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HARLENE ANDERSON Diretora do Instituto Galveston de Houston HAROLD GOOLISHIAN Ex-diretor do Instituto Galveston de Houston, falecido em novernbro de 199), Traduga MARIANA CAMARGO O CLIENTE E 0 ESPECIALIST/ UMA ABORDAGEM PARA TERAPIA A PARTIR DE UMA POSIGAO DE NAO SABER The client is the expert: a not-knowing approach to therapy ‘APRESENTAGAO. Em novembro de 1991, aos 67 anos, morria Harold Goolishian — um dos pioneiros da terapia de familia e criador de um dos trabalhos mais revoluciandrios de todo 0 campo das psicoterapias. Escolhemos republicar em nosso Vale a pena ler de novo um dos mais criativos textos deste pensador. Este texto, nos 16 anos desde sua publicagao em NPS, vem sendo usado sistematicamente como uma das mais importantes contribuigdes para a formagao e reflexao de terapeutas. Goolshian escreveu este trabalho, como muitos outros, com sua parceira de trabalho de muitos anos, Harlene Anderson, que mantém até hoje uma presenga influente no campo das terapias e praticas sistémicas. Recebemas este artigo para publicagdo simultaneamente ao andncio da morte de Goolishian. 0 nimero 2 da revista, entdo no pret, incluiu algumas reflexdes sobre o fat, AA partir de_um pequeno extrato de conversa entre Goolishian e Bil, um paciente Psiquidtrico, os autores comegam a tecer sua teoria. O texto sistematiza algumas idéias importantes ¢ ¢ dedicado a explorar a terapia “a partir de uma posigao de nao saber”, Este conceito, um dos principais da abordagem colaborativa desenvolvida pelos autores ‘a0 longo de sua obra, ¢ um corolario de algumas premissas presentes no texto e da posigao doles alinhada com idélas construcionistas. Os dois autores representaram e ainda representam uma posigdo de questionamento de premissas tradicionals em relagao a terapia. Suas posturas podem ser vistas como revoluciondrias, ibertarias. Mas, ao longo do tempo em que venho trabalhando com este estudo junto a alunos @ colegas, percebo que demoramos algum tempo para nos darmos conta destes atrbutos da obra de Harold Goolishian. As palavras parecem em uma primeira leitura mais loves, mals brandas. A dimenséo revoluciondria do texto é sutil, Ao aprofundar a leitura, a0 nos questionarmos sobre 0 conceito de nao saber, nao apenas como uma ‘expresso de um terapeuta que recebe o que o cliente tem a dizer com respeito as diferencas, ‘mas com um profundo compromisso com a idéia de construgao conjunta de conhecimento, Quais as conseqiéncias disso na pratica e na vida dos terapeutas? ‘Algumas perguntas me ocorrem: estamos preparados para negociar todos os nossos parametros com os nossos clientes? Estamos preparados para, quando ndo dispostos a ‘negociar, assumirmos isso nao com base em uma teoria, mas em escolhas de outras ordens como crengas © preconceitos? Podemos facilmente considerar nossas teorias, crengas @ preconceitos? Estamos preparados para abrir mao de nossas categorias diagndsticas quando elas nao sao tteis para nossos clientes e, portanto, também nao 0 serao para nos? As palavras de Bill sio inspiradoras a esse respeita: “Vocés (profissionais) estao sempre me avaliando... Vocés me perguntariam: ‘Isto é um cinzeiro?’ para averiguar se eu saberia responder ou ndo.". Serd que estamos prontos para parar de avaliar nossos clientes com base em certos padrées e podemos avangar em uma conversagao com eles em que nosso saber pode ser questionado? Para os autores, “0 entusiasmo do terapeuta esta em apreender a unicidade da verdade narrada por cada cliente individual, a verdade coerente da historia da sua vida, Isto significa que 0 terapeuta estard sempre preconcebido por sua experiéncia, mas deve ouvir de tal modo que sua experiéncia ndo o impeca de atingir o significado total das descricdes que 0 cliente faz de sua experiéncia. Isto sO pode acontecer se o terapeuta se aproxima da posigao de néo saber”. Entao, nosso entusiasmo esti nao em saber, em desvendar, em revelar algo desconhecido sobre o cliente para cle, mas em acompanhar o cliente em busca de algo sobre si mesmo que sé ele pode encontrar. Estamos preparados para tal aventura? Estamos preparados para néo procurar regularidades? Para ndo contrapor o relato do cliente com a forma que para nés seria mais adequada ou “saudavel" de viver a vida? Estaremos, algum cia, preparados para nao entender nossos clientes répido demais e com isso obstruir 0 fluxo do que est sendo dito e do que ainda no foi dito? “Conversagdo é o desdobramento de possiblidades ainda néo ditas, das narrativas ainda nao relatadas.” . ‘A posigao de néo saber néo é um lugar aonde se chega e, entao, se descansa, E 0 principal e mais relevante exercicio da prética terapéutica, Talvez o mais dificil. Quantas vvezes em nossa pratica percebemos que caimos nas armadilhas sutis de nossos saberes psicol6gicos, antropol6gicos e outros mais? Convido o leitor a fazer uma letura atenta ¢ reflexiva deste texto, a fazer exercicios a partir dele para compreender seu alcance em nosso cotidiano tanto como profissionais ‘quanto como pessoas. ROSANA RAPIZO te ¢ complicada, Se uma pessoa icomo vocé encontrasse uma for- ‘ma de falar comigo quando eu estava comegando a enlouguecer...em todos os momentos da minha alucinagao na qual eu era um militar importan- te... Eu sabia que isto era uma forma de tentar dizer a mim mesmo que era capaz. de enfrentar meu pinico e meu medo... Em vez de me falar sobre isso, meu médico sempre se dirigia a mim com 0 que chamo de pergunta con: cional. (Ao que o terapeuta indagava: ‘O que é pergunta condicional?’) Vocés (profissionais) esto sempre me avaliando... me avaliando para ver se eu sabia 0 que vocés sabiam em ver de encontrar uma forma de falar comigo. Voces me perguntariam: ‘Isto é um cinzeiro?’ para averiguar se eu sabia responder ou nao. Era como se voces soubessem e quisessem ver se eu podia... 