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Do Caldlago GRAAL Capitalism de Estado e Modelo Polf- tico no Brasil — Carlos Estevam Martins A Economia da Dependéncia imper- feita — Francisco de Ofiveira Histéria da Imprensa no Brasil (2* edicio) — Nelson Werneck Sodré © Pensamento Politico de Etico Ve- rissimo — Daniel Fresnot ‘A Crise do Imperialismo — Samir Amin Eu, Pierre Rividre, que degolei_minha mae, minha irmi e meu irmio — Michel Foucault Historia da Sexualidade — I: A VON- TADE DE SABER — Michel Foucault Introdugdo 20 Fascismo — Leandro Konder Capitalismo Moderno Paul M. Sweezy Misica Popular: de olho na fresta = Gilberto Vasconcellos © Estado em Crise — Nicos Poulantzas Jofo Pessoa ec a Revolucio de 30 — Ademar Vidal © Psican — Robert Castel LIVRARIA AVANGO ? Rua Aurore, 704 Fone: 221-6130 Hortio:das9 a5 20s, Sabado: dae 928 18h. \ , O CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI Biblioteca Estudos Humanos Série Teoria Politica (n° 1) DiregGo: Carlos Estevam Martins José Luiz Fiori Luiz Werneck Vianna Traduzido da ed IH concetto di egemonia tn Gromsct Direitos adguitdos para lingua portuguesa por EDICOES GRAAL 7 Rio de Janeiro, RJ ~ Brasil © Copyright by Editori Riusiti, Roma Impresso no Brasil /Printed in Brasit 1978 LUCIANO GRUPPIL O CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI tradugio de Carlos Nelson Coutinho graal Mm ‘Capa: AntBnio Henrique Nitzche Ficha catalografica (Preparada pelo Centro de Catalogagdo-na-fonte do SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ) Gruppi, Luciano. G94le Conceito de hegemonia em Gramsci; tradugao de Carlos Nelson Coutinho /apresentacdo de/ Luiz Wer neck Vianna. Rio de Janeiro, Edigées Graal, 1978. (Biblioteca Estudos Humaros. Série Teoria politica, a. 1) Do original em italiano: Il concetto di egemonia in Gramsci Bibliografia 1. Gramsci, Antonio, 1891-1937 Filosofia I. Titulo IL Série cDD - 195 77-0601 CDU = 1 Gramsci A PROPOSITO DE UMA APRESENTACAO, Lula Weeneck Vianna Recentemente uma prestigiosa revista-magazine americana estampou com estardalhaco em sua capa a seguinte chamada para sua matéria principal: “Marx est morto”.O esperado gol- pe de morte teria sido desferido pelos jovens novos-filésofos franceses, na maior parte egressos de organizacdes de frascologia ultra-radical. Para eles, o que se vinha entendendo como defor- magio staliniana, longe de ser algo como um elo perdido ~ ou a perder ~ na préxis marxista, seria o fruto natural de sua essénci também presente em Lénine, sem davida, contido em germe ou essencialmente no préprio Marx. O matxismo nio 86 est condenado a representar um pensamento do século passado, como traria incorporado de modo irreversivel um componente autoritario no compativel com as exigéncias democriticas da nossa era. Marx est morto, Esté? Ao lado dessa questdo ~ no muito nova - tem subsistido uma outra, nem sempre explicitada apenas pelos que estdo fora do circulo de aderentes ou simpatizantes do marxismo. Confirma-se a vitalidade ¢ a exceléncia da obra de Mara, decretando-se, porém, a falta de vida aparente no mar ‘mo, empobrecido por maus praticantes, e a coagulagdo em geral da sua teoria. Com matizes e significados variados, a proposicao ora provém de sctores distantes do seu campo intelectual, ora préximos ou de dentro dele, bastando lembrar o caso de um pen- sador do porte de G. Lukées que disse, com despropositada hu- mildade, que desde Materialismo e empiro-criticismo e 0 Imperia- lismo, etapa superior do capitalismo, ambas obras de Lénin, 0 marxismo posterior 2 Marx ndo teria trazido qualquer outra contribuicdo relevante. A. dar credibilidade 20s novos-filésofos, admitindo-se a morte intelectual de Marx, valerd a concessio, porém, de que, pelo menos a primeira vista, Gramsci esté a desfrutar de muito v boa saiide. Mas Gramsci é marxista? Se é, que espécie € essa de marxismo em Gramsci? Uma heresia ocidentalista, uma hetero- doxia de fundo liberal, como tantos querem identificar? “Uma politica sem uma economia”, como presumivelmente a obra de Maquiavel teria sido - vendo'se em O Principe apenas a perspec- tiva da engenharia de como persistir ocupando o poder, € nfo 0 Estado nacional italiano em fungio da ordem burguesa emer- gente? Qual é 0 Gramsci ~ ou que Gramsci se quer -, 0 dos con- selhos de empresa da fase juvenil de Turim, ou o intelectual ita- Jiano que dirigiu a oposicdo operdria contra o fascismo e, sendo preso, pretendeu escrever uma obra que triunfasse sobre o tem= po? Mas se Gramsci é marxista, eis algo a questionar aquela tal- vez intempestiva proclamagao. Por outro lado, e 20 largo dessas, evidéncias de wishfudl thinking) sendo o marxismo uma préxis, trata-se de um equivoco reparar no seu processo de desenvolvi- mento meramente no momento tedrico, digamos, quase- académico. A consideragdo dé precisio a anilise, mas nio a faci- lita de modo algum. Consiste num tema complexo ¢ scnsivel, ‘examinando-se a evolugio de uma dada concepgao do mundo ou mesmo do fazer artistico, localizar um autor importante e eriati- vo no contexto intelectual de uma formagio tedrica, Até que mites se conteve no quadro original? Qual a sua leitura peculiar? Onde. desenvolveu com originalidade e onde ficou circunserito ou nao aos postulados da sua teoria de recorréncia? Sio duros problemas a examinar. Ortodoxo, heterodoxo, criador de novo campo intelectual? Sao também algumas das indagagdes feitas com freqiiéncia. AA igreja romana tem ums boa experiéncia de reflexio sobre isso, © 0 sistema das ordens religiosas acabou por funcionar ‘como um mecanismo de cooptagdo de movimentos inovadores nao inteiramente assimilaveis a principio pela instituigo, apesar de sua profunda identidade substantiva com a versio catélica do ctistianismo, Mas o marxismo nao é um dogma, nfo dimana de uma fé, enquanto que a ortodoxia catdlica se faz verificdvel luz de principios estabelecidos atemporalmente, Por outro lado, no consiste apenas numa ciéncia ~ se bem que compreenda um mo- ‘mento cientifico em sentido pleno -, ¢ andara distante da sua rea- lidade quem assim restringir sua interpretagio. Constitui acima de tudo uma praxis orientada para a transformagao da socied: de, concebida no tempo da dominacio do modo de produgio capitalista, com vistas a preparar e conduzir 0 surto de uma so- ciedade sem classes. ‘Ao contrério do capitalismo, que se originou e se formou de dentro da sociedade feudal, 0 socialismo no emerge “natural- vl mente. Tendo uma base objetiva, expressa entre outros indi dores pela magnitude da socializagéo da produgao sob 0 capita lismo, 0 socialismo s6 pode se tornar modo de producéo dom nante a partir da vontade coletiva de um ator social especifico — a classe operéria -, de um projeto humano socialmente condi do, que varia conforme as condigdes de cada formagao soci Tendo-se lido ow ndio Marx, vale dizer, dominando-se ou no 0 discurso cientifico do marxismo, o fato de assumir esse projeto € participar nessa vontade coletiva faz do militante social um mar- xista, Resulta que o que se chama de fiel interpretagao € dada pela praxis, pelo resultado transformador ou ndo de uma vontade or- ganizada coletivamente agindo na arena politica no sentido de dirigir 0 esforco social para a fundacao de uma sociedade sem classes. Conseqiientemente, por sua propria natureza, sao inapli- céveis ao campo conceitual do marxismo as categorias ortodo- xia/heterodoxia, O marxismo ou se apresenta sob sa forma re- volucionéria,-ou-nao.passa de-uma-contrafagao sevisionista, 0 principio basilar enunciado por Lénin da “‘anélise. concreta de uma situagdo.concreta” nao pode suportar‘o viés dogmitico da avaliagio de um momento singular pela leitura de um corpus doutrinario. Cada formagdo social € dnica, nfo s6 pelos elemen- tos estruturais que Ihe modelam a constituigdo, como pelos tra cos conjunturais, complexo emaranhado para onde confluem as determinacdes mais gerais ¢ as mais particulares, que freqente- mente s6 adquirem importdncia para a andlise © a agao."*num ‘momento atual”. Serd marxista a praxis que formular a um $6 tempo o sistema de leis do processo objetivo € contraditério em curso o programa de acdo transformadora para a vontade cole- tiva interessada numa outra forma de convivéncia social., ” Desconsiderando-se esse aspecto essencial, qual seja, a de que o marxismo vivo esté sempre por se fazer, a tendéncia dog- matica, como observou Lukécs na “Carta sobre o stalinismo", favorece a aboligdo “de todas as mediagdes, a instituir uma co- exo imediata entre-os fatos mais crus e as posigdes tedricas mais gerais”. ' Procedimentos de validade ocasional, titicos, de- correntes de uma conjuntura de contornos definidos ficam, as- sim, como que aguardando legitimagao directa da teoria. Com is- s0, corrompe-s¢ a teoria, que se cristaliza em livro, interrompen- do-se 0 fluxo dialético entre ela e 0 real-concreto, jé que este € pensado através de categorias aprioristicas, quando no ad hoc. Como muitas vezes ocorre, ainda que em termos priticos se inove no plano do confronto com o conereto, a tendéncia dog- mética somente assume a inovagdo ao abrigé-la com o fraseado de algum ponto doutrinario supostamente estabelecido. O mes- vil mo Lukacs observa que, quando Stalin se opds a um caminho imediatamente socialista para a revolugdo chinesa, decorrente, como argumentavam seus criticos, das condigdes de predomi- nancia do modo de produgio asidtico nessa formagao social, re- cobriu sua justa apreciagdo favordvel a uma etapa democratico- burguesa com uma vinculagdo a um inexistente feudalismo chi- nés, Entre a opedo de instalar teoricamente sua acertada alterna- tiva estratégico-tatica no terreno concreto da anélise da realida- de chinesa, e sua “legitimacio em teoria”, preferiu-se essa dlti- ‘ma, o que $6 poderia repercurtir sobre o grau de dificuldade do seu eniendimento sobre a prépria teri, que nfo pode se de Ser marxista se afasta bastante, pois, da idéia simples de “espelhar em si” a teoria de Marx, numa especie de exercicio re- t6rico to aparentado com a postura intelectual de um manda- rim, Abragar essa concepgao do mundo nao resulta apenas de uum compromisso intelectual, mas igualmente prético - um en- frentamento tedrico-concreto com 0 social no objetivo de trans- formé-lo, como o proprio Mark jé advertira desde a primeira tese de Feuerbach. ___ Essa problematica coexiste com uma outra, com ela correla~ cionada, mas de certo modo independente ~ a especificamente cientifica, Morgan, Darwin, Hilferding, entre outros, sem serem marxistas, contribufram ndo sem pouca importincia para a teo- ria tanto em Marx, como em Engels e Lénin. De outra perspect va, mas observando 0 mesmo assunto, hé casos de pensadores € politicos de importdncia variada na praxis marxista, que, mesmo sendo individualidades fortemente representativas, nfo contri- bufram diretamente para o desenvolvimento da teoria ou, quan- do 0 fizeram, nao tiveram éxito ou, pior ainda, foram responsé- veis por sérios equivocos, como foi 0 caso da extraordinéria Rosa Luxemburgo. Lénin, o melhor intérprete do marxismo apés a morte de seus fundadores, foi também seu pensador mais original e criati- vo a partir da ditima década do século pasado, seja pela obra teérica, seja pela atividade politica. Em sua obra tedrica, estabe- lece 0 paradigma para uma sociologia marxista,. nessa obra- prima Desenvolvimento do capitalismo na Rissia, surpreendente pela pouca idade do autor, em seus textos dedicados a filosofia ¢ 4 teoria econdmica, ¢ talvez principalmente nos seus textos de combate politico-ideoldgico do tipo Que fazer, Duas tdticas. Doenca infantil... Teses de abril etc, onde propde seu método para o exercicio da praxis da classe operdria na luta pelo poder politico e hegemonia social. Através da atividade politica, torna se 0 condottieri moderno do proletariado ¢ o cientista ¢ artist politico principal na edificagdo de um novo Estado e das primei- vin ras instituigdes sociais criadas na historia por essa classe, Encon- tra-se-ia em situagdo de profunda incompreensio quem nele sim- ploriamente visse um pensador ou politico que desenvolvera de modo lincar algo enunciado ou implicito anteriormente. O papel da instincia politica, da atividade politica, da praxis revolucio- ndria da classe operdria sao, no fundamental, criagdes leninistas, criagdes essas que ampliaram e aprofundaram o universo te6rico do marxismo, instrumentalizando, de forma superior, para a agdo a classe que representava, No caso de Gramsci, sublinhe-se logo a singularidade de sua obra como autor marxista, cujo tema consistiu no estudo € “observagio dos fenémenos superestruturais, a politica, a cultura © 0 sistema de valores no contexto de uma ordem capitalista, Dessa especializagao ~ talvez a mais extremada entre os grandes pensadores marxistas ~ e da incompreensdo do seu sentido, tm Fesultado muitas das acusagdes de heterodoxia por parte da criti- ca niio marxista, se bem que tenha escapado de ser visto como revisionista, categoria propria dos marxistas para indicar 0 des- vio € 0 erro na sua praxis, ‘A nosso ver, 0s comentarios de Gruppi, de importincia de- cisiva para uma leitura rigorosa de Gramsci, sugerem como pon- to de partida uma indicagio fecunda: no €a Marx que esse inte- lectual italiano visa desenvolver, e sim a Lénin, precisamente 0 pensador que determinou o campo ea forma de agdo do principe moderno. De nossa parte, sugerimos que Marx estabeleceu para cle os supostos epistemolégicos da sua reflexdo e, sobretudo, a teoria do modo de produgao capitalista. Gramsci ndo seria inte- ligivel sem essa externalidade a conformar seu marco de referén- cia conceitual, que nele surge como um “dado”, um patamar jé conquistado sobre 0 qual consir6i sua contribuigdo. ‘A opciio gramsciana de refletir sobre o marxismo através do aporte de Lénin se manifesta em dois momentos cruciais — um na juventude ¢ outro em plena maturidade. Em janeiro de 1918, a0 comentar e saudar 0 advento da revolugao rissa como uma “re- volugio contra O capital de Marx”, enfatiza a especificidade do elemento subjetivo, da politica, da organizacio, criticando o que seria residuo de um determinismo mecanicista em Marx — sua contaminagio pelo positivismo € 0 naturalismo. “A. revolugdo dos bolcheviques resulta mais da ideologia do que dos fatos. E a revolugio contra O capital de Karl Marx”.? Na Russia, O capi- {al teria se tornado n&o o livro do proletariado, maso da burgue- sia, que nele se apoiaria para reclamar o surgimento da era do seu dominio, instaurando-se uma civilizagio de tipo ocidental enquanto que a classe operdria deveria aguardar a plena matura- edo do modo de produgio capitalista para lutar pelo poder. Ix ‘Com todos os seus equivocos, a reagdo de Gramsci consistia numa justa repulsa, isto sim, &s posigdes reformistas da II? Inter- nacional, que com seu grosseiro positivismo negavam a presenca do elemento subjetivo na revolugio proletaria. Na visio pré- critica do jovem observador, porém, 0 leninismio eta quase que assimilado a um culto da vontade de sabor soreliano, substituin- do a deformagio mecanicista por uma outra, de sinal contrario, que afirmava 0 primado da politica na transformagao social. ‘Ao estudar essa importante passagem na biografia inteles- tual de Gramsci, L. Gruppiesclarece com equilibrio: “A posi subjetivista, voluntarista, & aqui evidente; os julgamentos sio acerbos. Mas a substancia é que Gramsci compreendeu como a revolugdo de outubro havia sido a critica viva de uma falsa interpre- taco do marxismo; como, depois da revolugdo de outubro, se deve reexaminar a interpretacdo do marxismo que se afirmara na I Internacional e no Partido Socialista Italiano. E preciso rea- firmar a fngio do sujeito revolucionério ¢ liberar-se de uma concep¢ao do marxismo como determinismo econémico vulgar” (ver cap. IV deste livro).