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Uma via importante de esforços teóricos pós- co podia ser encontrada nos distintos “sistemas so-
-clássicos1 na busca de avanços para a sociologia ciais”, isto é, nas diferentes sociedades. Portanto, tais
como ciência, iniciados ainda na primeira metade do estruturas, se constituiriam em condições de possi-
século XX, foi livrá-la de suas origens “positivas”,2 bilidades para a manifestação de diferenças culturais
isto é, livrá-la do berço mecanicista, evolucionista e e que, de um modo ou de outro, estariam sobrede-
organicista, plasmado nas teorias de Comte, Spencer terminadas por uma mesma lógica estrutural.
e Durkheim, para citar somente os principais. Como já mencionamos em outro lugar (Ro-
A história da sociologia tem diversos exemplos drigues, 2006), o estruturalismo teve sua data de
de tentativas de superação da matriz positivista, so- falência em maio de 1968, com o movimento de
bretudo aquela vinculada ao organicismo e suas de- greves que irrompeu na França, mais especifica-
rivações, como a dimensão estrutural e funcional, mente em Paris. Se o estruturalismo falhou no seu
que pressupunha sempre a ideia de organismos bio- intento de construir homologias estruturais entre as
lógicos. Entretanto, tais esforços teóricos também diferentes sociedades, determinando a lei ou as leis
evitavam o historicismo e sua dimensão diacrônica que governam as diferentes manifestações sociais,
para compreensão e explicação dos fenômenos so- ele teve o importante mérito de mudar a agenda de
ciais, cujos motivos iam desde o não reconhecimen- esforços teóricos que se seguiram a partir da década
to do historicismo como método científico até um de 1970, propiciando a construção de alternativas
antimarxismo ideológico. Dentre os múltiplos es- epistemológicas e teóricas para a reflexão socioló-
forços, como a Escola de Chicago e o seu interacio- gica, vistas (quase todas) como pós-estruturalistas
nismo simbólico, além de outros esforços menos co- e que se baseavam nas noções de desconstrução,
nhecidos, encontrava-se um dos mais emblemáticos descentramento, diferença, discurso e no esforço de
de todos: o estruturalismo francês. Esse movimento, articulação das noções de ação e de estrutura, além
curiosamente, buscou construir o melhor dos mun- de outras de caráter sistêmico.
dos para a teoria social: encontrar um pressuposto Este preâmbulo – que não chega a ser uma
epistemológico que estivesse fora das ciências natu- introdução no sentido convencional – tem por
rais por um lado, mas que, por outro lado, manti- finalidade exemplificar que os sociólogos, em sua
vesse o rigor pretensamente proposto por elas, ou maioria, no afã de se livrar das analogias organi-
seja, a busca de leis invariáveis e a possibilidade de cistas – quando se pensam em alguns aspectos da
modelos explicativos da realidade social que fossem história teórica da sociologia, verifica-se que noções
capazes de amplas generalizações. Tal fundamenta- tais como estrutura, função e sistema, cuja impor-
ção epistemológica foi importada da linguística mo- tância capital à sociologia tem sido indiscutível,
derna, proposta por Ferdinand de Saussure, ainda sempre foram vistas como ligadas à fundamentação
na primeira década do século XX para se referir aos organísmica, fisiológica, biológica, evolucionista –,
problemas de parentesco; diz o autor: não apenas deixaram de dialogar com as ciências
naturais no decorrer do século XX como também
No estudo dos problemas de parentesco [...] se mostraram extremamente preconceituosos para
o sociólogo se vê numa situação formalmente com todos os esforços teóricos que fossem produzi-
semelhante a do linguista fonólogo: [...] regras dos nessa direção.