0 que me deixava mais as- sustado ¢ em panico. Se vocés tives- a uma pergunta interessan- sem:falado com aquele ew que sabia © quanto eu estava amedrontado. Se tivessem sido capazes de entender 0 quanto ew precisava ficar louco para me tornar forteso suficiente para li- dap-com esse medo tao ameacador... entdo Méssteriamos conseguido lidar com aquele general maluco” Estas palavras sdo de um reincidente de ambulat6rio, um fracasso terapéuti- co. Um homem detrinta anos, Bill, que foi hospitalizado em diversas ocasiées com um diagnéstico de esquizofrenia paranéide. Seus contatos terapéuticos nao tiveram sucesso. Ele permaneceu zangado e desconfiado, incapacita- do para o trabalho por algum tempo. Grande parte de sua vida adulta esteve sob “doses de manutengao” com me- dicagao psicoativa. Na época em que fez um pedido de consulta a um dos autores, tinha sido mais uma vez des- pedido de seu trabalho como profes- sor. Mais recentemente ele obteve uma melhora significativa ¢ tem sido capaz Para se alcangar 0 que nao se sabe deve-se ir pelo caminho que é 0 camino da ignoréncia. ‘THoMas STEARNS EUOT de manter seu emprego. Ele i que seu atual terapeuta era diferente dos demais ¢ que agora se sentia mais capacitado para manejar sua prépria vida. Foi esse contexto de conversagio que influenciou a pergunta: “O que seus terapeutas anteriores poderiam ter feito de forma diferente que pudes- se ter sido mais aitil para voce?” Nesta conversa, Bill se referia a sua experiéncia terapéutica com os autores € seus colegas do Instituto Galveston de Houston. Essa é uma terapia que vem se desenvolvendo nos iltimos 25 anos. Nesse tempo 0 pensamento se afastou das teorias usuais das ciéncias sociais mais usadas como fontes das teorias de psicoterapia. As idéias neste trabalho representam o interesse atwal numa abordagem interpretativa e her- menéutica para a compreensio de te- rapia, Especificamente, aqui se discute a posigao de Nao saBER por parte do terapeuta e sua importancia nas no- Ges de conversacao terapéutica e con- versagdo através de perguntas. DA ESTRUTURA SOCIAL A GERAGAO DE SIGNIFICADO HUMANO Nas iiltimas décadas, 0 desenvolvi- mento nas terapias sistémicas con- quistou uma abordagem conceitual que ultrapassa o empirismo inicial das teorias ¢ terapia. Esses desenvol- vimentos desviam o pensamento da terapia familiar para o que se chama cibernética de segunda ordem e, mais recentemente, de construtivismo. Ulti- mamente temos concluido'* que exis- tem sérias limitages em relagao a esse paradigma cibernético como aparece na pritica terapéutica, Estes limites se referem principalmente as metéfo- ras mecanicistas subjacentes & teoria cibernética de feedback, Percebemos que com essa metéfora existem poucas possibilidades para se lidar com a ex- periéncia de um individuo, Também percebemos uma utilidade limitada nos modelos populares cognitivos ¢ construtivistas que ultimamente defi- nem os humanos como meras méqui- nas processadoras de informagao em contraposigao a fendmenos geradores de informagio"*. Neste momento, nossas teorias so- bre terapia, em desenvolvimento, se voltam rapidamente para uma posi- ‘a0 mais hermenéutica e interpretati- va. E-um ponto de vista que enfatiza “significados” como criados ¢ expe- rimentados por individuos em con- versacao entre si. Seguindo essa nova base teérica, desenvolvemos uma série de ideias que direcionam nossa com- preensao ¢ explicagoes de terapia para 6 terreno de sistemas que se transfor- ‘mam ¢ que existem somente na im- precisio do discurso, da linguagem e da conversagao. E uma posicao que se aloja nos dominios da semantica e da narrativa, Nossa posigdo atual se in- clina fortemente para a idéia de quea ‘agéo humana se dé numa realidade de compreensio que é-criada através da construcio social e do dilogo™*. Esta posigao sustenta que as pessoas vivem compreendem seu viver através de narrativas socialmente construidas que dao significado e organizagao as suas experiéncias. E um mundo da lingua- gem humana e do discurso. Anterior mente nos referimos a estas idéias de sistemas de significado como sistemas determinados pelos problemas, sistemas organizadores/dissolvedores de proble- ‘mas e sistemas de linguagemt***, Nossa posigao atual sobre narrativa se baseia fundamentalmente nas seguintes pre- missas! — 1. Sistemas humanos sao geradores de linguagem ¢, simultaneamente, siste- mas geradores de significado. nicagao e discurso definem a organi- zagao social. Um sistema sociocultural € 0 produto da comunicagio social mais do que a comunicagao é um pro- duto da organizagao estrutural. Todos 605 sistemas humanos sio sistemas lin- giiisticos e sao mais bem descritos por aqueles que deles participam do que pelos observadores “objetivos” de fora. O sistema terapéutico é ui desses siste- ‘mas lingiiisticos. mu- 2. Significado e compreensio sio construidos socialmente ¢ de forma intersubjetiva. Nao chegamos a, nem temos significado ou compreensio, até que fagamos uma ago comunica- tiva, isto 6, nos comprometamos em algum discurso gerador de significado ou em algum dislogo dentro do siste- ma para 0 qual a comunicagio tenha relevancia. Um sistema terapéutico é um sistema para o qual a comunicagao tem uma releviincia especifica para seu intercambio dialégico. 3. Qualquer sistema em terapia evoluiu dialogicamente em torno de algum “problema”, Esse sistema estara envol- vido em desenvolver-uma linguagem e uum significado especifico para ela, es- pecifico para suas organizagées ¢ espe- cifico para as dissolugdes relativas a0 problema, Nesse sentido o sistema em terapia é 0 sistema que se caracteriza pelo desenvolvimento do significa- do co-criado, “o problema”, mais que por uma estrutura social arbitréria, tal como a familia. O.sistema terapéutico é um sistema organizador do problema ¢ dissolvedor do problema, 4. ‘Terapia € um acontecimento lin- gliistico que se da no que chamamos uma conversagao terapéutica. A con- versacdo terapéutica é uma pesquisa ¢ exploragao miitua através do dislogo, um intercimbio de mio dupla, um entrecruzamento de idéias no qual sio desenvolvidos continuamente novos significados na diregio da dissolugio de problemas, logo, da dissolucéo do sistema em terapia e conseqiientemen- te do sistema organizador e dissolvedor do problema. 5. O papel do terapeuta 0 de um ar- tista no conversar — um arquiteto do processo de didlogo — cuja habilidade € criar um espago para a facilitagsio de uma conversa dial6gica. O terapeuta é um observador participante e um facilita- dor participante da conversa terapéutica. 