\ Mais tarde, ja nos Cadernos, retorna ao ponto, examinando fo tema, que hoje se fez clissico, das alternativas estratégicas con- tidas na chamada guerra de posigdes € na de movimento. A seu ver, 0s acontecimentos de 1917 teriam anulado na Europa a pos- sibilidade de um Estado se ver apropriado - e mantido ~ por um movimento fulminante comandado pelo principe moderno. As- sinalariam, como diz, uma “reviravolta decisiva na historia da arte ¢ da ciéncia politica”. * Também aqui seré Lénin quem transfere um problema ¢ quem vai dar suporte & construgdo gramsciana, no contexto da polémica com Trotsky a respeito da revolugdo permanente, que na tradugdo de Gramsci foi com- preendida como a forma politica de se conduzir uma guerra de movimento contra o capital. £ cabal a identificagdo do intelectual italiano com o ponto de vista leninista, Para ele, nos Estados capitalistas avangados @ sociedade civil se teria transformado “numa estrutura muito complexa ¢ resistente as “irrupgdes” catastroficas do elemento econdmico imediato”, e suas’ superestruturas funcionariam como “o sistema de trincheiras nia guerra moderna. * Tornou-se célebre a férmula de Gramsci: “No Oriente o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial ¢ gelatinosa; no Ocidente havia en- tre o Estado ea sociedade civil uma justa relagdo, eem qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa es- trutura da’sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira ameacada, por trés da qual se situava uma robusta cadeia de for- talezas ¢ casamatas, em medida diversa de Estado para Estado, € x claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento do carater nacional”. * (O entendimento dessa realidade separaria Lenin de Trotsky no que se refere & revolugdo européia ¢ & questo crucial da “re- volucio num s6 pais”. A negacdo da tese da revolugdo perma nente por parte do primeiro significaria, a um s6 tempo, seu am- plo dominio do tema nacional russo edo europeu, enquanto seu Opositor, viciado por uma visio cosmopolita, compreenderia mal a dupla dimensio do problema revoluciondrio. Lénin teria porcebido que a revolugio proletiria nao poderia reproduzir as operacdes politico-militares iniciais da grande revolugdo burgue- sa, quando Bonaparte “exportou” o dominio burgués para o res- to'da Europa, O importante conceito de “elo mais fraco”, pro- duzido para indicar a particularidade da situacdo nacional russa rno contexto europeu, indica que se trabalhava igualmente com a nogio de “elos mais fortes”, formagdes sociais onde a burgue- sia se constituiria em classe hegemdnica. Nesses casos, 0 éxito militar inicial poderia inclusive se comportar ardilosamente, dado que nio se tratava de libertar uma sociedade civil de um Estado a ela antagénico, vendo-se os conquistadores sitiados pe- las sOlidas trincheiras da burguesia na sociedade, obrigados a es- tender com imprudéncia sua frente, nela se consumindo e abrin- do campo facil 4 penetragio do adversério de classe em suas fronteiras nacionais. De um lado, © Lénin tedrico ¢ prético da componente subje- tiva no processo revoluciondrio; de outro, 0 estrategista da revo- lugio européia, nos termos que se indicam na discussio sobre a revolugdo permanente, e 0 criador do conceito de hegemonia, patamar tedrico-coneréto do qual Gramisci partir para calgar € cdificar sua propria obra. Sua proposta se acharia bem sintetiza- dda na seguinte expresso, enunciada imediatamente apés suas consideragdes sobre a especificidade do fendmeno russo no qua~ dro europeu: “é necessirio estudar com ‘profundidade’ quais siio os elementos da sociedade civil que correspondem aos siste- ‘mas de defesa na guerra de posigdo. Digo com ‘profundidade’ in- tencionalmente, pois eles foram estudados, mas a partir de pori- tos de vista superficiais e banais”.? ‘Como vimos, tais elementos estariam localizados nas supe- restruturas da sociedade civil, e sua valorizagdo para a préxis politica reclamava uma andlise histérico-concreta da cultura, das instituigdes, dos valores sociais, em particular a observagao das suas relagdes com o aparelho do Estado, tema em que nos deteremos abaixo, A especificidade do supra-estrutural, tanto em Marx como em Engels, foi delimitada com extremo rigor e preciso cientifi- a ca, Engels inclusive, apés a morte de Marx, procurou combater fem escritos, conferéncias ¢ cartas as versdes mecanicistas que ‘anos depois iriam corromper a teoria e a pratica da II* Interna- cional, bastando recordar sua carta a K. Schmidt datada de 1890, recentemente editada entre nés.* No modo-de producto capitalista, ao examinar a subordinagdo real do trabalhador a0 capital, Marx determinou, em substncia, os componentes mate- riais ¢ imateriais da subordinacdo da classe operéria, fornecendo sas sugestdes para a pesquisa das condigdes de reprodugio social do capitalismo e, em especial, da classe operdria, * Marx, todavia, trabalha num nivel de generalizacao muito alto, princi- palmente nas suas obras centrais, quando estuda o capitalismo como modo de produgdo, € no um capitalismo concreto. Nesse sentido, suas proposigdes associam com justeza, na dimensao abstrata em que opera, o controle dos meios de produgao mental a classe que possui os meios de producdo materiais. De outra arte, nos scus magistrais estudos de situacdes concretas, como as do ciclo revoluciondrio francés de 1848 a 1871, a observagdo se apresenta encarnada, nao se pondo a nu a metodologia uili- zada para o exame da conjuntura. E evidentemente nao é de se esperar que Marx fizesse anilises impressionisticas, A angulacdo que Gramsci herdou de Lénin se estabelece de outra perspectiva. Privilegia uma formagao social concreta € postula formular para ela um planejamento estratégico-tatico que viabilize a expansao da forga politica ¢ social da classe ope- raria ¢ faculte a esta a conquista do poder. A hipétese mais geral de Gramsci, estatuida para um momento teérico que nao se pre- tende universai - a mercadoria € um universal-concreto; uma formagdo social ndo o é -, mas precisamente particular, consiste no que podemos qualificar com uma situagao de sincronia ou as- sineronia entre o poder e as fontes de legitimagdo no interior da sociedade civil. Havendo correspondéncia entre eles ~ caso dos capitalismos desenvolvidos nos anos vinte e trinta ~ estariamos diante de uma situagio com os requisitos gerais de uma guerra de posi¢do para a praxis da classe operéria, A partir desse dad de senso comum da teoria marxista ~ a relagzo entre dominio material e imaterial - prope que, pela ago, pelo momento sub- Jetivo, tais anexos podem ser neutralizados, rebaixados, permi- tindo que a classe operdria exerga hegemonia sobre as demais classes no exploradoras, apresentando-se como uma alternativa para 0 poder. Retome-se a ideia inicial. Na obra de Gramsci ha um supos- to ~ a teoria marxista do modo de produgao capitalista, Sua li- nha de investigagdo se ajusta para resolver o impasse te6rico prético que se verificou no pés-17 no ocidente europeu, estando xi dirigida para 0 plano estratégico-tético da classe operdria dos paises dessa regido. Pensada nesse plano, a conceituagdo do su- pra-estrutural visa elucidar um espago teérico menor e particular = 0 terreno vivo da interagio do sujeito concreto com o real- concreto. Do ponto de vista epistemoldgico, trata-se de uma operacdo analitica subordinada a um campo tedrico mais vasto € que a inclui ~ a cigneia da histbria,-o-materialismo historico -, mas no redutivel a ete. Além disso, objetiva instrumentalizar 0 sujeito coletivo para a aco. ‘A tiocao de superestruturas, como trincheiras protetoras do Estado sediadas na sociedade civil, apontava para uma nova € original concepgdo dessa agéncia do poder. O Estado seria mais do que um ente monopolizador dos meios de coergéo fisica, constituindo-se também das agéncias ou aparatos dirigentes da vida social, como a escola, a Igreja, os sindicatos, as corporagdes profissionais etc. Recupera o tema classico em politica da coer ‘edoe do consenso, desde Maquiavel, que 0 ilustrou pela imagem do centauro como representativa da acio politica. A metade ani mal exigindo 0 recurso a forea, ¢ a humana aos procedimentos consensuais, a ciéncia e a arte politicas dependeriam da justa compreensio ¢ combinagdo desses dois elementos. Gramsci en- tende que, nas condicdes européias a partir da revolugdo russa, a Teitura do'mito maquiavélico deveria enfatizar a dimensdo cultu- ral — um sistema de poder ndo coercitivo em sentido estrito. Dai # cardter impositivo do estudo em profundidade das instituigdes © do sistema cultural numa formagdo social conereta para expli tar a praxis da classe-operiria. Em condigdes de hegemonia, a burguesia solidarizaria o Es- tado com as instituigées dirigentes da agao, e da produgao e da ‘reproducdo dos valores sociais, conformando essa realidade con- ceitual denominada genialmente por Gramsci de Estado.amplia- do, Na circunstancia, essas instituigées se comportariam como aparatos ideolégicos do Estado, sendo aqui bem oportuna a con- tribui¢io complementar de Althusser. Entretanto, a solidari- zagdo desses aparatos ideolbgicos com o Estado ndo permite en- tendé-los de modo mecanico como se esse do Estado decorresse * de um atributo, resultado de um dado estrutural imutavel. " "Na mesma medida em que as classes sociais concorrem en- tre si para se apropriar do Estado, também competem - ¢ Gramsci deseja identificar esse processo ¢ torné-lo consciente - pela influéncia na sociedade civil. Nesse passo, o projeto politico das classes subalternas deve visar a separacdo de determinados aparatos ideol6gicos da sua aderéncia ao Estado, a fim de se tor- narem agéncias privadas de hegemonia sob sua direcdo. Ade- mais as insituigdessociaisexstentes nfo se originaram, em sua | XI totalidade, do dominio burgués, sendo possivel fazer a listagem de um elenco inumeravel de contra-instituigdes, como o partido politico operdirio, por exemplo, Igualmente 0 so - ou podem ser Fumi teatro nacional-popular, uma escola de formagao de qua- dros sindicais, 0 sindicato aut6nomo do Estado etc, bem como todas as outras resultantes da criatividade popular e operdria, Notar que, no modo de produco capitalista, € condigao para que as classes dominantes possuam, além de dominio, fun- (Ges e papéis de direcdo, num tempo histérico como este de uni- Versalizagio da cidadania, que sua concepgio do mundo soja ge neralizante, fazendo parte inclusive do senso comum das massas Por definigao, 0 lugar onde se produz esse efeito de generaliza- gdo slo as instituigdes sociais, em particular as especializadas na Vida valorativa, que por isso fazem parte de modo privilegiado da arena onde se confrontam as classes sociais. As classes subal- ternas, organizadas politicamente com fins proprios, vulneram € até impedem a supremacia birguesa ~ dominio mais diregdo — sempre que resgatam a fracio dos seus iguais postos sob a in- fluéncia das classes econémica ¢ socialmente dominantes. NEO 86 podem neutralizar ou remarcar o sentido funcional de certas instituigdes, antes aparatos ideolégicos do Estado, como criar novas instituigdes que sejam instrumentos para a elaboragao da sua hegemonia, ao mesmo tempo em que situam c isolam 0 apa- relho estatal, tornando vidvel sua apropriagio. De certo modo, esse processo, a classe operdria forja as superestruturas do seu poder futuro, que assim se antecipam ao seu dominio, ¢ 0 cum- primento dessa condicdo se faz necessdrio para seu triunfo en- quanto classe. Gruppi, numa das partes mais brilhantes deste livro, de- monstra como 0 conceito de hegemonia em Lénin decorreu do seu triunfo tedrico sobre as concepgdes vulgares de determinis- mo econdmico. Gragas a ele, o marxismo foi regenerado da cor- rupcio oportunista que esperava o socialismo de um “colapso do capitalismo”, fatalidade imposta pelo seu curso objetivo. O paradoxo aparente contldo na formula da revolugdo democr: co-burguesa sob hegemonia da classe operaria s6 pode ser resol- vido por uma apreensio dialética, capaz de surpreender 0 papel do politico, do subjetivo, da sua relativa autonomia diante do econémico, na praxis operdria. Se tudo fosse reduzido a base econdmica, argumenta Gruppi, ndo haveria lugar para a inici va politica e, portanto, para a hegemonia operdria num contexto revoluciondrio democritico-burgués. A base capitalista corres- ponderia, por forea da necessidade, uma superestrutura capita- lista, como decorréncia natural. A compreensio leninista de he- gemonia remete, de imediato, & problemitica do fato cultural e moral em politica. Com a mesma aguda perspicacia, nosso autor xiv retoma a primeira tese de Marx sobre Feuerbach que, cortando. com o materialismo anterior, funda a atividade humana como uma atividade também objetiva, tema esse que Lénin desenvol- veu madura e originalmente na questio da hegemonia, A inovacdo leninista, que Gramsci soube interpretar mais do que qualquer outro teérico posterior, se constituird no cora- cdo da matéria da sua démarche, refletida lapidarmente na sua conceituacdo da sociologia como disciplina ausiliar da ciéncia politica, A sociologia do cotidiano, das instituigSes, do sistema. de erengas © dos valores vistos de per se no produziria mais do que uma visio fragmentada do real, sem qualquer coeréncia. Sua cientificidade dependeria da percep¢o destes como fendmenos vinculudos & producdo de uma concepeao do mundo, de uma he- ‘gemonia moral intelectual, dos meios de “diregio social”, par- ics, portanto, constitutivas do poder. Essa € a fundamentagio para uma sociologia marxista, ainda por se fazer, dado que 0 novo patamar fixado por Gramsci, apesar de sempre reverencit do, decididamente ndo parece estar bem compreendido, do que do se salvam nem os gregos € muito menos os troianos. O livro extradinario que ora apresentamos, criativo, rigoto- so, nio chega a nos devolver a intensa complexidade e riquezada obra gramsciana, e nem se preiende a isso. Porém, ndo se pode mais, nesse pais contraditorio em que, juntos, os conservadores e ess esquerda bem educada do marxismo retdrico fizeram de Gramsci - esse duro, esse leninista - um pensador quase manso e liberal, ler e interpretar seus trabalhos sem recorrer ao magistral rotciro de Gruppi, Se se trata de discutir sobre a posse do pensa- imento gramsciano — assim como os marxistas legais desejaram fazer de Marx um economista burgués na Russia czarista ~ na pretensio de transformé-lo no apélogo da ideologia consensua- lista dos liberais, depois de Gruppi s6 vai se engenar quem qui- ser, ou quiser apenas enganar a outrem, xv NOTAS | Lukes, G., "Carta sobre staliismo”, in Temas n# 1, Bd. Grijalbo, 8. Pau- lo, 1977, 2 Idem 43 Gramsci, A. in Ser? Giovani, Ed. Einaudi, Tarim 4 Gramsci, A", Maguiave ¢0 Estado modern, Ed. Civilizagho Brasileira, Rio, 1968, p. 73. 5 Idem. 9.73 6 tbidem. p. 74. 7 Ibidem, p. 73. 8 Marx, Ke Engels, F., “Carta @ Konrad Schmidt” (de F. Engels) in Obras f- loséficas, Ed. Grijalbo, S. Paulo, 1977. Ver Vianna, Luiz Weeneck, Liberalism e sindicato no Brasil, “Introdugao™, Rio, 1976, onde desenvolvo essa argumentagdo. 