de casamento, atitudes identicamente prescri- Como resultado de tal postura, é possível ob-
tas entre certos tipos de parentes, etc., faz crer servar na história da ciência social, mais especifica-
que em ambos os casos, os fenômenos observá- mente na história da ciência sociológica, a desaten-
veis resultam do jogo de leis gerais, mas ocul- ção e, de certo modo, a desqualificação de teorias
tas” (Lévi-Strauss, 2003, pp. 48-49). que, por parecerem ter sido construídas a partir de
analogias com as ciências naturais, têm sido criti-
Lévi-Strauss estava convicto de que a mesma cadas e descartadas mesmo antes de ser mais bem
possibilidade de identificação de leis estruturais dos compreendidas. A noção de sistema social proposto
diferentes níveis que estruturam o sistema linguísti- por Vilfredo Pareto, nas primeiras décadas do sé-
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culo XX, é um desses casos. Este artigo tem por descrição do estado geral de uma sociedade huma-
finalidade central demonstrar que a refinada noção na”. Guy Rocher (1971, p. 131), quando se refere à
de homeostase (equilíbrios sistêmico), que surge em contribuição de Pareto à sociologia, inicia seu texto
1932 e passa a ser utilizada por teóricos consagra- afirmando que ele provavelmente foi “o primeiro a
dos e em conhecidas teorias sociológicas – aponta- exprimir de uma maneira inequívoca a necessidade
remos ao longo deste trabalho – já se encontrava de modelos formais em sociologia e o postulado do
nos trabalhos de Pareto desde 1916/1917. sistema social”. Donald N. Levine (1997, p. 214)
argumenta que “Pareto empenhou-se em distinguir
um nível coletivo da realidade humana não redutí-
O sistema social de Pareto tal como tem sido vel a fenômenos individuais [...] para tanto, concei-
conhecido tuou o sistema como uma realidade que consiste em
complexos de forças interdependentes”. O próprio
Vilfredo Pareto inicia sua carreira intelectual Parsons, por ocasião da publicação de The social sys-
nas ciências econômicas e posteriormente nas ciên tem (1968, p. vii), reconhece o pioneirismo de Pare-
cias sociais. Engenheiro de formação, graduou-se to ao aplicar o termo à sociologia.
na Politécnica de Turin, com uma tese sobre o equi- Se por um lado Pareto tem seu reconhecimen-
líbrio dos corpos sólidos,3 mas sua notoriedade, po- to garantido na história teórica da sociologia como
rém, deu-se no campo da economia, cujas pesquisas pioneiro na utilização do conceito de sistema para
foram publicadas, em 1895, no Giornale degli Eco- conceber a diferenciação entre o individual e o
nomisti. Em 1896-1897, em Lausanne, onde lecio- coletivo no âmbito das ciências sociais, por outro
nava, publicou o Cours déconomie politique. Parece lado, à sua proposta sistêmica não faltaram críti-
ter sido pela via dos estudos econômicos que, mais cas. Pareto publicou o Trattato di sociologia general
tarde, Pareto preocupou-se com temas relativos à simultaneamente em duas línguas, em 1916/1917.
sociologia. Surge, então, o Manuale di economia Essa obra, que apresenta o conceito de sistema para
política, em 1906, com uma ampla introdução à ci- descrever analiticamente a sociedade, foi descri-
ência social e, mais tarde, o Trattato di sociologia ge- ta em diversos textos sociológicos durante todo o
neral é publicado em 1916/1917, simultaneamente século XX, inclusive por autores contemporâneos,
em italiano e em francês.4 como aquele que apresentava a noção de sistema
A obra de Pareto é bastante extensa, com uma construída a partir de analogias mecanicistas.
série de exemplos e com inúmeras inconsistências, Autores vinculados a diferentes tradições so-
é verdade, a partir de um ponto de vista teórico e ciológicas têm classificado o modelo sistêmico de
metodológico. Rodrigues (1984) argumenta que a Pareto como um “modelo mecânico”. Ao se referir
prolificidade de Pareto está contida em 287 títulos, à sociologia de Pareto, Walter Buckley (1971, pp.
sendo 173 de livros, artigos e folhetos, além de 114 24-25), por exemplo, comenta que “os conceitos
artigos de caráter político, publicados em jornais. físicos de espaço, tempo, atração, inércia, força, po-
Segundo esse autor, as Obras completas de Pareto der [...] foram novamente tomados de empréstimo
chegam a 25 volumes. Entretanto, dentre os tantos com os seus novos atavios conotativos e aplicados
eixos temáticos que a obra de Pareto suscita, serão à sociedade”. Dourado de Gusmão (1972, p. 99),
de interesse para este artigo a noção de sistema e a em seu livro que trata da teoria sociológica, no ca-
sua tese de equilíbrio sistêmico social, proposta em pítulo dedicado a Pareto, intitulado “Mecanicismo
seu Trattato. sociológico”, afirma: “As ideias de Pareto podem
É importante salientar que Pareto tem sido re- ser classificadas na corrente do pensamento socio-
conhecido na teoria sociológica, por alguns autores lógico conhecida por mecanicismo sociológico [...]
do século XX, como o precursor da utilização do que, originária do século XIX, é, juntamente com o
termo sistema para descrever a sociedade. Theodore mecanicismo filosófico, influenciada pelo progresso
Abel (1972, p. 133) afirma que: “Pareto foi o pri- das ciências físico-químicas, alcançado no século
meiro teórico a utilizar o termo ‘sistema social’ como passado”. Numa menção clara à teoria do conhe-
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cimento proposta por Comte à fundação da socio- (1951), em meados da década de 1920, tendo um
logia como disciplina do conhecimento científico, distanciamento de menos de dez anos em relação à
G. Duncan Mitchell (1973, p. 178) argumenta que referida obra de Pareto, percebesse as suas analogias
“a sociologia de Pareto pertence mais à época de como mecanicistas.