6. O terapeuta exercita esta arte tera~ péutica através da utilizacao das per- ‘guntas conversacionais ou terapéuticas, A pergunta terapéutica é um instru- mento basico para facilitar 0 desen- volvimento do espago de conversacao ¢ do processo de dislogo, Para lograr isto 0 terapeuta se exercita na habilidade de perguntar a partir de uma posigao de NAo saperieindo de perguntas regidas por método'e que demandam respostas especificas. 7. Os problemas em terapia so ages que expressam nossas narrativas hu- manas de uma maneira tal que nosso sentido de competéncia ¢ liberdade pessoal se veem diminudos. Os pro- blemas sao objedes do tipo preocu- pacdo ou alarme para um estado de coisas em relagdo as quais somos in- capazes de definir agdes competentes para nés mesmos. Nesse sentido, os problemas existem em linguagem e sto exclusivos do contexto narrativo do qual derivam seus significados. 8. Mudanga em terapia € a criagao dialégica de uma nova narrativa e por- tanto a abertura de oportunidade para uma nova competéncia. © poder de transformagio da narrativa se apéia em sua capacidade de relacionar os acontecimentos de nossas vidas num contexto de significados novos e dife- rentes. Vivemnos em e através das identi- dades narrativas que desenvolvemos tid conversar com o outro, A competéncia do terapeuta é a habi lidade em participar neste processo. Nosso self esta sempre em mudanga. Estas premissas colocam_bastan- te énfase no papel da linguagem, da conversagao, do selfe da historia e in- fluenciam nosso trabalho clinico ¢ tedrico. Hoje existe bastante interesse entre 0s terapeutas sobre essas tenta- tivas continuas de compreender ¢ des- crever 0 trabalho clinico. Existem no entanto diferentes pontos de vista que emergem. Alguns autores enfatizam a estabilidade no tempo das narrativas pessoais com as quais trabalhamos em terapia. Nés, por outro lado, enfatiza- mos a mudanga continua, o desénvol: vimento e as bases dialogicas da hist ria do self. Tomando essa posigao nos encontramos enfatizando a posigao de Nao saver do terapeuta, a com- preensio que se desenvolve através da conversagio terapéutica. © conceito de Ao saber esta em contraposicdo & compreensao por parte do terapeuta baseada em narrativas tedricas pré- assumidas. ‘A posigdo de NAo sapeR requer que nossa compreensio, nossas explicagoes € nossas interpretagdes na terapia néo estejam limitadas por experiéncias anteriores ou verdades formuladas teoricamente. Esta descrigio da po- sigio de NAO saner é influenciada pela hermenéutica contemporanea, por teorias interpretativas e por con- ceitos relacionados ao construcionis- mo social, linguagem e narrativa® Esta posigo hermenéutica representa a teoria e a pratica da interpretacao. £, basicamente, uma postura filos6fica que “sustenta que qualquer compreen- sio € sempre uma interpretagio... que nao existe um lugar privilegiado para a compreensio"" e que “linguagem e hist6ria sao ambas condigdes e limites para a compreensio”, Significado ‘compreensio sio construgdes sociais ¢ intersubjetivas, feitas por individuos em conversagao, em linguagem um com o outro. Assim, a a¢io humana se dé numa realidade de compreensio ctiada através da construgao social e do didlogo. Essas realidades, narrativas s0- cialmente construidas, dao significado ¢ organizagdo A nossa experiéncia™'. CONVERSACAO TERAPEUTICA: UM ESTILO DIALOGICO O processo de terapia baseado nesta postura dial6gica é 0 que chamamos conversagao terapéutica. Se refere a tum esforco no qual se da uma busca muitua por compreensio e exploragiio através do didlogo dos “problemas”, Terapia ¢, portanto, conversagao te- rapéutica implicam um» processo de “estar junto”. As pessoas falam umas com as outras € nao para as outras. E um mecanismo através do qual o te- rapeuta ¢ o cliente participam no de- senvolvimento de novos significados, novas realidades e novas narrativas, O papel do terapeuta, sua habilidade € énfase sao na diregao de desenvol- ver um espago de conversagao livre e facilitar a emergéncia de um proceso de didlogo no qual possa ocorrer algo “novo”. A énfase nao é em produzir mudangas mas em abrir espago para conversagio, Nesta posi¢io herme- néutica, mudanga em terapia é repre- sentada pela criagio em dislogo de uma nova narrativa. Na medida em que 0 didlogo abre novas narrativas, as hist6rias “ainda-nao-contadas” sao ‘miutuamente criadas'. Mudangas na histéria © na propria narrativa sao conseqtiéncias inerentes a0 dislogo. Chegar a esta especifica conversagao terapéutica, na qual os caminhos sao abertos para um dilogo sobre 0 que Preocupa € atemoriza o cliente, re- quer que o terapeuta adote a posigao de Nio SABER. A posicao de NAO sa- er implica uma postura ¢ uma ati tude por parte do terapeuta nas quais suas agdes comunicam uma grande e genuina curiosidade. Isto é as ages eatitudes do terapeuta expressam uma necessidade de saBer mais sobre 0 que foi dito e nao encaixar esses con- tetidos em opinides e expectativas ptévias sobre o cliente, 0 problema ou 0 que deveria ser mudado. O te- rapeuta assim se posiciona de uma forma que possa sempre estar num estado de “ser informado” pelo clien= ‘te (cliente neste trabalho referé-se a uma ou mais pessoas). Esta posigao de “ser informado” é fundamental se- gundo a teoria hermenéutica, na qual a criagéo de significado através do didlogo € sempre intersubjetiva ¢ se dé em um processo continuo. No NAo SABER, o terapeuta adota uma postura interpretativa que se apdia na conti- nua andlise da experiéncia na medida do que vai ocorrendo no contexto. O terapeuta nao “sae” a priori a in- tengao de tienhuma ago e portanto deve confiar na explicagao dada pelo cliente. Através da aprendizagem, da curiosidade e da hist6ria do cliente to- ‘madas seriamente, 0 terapeuta junta- sea este, numa exploragio muitua de sua (do cliente) experiéncia e com- preensio. Assim, o proceso de inter- preta¢do, a batalha para compreender em terapia, se torna colaborativo. Tal posi¢ao permite ao terapeuta manter permanente continuidade com a po- sigdo do cliente e atribuir prioridade a sua visio de mundo, aos seus signi- ficados e compreensoes. Isto permite a0 cliente mobilidade no espago da conversagao, uma vez que nao tem ‘que promover, proteger ou convencer 0 terapeuta do seu ponto de vista. Este processo de relaxamento e liberdade é similar a uma nogao atribuida a Bate- son, de que, para que existam novida- des ou novas idéias, é necessério