável.

Prova: Precisamos mostrar que nenhuma função f : X → P(X) é sobreje-


tiva, isto é:

∀f : X → P(X), ∃A ∈ P(X), ∀x ∈ X, f (x) 6= A.

Seja então f : X → P(X) dada. Defina:

A ≡ {x ∈ X : x 6∈ f (x)}.

Esmiuçando: sabemos que f (x) é um subconjunto de X para todo x ∈ X;


botamos um dado x em A se e somente se x 6∈ f (x). Isto garante a seguinte
propriedade: para todo x ∈ X,

x ∈ A ⇔ x 6∈ f (x),

de modo que, em particular, A 6= f (x) (já que A = f (x) implicaria x ∈ A ⇔


x ∈ f (x)). A existência de A é exatamente o que pretendı́amos demonstrar.
2

8 Exercı́cios
Exercı́cio 1. Prove alguma das seguintes propriedades: a comutatividade
da multiplicação, associatividade da multiplicação e distributividade.

Exercı́cio 2. Mostre que para todos n, m ∈ N, n < m implica s(n) ≤ m.


Mais ainda, se m = s(k) para algum k, então n ≤ k.

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Exercı́cio 3. Sejam a, b ∈ N tais que ∃c ∈ N\{1} com a = bc. Prove que
a > b.

Exercı́cio 4. Se a, b ∈ N, dizemos que a | b (a divide b) se existe f ∈ N com


af = b. Mostre que a | a para todo a ∈ N. Prove ainda que, se a, b, c ∈ N, a
divide b e b divide c, então a | c.

Exercı́cio 5. Sejam 2 ≡ s(1) e 3 ≡ s(2). Mostre que 2 < 3 mas 2 não


divide 3.

Exercı́cio 6. Chame p ∈ N de primo se p = 1 e os divisores de p são apenas


1 e p. Demonstre que todo n ∈ N tem um divisor primo.

Exercı́cio 7. Mostre que 2 = s(1), 3 = s(2) e 5 = s(s(3)) são primos, mas


4 = s(3) não é.

Exercı́cio 8. Mostre que para todo n, m ∈ N com n 6= 1, n | m ⇒ n 6 |m + 1.

Exercı́cio 9. Prove que #[1] = 1 a partir da definição de cardinalidade.


Mostre também que dois conjuntos finitos X, Y têm a mesma cardinalidade
se e somente se há uma bijeção entre eles. Mostre ainda que #X ≤ #Y
equivale a haver uma injeção de X a Y , enquanto #X ≥ #Y é equivalente
a existir uma sobrejeção.

Exercı́cio 10. Prove que se A e B são conjuntos finitos, #(A ∪ B) ≤


#A + #B.

Exercı́cio 11. Prove que N não é finito.

Exercı́cio 12. (Trabalhoso) Prove que todo conjunto infinito contem um


subconjunto enumerável.

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