Comte que à de Durkheim e Weber”.5 Entretanto, quando se analisa a sua noção de
Autores atuais, a partir de uma visão histórica sistema, à luz dos avanços que a ciência obteve sobre
da sociologia e de uma revisão da teoria sociológi- esse conceito, é possível constatar que Pareto estava
ca que abrange os mais importantes clássicos, ou apresentando uma perspectiva extremamente sutil e
tomam o sistema sociológico paretiano como pro- inovadora. Como os sociólogos do início do século
duto de analogias mecânicas oriundas das ciências XX, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial,
físicas – como apontam Cuin e Gresle (1994) ao momento em que o durkheimismo entrava em
intitularem seu pequeno comentário sobre a socio- declínio, estavam afoitos para se livrar de qualquer
logia de Pareto como: “A física social de Pareto” –, analogia entre a sociologia e as ciências naturais, não
ou não chegam a discutir o sistema social de Pareto perceberam que a proposta sistêmica de Pareto
diretamente, partindo da noção de sistema propos- poderia conter uma renovada fundamentação epis-
ta por Parsons, dessa vez, destacando as analogias temológica do próprio conceito de sistema, o qual
cibernéticas, evolucionistas ou fisiologistas, como veio à luz, certamente com a contribuição de suas
em Giddens (2001, pp. 115-159). ideias, algumas décadas depois. A fisiologia norte-
Em verdade, a classificação da noção de siste- -americana, contrariamente, percebeu isto com
ma proposta por Pareto como um sistema mecâni- agudez e clareza. É o que se pretende demonstrar a
co, até onde se pode chegar, remonta a uma vasta seguir, discutindo o profundo interesse dos eminen-
obra (875 páginas) denominada Contemporary so- tes pesquisadores no campo da fisiologia pela teoria
ciological theories,6 publicada nos Estados Unidos, de Pareto.
em 1928, por Pitirim Sorokin.7 Este autor inicia De fato, a analogia proposta por Pareto não
a obra, já no capítulo I, com o seguinte título “La é tão simples assim, como fora vista e tratada por
escuela macanicista”, no qual diz: “nesta escola po- Sorokin (1951) e aceita e divulgada por boa parte
dem ser classificadas todas as teorias sociológicas dos teóricos que trabalham com a noção de sistema,
que interpretam os fenômenos sociais com a ter- conforme mencionamos, até os dias de hoje, con-
minologia e conceitos da física, da química e da solidando assim o que se poderia chamar de uma
mecânica” (1951, pp. 1-65). Pareto está classificado “história oficial”, no que diz respeito à origem da
dentro dessa “escola”. noção de sistema na teorização sociológica. A noção
Sem dúvida, Pareto defendeu o método das paretiana sobre sistema contém reflexões, implícitas
ciências naturais (o indutivismo, o dedutivismo e o e explícitas, que não foram captadas pela sociologia
experimentalismo) para o conhecimento da socie- da época – pela fisiologia, sim, como veremos a se-
dade. Ele inicia o Trattato afirmando que “no do- guir – e que se tornaram um dos principais pontos
mínio da sociologia tentaremos empregar, movidos de desenvolvimento da noção de sistema em diver-
pela experiência, os meios que se mostraram tão sos ramos disciplinares do conhecimento.