um espaco para aquilo que é familiar. Isto nao significa que o terapeuta desen- volva e oferega novas idéias ou novos significados. Eles emergem do didlogo entre cliente ¢ terapeuta e assim sao co-criados. O terapeuta simplesmen- te se torna parte do circulo de signifi- cados, ou circulo hermenéutico."” Fm terapia, oirculo hermenéutico ou circulo de significados se refere a0 processo de didlogo através do qual a nterpretagdo comeca com as idéias ‘preconcebidas do terapeuta. O tera- peuta sempre entra na arena terapéu- tica com expectativa sobre os temas a serem discutidos que se baseiam nas experiéncias anteriores do terapeuta e nas informagées do encaminhamento. A terapia sempre comeca com uma pergunta baseada neste significado ja criado. O significado que emerge em terapia € compreendido desde este conjunto (idéias preconcebidas do te- rapeuta), mas esse conjunto é por sua vez compreendido desde as. partes emergentes (a histéria do cliente), Te- rapeuta ¢ cliente se movem para tras para frente dentro deste circulo de sig- nificado, Eles se movem da parte para © todo e dat para a parte novamen- te, permanecendo dentro do circulo. Neste processo um novo significado ‘emerge, tanto para o terapeuta quanto para o cliente. O NAO SABER nao é ter julgamento sem base ou sem experiéncia, mas se refere mais amplamente ao conjunto de suposigdes de significados que o te- rapeuta traz a entrevista clinica, © entusiasmo do terapeuta esté em aprender a unicidade da verda- de narrada por cada cliente, a verdade coerente da histéria de sua vida. Isso significa que o terapeuta esta sempre preconcebido por sua experiéncia, mas deve ouvir de tal modo que sua pré-experiéncia nao o impeca de atin- gir 0 significado total das descrigées que o cliente faz de sua experiéncia, Isso s6 pode acontecer se 0 terapeuta se aproxima de cada experiéncia clini- caa partir da posigdo de No SABER, Fazer de outra forma € procurar re- gularidades e significados comuns que possam validar as teorias do terapeu- ta, mas que invalidam a singularidade das histérias do cliente e, com isso, sua propria identidade, O desenvolvimen- to de um novo significado se apdia na singularidade e na novidade, no nko saber daquilo que o terapeuta ira ou- vir. Isso requer que © terapeuta tenha uma alta capacidade de atengio, ou- vindo simultaneamente a conversa, tanto interna quanto externa. Como declara Gadamer (1975): “Uma pessoa tentando entender um texto ‘std preparada para que ele the diga algu- ‘ma coisa. Bis por que uma mente herme- neuticamente preparada deve ser desde 0 inicio sensivel a qualidade de novidade do texto. Mas esta espécie de sensibilidade nao envolve nem ‘neutralidade’ na ma- téria nem aniquilamento do self, mas a assimsilagio consciente de nossa prépria tendéncia, de modo que 0 texto possa sapresentar-se em toda sua novidade e ser capaz assim de asseverar sua prépria verdade e nao nossos significados pre- concebidos” (p. 238). Interpretagio, compreensio, entao, sto sempre um dilogo entre terapeuta e cliente e nao o resultado de narrati- vas te6ricas predeterminadas, elemen- tos essenciais do mundo de significado do terapeuta, Um posicionamento de No SABER evita a oclusio artificial e prematura, que geralmente é conseqiiéncia de um resultado pré-planejado. Trabalhar a partir de uma posigao de saber é an- tecipar possiveis conclusdes ¢ limitar © desenvolvimento conjunto do novo significado. Isso significa por exemplo ‘que as terapias orientadas para uma finalidade, direcionadas pelo conhe- cimento e pela teoria preexistente do terapeuta limitam as opgbes acessiveis do discurso terapéutico, enfatizando apenas 0 que jé € conhecido. Essa limi- tagdo reduz a possibilidade de dizer e conhecer 0 “ainda-nao-dito”’. Evitando a necessidade de condu- zir a terapia baseando-se em conheci- ments te6ricos prévios, 0 terapeuta se compromete a uma interagio dia- logica que se distingue por uma busca miitua e igualitaria de compreensio. Em tal processo, o terapeuta evita as implicagdes de poder social e explo- ragao da relagao terapéutica no inte- resse de preservar a base do proprio conhecimento do terapeuta, No Nko SABER, 0 foco da terapia é a experién- cia intersubjetiva e partilhada de se ctiarem uma nova realidade, um novo significado, um novo conhecimento ‘uma nova narrativa, Inerente a este processo dialégico esta a proposigaio de que o sentido muda tanto para o cliente quanto para o terapeuta. Centrais a muitas narrativas sgiiisticas e socialmente derivadas que operam na organizag’o comporta- mental sio aquelas que contém em si elementos articulados como auto- descritivos ou narrativas na primei- ra pessoa. O desenvolvimento destas narrativas autodefinidoras tem lugar num contexto social e local que en- volve conversacao com outros signifi- cativos, incluindo a si proprio. Isto 6, as pessoas vivem dentro e através de identidades narrativas sempre muté- veis que desenvolvem em conversagao umas com as outras. Os individuos extraem 0 seu sentido de agencia- ‘mento social para a agdo dessas nar- rativas derivadas dialogicamente. Isto 6, estas narrativas permitem (ou inibem) uma percepsao pessoal de li- berdade ou competéncia para produ- zit sentido e agir (agenciamento). Os “problemas” atendidos na terapia po- dem ser pensados como procedentes de narrativas sociais e autodefinigoes que nao propiciam um agenciamen- to efetivo para as tarefas definidas (intengao), implicitas em suas auto- narrativas. A terapia abre espago, dé oportunidade para o desenvolvimen- to de novas e diferentes narrativas que permitem uma expansio da gama de ages alternativas para a dissolugao do “problema”, £ a realizagao deste novo agenciamento narrativo que é vivenciada como “liberdade”e libera- 40 por aqueles que encaram a terapia como bem-sucedida, Desse ponto de vista, a terapia pode ser considerada um processo guiado pelo cliente. Isto éembora’ criacao de um novo significado seja um proceso intersubjetivo, a informagao narrativa no proceso terapéutico baseado no NAO SABER é sempre mais bem forne- cida pela habilidade e pela experiénc do cliente do que pelo modelo ou pela experiéncia do terapeuta, Do mesmo modo, a compreensio da nova na rativa esta na linguagem comum do cliente. Tais continuidade e coeréncia sio criticas para