10-Ver Althusser, “Idedlogie et apparels idéologiques Etat ~.Notes pour une = -yeekerche” ~ in La Pensée, n9 151, junho 1970 11 Sobre orkica a Althusser quanto a0 poato ver Vianna, Luiz Werneck, Owe ‘ale pode, mimeo, Cebrap, 1974 e Limacito, M., ldeologia desenvohimento Brasil JKJQ , Ed. Paze Terra, Rio, 1977, caj itroducdo consstena melhor preciagio ds obra do pensador Mancés ja publeada entre ns. XVI / ADVERTENCIA So publicadas neste volume nove ligdes que pronunciei no Instituto Gramsci, entre outubro ¢ dezembro de 1970. Ao corrigir © texto, mantive 0 cardter origindrio da exposigio, na convicgio de que isso pudesse tornar a leitura mais acessivel. LG. XVII Vv. VL vil vu. Ix, SUMARIO © CONCEIIO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI Esclarecimentos preliminares Lénin ¢ a nogdo de hegemonia PRESSUPOSTOS DO CONCEITO DE HEGEMONIA EM LENIN A INICIATIVA DO SUJEITO REVOLUCIONARIO: 0 PARTIDO GRAMSCI E A REVOLUCAO DE OUTUBRO Anelisar © movimento real ‘A questo meridional OS CADERNOS DO CARCERE AS classes subalternas Marxismo ¢ hegemonia Maquiavel e 0 moderno Principe © materialismo vulgar © bloco histérico Os intelectuais A HEGEMONIA NA HISTORIA DA ITALIA. ‘literatura nacional-popular Hegemonia e marxismo A cultura das classes subalternas Gramsci sobre Croce ACRITICA A CROCE E A BUKHARIN ‘A hegemonia de Croce © historicismo Croce © Hegel A critica a Bukhérin ‘ RELACAO ENTRE SER E PENSAMENTO Gramsci ea filosofia de Lénin Ainda sobre o historicismo FILOSOFIA, HISTORIA, POLITICA Guerra de posigio e guerra de movimento XIX 1, 0 CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI Esclarecimentos preliminares ‘Antonio Gramsci, sem nenhuma duivida, foi o te6rico-mmarxista, {que mais insistiu sobre 0 conceito de hegemonia; | ¢ 0 fez recla- ‘nando-se particularmente de Lénin, Alids, diria mesmo que, se se quer ver 0 ponto de contato mais constante, mais enraizado, ‘de Gramsci com Lénin, esse me parece ser 0 conceito de hegemo- hia. A hegemonia € o ponto de confluéncia de Gramsci com L&- Ha uma passagem onde Gramsci escreve: “Tudo & politica, inclusive a filosofia ou as filosofias; ea tinica filosofia éa historia em ato, ou seja, a prépria vida. E nesse sentido que se pode inter- pretar a tese do prolctariado alemao como herdeiro da filosofia Classica alema c que se pode afirmar que a teorizagio e a reali Gio da hegemonia por Hitch foi também um grande evento me~ {allsico”. *(O termo metafisica é aqui usado nfo em seu sentido proprio, mas para indicar 0 ponto mais alto da filosofia.) Essa afirmagio de Gramsci, ou seja, sobre o valor filos6fico da teorizagio da realizagao da hegemonia do proletariado, re- pousa sobre algumas teses, contidas precisamente na passagem fem questio. Repousa sobre a afirmagao da identidade entre his- téria € filosofia (a filosofia é histéria em ato). Trata-se de uma 1 0 teemo hegemonia deriva do grego eghestal, que signifies Yconduzi", smb do verbo eghemaneuo, que signtie “ser guia, " “eonduzit", e do qual deriva "estat & frente, “comandar”, “ser 0 Por eghemonia, o antigo grego entendia a direqlo suprema do exército, ‘Trata-se, portato, de um termo militar. HogemBnicoerao chef militar, o gui © também 0 comandante do exércto, Na época das guerras do Peloponeso, falov- sede cidade hegemOnice para indiar a idade que dirigia a aianga das cidades tregas em lute entre 3A. Gramsci, 1! materfaliona storico ¢ a fowofta dt Benedetto Croce, Roma, Ea- ton) Riuniti, (971, p. 32. [Hi edigto brasleirs: Concepedo daléica da Mistdria, Rlo de Janeiro, Bd, Civiizagde Brasileira, 1966) {ese rica de miltiplas implicagdes (inclusive discutiveis, como tentare: mostrar em ligdes posteriores), mas que cito aqui para sublinhar como Gramsci articula, em estreita conexao, teoria ¢ pritica, teoria e ago politica. Portanto, pode-se compreender 0 que Gramsci tem em vista quando se refere a tese de Engels, con tida no conhecido escrito Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia cldssica alemd, onde se diz precisamente que o proletariado ale- mao € o herdeiro da filosofia classica alem&, sendo tal porque realiza na pratica as teses da filosofia, resolve e supera na pratica aquelas contradigées filos6ficas que, no plano do pensamento especulativo, no podem ser resolvidas, podendo sé-lo apenas numa nova Sociedade, numa sociedade comunista. Aqui a supe- ragdo das contradigdes de classe & também a superago das con- tradigdes filos6ficas, que so, no nivel da ideologia, a expressio de contradigées sociais nao soliveis por via especulativa, mas ‘tdo-somente por via revoluciondria. Essa é a tese de Engels, é a tese de Marx € &2 tese sobre a qual Gramsci insiste, O proletaria- do é herdeiro da filosofia cldssica alema porque traduz em reali- dade social o que é ainda especulativo naquela filosofia; nega, no sentido dialético do termo, e, portanto, supera a filosofia especu- lativa na medida em que a realiza; ea realiza na inversao da pré- xis, na iaversio revoluciondria da estrutura de uma sociedade di- vidida em classes antag6nicas. ‘Também essa tese de Engels é plena de implicagées filos6fi- as, sobre as quais ndo me deterei agora. Gostaria, ao contrario, de sublinhar mais uma vez essa unidade entre teoria ¢ pratica, essa unidade que faz da politica a real filcsofia,.na medida em que a politica ~ que ¢ ao mesmo tempo teoria e pratica ~ €aquela que no apenas interpreta 0 mundo, mas que transforma o mun- do com a acdo, segundo-a.undécima tese-de-Manx-sobre Feuer- bach:"‘os fildsofos-até-agora interpretaram 0 mundo..mas se tra~ ta €é de transformé-lo”, €, portanto, de passer da filosofia especu lativa & politica, & agdo revolucionsria. £ essa conexiio de teoria e prética que permite a Gramsci afirmar que a teoria e a realizacdo da hegemonia do proletariado (© com esse termo, referindo-se a Lénin, indica a ditadura do proletariado) tem um grande valor filoséfico, ja que a hegemo- nia do proletariado representa a transformagio, @ construgio de ‘uma nova sociedade, de uma nova estrutura econdmica, de uma nova organizagdo politica ¢ também de uma nova orientagio ideolégica e cultural. Como tal, ela no tem conseqiléncias ape- nas no nivel material da economia ou no nivel da politica, mas no nivel da moral, do conhecimento, da “filosofia". Portanto, a revolugio é entendida por Gramsci ~ e ele continuamente o repe- te como reforma intelectual e moral. Trata-se de ver o que tem em comum este conceito gramsciano, o de reforma intelectual ¢ 2 oy ON Lop moral, com o conceito de revolucdo cultural do qual fala Lénin, sobretudo a propésito do mundo rural russo, nos tiltimos anos da sua vida, Creio que tenha em comum tudo, e que contenha também algo mais, Aqui quero apenas recordar que, quando Gramsci fala de reforma intelectual e moral, liga-se a urna orien- tagao politico-cultural italiana da época, ligarse a Salvemini, a Gobetti, aos que consideravam ter sido uma desventura para a Itilia ndo ter conhecido algo compardvel & Reforma protestante, uma “reforma” que envolvesse profundamente os costumes ¢ criasse uma nova relago entre cultura e sociedade, entre inte lectuais © povo, mas de ter conhecido, em troca, a Contra- Reforma, Ao exemplo da reforma protestante Gramsci acrescen- ta o da Revolugao Francesa, o de uma revolugio que, ao contré- rio do Risorgimento italiano, conseguiu envolver os estratos mais profundos da sociedade, as grandes massas camponesas, ¢, desse modo, operar profundamente nfloapenas na estrutura eco- némica, social e politica, mas também na orientacao cultural ¢ ideoldgica da sociedade francesa, Decerto, esse modo de falar da reforma intelectual ¢ moral pressupde um certo julgamento sobre o Renascimento italiano, considerado como movimento essencialmente de cipula, como ‘movimento que aprofunda a distancia entre intelectuais ¢ povo. Gramsci se inspira no julgamento de De Sanctis sobre o Renas- cimento, bem como naquele de Toffanin acerca do cardter con- setvador e restaurador do Humanismo, pelo qual ele é influen- ciado em proporgo maior que a justa. Isso nos diz.que o concei- to de hegemonia € apresentado por Gramsci em toda sua ampli- tude, isto é como algo que opera ndo apenas sobre a estrutura ccondmica e sobre a organizacio politica da sociedade, mas tam: bém sobre 0 modo de pensar, sobre as orientacdes ideol6gicas ¢ inclusive sobre 0 modo de conhecer. Em outro ponto, diz Gramsci: “A proposigio contida na In- trodugéo & critica da economia politica { trata-se na realidade do Preféicio de Marx ao seu escrito Contribuicdo a critica da econo- ‘mia politica, de 1859], segundo a qual os homens tomam cons- ciéncia dos conflitos de estrutura no terreno das ideologias, deve ser considerada como uma afirmagao de valor gnosioldgico, isto 6, cognoscitivo, ¢ nao puramente psicoldgico ¢ moral”. Vooés certamente se fecordam dessa passagem famosissima, na qual Marx afirma precisamente quo a base econdmica, a estrutura, 3A, Gramsci, op. elt, p. 46. “er determina uma complexa superestrutura politica, moral, ideol6- gica, que ¢ condicionada por essa base econdmica da sociedade, isto é, pelas relagdes de produgao e de troca, Para Gramsci, essa €uma afirmagdo de cardter gnosiol6gico, no sentido de que indi- ca 0 processo através do qual se formam as idéias, as concepgdes do mundo, Disso decorre - afirma Gramsci - que o principio tedrico- prético da hegemonia tem também um alcance gnosiolégico e, “portanto, deve-se buscar nesse campo a contribuicao tedrica maxima de litch a filosofia da préxis. itch teria feito com que a filosofia progredisse enquanto filosofia, na medida em que fez progredir a doutrina ¢ a prética politica”. * Se, da mudanga da estrutura, deriva uma mudanga do modo de pensar ¢ da cons- ciéncia,-a hegemonia do proletariado (¢ aqui se entende como tal a ditadura do proletariado), que transforma a sociedade, trans- forma também 0 modo de pensar. E, portanto, a teoria ¢ a reali- zagio na pratica da hegemonia do proletariado séo um grande evento filoséfico. A contribuigdo de Lénin a filosofia nao reside apenas em ter teorizado a ditadura do proletariado, mas em té-la realizado aos fatos. Trata-se do valor filoséfico do agir, do transformer a sociedade. A filosofia néo mais procede simples- mente através de conceitos, de uma espécie de partenogénese dos préprios conceitos, mas a partir da estrutura econdmica, das transformegdes ocorridas nas relagdes de produgdo, numa conti- nua relagdo dialética entre base econdmica, estrutura social ¢ consciéncia dos homens. Gramsci acrescenta que a realizagdo de um aparato hege- ménico, isto é, de um aparato de diego - pode-se dizer, do apa- rato do Es:ado -, enquanto cria um novo terreno ideolgico de- termina uma reforma das consciéncias, novos métodos de conhe- cimento, sendo assim um evento filoséfico. E claro o ponto de vista no qual Gramsci se coloca, Hé uma relagdo estrutura-superestrutura ideolégica. A estrutura deter- mina a superestrutura ¢ disso deriva a estreita conexéo entre politica ¢ filosofia. A filosofia esté na politica. Momento méxi- mo da politica & a revolugdo, a criagdo de um novo Estado, de um novo poder e de uma nova sociedad ci diz que « maxima contribuigto de Lénin a filosofia est4 na di- tadura do proletariado, esté na obra de transformagdo revolu- 4 Ibidem. 4 T | | cn sp cL ciondria, Essa estreita identidade de politica ¢ filosofia faz com que 0 momento culminante da filosofia seja a politica transfor- madora, ¢ que 0 fildsofo seja o homem politico como transfor- mador. £0 caso de Lénin, dirigente da ditadura do proletariado, ‘como tebrico e como pratico, Essa afirmacio é ligada ao julga- mento de Gramsci sobre a obra filoséfica de Lénir: (cle conhecia ‘no maximo Materialismo e empiriocriticismo e ‘inha reserves substanciais sobre esse escrito). O julgamento segundo o qual Lénin vale como filésofo sobretudo na sua obra de politico deri- va certamente dessa reserva em relagdo a obra filos6fica de Lé- nin, mas é também um julgamento mais geral, ou seja, um julga- mento precisamente sobre 0 valor filos6fico da politica. Dagui deriva, para Gramsci, a centralidade e 0 valor essen- cial da nogdo de hegemonia em Lénin. (O que entende Gramsci quando fala de hegerionia, referin- do-se a Lénin? Gramsci entende a ditadura do proletariado. Isso resulta evidente das passagens citadas. Gramsci fala de principio tebrico-pritico, de teorizagao ¢ realizagéo da hegemonia, ou se- ja, da Revolugio de Outubro e da ditadura do proletariado. Isso ‘se torna explicito num texto de 1926, no qual ele ciz: “Os comu~ nistas turineses se haviam colocado concretamente a questo da hegemonia do proletariado, ou seja, da base social da ditadura proletdria e do Estado proletirio”;* vé-se aqui uma estreita co- nexio entre hegemonia do proletariado e ditadura do proletaria- do. A ditadura do proletariado ¢ a forma politica na qual se ex: pressio processo de conguista e dé realizagao da hegemoni Com éteito, escreve ele ainda, “0 proletariado pode se tornar classe dirigente © dominante na medida em que consegue criar } tum sistema de aliangas de classe que Ihe permita mobilizar con- tra o capitalismo e 0 Estado burgués a maioria da populagdo tra- balhadora”.* A hegemonia é capacidade de diregdo, de conquis- ‘tar aliangas, capacidade de fornecer uma base social a0 Estado proletario, Nesse sentido, pode-se dizer que @ hegemonia do pro- Ietariado realiza-se na sociedade civil, enquanto a ditadura do ~proletariado & a forma est aii Wegemonia, 5 A, Gramsci, La questione meridionale, Roms, Editor! Riuniti, 1966, p. 13. 6 tbidem. Lénin e a nogdo de hegemonia Gramsci, portanto, refere-se & difadura do proletariado, Em Lénin encontramos a nogio de hegemonia, em sua substancia, ainda que ndo com 0 uso desse termo, em todas as paginas por cle dedicadas a ditadura do proletariado. Com eftito, deve-sé sublinhar que, para Lénin, a ditadura do proletariado € diregdo de um determinado tipo de aliangas. Sobre isso, Lénin insiste sempre € muito, Mas, quando fala da ditadura-do proletariado, Lénin jamais usa o termo hegemonia. Usa o termo cldssico de Marx é se compreende a razio disso: ele esta empenhado numa polémica direta, numa aspera luta contra os reformistas, contra 6s social-democratas que negam 0 conceito marxiano de ditadu- ra do proletariado. Por conseguinte, ele reafirma com todo 0 gor nfo apenas a teoria, mas também o termo clissico usado por Marx. * O termo “hegemonia”, em troca, é usado por Lénin repeti- das vezes, numa situagio histérica inteiramente diversa, em face da revolugo russa de 1905. A revolugdo de 1905 aparece & so- cial-democracia russa (com excegio de uma posicao particular, a de Trotski, segundo 0 qual a revolugao de 1905 se apresentava como revolugio democrética mas s6 podia se afirmar como.re- volucdo proletiria) como uma revolugdo de carter democriti- co-burgués. Mas se delineiam duas posigdes: a posigo da direi- ta, dos mencheviques, e aquela dos bolcheviques. A direita con- sidera que, tratando-se de uma revolugao democratico-burguesa, a diregdo da mesma cabe & burguesia liberal ¢ democratica; que © proletariado deve certamente apoiar a revolugdo, mas deve evi- tar transformar-se em seu protagonista e assumir responsabilida- des de diregdo numa revolugdo que nio €a sua, A posigdo de Lé- nin € oposta: diante dessa revolugao democratico-burguesa, cabe a0 proletariado sua diregao ecabe ao proletariado tornar-se pro- tagonista da mesma, Essa posigdio dos bolcheviques deriva de um juizo histérico concreto sobre a burguesia russa e sobre 0 modo através do qual ela se fora formando. Ou seja: a burguesia russa, 0 capitalismo russo se formara a partir da desagregacdo da comunidade camponesa (a obtchina) ¢, por isso, o capitalismo russo era, para falarmos sumariamente, muito ligado as camadas feudais e ao czarismo. Em suma, a burguesia russa era uma bur- guesia débil, que no tinha a capacidade de se afirmar de modo fautdnomo ¢ de pér-se a cabega da revolugdo; ndo tinha a capaci- dade de conduzir a sua revolucdo a solugdes democraticas conse- giientes; terminaria por parar no meio do caminho, no compro- 6 isso com 0 czarismo ¢ com as camadas feudais. Enquanto a luta do proletariado pela liberdade politica é uma luta revolucio- néria, pensava Lénin, a luta da burguesia é em troca uma luta ‘oportunista, jé que tem por objetivo a esmola, a divisdo do po- der com a autocracia ¢ com a classe dos proprietdrios rurais. A tese de Lénin é que, a depender da forga politico-social que dirija 2 revolugo, a revolugio burguesa terd duas possiveis conclusées: uo capitalismo se desenvolverd gragas a uma revolugdo guiada pela burguesia, dominada pelo compromisso, e, portanto, nas condigdes mais dificeis para a classe operdria; ov a revolugao burguesa se desenvolverd sob a diregdo do proletariado, que, po- rém, s6 poderd dirigi-la arrastando consigo a grande massa dos ‘camponeses. Também nesse caso a revolugdo democratica aju- daré, sem nenhuma dilvida, o desenvolvimento do capitalismo, 0s trabalhadores continuario certamente oprimidos pelo capita- lismo, mas 0 desenvolvimento do capitalismo se processaré em {des menos desfavordveis para o proletariado ¢ esse iltimo poderd desfrutar de posigdes mais avancadas para manter e im- pulsionar suas conquistas; encontrar-se-4 em condigdes mais fa- vordveis para desenvolver, na democracia, a luta pelo socialis- Escreve Lénin, em seu famoso Duas téticas da social- democracia: “As objegdes anarquistas, segundo as quais nds re- tardaremos a revolugdo socialista ao nos batermos agora pela re- volugao democratica, respondemos: no, ndo a retardaremos, ‘mas daremos o primeiro passo para ela com 0 tinico meio possi- vel e através do Unico caminho seguro, precisamente através do caminho da repiiblica democratica. Quem