úteis no domínio de outras ciências” (§ 6). Acres-
centa ainda que “todas as ciências encaminham,
umas mais outras menos, seus estudos para o tipo Sociologia e biologia
lógico-experimental [...] nossa intenção é estudar a
sociologia dessa maneira...” (§ 68) (Pareto, 1984). Como a meta central deste artigo é propor um
Certamente, seu Trattato de sociologia conside- novo enfoque sobre aspectos históricos da forma-
rou, para a descrição da sociedade como sistema, ção do pensamento sociológico, especificamente
condições físicas como clima, fauna, flora; referiu- com relação à noção de sistema utilizada durante
-se a moléculas, sistema solar, espaço etc. Como todo o século XX em diferentes abordagens teóri-
veremos, era absolutamente legítimo que Sorokin cas desenvolvidas não apenas pela sociologia e pelas
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ciências sociais, mas de forma interdisciplinar, será 1942), professor da Universidade de Harvard, não
apresentada a seguir uma breve digressão históri- era um sociólogo ou cientista social de formação
ca (didática) do que se passou na Universidade de e de profissão, mas sim um eminente fisiologista,
Harvard, envolvendo os conhecimentos socioló- professor da faculdade de Medicina daquela univer-
gicos e fisiológicos. Nesta digressão, a finalidade é sidade. Ele formou-se na Harvard College em 1898
uma reconstrução transdisciplinar e histórica, para e na Harvard Medical School em 1902 e trabalhou
situar aspectos da formulação do conceito de siste- naquela instituição, como pesquisador na área das
ma utilizados até os dias de hoje. Assim, serão re- ciências naturais, por 35 anos, tendo publicado im-
latadas ocorrências, acontecimentos, coincidências, portantes trabalhos no campo da fisiologia, os quais
intercâmbios teóricos entre a biologia (mais espe- tiveram repercussão internacional.9
cificamente a fisiologia) e a sociologia, nas três pri- As referências de agradecimento feitas por Par-
meiras décadas do século XX, nos Estados Unidos, sons ao seu colega de Harvard não são desproposi-
que a história da sociologia parece ter negligencia- tadas, posto que ambas as obras, A estrutura da ação
do. Isto pode fazer com que se percebam as ana- social, de 1937, e Sistema social, de 1951, direta ou
logias organísmicas – cuja sociologia sempre fora indiretamente tratam de aspectos teóricos da obra
acusada de realizar – por um viés muito diferente. de Pareto – na primeira, existe todo um capítulo
É de amplo conhecimento que Parsons, ao pu- dedicado a ele. Acontece que L. J. Henderson, ape-
blicar o Social system, em 1951, declara, no prefácio, sar de fisiologista, já era considerado um dos maio-
que o título da obra deve-se à “insistência do Pro- res especialistas da obra de Vilfredo Pareto, espe-
fessor L. J. Henderson pela importância extrema do cialmente de seu Trattato di sociologia general. Para
conceito de sistema na teoria científica e pelo seu se ter uma ideia mais clara do quanto Henderson
claro entendimento de que a tentativa de delinear o relacionava-se com a sociologia e, em especial, com
sistema social como um sistema constitui a contri- a sociologia de Pareto, é particularmente interes-
buição mais importante da grande obra de Pareto” sante a menção que Merton faz a ele ao discutir
(Parsons, 1966, p. 17; 1968, p. vii).8 Sem dúvida, questões epistemológicas e metodológicas da socio-
o título Social system constituiu-se em uma home- logia; diz Merton (1970, p. 59): “É essa tendência
nagem póstuma a Henderson, pois ele falecera em [refere-se ao empirismo e ao racionalismo] que le-
1942, portanto, alguns anos antes de Parsons lan- vou o bioquímico L. J. Henderson, sociólogo nas
çar essa obra. Em outra obra de Parsons, anterior ao horas vagas, a observar”. Merton apresenta uma –
Social system, por certo aquela que o tornou conhe- hoje curiosa – citação de um texto de Henderson,
cido, A estrutura da ação social, publicada em 1937, que reproduzimos a seguir, incluindo a mesma nota
também aparece no prefácio um agradecimento ao de rodapé, feita por Merton, apresentando a refe-
professor L. J. Henderson, em que Parsons declara rência bibliográfica de L. J. Henderson, qual seja:
ter “submetido o manuscrito a um exame crítico
[...] levando a uma importante revisão de muitos A diferença entre a maioria dos modos de
pontos, em especial relativos à metodologia cien- construir sistemas nas ciências sociais e os sis-
tífica em geral e à interpretação da obra de Pareto” temas de pensamento e classificação nas ciên-
(Parsons, [1968], p. 29). Se Parsons submeteu sua cias naturais é bem visível em suas respectivas
primeira grande obra, que foi publicada em 1937, à evoluções. Nas ciências naturais, tanto as teo-
apreciação de Henderson, certamente isto ocorreu rias como os sistemas descritivos crescem pela
alguns anos antes, dada a sua extensão (aproxima- adaptação ao conhecimento e à experiência
damente 600 páginas). crescente dos cientistas. Nas ciências sociais, os
A partir dessas declarações de Parsons em duas sistemas são muitas vezes completamente formu-
de suas obras de maior relevância, há de se supor lados pela inteligência de um só homem. Caso os
que ele está agradecendo a um colega de Harvard, sistemas atraiam a atenção, podem ser, então,
também sociólogo. Entretanto, isto não é de todo muito discutidos, mas é rara a modificação
verdadeiro. Lawrence Joseph Henderson (1878- progressiva e adaptável como consequência dos
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esforços conjugados de grande número de es- inclusive, a sociologia – esta última, por vezes, com
tudiosos (Henderson, 1941, pp.19-20). 10 uma inexplicável resistência – têm apresentado, não
raramente, suas produções teóricas da discussão de
De fato L. J. Henderson tornou-se um pro- matrizes epistemológicas complexas. Entretanto,
fundo conhecedor de Pareto na época da Grande nas três primeiras décadas do século passado, tal
Depressão. Publicou, em 1935, uma obra sobre a noção, como possibilidade de pesquisa teórica e
sociologia de Pareto intitulada Pareto’s general socio- empírica, era absolutamente vanguardista.