a tarefa do terapeuta decriar um espago e sustentar um pro- cesso dialégico no qual investigacio, compreensio e significado ocorram entre as pessoas. Dizendo a mesma coisa com outras palavras, comegar a partir de onde est4 o cliente promove ‘uma atmosfera de respeito e autocon- firmagao. Tanto o respeito quanto a autoconfirmagao so essenciais para se permitir a abertura ao outro e ter acesso as suas prOprias criatividade e imaginagao. Isso exige uma mudanca na teo- -tia a respeito do conceito tradicional de distingao terapeuta-cliente. Se o pensamento se desloca da distingao terapeuta-cliente, que é necesséria na teoria interativa, entao possivel se conceituar ‘cliente e terapeuta como unidos num sistema que evolui no de- correr da conversagao terapéutica. Isto é sea énfase € deslocada do cliente, do terapeuta ¢ da influéncia de ambos na compreensio, entdo compreensio ¢ sentido podem tornai-se uma fungio de ambos num proceso de desenvolvi- mento influenciado mutuamente, Nes- sa perspectiva, cliente e terapeuta sto vistos como afetando mutuamente os significados,e isso constitui a intersub- jetividade, Eles se unem no didlogo ¢ nenhum deles mantém uma estrutura de significado independente que pos- sa funcionar de modo interativo. Pelo contririo, sio dependentes um do outro na medida em que produzem significado no momento de nova com- preensio mutuamente criada. Como resultado produzem um significado dialégico, partilhado, que existe no momento apenas da conversagio tera- péutica e que continuaré a mudar atra- vés do tempo. PERGUNTAS CONVERSACIONAIS: MANTER A COMPREENSAO CAMINHANDO ‘Tradicionalmente, as perguntas em {erapia s2o influenciadas pela habil dade do terapeuta, habilidade esta que reflete uma compreensio tedrica e um conhecimento de fendmenos psicolé- gicos e de comportamentos humanos: uma posicdo de saser. O terapeuta explica (diagnostica) ¢ intervém (tra- ta) no fendmeno ou comportamento a partir de sua base de conhecimento, de uma teoria geral. Ao fazer isso, 0 terapeuta enfatiza (¢ protege) a coc- réncia de sua prOpria narrativa e nao a da narrativa do cliente. A posigao do saser é semelhante ao que Bruner (1984) distingue como “postura pa radigmatica’, divergindo da “postura narrativa’. Na “postura paradigmsti- ca’, intérprete focaliza explicades que enfatizam uma compreensio de- notativa que produz conceitos gene- talizados, categorias gerais e regras amplas. Por exemplo, conceitos como “id”, “superego” ou “funcionalidade de sintomas” sio o tipo de categorias gerais que se desenvolvem sempre no processo de compreensio terapéutica. Fazer perguntas em terapia a partir de uma posi¢ao de saBer corresponde a “postura paradigmdtica” de Bruner na quala resposta élimitada pela perspec- fa tebrica ja conhecida de antemao. Ao contrario, a posigao de Ao saner —semelhante a “postura narrativa” de Bruner — sugere uma espécie diferen- te de postura terapéutica ou habilida- de, uma habilidade que é limitada pelo processo de terapia enio pelo contetido (diagnéstico) e mudanga (tratamento) da estrutura patol6gica. A pergunta terapéutica ou conver- sacional ¢ a ferramenta principal que © terapeuta usa para expressar essa habilidade, essa posigao de No sa~ eR. Ela € 0 meio através do qual o terapeuta sempre permanece no ca- minho da compreensao. As perguntas terapéuticas sempre provém de uma necessidade de saner mais sobre 0 que ja foi dito. Assim, o terapeuta esta sempre sendo informado pelas hist6- rias do cliente e aprendendo uma nova linguagem e uma nova narrativa. Quando a terapia é considerada em termos de categorias estéticas e as perguntas decorrem de uma metodo- logia, ela é roubada de seu dinamismo. Em terapia, compreender ndo é en- tender melhor, mas entender de outro modo. Perguntas que sao dirigidas por uma metodologia aniquilam a opor- tunidade de o terapeuta ser conduzido pelos seus clientes para seu universo particular, A base do questionamen- to terapéutico nao se constitui ape- nas em interrogar o cliente ou reunir informagdes que irdo comprovar ou apoiar hipéteses. Em vez disso, a meta “€permitir que o cliente leve o proprio espaco de compreensio do terapeuta a Ser questionado. Nesse sentido hermenéutico, duran- te 0 processo da psicoterapia o tera- peuta ndo est aplicando um método de questionamento, mas sim conti nuamente ajustando sua compreensio aquela da outra pessoa. Dessa maneira, © terapeuta esté sempre em processo de entendimento, sempre mudando. Perguntas a partir do NAo saBER re- fletem a posigdo deste terapeuta e des- te processo terapéutico. Desse modo, © terapeuta nao domina o cliente com seu conhecimento psicolégico espe- cializado e sim é dirigido pela, aprende com a habilidade do cliente. A tarefa do terapeuta, portanto, nao é analisar, mas tentar entender, desde a perspec- a em mutagdo da experiéncia de vida de seu cliente. Essa posi¢ao é con- trastante com perguntas do terapeuta detivadas de métodos tedricos alme- jando mudanga, saiide normativa ou necessidade de intervengao. O objetivo da compreensio herme- néutica & permitir que os fenomenos guiem. Referindo-se de novo as decla- ragies do cliente Bill, do inicio deste artigo, talvez ele estivesse querendo que seus pontos de vista fossem consi- derados importantes quando afirma: "Se alguém como voc tivesse falado co- imigo no comego quando eu estava fican- do louco... sempre em meu delirio eu era uma grande figura militar... eu sabia que isto era ojeito de eu dizer a mim mesmo que eu podia vencer meu panico, meu ‘med... se voce tivese falado comigo que entendia que eu estava assustado e me sentia ameacado... nés poderlamos ter tratado daquela parte louca de mim... e isto 6 que é diferente aqui... nds estamos sempre interessados em discutir o que eu pensei ou 0 que eu sabia... nao existem erguntas condicionais que focalizam 0 que voces querem SABER... a gente pode falar... no comego pensei que era aquele interesse incondicional, sobre o qual eu jé lera.. mas ndo... era mais era diferente. podiamos conversar sobre o que eu sabia (que era importante isto era bom.” SIGNIFICADO PARTICULAR E DIALOGO PARTICULAR proceso de perguntas derivado da posiséo de Nio saner resulta no de- senvolvimento de uma compreensio particular partilhada (dial6gica) e em um vocabulério também particular (dial6gico). Essa particularidade se refere 4 lin- guagem, ao significado e a compreen- so que se desenvolvem entre pessoas no didlogo e nao a sensibilidade cultu- ral num sentido amplo. £ através dessa compreensiio que se extrai um sentido intimo das recordagées, percepgdes ¢ histérias. Através desse proceso, 0 es- paco para se dar continuidade a uma narrativa com uma nova histéria e, conseqiientemente, a um novo futu- ro permanece aberto. A questio do sentido e da linguagem particulares é importante porque parece que ha um leque de experiéncias ¢ um modo de conhecer estas experiéncias que é bas- tante diferente de um “sabedor” para outro, e que iré variar de uma terapia aoutra, Garfinkel" e Shotter!? consideram ponto pacifico que em qualquer con- versa os interlocutores se recusardo a entender o que est sendo dito, além do que ja esta negociado nas regras de significado do contexto de intercaim- bio dialégico imediato. Significado e compreensio sio, de acordo com Gar- finkel, sempre uma questo de nego- ciagao entre os participantes. A linguagem paradigmatica tradi- cional da psicologia geral e da teoria de familia nunca sera suficiente para explicar ou compreender © significa- do local emergente. Tentar entender as experiéncias relatadas na 1* pessoa do singular com as quais os terapeutas trabalham na terapia, através do uso de modelos psicolégicos ¢ familiares genéticos, com seus vocabulérios as- sociados, conduziré 0 terapeuta com facilidade a uma compreensio reduzi- da a conceitos te6ricos estereotipados. Ao usar tais conceitos, tal pré-conhe- cimento, para entender a narrativa do cliente, os terapeutas geralmente pei dem contato com i cliente constrangem sua narrativa A certeza predeterminada pela teoria implicita ou explicita faz com que se perca contato com a experiéncia do cliente, com o desenvolvimento de si icados particulares e também com a vivéncia do terapeuta. O terapeuta, por conseguinte, deve tornar-se especialis ta em fazer perguntas sobre as historias contadas em terapia, de tal maneira ‘que estas perguntas se relacionem com ‘© motivo da consulta (isso é, 0 proble- ‘ma). Para que isso seja feito o terapeu- ta deve se manter atento ao desenvol- vimento e compreensio dentro da linguagem, da narrativa e da metéfora do cliente especificas ao problema, is do. 0 QUE NAO SAO PERGUNTAS TERAPEUTICAS Considerando-se a partir de uma,po- sigdo de NAo SABER, as perguntas tera- péuticas sao semelhantes as assim cha- madas perguntas socraticas. Nao sio perguntas retéricas ou pedagdgicas. As perguntas retéricas contém suas préprias respostas; as perguntas peda- gogicas induzem a diregao da respos- ta, Em terapia tradicional as perguntas sio geralmente dessa natureza, isto 6, implicam uma direyao (realidade cor reta), além de darem ao cliente uma sugestdo de como chegar & solugao. Perguntas terapéuticas ou conver- sacionais ndo consistem em proferir bon mots [boas palavras} ou redefi- nig6es positivas. Nao sio tentativas de fazer alguém desistir de ou anular suas crengas. Perguntas que exigem respostas especiais ou perguntas que so produzidas pot wna neta va tedrica (como por exemplo a narra~ tiva freudiana de Edipo) so perguntas decorrentes de uma posigao de SABER. F, quando, em terapia, as perguntas derivam-se dessa posigio de SABER, 0 que se obtém sio descrigoes estreitas ¢ fechadas de experiéncias. O minimo que tais questdes conseguem ¢ limitar © desenvolvimento da narrativa emer- gente, fechando-a dentro de parime- tros de pré-compreensio do terapeuta, mi absoluto contraste com isso, as perguntas de Nao SaBer trazem a tona algo questionavel que emerge ao reino da possibilidade. Essa abertura consis- te na possibilidade de “ser” de muitas maneiras diferentes. As perguntas te- rapéuticas sto encorajadas pelas dife- rengas na compreensio ¢ extraidas do futuro por uma até entio irrealizada possibilidade de uma comunidade de conhecimento. Ao perguntar a partir da posigio de NXo SABER, 0 terapcu- ta 6 capaz de caminhar com o “ainda- nao dito”, Perguntas terapéuticas nplicam muitas respostas posstveis. Conversagio em terapia € 0 desdobra- mento de possibilidades “ainda-nao- ditas’, das narrativas “ainda-nao-rela- tadas’, Esse processo acelera a evolugao de realidades pessoais ¢ de ages que emergem no desenvolvimento da no- va narrativa. Um novo significado, e portanto um novo agir, € experien- ado pelo individuo como uma mu- danga na sua organizagao individual e social. Em terapia, esse é um processo iniciado ¢ mantido pela conversagao ¢ pelo dislogo terapéutico. Ele ocorre no espago conversacional. EXEMPLO DE CASO: “HA QUANTO ‘TEMPO VOCE TEM ESTA DOENGA?” Um colega meu, psiquiatra, sentindo- se frustrado, me pediu um auxilio num caso considerado. impossivel -— um homem de quarenta anos se queixava cronicamente de que tinha uma doenga contagiosa ¢ estava con- tinuamente infectando outras pes- soas € possivelmente até as matando. Consultas médicas sucessivas, com resultado negativo, e psicoterapias nio tinham conseguido aliviar 0 homem de sua certeza e de seu medo sobre sua doenga infecciosa, Embora falasse sobre dificuldades no casamento (sua mulher nao 0 compreendia) e sobre sua incapacidade de trabalhar, sua preocupagio central se referia sua doenga ea contaminagao que cada vez mais se alastrava. Ele estava assustado, desesperado mesmo, incapaz de ficar em paz por causa do mal e da destrui ‘40 que sabia estar espalhando, No inicio deseu relato, torcendo, afl to, as maos, contou sobre estar doente e infectado e 0 médico (Goolishian) per~ guntou: “Hé quanto tempo voce tem esta doenga?”, Admirado, eapés um longo siléncio, © homem comecou a contar sua histé- ria, Tudo comesou, disse ele, quando era um jovem marinheiro da Marinha Mercante. Estando no Oriente, teve relagoes sexuais com uma prostituta, Depois disso, recordando-se das pre- legdes dadas & tripulagio do navio sobre doengas sexualmente transmis- siveis, comegou a temer que seu desejo © tivesse exposto a contaminagio de uma dessas horriveis doengas venéreas € convenceu-se de que estava preci- sando de tratamento. Em panico, foi uma clinica daquele local para con- sulta, Nessa clinica, explicou seu medo a uma enfermeira pertencente a uma ordem religiosa. Ela o expulsou de Ié, dizendo que lé nao tratavam de