deseja ca ‘0 socialismo por uma via que no seja a democracia politica che- gard inevitavelmente a conclusdes absurdas ¢ reaciondrias, tanto do ponto de vista econdmico quanto do ponto de vista politi- co”.? © caminho da revolugio democratica, naquela especifi situagio russa, no é a via mais longa, ¢ sim aquela mais breve ¢ segura para o socialismo; no diminui o ritmo da marcha para o socialismo, mas a prepara e, nos limites do possivel, a acelera, Disso resulta a colocacdo de Lénin sobre a relagio do proletaria- do com a revolugio democratico-burguesa, Ele diz: “Os neo- iskristas ['a corrente de direita no Partido Operdrio Social- Democrata Russo] compreendem de modo radicalmente errado 7 Vit Lenin, Opere complete, Roma, Editori Riunti, 1960, vol. IX, p. 22 © sentido ¢ o significado da categoria ‘revolugdio burguesa’. Em seus raciocinios, surge constantemente a idéia de que a revolugio burguesa é uma revolugio que pode gerar somente o que é van- tajoso para a burguesia. Nada é mais errado que uma tal idéia. A revolugdo burguesa é uma revolugdo que nio sai'dos quadros do regime econdmico e social burgués, ou seja, do capitalismo. A revolugdo burguesa expressa a necessidade de desenvolvimento do capitalismo; nao apenas ela nao destroi as bases do capitalis- mo como, ao contrario, as amplia ¢ aprofunda. Essa revolucdo expressa, portanto, 05 interesses ndo apenas da classe operdria, mas também de toda a burguesia. Dado que, em regime capita lista, 0 dominio da burguesia sobre o proletariado é inevitavel, pode-se dizer com pleno direito que a revolugdo burguesa ex- pressa ndo tanto os interesses do proletariado quanto aqueles da burguesia. Mas é absolutemente absurda a idéia de que a revolu- cdo burguesa néo expresse de nenhum modo os interesses do proletariado, Essa idéia absurda se reduz, ou a velha teoria po- pulista, que afirma ser a -evolugdo burguesa contraria aos int resses do proletariado ¢ que, por conseguinte, nao temos neces: dade das liberdades politicas burguesas; ou se reduz ao anarquis- ‘mo, que condena qualquer participacdo do proletariado na revo- lugdo burguesa, na politica burguesa, no parlamento burgués. No campo teérico, essa idéia esquece os principios elementares do marxismo acerca da inevitabilidade do desenvolvimento do capitalismo sobre a base da produgdo mercantil. O marxismo en- sina que uma sociedade baseada sobre a producdo mercantil € que efetua trocas com as nacdes civilizadas deve ela mesma, num determinado estagio do seu desenvolvimento, ingressar no cami rho do capitalismo. O marxismo rompeu definitivamente com as fantasias dos populistas ¢ dos anarquistas, segundo as quais, por exeinplo, a Russia poderia evitar 0 desenvolvimento capitalista, escapar do capitalismo, etc.” *Temos aqui uma afirmagao hist6- rica muito importante, que explica precisamente toda a coloca- do de Lénin: naquela fase da historia russa, o desenvolvimento do capitalismo ¢ um fato progressista, ¢ nao reacionério, O de- senvolvimento capitalista € necessdrio para quebrar os vinculos da sociedade feudal e, portanto, para desenvolver o proletar do: & a condigdo para que se crie @ possibilidade da revolugéo proletiria edo socialisma, Mas, diz ele, a revolugio democratica 8 thidem, p41. 8 é certamente mais vantajosa para a burguesia, mesmo seé vanta- josa também para o proletariado. Ele observa, porém, que a re- volugao democratica, ainda que nos limites burgueses, precisa- mente porque dé ao proletariado as liberdades politicas, precisa mente porque permite ao proletariado desenvolver suas proprias lutas, é também aquela que, em um certo ponto, faz com que as zrandes massas entendam que a democracia continua a ser, para 0s trabalhadores, limitada e formal enquanto persistit a proprie- dade privada dos meios de produgdo. f: 0 proprio desenvolvi mento da democracia que pée em discussio a propriedade priva- da dos meios de produgio, como obstéculo a uma afirmagao real da democracia, a uma sua afirmacdo que, para as massas popu- lares, no possua apenas um cardter formal. ‘Temos aqui, assim, 0 modo de raciocinio dialético de Lénit apés ter afirmado que, por um lado, a revolugo democrético- burguesa € mais vantajosa para a burguesia embora seja também vantajosa para o proletariado, logo em seguida, por outro lado, diz que ela na realidade & mais vantajosa para o proletariado do que para a burguesia, j4 que a burguesia ¢ obrigada a temer 0 de- senvolvimento de sua propria revolucdo, ¢ obrigada a temer um desenvolvimento de si mesma que ponha em perigo 0 poder ¢ @ propriedade privada. O proletariado, em troca, retira de tal re- volucao a tinica possibilidade de avangar para o socialismo, E Lénin afirma: “A revolugdo burguesa, portanto, apresenta para o proletariado as maiores vantagens; a revolugdo burguesa & ab- solutamente necesséria no interesse do proletariado. Quanto mais for completa e decisiva, quanto mais for conseqilente, tanto mais 0 sucesso do proletariado na sua luta contra a burguesia e em favor do socialismo estard assegurado”.” Temos aqui a relacdo democracia-socialismo: 0 desenvolvi- mento da democracia, inclusive nos limites burgueses, aparece como condig&o de luta e de passagem ao socialismo, “Essa con- clusio poderd parecer nova, estranha e paradoxal t@o-somente Aqueles que ignoram o a-bé-cé do socialismo cientifico; ¢ dessa conclusio deriva, entre outras coisas, a tese segundo a qual a re- volucio burguesa, num certo sentido, ¢ mais vantajosa para o proletariado do que para a burguesia. Vejamos em que sentido preciso esta afirmagao & incontestavel: & vantajoso para a bur- apoiar se contra 0 proletariado em alguns residuos do uc 8 thidem. p. 42 passado, como, por exemplo, na monarquia, no exército perma- nente, ete. € vantajoso para a burguesia que a revolugao burgue- sa nao destrua de modo muito radical todos os residuos do pas- sado, mas que deixe subsistir alguns deles; em outras palavras: que a revolugdo nao seja inteiramente conseqiiente e nao se reali ze até as dltimas instdncias; nao seja resoluta e implacivel[ esses motivos reaparecerdo na analise que Gramsci fara do Rivorgi- mento italiand) . Os social-democratas expressam freqtientemen- te tais idéias de modo bastante diverso, dizendo que a burguesia trai a si mesma, trai a causa da liberdade e € incapaz de um de- mocratismo conseqliente, Para a burguesia, & mais vantajoso que as necessérias transformagdes no caminho da democracia reali- zem-se de modo mais gradual, mais lento, mais prudente, de modo menos resoluto, mediante reformas, ¢ nfo por meio de uma revolugdo; que, com tais reformas, proceda-se do modo mais cauteloso possivel em face de respeitaveis instituigdes do feudalismo, como, por exemplo, a monarquia; que essas trans- formagées contribuam 0 menos possivel para desenvolver a acéo revolucionéria, a iniciativa e a energia da plebe, ou seja, dos camponeses e, sobretudo, dos operdrios...” (Lénin se refere as reformas concedidas “pelo alto”, tendo em vista desviar 0 desenvolvimento conseqilente da revolucio, Nao fala aqui das reformas que o proletariado propde como ele- mento integrante da sua luta revolucionadcia.) Ha em Lénin a afirmagdo de que existem diferentes tipos de democracia até mesmo no Ambito burgués, ¢ que tem grandes conseqiiéncias para o proletariado o tipo de democracia burgue- sa que se realiza efetivamente. Essa realizacdo depende, em me- dida substancial, da presenga do proletariado, do papel que 0 proletariado assume no processo da revolugdo democratico- burguesa. Disso resultam outras afirmagdes de Lénin: “A pro= pria situacdo da burguesia como classe gera inevitavelmente, na sociedade capitalista, a sua inconseqUéncia na revolugio demo- critica. O proletariado, como classe, pela sua prépria situagio, é obrigado a ser conseqiientemente democritico. A burguesia olha para tras, temendo 0 progresso democritico, que ameaca_aumen- : do proletariado;. proletariado nada tem a perder a 10 sbidem, pp. 43 ess. lo seqilente em suas transformagdes democraticas, tanto menos se timita Aquilo que & dil apenas & burguesia; quanto mais a revo- lugio burguesa é conseqiiente, tanto mais assegura vantagens a0 proletariado © aos camponeses na sevolugio democratica. O rmarxisnio ensina ao proletariado nio que se afaste da revolugio bburguesa, ndo que Ihe seja indiferente, nfo que abandone sua di- reco & burguesia, mas, wo eontririo, que dela participe do modo mais enérgico, que lute do modo mais resoluto por uma demo- cracia proletéria conseqiiente, por levar a cabo a revolugio..." Disso resulta a necessidade da hegemonia, isto é, da capaci- dade dirigente do proletariado na fase da revolugéo democréti- co-burguesa. Hé aqui uma diferenga de significado entre Grams- cie Lénin, porque Gramsci ~ quando fala de hegemonia ~refere- se por vezes a capacidade dirigente-enquanto outras vezes pre- tende referir-se simultaneamente diregdo ¢ 4 dominacio. Lé- nin, ao contrério, entende por hegemonia sobretudo a fungao di- rigente. O termo “hegemonia” aparece em Lénin, pela primeira vez, num €scrito de janeiro de 1905, no inicio da revolugao. ‘Diz ele: “Segundo o ponto de vista proletario, a hegemonia pertence 4 quem se bate com maior energia, a quem se aproveita de toda ocasido para golpear o inimigo; pertence aquele a cujas palavras correspondem os fatos € que, portanto, é 0 lider ideolégico da democracia, criticando-lhe qualquer inconseqiiéncia.” * Capta- se claramente o elemento da decis&o, da conseqiiéncia na acdo revolucionaria, como condi¢g’o indispensdvel a hegemonic Sublinho também que aqui se afirma que, as palavras, devem corresponder os fatos. Ou seja: deve existir aquela unidade de teoria € agio sobre a qual Lénin insiste, como também o faz Gramsci. Sem essa unidade de teoria ¢ agdo, a hegemoni possivel, porque ela s6 se dé com a plena consciéncia tedrica € cultural da propria ago; com aquela consciéncia que & 0 tnico modo de tornar possivel a coeréncia da agdo, de emprestar-Ihe uma perspectiva, superando a imediaticidade empirica. Portanto, temos aqui.a_hegemonia entendida ndo apenas mas também como diego moral, cultu- 11 thidem, p43 12 Vil Lenin, Opere complete, ed. cit, 1961, vol. VIIL, p. 66 130 termo ideologia nfo assume em LEni 0 sentida negativo, de falsa conscién- ia, que possui em Marx e Engels, indicando antes a conscidncia de classe ul ‘Ademais, em Duas téticas da social-democracia, ha um pon- to iluminador para a compreensio da nogio leniniana de hege- monia: a direita da social-democracia expressa 0 temor de que, se 08 camponeses entrarem em massa na luta revoluciondria, a burguesia se espantard e, em conscqiéncia, retirar-se-& da'luta revoluciondria, com o que essa perderé em amplitude. A ampli- tude da luta revolucionéria € dada, para a dircita da social- democracia, pela presenga da burguesia. Consiste nisso 0 rebo- quismo da direita do partido operdrio russo em relagdo a bur- gucsia. Para Lénin, as coisas se manifestam de modo contrario: quanto mais a classe operdria arrasta consigo, os camponeses, tanto mais se ampliam substancialmente - sobretudo numa ciedade tipicamente camponesa, como a russa ~ as bases sociais da revolugio. Por isso, ele diz: Se nos deixéssemos guiar, ainda que sé parcialmente, ainda que s6 por um instante, pela idéia de que a nossa participagio possa obrigar a burguesia a abandonar a revolugio, chegariamos com isso a ceder completamente a he- gemonia da revolucao as classes burguesas.” "* Toda a colocagio que encontramos em Lénin quanto a rela- gdo entre revolugaio democratica ¢ revolugao proletaria ¢ resulta do nao de uma teorizacdo abstrata, mas algo ligado a um preciso julgamento historico sobre a Russie ¢ sobre 0 desenvolvimento do capitalismo na Russia, sobre o carter que a revolugdo demo- critico-burguesa assume naquele pais. Veja-se, por exemplo, @ discussio sobre a participagaio ou ndo dos social-democratas num govern democritico-burgués 20 lado de forgas burguesas. A direita social-democrata ¢ contriria a tal hipdtese: a social- democracia no deve assumir a responsabilidade de dirigir a re- volucdo e, além do mais, em colaborago com forcas democréti- co-burguesas. Lénin tem opiniao oposta: pode ser possivel, util © necessaria a participagio de social-éemocratas no governo junto com forgas democratico-burguesas, a depender de certas condi- ‘qdes programaticas, da autonomia da social-democracia, do Controle do partido sobre a atuagio dos ministros social- democratas, com 0 objetivo de consolidar os resultados da revo- lugiio e melhor defendé-los. Ou seja: deve-se atuar ndo apenas “por baixo”, mas também “pelo alto”; “por baixo” sempre, “pelo alto” quando é possivel. Lénin diz que @ tese segundo a 14 Vil. Lenin, Opere complete ed. cit vol IX, p. 84 12 qual deve-se atuar apenas “por baixo” é uma tese anarquista Ele mostra como jai Engels a considerava desse modo © a recusava, [A direita social-democrata se apdia na autoridade de Plekhénov. © qual afirma que - durante a revolucio de 1848 na Alemanha Marx jamais disse que os comunistas deviam participar no go- verno ao lado de forgas democritico-burguesas. Lénin, em res- posta, pratica uma andlise concreta das situagées historicas: da Situagdo da Alemanha em 1848 e da situagao histérica concreta da Russia em 1905. E desenvolve as seguintes observagdes: Marx se refere a uma situiago na qual a revolug4o burguesa chegou 20 seu apogeu e foi derrotada; refere-se a uma situagio na qual a classe operdria esté pouco organizada, situada a reboque da bur- jguesia e niio desfrutou de autonomia nem politica nem organiza- tiva, Portanto, para Marx, a tarefa principal consiste em con- quistar a autonomia politica do proletariado, em dar-Ihe uma organizagio independente. Por isso, ele no podia de modo al- gum colocat a questio da participagdo no governo. A situaglo russa, ao contrério, € diferente: a revolugio russa estd em ascen- sio (ele escreve em 1905) ¢ o proletariado é a parte mais ativa na Juta revolucionéria, O proletariado j4 tem uma organizagao sua, ainda que débil: a social-democracia russa. Portanto, coloca-se 0 problema de fazer avangar a revolugdo ¢ de consolidar seus re- sultados, © que pode tornar possivel, em determinada situagéo, inclusive a participagio no governo. Ele diz: “O Avante! 