logy: a physiologist’s interpretation. No terceiro capí- Ao ampliar um pouco a digressão pelos mes-
tulo dessa obra, intitulado “The physico-chemical mos meandros desta “pequena” história da ciência,
system”, L. J. Henderson (1935, pp. 10-16) explica é importante que se apresente outro personagem,
o comportamento de sistemas complexos,11 primei- também de Harvard, pesquisador e professor, mé-
ramente recorrendo às descrições de Josiah Willard dico e fisiologista, chamado Walter Bradford Can-
Gibbs (1839-1903) – físico, químico e matemático non (1871-1945), considerado um dos maiores
estadunidense – e, posteriormente, afirmando que: fisiólogos norte-americanos. Cannon concluiu a
escola de Medicina também em Harvard, em 1900,
Todos os fatores que caracterizam tal sistema e trabalhou lá de 1906 a 1942 (Infoplease, 2012) –
são vistos como apresentando uma mútua de- lembre-se de que Henderson formara-se em 1902 e
pendência [...] as complicações que resultam trabalhara até quase o final de sua vida, em 1942.
do estado de interdependência das variáveis Portanto, L. J. Henderson e W. B. Cannon eram
coloca um problema lógico de grande impor- colegas de formação e de profissão, inclusive chega-
tância [...] Isto tem surgido, recorrentemente, ram a publicar juntos e a citar um ao outro em suas
em muitas ciências que têm atingido um certo produções acadêmicas.
estágio de desenvolvimento. Entre os inúmeros trabalhos e artigos escritos
por W. B. Cannon,12 encontra-se o livro The wis-
No quarto capítulo de Pareto’s general sociology dom of the body, publicado em 1932, internacional-
(1935), intitulado “The social system”, Henderson mente conhecido – no Brasil, publicado sob o títu-
passa a descrever o sistema social proposto por Pa- lo A sabedoria do corpo, em 1946.13 Essa publicação
reto, argumentando que um dos principais traços teve o mérito de difundir um dos mais importantes
da sociologia geral de Pareto é apresentar um es- conceitos desenvolvidos na fisiologia, por Cannon,
quema sistêmico para descrever a sociedade simi- qual seja: homeostase. Logo no início do livro, ainda
lar aos esquemas apresentados por Willard Gibbs. na introdução, Cannon (1946, pp. 12-13, grifos do
Este e os demais capítulos tratam o tempo todo de autor) apresenta esse neologismo e o explica:
demonstrar a forma complexa como o sistema so-
cial de Pareto foi concebido. Henderson (1935, pp. A constância das condições observadas no or-
17-18) destaca que o sistema social proposto por ganismo pode ser designada como equilíbrio.
Pareto iguala-se, teoricamente, a distintos tipos de Este termo, no entanto, tem sua relativa exati-
sistemas que estão começando a ser concebidos em dão quando aplicado a estados físico-químicos
diferentes ciências (termodinâmica, fisiologia, eco- mais ou menos simples, nos sistemas correlatos
nomia) como sistemas que não podem ser explica- em que forças conhecidas são balanceadas. Os
dos em termos de causa e efeito, mas que precisam processos fisiológicos coordenados pela manu-
de descrições baseadas necessariamente em uma tenção da maior parte das condições estáveis
noção de dinâmica. no organismo são tão complexos e tão peculia-
É importante ter em mente que, hoje, na se- res aos seres vivos [...] que sugeri uma designa-
gunda década do século XXI, tornou-se (quase) ção especial para esses estados, homeostase.