tara- dos sexuais, que o que ele precisava era se confessar a Deus e nao tomar remé- digs, Por muito tempo, apds essa cena, envergonhado e cheio de culpa, ele manteve sua preocupagao para si pr6- prio ¢ nao a confiou a mais ninguém. Quando voltou da viagem para casa, ainda apavorado, pensava ter contrai- 10. conse- do alguma doenga, mas guia se abrir e confiar em ninguém, aa varias clinicas médicas, pedia um exame completo e Ihe diziam que es- tava em dtima forma, Esses relatérios médicos, com resultados negativos, 0 convenceram de que sua doenga era muito mais grave, pois era desconhe- ida da ciéncia médica. A medida que sua preocupagao cresceu, comegou a pensar que estava infectando e conta- minando outros, Essa contaminagio de terceiros tornou-se de tal ordem que, por fim, pensava que contami nava as pessoas indiretamente, como por exemplo vendo televisio ou ou- vindo rédio. Continuou a consultar médicos, mas os exames clinicos e de laboratério eram sempre negativos. A essa altura,,ja Ihe diziam que nao s6 ele nao tinha uma doenga, como tinha um problema mental, e passou a ser encaminhado, varias vezes, para con- sultas psiquidtricas. Com 0 tempo, ele se convenceu de que ninguém enten- dia a seriedade de sua contaminagio, a extensio de sua doenga e nem a des- truicdo que ela causava. A medida que 0 terapeuta con- tinuou a se interessar por seu dile- ‘ma, 0 homem comegou a ficar mais a vontade. Animado, descrevia com detalhes sua histéria e participava da curiosidade do consultor. O consul- tor ndo apenas recolheu a hist6ria ou reuniu fatos de um pasado estatico. A sua curiosidade permanecia com a realidade do homem (0 problema da doenga ¢ a contaminagio). A in- tengo nao era contestar a realidade de vida do homem ou a sua historia, mas sim aprender sobre ela e deixar que cla fosse recontada de tal modo que permitisse que um novo significado e uma nova narrativa emergissem, Em outras palavras, a intengao do consul- tor nao era dissuadir ou manipular 0 homem para que se afastasse de suas idéias, mas sim, através do NAo SanER (nao negar e nao julgar), fornecer um ponto de partida para o didlogo ea abertura de espago para conversagio. Os colegas que assistiam ao proceso da entrevista estavam bastante criticos em relagéo as perguntas que refletiam a posicao do Ao sane, posicao cola- borativa, tais como: “Ha quanto tem- po vocé tem esta doenga®”, Temiam que tais perguntas tivessem o efeito de reforgar a “alucinagao hipocondriaca” do paciente. Muitos sugeriam que a pergunta mais segura devia ter sid “Hi quanto tempo vocé acha que tem esta doenga?”, A posigio de Ao SABER, no entan- to, excluiu a posigdo de que a histé- ria do homem fosse pura alucinagio. Ele disse que estava doente. Enta neécessario ouvir mais, aprender mais sobre sua doenga e conversar dentro dessa realidadé de linguagem: Para se conseguir isso, para se iiiforiar sobre © que tinha sido dito e sobre o que 0 médico ainda nao sabia, exigiam-se perguntas como: “Ha quanto tempo vocé tem esta doenca?”, Ser sensivel a, tentar entender a realidade do homem era © passo essencial num proceso continuo a im de se estabelecer e man- ter 0 didlogo. Era fundamental que 0 consultor permanecesse dentro das regras de sentido desenvolvidas nessa conversagio particular e que falasse e compreendesse a linguagem familiar € 0 universo vocabular do cliente. Isso nao é desculpar ow acreditar na reali- dade do outro. £ um movimento na conversagdo, dentro do sentido do que acabou de ser dito. Esse movimento se dé na verdade narrativa da historia do cliente e, em vez de confronté-la, per- manece dentro do sistema de signifi- cado ali estabelecido e desenvolvido. ‘Ter feito uma pergunta mais segura, tal como “Ha quanto tempo voce acha que esti doente?”, apenas serviria para impor 0 ponto de vista predetermi nado ou “sabedor” e “paradigmatico” do consultor de que a doenga era uma invengio de sua imaginagao ou ilusio ou distorgao que precisava ser corrigi- da, Ao responder tal pergunta, 0 ho- mem jé desconfiado seria conduzido a agir a partir de suas idéias preconce- bidas e das expectativas do consultor. E, entao, mais uma vez, se sentiria nao. compreendido e alienado. O consul- tor seria apenas mais um na lista dos profissionais que nao acreditavam e faziam perguntas “condicionais”. Mal-entendimento e alienagio sao elementos que fecham didlogo, em vex de abri-lo. O terapeuta age como um autor-consultor para escrever uma nova hist6ria ou narrativa. A profissio de co-autor exige que o terapeuta seja lum ouvinte responsavel, isto & que ‘ouga de tal modo que seja responsivo"’, Ouvir responsivamente, guiado pelo NAo saBeR, € indispensavel para que © terapeuta mantenha contato com as experiéncias de seu cliente. Envolve receptividade as experiéncias relatadas na primeira pessoa, requer humildade para com a experiéncia ouvida e uma disposigao de trabalhar, sabendo que nunca ha uma histéria completamente “verdadeira’, nem uma tinica e correta compreensio. Isso permite ao terapeu- ta nunca SABER realmente, ¢ sempre partir da posigdo de Xo samen. Uma posigao inerente a posigao de NAo saper éa de que nao existe, com referéncia ao cliente, um resultado quanto a sua normalidade ou pato- logia dirigido pelo terapeuta, pré- planejado pelo terapeuta, ou receitado pelo terapeuta. Por exemplo, no caso citado, 0 terapeuta nao tinha como objetivo que o homem reconhecesse e desistisse de sua alucinagao. Em lugar disso, 0 objetivo era criar ¢ sustentar ‘um proceso dial6gico. Isso supde que nao € possivel para alguém conhecer a forma ¢ 0 contetido da experiéncia de outra pessoa antes da conversagao ¢ independentemente dessa troca con- versacional. Dito de outro modo, uma posigo de No saper evita 0 fecha- mento artificial e prematuro que ocor- re, em geral, quando 0s resultados so predeterminados. Quando safa desta entrevista, 0 homem foi inquirido pelo psiquia- tra que o recomendara (e que estive- ra observando a entrevista) para que dissesse como tinha sido a consulta. Sua resposta imediata foi: “Sabe de uma coisa? Ele acreditou em mim!” Numa conversa posterior, 0 psiquia- tra descreveu 0 efeito continuo que a entrevista teve sobre ele e seu cliente. As sessdes de terapia pareciam menos dificeis e a situagao de vida do cliente em geral estava muito