0 jor- nal dos bolcheviques) fundamentou sua afirmagao [ favoravel a ‘uma eventual participagdo no governd] mediante a anélise da si- tuagio real”; " e, para Lénin, é esse 0 método correto. Ele sem- pre repete que “a andlise concteta da situagéo concreta ¢ a alma viva, a esséncia do marxismo”, Nao hi marxismo fora-dessa-ca- pacidade-de-captar-aconcreticidade-histériea, observa: “Marx nao conhecia essa nossa situagio ¢ no podia se referir a cla; portanto, nossa andlise no pode ser nem ratificada nem desmentida tdo-somente por meio das cita~ goes de Marx; mas Plekhnov nao diz. uma s6 palavra sobre as condigdes concretas”, “ Nao basta citar Marx; 6 preciso analisar as diferencas entre aquela situaglo e a nossa situagdo especifiea, para ver of elementos novos que devemos introduzit na coloca- io de Marx. E é precisamente isso que Plekhanov nao faz. Ele 15 V.L. Lenin, Opere complete, ed. cit, vol. VII, p. 354 16 thidem, pp. 354 638 13 ‘do diz sequer uma palavra sobre a condigio concreta; ora, & pre- cisamente dela que se deve falar. Mary nada nos diz, nem contra nem a favor; por isso, temos de usar nossa cabeca. Com efeito, Lenin fala da necessidade de um desenvolvimento auténomo do marxismo na Riissia, tendo em vista a originalidade da situagao russa; reage com vivacidade contra os que afirmam que os $o- democratas russos devem se apoiar na autoridade de Marx para enfrentar os problemas da Russia. ble responde: nio_-nds- mos 0s métodos do maraismo. paracompreender a siluagio Fussa, mas nao nos prendemos necessariamente as formulacoes de Marx, que sto ligadas a outras situagSes histéricas-A-preocu: pagio de Lénin, portanto, & analisat a situagao concreta, & deter- minar a especificidade histérica. II. PRESSUPOSTOS DO CONCEITO. DE HEGEMONIA EM LENIN Devemos agora examinar quais sio a base ¢ 0s pressupostos do conceito de hegemonia em Lénin, Ou seja: que anélise da so- ciedade russa edo desenvolvimento do capitalismo na Riissia 0 conceito de hegemonia the permite fundamentar, niio de modo abstrato, mas na investigagéo concreta da especificidade histéri- ca da Russia, Lénin ingressa no movimento operdrio antes da constitui- io do Partido Operirio Social-Democrata Russo, em torno de 1892-1893. Tinha ento pouco mais de vinte anos ¢ naquele mo- mento, em plena luta contra os populistas (narodniki), Plekha- Nov era a figura mais autorizada entre os marxistas russos. A po- sigdo dos populistas, ainda que de modo muito esquematico ¢ sumétio, pode ser assim definida: ndo existe na Russia um espa- 0 adequado para um desenvolvimento efetivo do capitalismo, Com efeito, predomina na Riissia a economia agricola; e a utili zagao da propriedade rural é condicionada, por um lado, pela grande propriedade fundiéria dos nobres e, por outro, pela obt- china, ou seja, pela comunidade camponesa, na qual predomina 4 propriedade comum dos camponeses sobre a terra ¢ uma espé- cie de relativa autarquia econémica da aldeia. Tendo em vista os limites que a propriedade comum coloca i propriedade privada da terra, ela impede, por um lado, o desenvolvimento do capita- lismo e, por outro, serve de base para a passagem direta da ex- ploracdo coletiva ao socialismo, Na concepgao dos populistas, a obtchina, a comunidade rural, facilitard na Russia a passagem 40 socialismo, sem que essa deva se processar através do capitali mo. O capitalismo seria, portanto, para os populistas, um desvio do desenvolvimento natural da Ruissia e, como tal, deve ser com- batido © rechagado. Séo os camponeses os protagonistas da ransformagio social; cabe aos intelectuais, intelligentsia, escla- Is Posbe é-los sobre sua fungao histérica, imdo“até-o-povo"" ~tnten- ndo-se por “povo", na Riissia-de-entdo,-essencialmente os ~camponeses (disso-decorre-o-termo ““populistas”) Lenin se associa a polémica contra os populistase destaca 0 método com o qual Plekhanov os combate, um método que ele considera correto do ponto de vista marxista. Com efeito, Plekhanov nao afirma que ~ conforme as leis gerais de desenvol- vimento da sociedade, tal como sio descritas em O capital de Marx ~ o capitalismo deva necessariamente desenvolverae na “77 Russia; se Plekhdnov raciocinasse desse modo, diz Lénin, dar- 4 ‘nos-ia uma interpretagdo e uma aplicagéo dogmiticas do mar- xismo. O marxismo se tornaria uma espécie de filosofia da isté- ria, que deduz os desenvolvimentos histéricos por via concep- © tual, de modo abstrato, ao invés de investigar como as coisas se \S processam realmente. Ao contrério, Plekhinov emprega corre-~ tamente 0 método do marxismo, jd que investiga concretamente, « na situagio russa, se o capitalismo se desenvolve ou no. A res. posta documentada de Plekhanov é: sim, o capitalismo se desen- () volve; ¢ essa resposta é a mesma de Lénin: de fato, 0 capitalismo se desenvolve. O marxismo, portanto,€ usado nao para delinear «2 uma espécie de filosofia da histéria, que prevejatodos-os-desen- volvimentos presentes ¢ futuros, mas sim - como diz. Lénin clara- niente enquanto método para investigar a realidade de um pro- > cesso real especifico. ° ~~ Lénin comega a formular uma primeira resposta num traba- tho de 1893, 0 primeiro de seus escritos que nos chegou as maos; le tinha, nessa época, vinte e trés anos, O trabalho se intitula A Fazenda camponesa no sul da Riissia; trata-se de um texto onde a ‘maturidade teérica de Lénin ja se revela plenamente e onde 0 dominio do método do marxismo é completo. Lénin afirma que 2 comunidade rural esta se desagregando, que os camponeses mais ricos adquirem como propriedade privada lotes de terreno nas propriedades dos senhores feudais. Assim, por um lado, acu- mula-se a riqueza nas mos dos camponeses ricos, que vio ad- Quirindo mais lotes; por outro lado, uma série de familias campo- esas perdem a terra, deixando de ser proprietarias. Formam-se dese modo os assalariados ¢ os trabalhadores agricoles que so Pagos com salirio em moeda. Pela primeira vez, portanto, a moeda ingressa de maneira significativa.qa economia rural rus- sa, qué até entéo era umia economia natural)Sendo assim, ndo se pode dizer 0 que dizem os populistas,owseja, que o empobre mento ¢ a desagregacio da comunidade camponesa :orna im. 16 -volvimento do capitalismo na’ Russia do desenvolvimento do possivel o desenvolvimento do capitalismo na Russia, jé que « verdade é precisamente o inverso: a prépria desagregagao da comunidade rural e a criagdo dos assalariados que incrementa a circulagdo monetaria, que fornece a primeira base para o merca- do capitalista, Trata-se de um conceito que Lénin desenvolverd ¢ documentara, de modo amplo e orgénico, em seu livro O desen- volvimento do capicalismo na Riissia, publicado em 1898, Deve-se observar como os primeiros trabalhos de Lénin so de anilise econémico-estatistica, de documentagio sobre a espe- cificidade russa. O desenvolvimento do capitalismo na Riissia for- nece 0 quiadro geral nao apenas da desagregagio da comunidade rural, mas do modo pelo qual o artesanato camponés comeca a trabalhar néo mais para satisfazer as necessidades da familia ou para a troca in natura entre camponeses, porém tendo agora em vista os mereadores que encomendam os trabalhos a domicilio e adguirem os produtos para vendé-los; desse modo, o artesanato se liga, através da agricultura que vai ingressando jé na fase mer- cantil, com a indstria manufatureira, enquanto essa indistria, or sua vez, liga-se ulterior mente com a moderna indéstria m c€nica que nasce nas cidades. Por conseguinte, o mercado capi talista na Rissia se forma no campo. Esse ¢ 0 modo russo, ¢ apenas russo - observa Lénin -, pelo qual se desenvolve o capitalismo. F.isso 0 que distingue o desen- pitalismo-na-Inglateffa, na Alemankia, na Franga, etc; 6 a espe- cificidade histérica da Riss Nessa situago, o capitalismo é na Rissia um fato progres- sista, ainda que seja opressivo para as massas trabalhadoras, operirias © camponesas, jé que libera as forcas produtivas, quebra os vinculos feudais que impedem seu desenvolvimento, forma o proletariado. Esse desenvolvimento das forgas produti- vas, embora sob forma capitalista, est4 na base da revolugdo de- mocritico-burguesa que constitui na Russia o terreno mais avangado para a luta do proletariado ¢ para o desenvolvimento dessa luta no sentido do socialismo. Diante dessa situagao, a luta do proletariado deve explicitar-se no terreno politico, naquele terreno politico que é circunscrito, definido, indicado pela con- sreta situagio russa. Lénin escreve: “‘A luta da classe operiria ‘ussa pela prdpria emancipagioe uma lute pollica,eseu prime 10 objetivo €a conquista da liberdade politica. Por con: -guinte, © Partido Operdrio Social-Democrata Russo, sem separar-sé do movimento operdrio, apoiard qualquer movimento social dirigi- 0 contra © poder absoluto do governo autocritico, contra a classe da nobreza agréria privilegiada e contra todos 08 vestigios da servidao da gleba ¢ da divisio em castas, que limitam a liber- dade de concorréncia”. ' A liberdade de concorréncia é conside. rada um fato progressista diante do mundo feudal russo; existe: Portanto, uma relagdo entre a emancipagio social dos trabalha dores € a Iuta politica, a libertagao Politica deles. A luta politica é lute contra um determinado tipo de Estado; & ago sobre o Es. tado, mesmo quando o Estado & um Estado czarista, E tanto & assim que Lénin escreve: “Q.que-quer dizer que a luta da classe operiria € uma luta politica? Quer dizer quie a clisse operiria do pode lutar pela prépria emaneipagao se nio consegue exer. a influéncia sobre af quest0es Uo Estado; sobre-a direza ‘do EaudS-mbresteoremdgoele oe Estamosn08 anos Roventa do século-passado;-estamos-diante do: Estado-caarisia ‘Mas;mesmo-nesse caso; aupiu politica incide sobre ‘O comporta- mento do Estado_c.inelusive-sobre a ei \agdo.das. leis, Com essa breve mengio a andlise que Lénin nos fornece do desenvolvimento do capitalismo na Russia, quero dizer que © conceito de hegemonia do proletariado é para ele concretamente fundado sobre a investigacao da especificidade historica russa sobre a definicdo das tarefas politicas do proletariado, Mas, en- tre o inicio dessa investigagao de Lénin sobre o modo pelo qual se desenvolve o capitalismo na Rissia (@ eserito de 1893 ao qual me referi) e o tratamento mais maduro do mesmo. tema (O desen- volvimento do capitalismo na Rissa, de 1898), coloca-se um mo. mento de generalizacao tedrica.da maior importancia, Trata-se do escrito O que sao os amigos do pave e como lutam contra s social. democraas, que é de 1894, Deter-me-ei apenas sobre um aspecto desse trabalho, ou seja, precisamente sobre a nogdo de formagdo econdmico-social. E uma nogao que se encontra em Marx; e, para um estudo mais aprofundado da mesma, envio ao ensaio de Emio Sereni De ‘Marx a Lénin: a categoria da formacéo econdmico-social *, Sereni observa como Marx Passou do conceito de “forma de sociedade”, forma social, que €0 termo usado na /deologia IY. L Lénin, Opere complete, ed. cit, vol. th, p. 86, 2 Ihidem, p. 107. 3 No caderno de Critea marsistainituledo Lénin, ebrico ¢ dirigenterevolucion nérto, de 1970. | légica. E, por isso, afirma Marx: “Nao é a consciéncia dos ho- alemd, de 1845, para aquele mais complexo de “formagdo so- cial”, chegando também ao uso da expressio “formagao econd. mica da sociedade”. Entre “forma da sociedade” ¢ “formacio a sociedade”, hd uma diferenga que deve ser sublinhada: forma é uma expressio que indica uma realidade estatica, estabeiccida, enquanto formacdo indica um processo, um desenvolvimento, Marx aperfeicoa o proprio pensamento precisamente no sentide de indicar o processo, e néo 0 momento estatico. A nogao de for, ‘magdo econdmico-social se encontra no famoso Prefécio a Com, tribuigdo 4 critica da economia politica, de 1859. © que entende Marx por formagto social? Marx entende uuma fase do desenvolvimento da sociedade que se distingue das demais pela estrutura econdmica predominante em tal fase, ou seia, pelas relupdes de produgio e de troca que caracterizam essa fase do desenvolvimento. Teremos assim uma formagdo ceond. tmico-social feudal, caracterizada por relagGes de produgio e de {roca de tipo feudal; teremos uma formacdo econdmico-social capitalista, caracterizada por aquelas leis que caracterizam tal sociedade, pela predomindncia das relagdes de producao ¢ de {roca ou pela forma de propriedade eapitalista dos meios de pros ducio. Recordo rapidamente esse celebérrimo Preficio de 1859: 5'Na produgio social de sua existéncia, os homens entram em re, lagdes determinadas, necessirias, independentemente da sua vontade, em relagdes de producdo que correspondem a um de. torminado grau de desenvolvimento das forgas produtivas mate. riais”. Os homens entram nessas relagdes de produgdo ou formas de propriedade gragas a uma lei objetiva do desenvolvimento seondmico, que € independente de sua vontade e de suas opgdes aubjetivas, jd que & ligada ao desenvolvimento das foreas prod. tivas. Essa relagdo de produgdo - diz Marx -é a estrutura, a base real, sobre x qual se eleva a superestrutura politica, estatal, ideo. ens que determina seu modo de sef, mas siti-o ser social dea! | homens” = a, social na-qual eles | BS sut'worsciéncia”. Portanto, o miedo dé pensar, @ consciewsia: "uma superestrattra dessa base econdmica. “Nas relagdes de Producdo, geradas pelo desenvolvimento das forgas produtivas, {em lugar o desenvolvimento das préprias forgas produtivas.™ Ou seja: as relagdes de producio capitalistas incrementam o de. senvolvimento das forcas produtivas do capitalismo: o proleta. Fiado, as mAquinas, as fontes de energia, etc. Mas hi um ponto no qual as forcas produtivas, desenvolvidas a pert dessas rela, 19 Fremy es | Cae es Trente Nor {GBes de produgio, passam a se por em conffito com tais relagdes de produgo. Nesse ponto, determina-se uma crise econémica, social e politica, A sociedade entra num periodo de perturbagdo revolucionatia Por conseguinte, Marx indica em todo sistema econdmico dois elementos: as forcas produtivas (trabalhadores, maquinas, Fontes de energia, matérias-primas) e, em seguida, as relagdes de rodusio, ou sejt, do Angulo juridico, as relagBes de proprieda- le, Esses dois elementos sio intimamente relacionados, mas en- tram em contradiedo: quando isso ocorre, tem lugar a crise revo- luciondria, 0 abalo da base econdmica, 20 qual corresponde um abalo andlogo da superestrutura politica, estatal, ideoldgica, Portanto, a visio de Marx dindmica ¢ dialética, de desenvolvi- mento da sociedade através dessa contradicio entre forgas pro- dutivas ¢ relagdes de produgdo. Essa contradigio contém em si a mediagao entre os dois elementos que a compdem, isto é, a poss bilidade de superar a prépria contradigio. Na sociedade capita- lista, o mediador ¢ o proletariado, principel forea produtiva. De fato, & 0 proletariado que torna possivel a superagdo da contra: digdo que se determina na sociedade capitalista entre forgas rodutivas e relagdes de producio, com o cbjetivo de conduzir a uma nova sociedade comunista. Desse modo, o elemento dind- mico por exceléncia esté nas forcas produtivas; as forgas produ- tivas s#o 0 elemento do progresso, do desenvolvimento, Voltando a Lénin, vemos que em outro dos seus escritos, imediatamente posterior a Quem sio os amigos do povo, isto 6, em Sobre o romantisino econémico, ele observa que os populistas = como ja havia feito 0 economista Sismondi ~ no compreen- dem a fungi progressista das forcas produtivas, Eles estdo dis. Postos a considerar as maquinas um fato positivo, mas até o Ponto em que o desenvolvimento tecnolégico nao determine o desenvolvimento capitalista. Nao compreendem, observa Lénin, como as duas coisas sio inseparaveis ¢ como, na situagio russa, © desenvolvimento das forcas produtivas se traduz necessaria. mente em desenvolvimento do capitalismo. De modo que, recu- sando © capitalismo, recusam a0 mesmo tempo 0 desenvolvi- mento das forgas produtivas. Sismondi, em sua critica ao capita- lismo, confunde relagdes de produgio ¢ Forgas produtivas e, con- denando junto com as relagdes de produgao capitalistas também © desenvolvimento das forgas produtivas, cai numa posigio ro- mAntica, sonhando com uma sociedade de tipo pré-capitalista. Na realidade, sta ideologia € reacionéria. 20 A argumentagao & muito atual, porque faz pensar em Mar- cuse, Marcuse apresenta uma face revoluciondria quando critica, de modo eficaz ¢ bastante penetrante, 0 atual desenvolvimento do capitalismo; mas apresenta, em seguida, uma face reacioné- ria, quando envolve, na critica a0 capitalismo, o desenvolvimen- to das forgas produtivas, 0 mundo industrial em geral e, portan- to, termina por deixar de lado a consciéncia da fungao hist6rica, revolucionaria, do proletariado. Por conseguinte, as relaydes de producao, o tipo de proprie- dade caracterizam uma determinada formagio econémico- social. AS relagdes de producao capitalistas caracterizam a for- macdo econdmico-social capitalista. Com efeito, no Preficio de 1859, Marx conclui com a seguinte passagem: “Em grandes li- rnhas, 08 modos de produgio asidtico, antigo, feudal e burgués moderno podem ser designados como épocas que marcam o pro- cesso de formagiio econdmica da sociedade”. H uma correspon- déncia entre modo ou relacio de produgao ¢ formago econdmi- co-social da sociedade: 0 que caracteriza a formagaa econdmico- social da sociedade é 0 modo de producéo que predomina na fase em questdo e caracterizs toda a vida social, explica todos os vinculos sociais ¢ permite compreender todos os momentos da vida da sociedade. Em seu ensaio put em Critica marxista, Sereni obser- va que mil Internacional, partcularmente em Kautsky ¢ Plekhanov, 0 conceito de Tormhagao econdmico-social desaparece ese anula haquele de relages ou modos de produgao, que sa0 0 elemento caracterizador da formago econémico-social, mas no so coisa idéntica a formagio econémico-social, jé que com essa iltima pretendemos designar todo o conjunto da sociedade. Pretendemos designar modos de producao do passado, nao pre- dominantes, mas que sinda subsistem. Pretendemos indicat a es- ‘rutura e a superestrutura; a dase econdmica, as relagées sociais, politicas, a vida cultural, ete, Enquanto na I Internacional o conceito de formacdo econdmico-social entra em eclipse, ou mesmo desaparece, Lénin o retoma de modo pleno. Alids, ele funda 0 cariter cientifico do marxismo precisamente sobre 0 fato de que esse determinou e definiu. a nogio de formagao eco- némico-social. A sociologia positivista, que Lénin tinha: diante. de si, buscara explicar aseis gerais da sociedade-do mesmo modo como se determinam-e-definem.as-leis da natureza, mas nfo conseguira absolutamente determinar essa nogio de forma- eo econdmico-social. Tinha @ pretensdo de ter encontrado a chave de toda a histéria social, de toda a hist6ria mundial, e, na Fonotd. - Fen a per ——— realidade, permanecera no genérico ¢ terminara por constr uma metafisica da sociedade, uma filosofia da hisiéria e nao uma sociologia cientifica, Marx ¢ Lénin, ao contririo, pensam que a sociedade nilo se desenvolve como uma totalidade sem dis tingdes, mas como algo que conhece cortes precisos, determina. dos pelas relagdes de produgio, por fases econdmico-sociais di- ferentes, condicionadas pela emergéncia de diferentes relagoes de Producio e de troca, O mérito cientifico de Marx diz Lénin, con- siste em nos ter dado a chave para entender esta determinada formagdo econémico-social, ou seja, a formagio econdmico- Social capitalista. Lénin escreve textualmente: “Marx fala de lama s6 formacao econdmico-social, da formagao econémico: social capitalista; ou seja, afirma ter examinado a lei de desen volvimento dessa formacio e de nenhuma outra”.