lugar-comum no meio acadêmico abordar a ques-
tão da complexidade. Ciências tais como a física, O termo ficou de fato tão conhecido que dei-
a química, a biologia, a economia, a psicologia e, xou de pertencer exclusivamente às publicações es-
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pecializadas na área. O Dicionário Aurélio (1988, p. primeiras décadas do século XX. A passagem escrita
344), por exemplo, assim o define: “Tendência à es- por L. J. Henderson (1935, p. 46) sobre o sistema
tabilidade do meio interno do organismo”. O termo de Pareto, a seguir, é bastante esclarecedora:
passou a ser amplamente conhecido nas ciências na-
turais, inclusive na cibernética, justamente pelo fato O tratamento sobre equilíbrio sobre o qual nos
de ter sido proposto e estar associado à noção de referimos [...] é evidentemente muito signifi-
autorregulação. De fato, a ideia de homeostase ou ho- cante. Pareto observa que o estado do sistema
meostasia significa a tendência que organismos vivos social é determinado por essas condições. As-
têm em manter ou retornar ao estado de equilíbrio sim, se uma pequena modificação do estado do
sempre que este for alterado por condições adver- sistema [de Pareto] é imposta sobre ele, uma
sas (perturbações), externas ou mesmo internas ao reação se fará presente e ele tenderá a restaurar
seu funcionamento. Numa série de processos tanto o estado original, levemente modificado pela
em nível fisiológico como bioquímico, a homeosta- experiência.
se está presente. Este termo veio a contribuir, direta
ou indiretamente, com uma lacuna conceitual para Essa passagem é particularmente significativa e
a descrição de diferentes tipos de sistema, possibili- deveria sê-lo para a história da teoria sociológica, por-
tando o surgimento de outros termos corolários, tais que dois dos maiores fisiologistas da época, um deles
como: realimentação, auto-organização (descritos profundo conhecedor de Pareto, revelam que a no-
logo no início do surgimento da cibernética), equi- ção de sistema social proposta por Pareto não ape-
líbrio estável e instável, na teoria do caos (Lorenz, nas está de acordo com as pesquisas que se iniciaram
1996), sistemas afastados do equilíbrio, para des- pelo eminente físico, químico e matemático Josiah
crever sistemas físicos e químicos (Prigogine, 1966) Williard Gibbs mas também antecipa noções teóri-
etc. Assim, os trabalhos de W. B. Cannon tiveram cas (equilíbrio, manutenção e restauração do equilí-
papel importante ao influenciar no avanço da refle- brio) que estavam sendo buscadas para a compreensão
xão sobre sistemas complexos em diferentes discipli- de processos orgânicos. Também é importante salien-
nas do conhecimento científico. tar que L. J. Henderson, na mesma obra (1935, pp.
Certamente as pesquisas realizadas por L. J. 16-17, nota 4), esforça-se por atestar a genuinidade
Henderson eram do conhecimento de W. B. Can- do pensamento de Pareto dizendo: “Devo advertir
non. Não apenas por serem colegas de disciplina ao leitor que não existe a menor razão para acredi-
e estarem convivendo na mesma instituição por tar que Pareto tenha conduzido sua teoria através
mais de duas décadas mas também porque tanto da consideração de propriedades dos sistemas físico-
um como o outro estavam mergulhados num caldo -químicos. Também o seu trabalho não é de forma
teórico muito semelhante, ou seja, a noção de sis- alguma a aplicação da ciência natural à ciência so-
tema aplicada a processos fisiológicos de um modo cial”. Esta citação fala por si só e o mais impressio-
geral, bem como a necessidade de enfocar os siste- nante – para não dizer irônico – é que quem atesta a
mas de modo não linear. Mesmo tendo sido publi- genuinidade do pensamento de Pareto com relação
cada a interpretação fisiológica sobre a teoria geral à sua perspectiva sistêmica é um dos mais eminentes
de Pareto (Pareto’s general sociology: a physiologist’s fisiólogos norte-americanos, ao passo que os soció-
interpretation), de L. J. Henderson, três anos depois logos, até os dias de hoje, continuam percebendo a
(1935) que W. B. Cannon publicou seu The wis- noção de sistema proposta por Pareto como analo-
dom of the body (1932), fica claro que Henderson, gias mecanicistas e evolucionistas; ou oriundas da
já há algum tempo, identificara na obra de Pareto a fisiologia, do conceito de homeostase, proposto por
concepção de complexidade sistêmica para compreen- Walter Cannon. A passagem de textos atuais, como
der o social. Tal abordagem proposta por Pareto era do eminente sociólogo inglês Anthony Giddens, ao
muito semelhante à que propusera o matemático retomar a discussão sobre o funcionalismo, é espe-
Gibbs, na última década do século anterior, e que cialmente ilustrativa. Diz ele:
vinha sendo trabalhada pelos fisiólogos nas duas