melhor, De al- guma forma, o fato de o homem estar 0u nao contaminado nio era mais a questo. © homem comegou a tratar de seus problemas matrimoniais e de desemprego ¢ jé tinha participado de sessdes conjuntas com sua esposa. © Nao sane do consultor abriu um ponto de partida, uma possibilidade, uuma troca dialégica entre ele seu cliente, entre o cliente e o psiquiatra e entre o psiquiatra ¢ o consultor. Isso nao quer dizer que as pergun- tas do consultor produziram uma cura milagrosa. Nem quer sugerir que qualquer outra pergunta forca- ria um impasse terapéutico. maior. Nenhuma pergunta ow intervengio magica pode sozinha influenciar uma ocasiao dialégica ou nao dialégica. Uma tinica pergunta nao pode abrir © espago dialégico. A pergunta em si nao faz. alguém mudar de intengoes, ter ow nao ter idéias novas. Mas, sim, cada pergunta é um elemento de um processo global, parte de um circulo hermenéutico de compreensio. Per- guntas decorrentes da posicio de ao SABER exemplificam a postura, a habi- lidade deliberada e continua do tera- peuta, Flas permitem ao terapeuta ser um artista na arte de conversar e um arquiteto no processo dialégico, em vez de um arquivista hist6rico ou um arquedlogo dialégico. Eles participam em criar um espaco para, ¢ facilitar a conversacao dial6gica. O terapeuta, nesse processo, torna- se um obser'vador participante e um atticipante facilitador da conversa- ‘40 terapeutica. As perguntas do con- sultor, nesta entrevista, refletiram um. rocesso no qual ele, como Nio sABE- Dor, aprendeu do cliente. Na pergunta “Ha quanto tempo vocé acha que tem esta doenga?”, o terapeuta jé sabe. A tarefa central do terapeuta é sem- pre encontrar a pergunta para a qual © relato imediato da experiéncia e da narrativa apresente a_resposta. Tais perguntas nao podem ser planejadas de antemao ou pré-conhecidas. O que acabou de ser dito, o que acabou de ser relatado, é a resposta para a qual 0 te- rapeuta deve encontrar a pergunta. A narrativa terapéutica que se desenrola est sempre apresentando ao terapeu- ta a pergunta seguinte. Nessa perspec tiva, perguntas em terapia so sempre guiadas pelo assunto do momento e nao por teorias preestabelecidas do terapeuta de como a historia deveria set. A natureza especialmente guiada da conversagao terapéutica é de tal or- dem que cada intercimbio é tinico no género, dentro do contexto dial6gico do momento. O que no é conhecido num certo ponto por um terapeuta e é sempre diferente do que nao é conhe- cido por outro. NAO sanER significa que a experiéncia acumulada e a com- preensao daquele terapeuta especifico estdo sofrendo uma mudanga de in- terpretacao. E nesse processo especial € continuo de perguntas e respostas que uma compreensio caracteristica ou uma narrativa também caracteristica se tornam um ponto de partida para o novo € 0 que “ainda-nao-foi-dito”, CONCLUSAO Conversagao terapéutica e pergun- las terapeuticas derivadas da posigio de NAO sauux lornam-se um esforgo colaborativo de gerar um novo signifi- cado, baseado na hist6ria lingitistica e explanatéria do cliente, conforme sua historia é continuamente recontada e elaborada através do dislogo terapéu- tico. Essa espécie de troca dialégica for- nece uma oportunidade maxima para ‘© contar e 0 recontar a prépria histéria e desse modo possibilita a mudanga da narrativa na primeira pessoa, tio ne- cessiria para a mudanga em terapia. Novos futuros resultam do desenvol- vimento de narrativas que dio novos significados e entendimentos a vida e nos habilitam a agir de outro modo. Em terapia, isso € mais bem realizado por perguntas nascidas de curiosidade genuina, quando nao se sabe a respeito do que acabou de ser dito, Contar sua historia € a re-apresen- tacao da experiéncia; é construir a his- t6ria no presente. Essa re-apresentacio reflete a re-descrigao de quem conta e a re-explicagao da experiéncia em res- posta ao NAo saner do terapeuta. Cada um deles evolui conjuntamen- tee influencia 0 outro, assim como a experiéncia e a re-apresentagao da ex- periéncia, Isso nao quer dizer que no decorrer da terapia apenas 0 que ja é conhecido seja relatado, Nao se re- cupera uma histéria ou um quadro idéntico. Em vez disso, os terapeutas exploram os recursos do que “ainda- nao-foi-dito”. As pessoas tem mem6- ia imaginativa. Coisas do passado 10 recuperadas de tal maneira que é invocado o poder de intimeras novas possibilidades, e, assim, desse modo, sio criadas nova ficgi0 ¢ nova his- t6ria. A imaginagao ¢ constituida do poder inventivo da linguagem no pro- cesso ativo da conversagao; é a busca do “ainda-nao-dito”. Em terapia, in- terpretagao, a luta para compreender, & sempre um didlogo entre cliente e terapeuta. Nao é 0 resultado de narra- tivas tebricas predeterminadas, essen- iais ao mundo de significado do te- rapeuta. Ao tentar entender o cliente, deve-se supor que ele tem algo a dizer € que esse algo da sentido a narrativa, afirma a sua prépria verdade dentro do contexto da histéria desenvolvida pelo cliente. A resposta do terapeuta a0 sentido, & compreensio da histé- ria de seu cliente com seus elementos est em contradigaéo com a posicao tradicional em terapia, que é a de res- ponder ao sem-sentido ou a patolo- gia do que foi dito. Nesse processo, 0 entendimento da nova narrativa co- claborada deve ser feito na linguagem comum do cliente. Uma conversagio terapéutica nao é nada além de uma histéria de vida individual, concreta, detalhada, que se desenrola lentamen- te, estimulada pela posigdo de wio SABER do terapeuta e pela curiosidade dos terapeutas de aprender. Sio essa curiosidade e 0 NAo SABER que abrem © espago de conversagao e assim au- mentam 0 potencial de desenvolvi- mento da narrativa de uma nova acio ede liberdade pessoal. REFERENCIAS "ANDERSON, H. Goouisnian, H. “Human systems as linguistic sys- tems: evolving ideas about the im- plications for theory and practice”, Family process, n. 27, p. 371-393. 1988. ? ANDERSON, H.; Goouisuian, H. “Conversations at Sulitjelma’. News- letter, American family association, edigao da primavera. 1989. * ANDERSON, H.; Goouisnian, H. “Beyond cybernetics: comments on Atkinson and Heath's “Further thoughts on second-order family therapy”. Family process, n. 29, p. 157-163. 1990. 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