* E de obser. var: Marx nos dé a lei da sociedade capitalista e Lénin sublinha que se trata de uma lei de desenvolvimento, ou seja, insiste sobre © carter dindmico das leis dessa sociedade. Lénin cita aquela passagem do prefiicio de Marx a O capital, onde se afirma: “Meu Ponto de vista concebe o desenvolvimento da formagio econd- mica da sociedade como proceso de histéria natural”. Chamo a atengdo para o termo processo, que indica precisamente um de- senvolvimento; ¢ lembro aquela passagem dos Grundrisse onde Marx afirma: “O capitalismo nfo € tanto uma estrutura quanto um processo". Ble, apesar de ter determinado a estrutura do c pitalismo, tende porém a sublinhar o cardter dindmico de fazer= se, de desenvolver-se Mars, portanto, fala de estrutura capitalista; refere-se ~ se quisermos utilizar, ainda que impropriamemte, a terminologia do moderno estruturalismo~a um momento sinerdnieo, de conten porancidade; mas, na realidade, vé sempre a estrutura em seu de- senvolvimento, enxerga-a através da diacronia, da diversidade dos tempos. Na verdade, para Marx, a dstingdo entre diacroni- £0 © sincrénico € impossivel. Dou um exemplo para melhor me explicar. Marx fala, em O capital, da reproducdo simples do capital, ou seja, da reprodugto daquele capital que é consumido. Fala em seguida da reproducao ampliada, na qual se produz uma quantidade de capital maior do que aquela que € consumida. Mas Marx adverte que a reprodue ‘io simples & apenas uma hipdtese tedrica; na verdade, a repro. uo simples niio existe, De fato, se 0 capitalismo reproduzisse 4 Vs Lénin, Opere compete, ed, city vol, p. 131 22 \ | cesso de historia natural apenas 0 capital que consome, morreria; 0 capitalismo vive tio- somente enquanto produz mais do que consome, de modo que, na realidade, existe apenas reprodugio ampliada, Temos aqui, portanto, uma categoria estrutural do capitalismo: a reproducio ampliada, que é a caracteristica estrutural de um devit continuo, indicando uma dindmica permanente do capitalismo. Desse mo. do, a estrutura do capitalismo é, para Marx, uma estrutura em desenvolvimento; ela constitui os tracos distintivos do processo de desenvolvimento capitalist Marx descreve as leis da sociedade capitaista como “pro- d -0.que significa, como pracesso objet sive independenten 1 \imeas, embora se realize gracas a0 trabalho dos homens. Exise, porém, uma diversidade entre a sociedade e a natureza, e que consiste em que as eis da natureza obedecem a outros ritmos. @ outros cortes; no se dividem em formagdes do tipo da formagio econdmico-social. A histria da sociedade, em troca, é escandida pelo desenvolvimento das relagdes de produgdo, das forgas pro- dutivas, é escandida pelas formagdes econdmico-sociais, de modo que as leis que a regulam so certamente-diversas das leis da natureza, embora sojam objetivas e devam ser estudadas abje- tivamente, tal como se estudam as leis da natureza. Isso quer dé er que estamos diante da fundamentagio de uma andlisecienti- fica do desenvolvimento histérico ‘As leis que regulam a economia capitalista nfo s8o as mes- mas que regulam o re "0580 aqui enviar 20 estudo do hstoriador polong Vict Tula} inverdgudoy saseets oe due ele faz uma andlis® bastante mifuciosa dos fatos econdmicos ‘que se verificaram na Pol6nia dos séculos XVI e XVIII, chegan- do a documentar como as leis econdmicas que regulam o regime feudal sio bem diferentes das leis do capitalismo. Para dar um exemplo, Kula observa que, no sistema feudal, hii um impulso no sentido de maiores investimentos na agricultura quando pio ‘am as condigdes do mercado e quando se tem em vista socryuer esse mercado, Na economia capitalista, ocorre o contrario; ou seja, investe-se mais quando o mercado vai bem, quando se ven- de em maior quantidade. Um outro exemplo: 0 aumento dos pregos é, em regime feudal, destavorivel aos investimentos; em regime capitalista, o aumento dos pregos é um incentivo 20 ine vestimento, Trata-se, portanto, de leis econdmicas diversas. A 5 Kula, Teoria economica del sistema feudale, Turia, Einaudi, 1970, 2B pesquisa de Kula é uma confirmagio muito brilhante do concei- to de formagio econdmico-social de Marx. ‘Quando Lénin observa que Marx esiuda e define as leis de uma determinada formacao econdmico-social, nao pretende di zer com isso que 0 método do marxismo seja aplicivel apenas 20 capitalismo e nao a outras formagdes econdmico-sociais. Ao contririo: 0 conceito de estrutura e superestrutura, a relagio en- tre forcas produtivas ¢ relagdes de producio, podem ser aplica- dos as outras formacdes econdmico-sociais. Mas, se quisermos compreender as outras sociedades, n@o poderemos transferir para elas as leis descobertas em 0 capital. Teremos de descobrir novas leis, novas categorias cientificas, Uma série de categorias cientificas que servem para explicar 0 eapitalismo nio servem para explicar outras formacdes econdmice-sociais. Pode-se mes- ‘mo encontrar essas categorias econdmicas em outras formagoes econdmico-sociais, mas serio subordinadas, secundérias; clas se manifestam plenamente apenas na sociedade capitalista, ¢ tio- somente nela € que se tornam categorias cientificas capazes de explicicla Lénin comenta: “Marx nega precisamente a idéia de que as leis da vida econdmica sio i fo arg o-fulutas 20 contranie, cada periodo histérico tem suas ednrias”,* J me refer & concepeao exencialmcate diami- 4 que_Lénin e Marx ten de-formagio econdmico-social. Com efeito, sempre em Quem sa0 05 amigos do povo, diz. Lenin: “O va- lor cientifico dessa investigagio esta na explicagio das leis es- pecificas, histéricas, que regulam nascimento, existéncia, desen- volvimento e morte de um organismo social determinado, bem como sua substituicao por outro organismo superior." O'caré- ist6rico das leis de um organismo social determinado, dado, no genérico. Ele aduz: “Para Marx, importa apenas uma coisa: encontrar as leis dos fendmenos que esté investigando; e, para ele, € importante sobretudo a lei de sua transformagio, de seu desenvolvimento, da passagem dos fendmenos de uma forma para outra, de um ordenamento das relagées sociais para ou- tro”." Na mesma pagina, Lénin escreve que “a sociedade é um organismo vivo em continuo desenvolvimento, e néio algo meca- nicamente concatenado que, por conseguinte, admitisse toda es- écie de combinagdes arbitrarias de elementos sociais singula- 6 Lenin, op. cit, p. 183 1 Ibidem. 8 bidem, p. 162 24 __-Padonassim aplicar a taisrelages 0 eardtercientifico da rettera “ae Fs um ponto fundamental: com efeito, ni res”, E essa a organicidade do conjunto social, fundado sosre as relagécs de producio e de troca, sobre @ relagdo estrutura- superestrutura. : ‘0 desenvolvimento é processo de formacio, de explicitacdo- ¢, posteriormente, de crise e de morte de uma estrutura determi- nada e de determinadas relagdes de producdo. E é precisamente -of Gonceito de estruturque permite uma andlise cientifiza do Conjunto da sociedade; é 0 conceito de estrutura econdmica que permite chegar 4 conceito de formacéo econdmico-social, en- quanto formacao caracterizada por determinadas relagdes de propriedade. Portanto, antes de Marx, faltava um critério de anélise da sociedade e de seu desenvolvimento; a sociedade apa- recia como um conglomerado inexplicavel e misterioso de fatos, do qual se podiam apresentar as mais diversas interpretagoes, de cardter metafisico, especulativo, abstrato. Como observa Lénin, nao se distinguiam os fenémenos importantes dos secundirios, com Marx, em troca, capta-se 0 que é essencial ¢ 0 que & deriva do, 0 que é causa ¢ 0 que é efeito, Escreve Lenin: “O mate-ialis- mo forneceu um critério completamente objetivo, isolandoas re- lagdes de produgio enquanto estrutura da sociedade, € dando a possibil fe aplicar a)tais relacdes aquele critério cientifico geral da reiterabilidade’’/* Ou seja: Marx isolou as relagdes de produgie, isolou-as dos demais aspectos da sociedade a fim de estuda-las, déwodo semelhante aquele pelo qual, por meio da abstracao cientifica, se isola um fato determinado de outros fa- tos com 0 objetivo de definir aquele determinado fendmeno Tio lei cientifica se um fenémeno, definido pela propria lei cientifica, ndo volta a se repetir infinitas vezes segurdo o modo definido por aguela lei, Nesse caso, torna-se possivel for- mular_ um modelo. £ 0 momento indispensivel da abstracio cientifica, daquilo que ~ em 1857, num escrito que Lénin nao co- nhecia, a Introducdo, d-eritca da economia politica = Marx chama de@eterminacdo abstrata, da qual se sobe até 0 concreto, enquanto sinTeSe, Edo miiltiplo. A abstracdo, indispensavel, no é um ponto de chegada, mas 0 ponto de parti Parte-se da abstracio determinada, da categoria cientifica Para Compreender o concreto ¢ para reproduzir na pro- icia a multiplicidade desse conereW; 9 Ibidem, p. 134, Por conseguinte, se fosse impossivel extrair um elemento da formagio econdmico-social, se fosse impossivel extrait ¢ isolar as relagdes de producdo, nao se poderia possuir a chave para en- tender todo o mecanismo, todo o funcionamento daquela forma cio econdmico-social dada. Uma ver determinado-tal mecanis- mo, encontra-se também a reiterabilidade. Marx, no prefaicio de O capital, afirma, refetindo-se & Alemanha: “De te fabula narra- ‘ur; ou seja, aquilo que estou dizendo da Inglaterra, onde se ve~ rifica © méximo desenvolvimento capitalista, vale também — atencdo, Alemanha! ~ para ti. Tu ainda nao experimentaste essas coisas, mas 0 desenvolvimento capitalista - obedecendo a leis {40 objetivas quanto as leis naturais - conduzir-te-4 aos mesmos fendmenos que descrevo a partir da Inglaterra. Aquele “de te fabula narratur’” é previsamente 4 aflrmagio da reiterabilidade, da repeticdo do fendmeno, que torna possivel definié-the a lei. Marx, contudo, no concebgu esse desenvolvimento de modo mécdnico, jé que em 1870 no exclufa a hipstese de que na Rassia fosse possivel passar diretamente da comunidade rural ao socialismo, sem a transigdo do capitalismo, contanto que a Rus- sia conhecesse uma revolugdo que precedesse de pouco a revolu- «do européia, Se a Rissia, ao contrério, continuasse seguindo a estrada jé iniciada, teria de experimentar todas as dilaceragdes e dores do capitalismo. Marx leva em conta 0 concreto histdrico Lénin o levard tao em conta, vinte anos mais tarde, que pord de Jado a hipétese de Marx e reconheceré que, na Riissia, ja esta em proceso o desenvolvimento capitalista, razdo pela qual a alter- nativa proposta por Marx nao é mais atual. Lénin destaca 0 modo pelo qual Marx abstrai a estrutura da formagio econdmico-social, estuda-a isoladamente para com- preendé-la © definir-Ihe as leis, mas ndo para se manter estético na estrutura, e sim para elevar-se dela até 0 conereto © com- preender toda a sociedade em sua unitéria organicidade. De fa- to, diz Lénin: “Esse € 0 esqueleto do capital: tudo consiste, po- rém, no fato de que Marx ndo se contenta com esse esqueleto; que ele nao se limita apenas A teoria econdmica no sentido habi- tual da palavra; que, mesmo explicando a estrutura e a evolugdo de uma dada formacao social exclusivamente por meio das rela- (ges de produgio, ele também investiga sempre e por toda parte as superestruturas correspondentes a essas relagdes de producao, revestindo 0 esqueleto com carne e sangue. O capital mostrou toda a formacdo social capitalista como coisa viva, com as suas 26 { relagées na vida cotidiana, com a manifestagdo conereta do an- tagonismo das classes incrente as relagdes de produgio, com a superesirutura politica burguesa que protege o dominio da classe dos capitalistas, com as idéias burguesas de liberdade, igualdade, ctc., com as relagdes familiares burguesas”. " Para Lénin, a es. trutura é apenas o esqueleto; sem ele, nada compreenderiamos da sociedade; mas, se nos mantivermos no esqueleto, perdere- ‘mos a compreensio do organismo em seu conjunto, Lénin subli- nha o cardter orginico da anilise de Marx, segundo a qual se abstrai para explicar, mas nose confuunde o resultado da abstra- cdo ~a determinagio da estrutura - com a realidade em seu con~ Junto, com a.tolalidade-da-formiaigio econdmico-Social em sua globalidade. A estrutura explica a formacio econdmico-s mas ndo a absorve totalmente em si. Se a estrutura, sendo a de” terminagio de uma realidade objetiva existente (as relagdes de produgo e de troca capitalistas), permanecesse isolada e preten- esse conter tudo em si, encontrar-nos-iamos diante de um pro- cedimento tipicamente idealist, hegeliano, segundo 0 qual a abstracio ( trutura) torna-se uma substincia indepen- dente, wet Be Pr Marx, em troca, a estrututa & deter minada mindda enquanto realidade que existe objetiva- mente ~ a fim de explicar toda a formagdo econdmico-social em seu conjunto e, desse modo, chegar ao conereto, ao miiltiplo. A estrutura esté em fungaio do concreto e eneontra sua realidadeno conereto, Basta pensar no Marx historiador, no Marx, por exemplo, do /8 Brumério, para ver como a sociedade ¢ 0 movie mento hist6rico sao para ele uma realidade plena de conteddo, feita certamente de relagdes de produgio, mas também de parti: dos, de homens individuais, ete. E interessante ver como Lénin responde a objegdo que o po- Pulista Mikhailévski dirige ao marxismo, uma objego habitual ainda hoje, ¢ que consiste em acusar o marxismo de considerar apenas economia «fed tudo economia. “Un elo te ue: para demonstrar que uma teoria & ihfundada, o Sr, Mikhai-_ lvski comega por desnaturd-la, atribuindo-Ihe a intencao absur- da de no levar.em_consideragdo toda a complexidade da vide intial sande na verdade og materiallstas-marxistas foram os primeiros socialistas a levantar a quesiaio dactecessidade de xa minar nfo apenas a vida econdmica, mas todos os aspectos da 10 biden, p. 136, 2 ida social”. " Compreende-se assim como Lénin, que destaca ‘esse elementodo marxismo, essa capacidede de usar o esqueleto, a andlise do esqueleto para compreender todo 0 corpo, da estru- tura para compreender toda a formagdo ezondmico-social, tena retornado aquele conceito de formagio econémico-social que havia sido esquecido pela II Internacional. Ele tem o sentido da corporcidade, da complexidade, da multiplicidade conereta da sociedade que tem diante de si. E por isso que consegue com- preender 0 que existe de especilico na Russia, bem como a razio pela qual as tarefas do proletariado na Riissia se colocam de modo diverso que em outros paises. Ele determina 0 modo pelo qual a formagao econdmico-social capitalista, que ¢ nogdo geral, se especifica na Riissia, de um modo historicamente diverso quele pelo qual se especifica na Alemanhe, na Inglaterra, etc. Creio que Sereni fez bem quando relecionou essas coloca- «des de