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Primeiro, o desejo de demonstrar que existe nicista. Isto é verdade, está lá, escrito na obra desse
unidade lógica entre as ciências sociais e as na- autor. Entretanto, por uma questão de justiça, não
turais, ao menos na medida em que a última se pode responsabilizar esse eminente sociólogo rus-
lida com sistemas complexos [...] Talvez seja so, que migrou para os Estados Unidos em 1923 e
válido observar que a iniciativa não partiu ape- fundou o Departamento de Sociologia de Harvard,
nas do lado sociológico do muro. Os escritos de por ter estigmatizado o sistema proposto por Pare-
Cannon, por exemplo, apresentam tentativas to como mecanicista. Parte dessa responsabilidade
de estender suas teorias até o ponto de explicar cabe à própria sociologia, como disciplina, e a sua
as instituições sociais, empregando analogias or- “desde-sempre-mal-resovida” relação com as chama-
gânicas que notadamente remetem ao "organi- das ciências naturais. Essa ressalva é feita a Sorokin
cismo" presente na teoria social do século XIX. pelo fato de que, em seu texto, ao se referir ao mé-
Segundo, é óbvia a crença de que é proveitoso, todo empregado por Pareto (1951, p. 40), ele alerta:
na verdade necessário, tratar formas de organi-
zação social como unidades integradas de partes Não quero dizer com isto, de modo algum,
que possuem uma relação de interdependência. que a sociologia de Pareto seja similar à pri-
Claro, a “interdependência” é concebida de di mitiva "mecânica social" antes criticada. Pare-
versas maneiras, porém normalmente se con- to foi um pensador demasiado original e sério
centra em uma noção de efeito recíproco: uma para ficar satisfeito com as um tanto infantis
modificação que afeta uma parte tenderá a ter "analogias mecânicas", já descritas [...] Em to-
repercussões em outras partes, para finalmente dos os demais aspectos a sociologia de Pareto
voltar a influenciar a própria fonte geradora da tem muito pouco em comum com as "analo-
modificação. Enquanto essa situação mantém o gias mecanicistas" [...] o "Trattato" de Pareto
equilíbrio, os princípios homeostáticos observados é um produto de uma mente original sobressa-
na fisiologia também se aplicam a sistemas sociais lente científica.
(Giddens, 2001, pp. 126-27, grifos nossos).
A criticada analogia – crítica esta realizada, so-
É curioso perceber que Giddens considera toda bretudo, por sociólogos que se sucederam após a
a construção de noções tais como sistema, unidade Segunda Guerra Mundial – que fizera Pareto entre
sistêmica, relação de dependência, complexidade sis- o sistema social e o sistema solar trata-se, em verda-
têmica, equilíbrio sistêmico como tendo sido desen- de, de comparar o comportamento dos dois sistemas
volvida pela biologia – fisiologia, em última instância no que se refere a sua dinamicidade e sua manuten-
– como disciplina do conhecimento científico. Em ção de equilíbrio num determinado tempo e espa-
outras palavras, Giddens adere àquilo que se tende a ço. Pareto, antes de estar propondo uma analogia
chamar de “história oficial” sobre o pensamento sis- mecanicista entre o sistema solar e o sistema social,
têmico na ciência como um todo. Como se tem bus- o que seria mesmo infantil, como bem mencionou
cado demonstrar – se pretende terminar de fazê-lo no Sorokin, está de fato preocupado em demonstrar
próximo item –, são L. J. Henderson e W. B. Cannon que sistemas (quando complexos) mantêm-se cons-
que se inspiram nos escritos de Pareto, inclusive para tantes, permanecem como tal no tempo, apesar
a formulação do conceito de homeostase. de estar em permanente movimento e apresentar
constantes modificações, características estas que
lhes dão o poder de conservação e adaptação. Nos
O sistema social de Pareto: o que não foi termos de Pareto:
visto pelos sociólogos
Tal sistema muda de forma e de caracteres com
Anteriormente, mencionou-se que Pitirim A. o tempo, e, quando propomos o sistema social,
Sorokin (pp. 38-65) teria sido o responsável pela entendemos este sistema considerado tanto
categorização do “Tratado” de Pareto como meca- em momento determinado quanto nas trans-
DA FISIOLOGIA À SOCIOLOGIA? 173
sejam alcançados, são chamados automatica- ficialmente algumas modificações na sua forma
mente à ação de agentes que trabalham para (movimentos virtuais), logo haverá uma reação
restabelecer o equilíbrio alterado [...] Os pro- no sentido de reconduzir a forma mutável ao
cessos fisiológicos coordenados responsáveis seu estado primitivo, levada em conta a sua
pela manutenção da maior parte das condições mutação real. Se assim não fosse, essa forma e
estáveis no organismo são tão complexos e tão suas mutações reais não seriam determinadas,
peculiares ao seres vivos que sugeri uma desig- mas permaneceriam ao sabor do acaso.
nação especial para esses estados, homeostase.