Lénin com as de Antonio Labriola, Trata-se de uma ex- plicitagdo do pensamento marxista, que ocorre mais ou menos ‘no mesmo periodo: Quem sao os amigos danavo & de 1894, en- _auraiitoxg ensaio de Labriola sobré A coacepeao materialisia da ‘histéria &¥e 1896. Labriola nao tina a menor idéia-de_que exis tise um-eerto Vladimir Uliénov. Lénin, em troca, tomou conhe- cimento de Labriola alguns anos mais tarde ¢ definiu 0 seu en- saio como “excelente”. Numa carta a sua irma, ele diz que esse escrito € “uma defesa muito inteligente” de nossa concepeio. Quando Labriola escreveu esse ensaio, estava empenhado numa dura polémica antipositivista. O positivismo era entio uma corrente de pensamento amplamente dominante na Itéli que havia influenciado profundamente 0 movimento operiio socialista, Sob a influéneia do positivismo, o marxismo se redu- zia a materialismo vulgar, a determinismo econdmico de tipo ‘mecanico. Era esse 0 fundamento ideoldgico do maximalism propaganda do objetivo final, 0 socialismo, mas sem se determi nar o modo conereto de aleangé-lo, j4 que a crise ¢ 0 colapso do capitalismo so fatalmente determinados pelo seu decurso obje- tivo. Espera oportunista do socialismo, portanto, ainda que mascarada com palavras de ordem extremistas ¢ revoluciondt Por outro lado, 0 reformismo concebia a passagem do capitali ‘mo a0 socialismo como resultado de um proceso evolutive na- tural, do qual emergem inevitavelmente, como fato que se torna 1 Ibidem, p. 158 28 pi ANNE i i Si at necessério pelo desenvolvimento das forgas produtivas, determi- nadas reformas que acompanham de modo indolos a passagem. de um regime para 0 outro. Num e noutro caso, a luta politica, a luta social pelo poder estatal, a iniciativa do sujeito revolucioré- rio, a funcio do partido permanee magio positivista, limitava-se a 88 ‘conhecimen- toa constatagio do fendmeno em sua aparéncia, a coagulagio no dado imediato da percepgdo. Mare afirma, a0 contrério, que 6 preciso certamente partir do dado imediato, da percepedo, mas para aleancar aquilo que no se manifesta externamente. Para Mars, “toda ciéncia seria supérflua se a esstncia das coisas e sua aparéncia fenoménica coincidissem diretamente”. " “Temos ciéncia quando se supera o dado imediato cin; iss0 se di mediante um. salto dialético. ~~" Labriola volta-se contra toda redugdo simplista, mecanicis- ta do materialismo, contra toda concepgio que pretenda explicar tudo através da estrutura, anulando as necessirias mediagdes dialéticas da iniciativa politica, da vida cultural. Ele escreve: “Portanto, inclusive a moral, a arte, a religifo e a ciéncia seriam produtos das condigées econdmicas? Ou melhor: expoentes das categorias dessas préprias condigdes? Ou seja: efluxos, ormamen- tos, irradiagdes e miragens dos interesses materiais? Enunciados desse tipo, ou préximos, e assim nus e crus, aparecem hé jé gum tempo na boca de muitos; e funcionam como um edmodo auxilio para os adversérios do materialismo, que costumam util- ziclos como oportuno espantalho. Os preguigosos, que ademais slo muitissimos, mesmo entre os chamados intelectuais, acomo- dam-se prazerosamente & grosseira aceitagdo de tais enunciados, como quem se estabelece com a mente num novo asilo da igno- rancia. Que bela festa e que bela alegria deve ser esta para todos os indolentes! Ou seja: possuir de uma vez para sempre, compen diado em pouquissimas frases, tudo o que existe, para depois re- velar todos os segredos da vida com uma s6 e mesma chave: to- dos os problemas da ética, da estética, da filologia, da critica his- torica e da filosofia reduzidos a um s6 problema, sem muitas do- res de cabega, E, com esse procedimento, os simplérios medio- aparén- 12K. Marg capitate, Roma, Editori Riunti, 1965, Livro 3, segéo 7, cap. 48 CHA tradugdo brasileira: O capital, Rio de Jancico, Ed, Civilizgho Brasileira, 968-1974) 29 eres poderiam reduzir toda a historia a aritmética comercial ¢, no fim das contas, uma nova interpretagio auténtica de Dante poderia nos dar 4 divina comédia ilustrada com as contas das pe- gas de tecido que os astuciosos mercadores florentinos vendiam com tanto lucro para si”. Nao ha necessidade de comentarios. Em outra passagem, esta escrito: “Dizia pouco acima, ao enunciar as formulas, que & estrutura econémica determina, em segundo lugar, a orientagao, ¢, em boa parte de modo indireto, os objetivos da fantasia e do pensamento na produco da arte, da religido e da ciéncia. Dizer outra coisa que ndo isso e mais do que isso seria como ingressar voluntariamente no caminho do absurdo". * Ha uma relacao de-| terminante entre modos de producio e luta de classe, Iuta politi- ca e Estado, e, ao contrario, uma mediagao mais complexa em| relagao as superestruturas ideais, como a arte, a religido, a mo- ral, a filosofia, etc. Devemos levar em conia essas articulagdes, bem como 0 modo pelo qual operam sobre esses elementos da superestrutura nao apenas a base econdmica, mas também as lu- } tas politicas, a tradigho, as escolas, ete. ‘Uma altima passagem, a mais incisiva, & @ seguinte: “Por- que o verdadeiro problema é este: nfo se trata de substituir a his- t6ria pela sociologia, como se # historia fosse uma aparéncia que esconde por trds de si uma realidade oculta”. "Aqui o conceito & particularmente profundo. Quem explicasse de modo meciinico ¢ dato todas as coisas com as relagSes econdmicas nio faria mais, na realidade, do que substituir toda a histéria pela sociolo- Bia, ou seja, pela investigagio das leis da formagio econdmico- social, Se 08 elementos nao econdmicos que compdem a histéria ~ como a luta politica, embora essa derive das relagdes de produ- cio, ou como a luta ideolégica, que também, em siltima instan- cia, tem sua base nas relagdes econdmicas - fossem reduzidos imediatamente, de modo mecinico, i estrutura, teriamos preci- samente a redugio da histdria a sociologia, Para Labriola, ndo se trata de reduzir a historia a sociologia, mas sim de entender inte- gralmente a historia, em todas as suas implicagées, e de entendé- Ja por meio da sociologia. Ndo se trata de dissolver a hist 13. A. Labriola, La concecione meterialistca della storia, Basi Laterea,p. 126. [dicdo brasileirs: 4 concepeio maeriatista da histérie, S80 Paulo, Edltora ‘thems, sd) bide, 133. 15: Ieidem, p. 140 30 | economia, mas de compreender a histéria na sua complexidade Fiqueza, através do conceito de relagio de produgio e de troca: “Nao se trata de separar o acidente da substincia, ou a aparén- cia da realidade, ou o fendmeno do niicleo interior, ou como de outro modo diriam os seguidores de um escolasticismo qualquer; mas, antes, de explicar a articulag4o 0 com plexo, precisamente na medida em que é articulago e complexo. Nao se trata de des- cobrir ¢ determinar 0 terreno social somente para mostrar depoi os homens como marionetas, cujos fios sio presos e movidos no mais pela Providéncia, porém pelas categorias econdmi- ". " Nesse determinismo mecinico, com efeito, a fungdo do homem se perde; 0 homem & uma marioneta movida com fios, por esse deus oculto, por essa base ccondmilea que explicaria ma- gicamente todas as coisas e continuaria a ser uma entidade me- a, teoldgica, um outro deus, “Essas categorias econdmicas sio clas préprias resultado de um processo e estiio em proceso, como tudo o mais, pois og homens se modificam quanto & capa cidade e d arte de vencer, Geubjugage transformar e usar as condi es naturais; pois os homens-mudam de énimo e de atitudes, pela reagio de seus instrumentos sobre eles prOprios; pois os ho- mens se modificam em suas respectivas relagdes' de convivéncia & Por isso, dependem de diferentes maneiras uns dos outros. Trata-se, em suma, da histdria, e ndo do seu esqueleto, Trata-se da narragio, eno da abstracao; trata-se de expor e de esbogar 0 Conjunto, ¢ nao apenas de dissolvé-lo e de analisé-lo, Trata-se, para dizé-lo com uma palavra, tanto agora como antes e como sempre, de uma arte". ” Gramsci partiré daqui; partiré dessa luta, que jé era a de Labriola, contra o determinismo mecdnico, concebendo a socie- dade como um todo unitério e organics, explicado certanente a partir da base econdmica e das relagées de pr mas no intciramente redutivel & base econdmica. [sso permite a Gramsci, como permite a Lénin, fundar 0 coneeito de hegemo- nia, Para Lénin, é claro o valor do conceito de formagéo econd- |, que considera a sociedade em toda sua complexida- de, embora explicando-a através das relagdes de produgio e de lroca. Se toda a sociedade fosse reduzida & base econdmica, ndo ‘existitia mais lugar para a iniciativa politica, e, portanto, para a 16 siden, 17 tier. 31 se se desenvolvido, numa fa ‘burguesa, como era aquela d€1805,Lénin, em troca, consegue estabelecer uma relagdo dialética entre iniciativa politica do pro- letariado, consciéncia proletéria ¢ base econdmica; consegue quebrar & esquematica simetria: capitalismo = revolugéo bur- guesa; crise do capitalismo = revolucdo proletaria. Consegue mostrar a articulacao dialética mediante a qual, numa determina- da situagio hist6rica, 0 proletariado pode ser hegeménico mes- ‘mo numa revolugo democratico-burguesa; € 0 consegue preci- samente porque recuperou o conceito marxiano de formagio ‘econdmico-social. E esse, deverto, 0 fudamento do conceito de hegemonia em Lénin, diante da revolugo de 1905, 32 IIL. A INICIATIVA DO SUJEITO REVOLUCIONARIO: 0 PARTIDO ‘Apés ter considerado a sociedade como unidade orginica, como totalidade, apés ter investigado 0 modo especifico pelo: qual se realiza a formago econdmico-social capitalista na Ri sia, Lénin pode examinar concretamente as tarefas do proletaria- do, demonstrar como, na Rissia, no podem ser os camponeses a guiar o desenvolvimento revolucionério, mas é a classe operé- ria quem deve fazé-to. Porém, entre a investigagao do especifico russo e a formula co da teoria da hegemonia, da funcao dirigente do proletariado na revolugdo democratico-burguess, existe um elo conceptual (€ ‘do 56 prético) absolutamente essencial, ao qual devemos nos re- ferir. Esse elo essencial ¢ o partido revoluciondrio, Lénin conclui pela necessidade de fundar na Russia o partido operério revolu- iondrio, ja que ~ através da anélise do desenvolvimento do capi- talismo na Riissia ~ estabeleceu a funcdo revoluciondria, histori- camente fundada, da classe operdria russa e, por conseguinte, a necessidade de formagao de uma sua vanguarda politica. Nao me deterei amplamente sobre a teoria do partido em Lénin,; farei referéncia apenas a dois elementos essenciais, Antes de mais nada, o partido é para Lénin o momento da consciéncia de classe, o momento da diregdo. Lénin estabelece esse cardter do partido em seu famoso es de 1902, Que fazer? Na Russia, em 1901, ocorrera uma gr ve carestia no campo, 20 mesmo tempo em que se haviam desen- volvido, nos anos 1890, impetuosas lutas operérias que, mesmo conservando um forte cardter espoaténeo, ndo eram mais as re- belides dos anos 1880, Nao existiem os sindicatos ¢ 0 partido operdrio, mas tdo-somente grupos de marxi na prim 1a década do nosso século, formare-se~ no movimento operdrio 3 russo ~ a chamada corrente dos economicistas, cuja posigao era, breve ¢ sumariamente, a seguinte: estamos nas vésperas de uma revolugio democratico-burguesa e devemos trabalhar em vista dessa perspectiva, Portanto, fazer politi burauesia que deve realizar sua revolugao. O proletariado deve travar as lutas econdmicas, e, a partir delas, do movimento es- ponténeo da classe operdria, nascerd a consciéncia de classe e se formario as organizagdes do proletariado. Toda a polémica de Lénin é dirigida contra essa concepgio que & renunciatéria na medida em que abandona a politica 4 burguesia e, desse modo, pe 0 proletariado a reboque desse classe, mantendo-o numa po- sigdo subalterna A tese de Lénin é que a classe operdria nao pode chegar es- pontaneamente & conscincia de classe, & consciéncia politica, & tcoria revoluciondria. Para Lénin, conscincia de classe significa dominio da teoria revolucionsria. Ele afirma no Que fazer?: "A. historia de todos os paises atesta que a classe operdria, apenas com suas préprias forcas, tem condigdes de elaborar somente uma politica trade-unionista, ou seja, a convicgdo da necessidade de unir-se em sindicatos, de travar a luta contra os patrdes, de re- clamar do governo essa ou aquela lei necesséria aos operarios, etc.” ' Isso quer dizer que, entregue a prépria espontancidade, a classe operaria toma decerto consciéncia do préprio antagonis- mo em relagdo ao patrio, mas ndo vai além do nivel da conscién- cia sindical, ndo chega ao nivel politico. A fim de que a classe operdria possa ir além do nivel sindi cal, da espontancidade trade-unionista, da reivindicagao imedia- ta, é necesséria precisamente a teoria revoluciondria. Mas a teo- ria revolucionéria no se forma espontaneamente no interior da classe operaria, Diz Lénin: “A doutrina do socialismo surgiu daquelas teo- rigs filoséficas, histéricas ¢ econdmicas que foram elaboradas pelos representantes cultos das classes possuidoras, pelos intelec- tuais. Por sua posicdo, os préprios fundadores do socialismo cientifico contemporéneo, Marx ¢ Engels, eram intelectuais bur- gueses, Também na Rissia, ¢ doutrina tedrica da social- democracia surge de modo inteiramente independente do desen- volvimento esponténeo do movimento operério; surge como re- LV, Lenin, Opere complete, ed, cits vol. Vp. 346, 34 abe a burguesia,eéa as a sultado natural ¢ inevitavel do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais socialistas revolucionérios”.* Lénin parte, portanto, de uma constatagdo histérica: como nasceu a teoria revoluciondria? E um fato que ndo nasceu par- tir dos operdrios, mas de Marx ¢ Engels, intelectuais burgueses; © ‘a mesma coisa ocorreu na Russia. Lénin comega empreendendo, como € de seu costume, uma verificagio dos fatos, uma verifica- Gio, do processo histérico real; e dai conelui que a consciéncia de classe, a teoria revoluciondria, s6 pode ser levada ao proletaria- do “de fora” Podemos aqui fazer duas observagdes. A primeira & que @ cultura revolucionéria nao nasce, para Lénin, do nada, mas nas- ce da posse de todas as aquisigdes da cultura burguesa: a dialéti- ca hegeliana, a economia classica inglesa, as teorias socialistas francesas, ete, A cultura revoluciondria nasce da assimilagao eritica das posigdes mais avancadas da cultura burguesa e de sua superacao, Estamos verdadeiramente diante do conceito hegeliano de superacdo (Aufhebung) enquanto negago e adocio: um negar que € assumir, superar. Estamos diante da negacdo e da supera- Gio dialética, que é também adogdo critica das contribuigdes € dos resultados da cultura burguesa mais avancada. Essa é uma concepcio sobre a qual Lénin voltaré, nos anos 20, quando da sua polémica contra o proletkult, ou seja, contra aquela tendén- cia que pretende contrapor uma cultura proletéria formada dire- tamente na luta de classe a cultura tradicional, quando na verda- de ndo se trata de contrapor uma cultura & outra, como blocos separados, mas sim de uma contraposi¢do que ¢ adoco, supera- cdo critica, dialética. ‘Apés ter considerado como efetivamente nasceu a teoria re- voluciondria ¢ como ela proveio de intelectuais burgueses ~ que, tomando consciéncia das contradigdes da sociedade burguesa, através dos instrumentos criticos fornecidos pela ciéncia, chegs ram a compreender que essas contradigées nfo podiam ser supe- radas senio por via revolucionéria e pela ago de uma classe que ndo a burguesia; chegaram a compreender a fungdo histérica, objetiva, do proietariado (¢ isso ndo s6 porque o proletariado existe, mas porque jd tinham tido lugar lutas proletérias, embora com cardter predominantemente espontaneo) -, Lénin precisa ¢ 2 sider 35 ‘enriquece esse seu conceito da teoria que chega “de fora” ao pro- letariado. E diz: “A consciéncia politica de classe pode ser levada a0 operirio apenas de fora, isto ¢, de fora da luta econdmica, de fora da esfera das relagdes entre operirios © patrdes. O inico campo do qual é possivel se chegar a essa consciéncia €0 campo das relagdes de todas as classes ¢ de todos os estratos da popula- | cdo com o Estado © com 0 governo, o campo das relagdes rect- | procas de todas as classes.” Aqui, como se vé, 0 conceito “de \ fora” torna-se mais rico. Nao se trata apenas de um ‘de fora” n sentido de que provém “de fora” da classe operdria, a partir dos ntelectuais mais avangados, mas sim ‘de fora” da relago ime- | diata entre operdtio e patrio; no sentido de que, indo além dessa relacdo imediata, enxergam-se as relagdes de todas as classes 50- ciais entre si, de todas as classes sociais com 0 Estado, com 0 po- der politico, com o governo, no sentido de que se tem uma visto (plobal da sociedade. Portanto, trata-se de superar - sempre em sentido dialético ~ experiéncia imediata do proletariado. O operirio realiza a experiencia imediata do contraste entre seus interesses e aqueles do patrao; e a luta que disso deriva & a luta entre ele €0 patrio. Mas, para chegar A luta revoluciondria, é ne- cessario ver 0 que esti por tras do patrdo; € preciso, portanto, es- pecificar as classes sociais, os partidos politicos e sua funcdo, compreender que é 0 poder politico, o Estado, entender como © patrio é sustentado por toda uma estrutura social, por toda uma organizacio politica e estatal. Ora, por meio apenas da ex- periéncia direta ndo se alcanca uma visio tdo ampla e organica. ‘Nao se chega a tal viséo por meio de um processo espontaneo. Deve-se verificar um esforco de pensamento ¢ uma capacidade de claboracao conceitual que pressupdem a presenca e a assit lagio de uma série de categorias cientificas, que podem ser atin- gidas t2o-somente num altissimo nivel de cultura, precisamente naquele nivel a que chegou Marx, Hé aqui uma concepedo dialética da superacdo da experién- cia imediata, Marx e Lénin afirmam que o conhecimento parte da percepedo sensivel; e, sendo materialistas, nfo poderiam afir- mar outra coisa, Todavia, nfo param numa visto empirista ou positivista do conhecimento, mas veem que, entre a experitn imediata, a percepgio ea ciéncia, verifica-se um salto de qualida: de, E aquela superagdo da percepgio da qual fala Hegel na Feno- 3 Ibidem, 36 menologia do espirito, Mas, para Hegel, trata-se da percepgao que 0 espirito tem de si mesmo, na medida em que é Idéia que, alienando-se, objetiva-se na natareza, Mais uma vez estamos diante de um circulo vicioso, de uma tautologia. A 1déia nio faz sendo perceber a si mesma, tendo-se alienado naquela natureza que é percebida; trata-se, evidentemente, de uma falsa percep- \ cio. Mas, de Hegel, 0 marxismo assume a consciéncia de que a claboragdo da teoria cientifica € a superagdo da percepgdo ime- diata, Recordemos a famosa afirragto de Marg, segundo a qual / ndo haveria necessidade de ciéncia se 0 fenémeno estivesse intei- ramente contido em seu modo deaparecer. A ciéncia vai alémda | aparéncia do fenémeno, capta conexdes que nio aparecem no) imediato € que tém necessidade de elaboragao critica g Esse momento da elaboragio critica € a teoria revolucioné- ria, Devemos estar atentos, todavia, para um equivoco bastante difundido na interpretagdo de Ltnin, Para Lénin, afirma-se, 0 partido revoluciontrio seria exterior & classe operdria. Lénin jas mais disse coisa do género. Ele afirma que a teoria vem de fora, do exterior, mas que 0 partido & a organizago que liga a teoria revolucionaria com o movimento; ¢, portanto, colocando a teo- | 2; ria revolucionaria em contato com o movimento, permite um ul | ~ terior enriquecimento e desenvolvimento deste ultimo, Dito isso, & preciso levar sempre em conta o momento histé- rico em que foi escrito 0 Que fazer? O proprio Lénin nos adverte, num prefacio de 1907 & republicecdio de seus escritos, quanto & necessidade de ler historicamente os seus textos. “O erro funda- ‘mental em que incorrem os que atualmente polemizam contra 0 Que fazer? reside no fato de que separam inteiramente tal escrito de sua ligagdo com uma situagio histérica determinada...” E acrescenta: “O Que fazer? corrige polemicamente 0 economic ‘mo; considerar 0 seu conteido fora da tarefa que ele se propu- nha errado.” ¢ © Que fazer? foi escrito quando o movimento operdrio rus- so continha poucos elementos de conscitncia politica e ideoldgi- ca, quando havia nele muita espontancidade © quando o partido social-democrate russo estava naicendo. A concepclo da teori que vem de fore refere-se as origens, a génese do partido operd- 4.V. 1. Ltnin, Opere complete ed elt vol. XIU, p. 69 7 rio, endo é evidentemente aplicével a uma época na qual o part do operirio ja esta constituido e tem suas bases na classe oper: ria, A partir de tal momento, a teoria néo vem mais do exterior, mas € elaborada pelo partido do proletariado no interior da prs pria classe operaria, Com efeito, no Esquerdismo, doenca infantil do comunismo, de 1920, Lanin ~ a respeito das condigées para criar a disciplina revolucionéria ~ escreve: “A criagao dessa dis ciplina é facilitada por uma justa teoria revoluciondria, a qual, por sua vez, no é um dogma, ja que se constitui de modo def & tivo tio-somente em estreita conexdo com a pr: mento verdadeiramente de massa e verdadeiramente revolucio- J Jf ni.” Se ele ndo nega que haja elementos de teoria que pree- xistam ao movimento de massa, afirma aqui que o desenvolvi- mento definitivo da teoria ea prova de sua validade se verificam rno contato com 0 movimento de massa ¢ com a experiéncia de ¢ | luta desse movimento. ~" O que deve ser sublinhado ¢ a fato de que Lenin dé grande destaque ao momento da consciéncia, ao momento da teoria, da iniciativa politica, ao momento da diregao e da superagio da es- pontaneidade, Fazer a fevolugao significa dirigi, ter uma di plina, uma organizagao, clareza de teoria, E por isso que, no Que fazer?, ele afirma: “Toda subestimacdo da ideologia socialista, ‘todo afastamento dessa ideologia implica necessariamente forta- lecimento da ideologia burguesa. Fala-se de espontancidade, mas 0 desenvolvimento espontineo do movimento operério faz com que ele se subordine a ideologia burguesa”; ¢ isso precisa- mente porque, na espontaneidade, falta essa elaboragio eritica global, que é 0 momento decisivo da consciéncia de classe. E, portanto: “Nao hé revolugdo sem teoria revolucionéria; nfo ha revolugdo sem um partido que encarne a teoria no movimento das massas, ditija as massas, organize-as, elabore uma estratégia conduza uma ttica”. A revolugdo, portanto, exige.as-condi- ‘edes objetivas, que so determinadas pelo desenvolvimento das, relagdes de produgio, pelo. amadurecimento da contradicio en- tre o desenvolvimento das forgas produtivas as relagdes de pro- dugdo; mas, ao mesmo tempo, a revolugdo exige @ conscincia, a iniciativa politica, a intervenedo do sujeito revolucionétio, ou se- ja, da vanguarda proletaria, Desse modo, tem lugar uma relagao, ‘uma intima conexdo entre sujeito ¢ objeto, a qual nos mostra 5.V. 4, Lénin, Opere complete, ed, cit, vol. XXXI, p. 15, 38 quanto Lénin esta distante de uma visdo mecdnica da relagio en- tre base econdmica e superestrutura politica, quanto esta disten- te de uma interpretagiio mecinica do materialismo marxista, ‘O ouitro elemento da teoria do partido de Lénin que eu gos- taria de sublinhar é 0 fato de que, precisamente por ter o partido uma visio geral de toda a sociedade, das relagdes entre as clas 3¢5, com 0 governo, com o Estado, ete., a sua agdo deve envolver rarios conhecimentos politicos, os social-democratas devem se movimentar entre todas as classes da populacio, devem enviar fem todas as direcdes os destacamentos do seu exército”. A aco revoluciondria se aplica a toda a realidade social, envolve toda a sociedade enquanto unidade orginica, em todos os seus momen tos e-em todos os seus niveis. Isso significa que © proletariado rndo conquista uma consciéneia de classe apenas operando sobre si mesmo, mas Fazendo politica no sentido mais amplo da pala~ ‘ra; vendo todas as conexdes sociais, intervindo em todos os mo- mentos da vida social e politica. Isso me traz & mente uma outra passagem de Lénin, que se refere aquilo que deve ser o jornal re- Voluciondrio proletério, a iskra. Diz ele: “Deve ser um jornal que, Sem esquecer por um s6 momento seu carter de classe € a ‘utonmia politica do proletariado, faga suas todas as exigencias € todas as reivindicagdes democraticas da sociedade [...] € nto se limite jamais a um horizonte estreitamente proletério”. ‘Como se vé, estamos diante do conceito de hegemonia; ¢ diante do conceito de formagio econdmico-social, isto é, da so- ciedade como totalidade. Quando.se determina essa fungio ativa do sujeito revolucionario, do partido, entao se compreende o fundamento da hegemonia. A hegemonia politica do proletaria~ do & possivel no interior de uma revoluglo democritico- burguesa porque, na lideranga do proletariado, esta um partido revolucionério, esté a consciéneia critica do movimento, esta a iniciativa politica e, portanto, nfo esté um simples registro passi- vo do desenvolvimento objetivo da sociedade. A relagto entre economia e politica nao se coloca de modo mec&nico. No se co- Toca corto queriam os economicistas: revolugao burguesa = he- ‘gemonia da burguesia, e revolugio proletéria = hegemonia do proletariado. Numa determinada situacao histérica, como a da Raissia em 1905, pode se verificar a hegemonia do proletariado nna revolugiio burguesa, ja que o proletariado - tendo essa visio global da sociedade - vé a incapacidade da burguesia de levar a cabo e de modo conseqtiente a propria revolugio, ¢ sabe assumir 39 toda a sociedade. Com efeito, Lénin escreve: “Para dar aos “| em seu préprio nome aquelas reivindicagdes democraticas pelas uais @ burguesia nao sabe lutar conseqilentemente. Numa situa- gio objetiva de debilidade ¢ de insuliciente capacidade dirigente da burguesia, 0 proletariado - guiado pelo partido ~ pode.reali- zar a sua fungdo hegeménica. A hegemonia é, na verdade, a su- peracdo da espontancidade do movimento. O partido ¢ sujeito revoluciondrio que nao se limita a regis- trar e a acompanhar o proceso objetivo, mas que intervém no sentido de modificé-lo. f esta uma proposigio decisiva de As duas taticas da social-democracia (1903): *O modo pelo qual os neo-iskristas expdem suas idéias faz-nos recordar as apreciagdes de, Marx, em suas célebres teses sobre Feuerbach, acerca do ve- Iho materialismo estranho a dialética”. A acusagao que Lénin di- rige a dircita é 0 fato de ela se manter presa ao materialismo pré- marxista. Recordemos, portanto, as teses de Marx sobre Feuerbach, A primeira delas diz: “O defeito principal de todo'materialismo até hoje, ineluido o de Feuerbach, é que a objetividade, a realida- de, 0 mundo sensivel eram concebidos apenas sob a forma do objeto ou da intui¢do, mas no como atividade humana sensivel, como praxis, no também de um modo subjetivo™. A critica que Mare ditige ao materialismo tradicional & aquela de ver o objeto como algo em si, contraposto ao sujeito, que 0 sujeito intui sensi- velmente ou contempla, mas que resta desligado do préprio su- Jeito. Nao se vé no objeto a atividade humana sensivel, a praxis ‘que se objetivou; 0 objeto, entdo, ndo é visto subjetivamente. Para Mark, portanto, 0 objeto é algo que certamente existe em si, mas que ao mesmo tempo ¢ determinado e “atuado” pelo su- jeito. © ato de conhecer, portanto, ndo ¢ intuigéo passiva, mas in- tervengdo subjetiva no objeto. Marx prossegue: “Por conseguin- te, 0 lady tivo foi desenvolvido abstratamente, em oposigao 20 materialismo, pelo idealismo, o qual, naturalmente, nfo conhece « real atividade sensfvel enquanto tal”. Portanto, enquanto 0 materialismo teve 0 defeito de n&o ver 0 lado ativo do conheci- mento, mas de conceber o conhecimento apenas como recepgdo passiva do exterior, 0 idealismo tem o mérito de ter desenvolvido © cardter ativo do ato de conhecer, o conhecer como interven- ‘eo, como eriaglo do sujeito, Mas essa intervengio ativa ¢ para 0 idealismo tdo-somente conhecer; é fato especulativo, no tra- balho, transformacko, agdo sobre a sociedade sobre a natureza, 40 Poder-se-ia acrescentar que 0 lado ativo do ato de conhecer é, no idealismo, apenas aparente. “Feuerbach ~ continua Marx ~ quer objetos sensiveis, real- mente distintos daqueles do pensamento; mas ele no concebe a propria atividade humana como atividade objetiva.” Marx, Aqui, nao reprova a Feuerbach 0 fato de conceber o objeto como independente do pensamento; ao contrario, esse ¢ um mérito de Feuerbach com relagio ao idealismo. Enquanto o idealismo ab- sorve tudo no sujeito e perde de vista o fato de que existe um ob- jeto independente, o materialismo de Feuerbach leva em conta a existéncia do objeto, mas nfo vé que a atividade humana é ela mesma objetiva, isto é, atividade que se objetiva, que se torna elemento do ambiente, da sociedade, da natureza. Hé, para Marx, uma continua relagdo entre o sujeito e 0 objeto, na qual tum nao se anula no outro; hé uma continua tensdo dialética dos dois momentos. Lénin parte dessa concepgio do-ato de conhecer. Com efei- to, a passagem que citamos mais acima prossegue assim: “Os fi- lésofos, dizia Marx, limitaram-se a interpretar 0 mundo de modo diferente; agora, trata-se de transformé-lo”. E Lénin con- tinua: “Os neo-iskristas podem também descrever ¢ explicar 0 processo de luta que se desenvolve diante de seus olhos; mas so absolutamente incapazes de enunciar uma palavra de ordem jus- ta. Marchando com zelo mas dirigindo mal, ignorando a fungéo ativa de dirigentes e de guias que os partidos podem desempe- nnhar na historia (aqueles partidos que compreenderam as condi- ‘des materiais de revolucio e puseram-se & cabeca das classes progressistas), eles envilecem a concepcdo materialista da histé- rie." * A direita social-democrata ndo compreende a concepgio materialista da hist6ria de Marx porque nfo compreende a fun- cio do sujeito, Os homens da direita social-democrata fimitam- se a descrever 0 processo objetivo que se desenvolve social ¢ poli- ticamente, mas ndo enuriciam palavras de ordem justas; por isso, sao incapazes de intervir no processo, de orienté-lo, de transfor- mi-lo. Ao invés de intervir, contemplam; ¢ isso porque nfo com preenderam a fungao que os partidos podem e devem ter, ‘Temos aqui, portanto, o partido como sujeito revoluciond- rio que intervém no processo. Mas é preciso observar que Lénin fala dos partidos que compreenderam as condigdes materiais da 6.1, Lenin, Opere complete, e8. cit, vol. IX, p- 36. 4 Jo; ele no se refere, por conseguinte, a0 partide como vontade subjetiva abstrata, como puro voluntarismo, como pura imaginacdo revolucionéria, mas do partido que analisou cientifi- camente 0 dado objetivo € que se move a partir do mesmo. Trata-se, desse modo, do materialismo marxiano entendido ‘ido como materialismo mecénico, que anula a fungao do sujeito, ‘mas como método de anilise da sociedade que permite fundar a acdo revoluciondtia sobre um conhecimento preciso da situago objetiva, A hegemonia se torna possivel, precisamente, a partir da existéncia de uma condigdo objetiva ¢ do seu conhecimento, €, ao mesmo tempo, da iniciativa subjetiva. ‘Se essa é a posigio de Lénin diante da revolugo de 1905, & preciso ver como o conceito de hegemonia retorna em Lenin quando o protetariado no mais se encontra diante de uma revo- lugdo democratico-burguesa, que deve derrotar 0 feudalismo e seus resfduos, mas quando luta numa fase de capitalismo desen- volvido, quando jé estdo eliminados os residuos do mundo feu- dal. Bm 1915-1916, com a guerra mundial jéiniciada ¢ quando o £} movimento operario jé adquiriu plenamente o conceito de impe- ‘e-ialismo, desenvolve-se uma discussao internacional entre a es- querda dos partidos socialistas. Lénin se encontra diante de uma tese que afirma o seguinte: na fase imperialista, 0 capitalismo se internacionalizou a tal ponto que as reivindicag6es nacionais (as reivindicagbes da independéncia nacional, de autodeterminagio - dos povos, etc.) no encontram mais razo de set. E preciso substituir @ reivindieago da autodeterminagio dos povos pela luta revolucionaria do proletariado contra o eapitalismo, A res- posta de Lénin & a seguinte: “O imperialismo significa superago dos limites dos Estados nacionais por parte do capital, significa 5 extensio e agravamento da opressio nacioral sobre uma nova

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