O conteúdo do parágrafo 2.067 é muito signi-
Essa noção certamente contribuiu para que, ficativo, uma vez que explicitamente revela a anteci-
uma década mais tarde, fosse possível o desenvol- pação de uma percepção de complexidade sistêmica e
vimento da ideia de laços de alimentação (retroali- uma série de outros conceitos corolários que virão
mentação), com os dois artigos que inauguraram a à tona anos mais tarde. Ao examinar mais detida-
cibernética,15 possibilitando o posterior conceito mente o conceito de sistema proposto por Pareto,
de feedback system. O conceito de homeostase não é possível verificar que as noções de equilíbrio, re-
apenas precipitou a noção de “unidade sistêmica gulação e mesmo de sistemas como unidades dis-
discreta” como também foi importante para a no- cretas que se autorregulam, surgidas no decurso das
ção de auto-organização sistêmica. A esse respeito, décadas de 1930 a 1960, já estavam contidas na
Capra (1997, p. 61), ao se referir ao nascimento da concepção paretiana de 1916-1917. Se comparar-
cibernética e dos sistemas complexos, diz: “Quando mos, por exemplo, a ideia de sistema com unidade
Walter Cannon introduziu o conceito de homeos- discreta; de equilíbrio do sistema com homeostase; e
tase uma década antes [...] fez descrições detalhadas de recondução à forma mutante com realimenta-
de muitos processos metabólicos autorregulados, ção, auto-(re)organização, incluindo a noção de sis-
mas nunca identificou explicitamente os laços causais tema/entorno, verificaremos, a fortiori, que se trata
fechados que esses processos incorporavam” [grifos do mesmo sentido. Veja-se novamente o trecho de
nossos]. Tanto Capra (1997) como Ashby (1970) modo mais detalhado:
reconhecem a existência, pelo menos implícita, da
ideia de unidade sistêmica “fechada” sobre si mes- O estado real, estático ou dinâmico, do sistema
ma (laços causais) do ponto de vista informacional, é determinado pelas suas condições [internas].
na noção de homeostase apresentada por Walter Suponhamos que provoquemos artificialmen-
Cannon. te algumas modificações [perturbações] na sua
Assim, verifica-se que o fundamento epistemo- forma (movimentos virtuais), logo uma rea-
lógico da ideia de equilíbrio-desequilíbrio/retorno- ção se produziria no sentido de reconduzir-se
-ao-equilíbrio (portanto, o conceito de homeostase [autorregular-se] à forma mutante ao seu esta-
cunhado por W. Cannon) já estava presente nos do primitivo [estável ou equilibrado] (Pareto,
textos de Pareto, inclusive, de modo quase idêntico 1932, § 2.067).
ao proposto por W. Canon. Veja-se a passagem a
seguir de Pareto (1932, § 2.067 [grifos do autor]), A noção de feedback control contém em si a
que descreve o seu sistema social: ideia de estabilidade, de equilíbrio; de circulari-
dade operacional e de manutenção sistêmica. Essa
O estado de equilíbrio, em primeiro lugar, se ideia de estabilidade de um sistema conduz à fun-
desejamos raciocinar um pouco rigorosamen- damental noção de padrão; padrão de comporta-
te, devemos fixar o estado em que desejamos mento ou de um tipo de organização de um de-
considerar o sistema social, cuja forma é a terminado sistema. O fato de um padrão qualquer
qualquer hora mutável. O estado real, estático ser mantido numa unidade sistêmica nos leva,
ou dinâmico, do sistema é determinado pelas consequentemente, à ideia de (auto)manutenção.
suas condições. Suponhamos que se deem arti- Não é por acaso que tanto a noção de feedback
DA FISIOLOGIA À SOCIOLOGIA? 175
como a de auto-organização vieram à tona no líbrio quinze anos antes, sobretudo se considerar-
mesmo momento, no mesmo ano e oriundas do mos os seguintes pontos:
mesmo caldo intelectual.
As revolucionárias concepções sistêmicas sobre • As noções de complexidade e de sistemas com-
autorregulação, autorreferência e, posteriormente, plexos, que foram cunhadas ao mesmo tempo
autopoiésis – com a marcada distinção entre siste- pela ciência, tiveram origem entre a última
ma e entorno – encontravam-se, de forma pioneira, década do século XIX e os primeiros anos do
na teoria sociológica sistêmica de Pareto e, em algu- século XX. Entre diversos pesquisadores de di-
ma medida, na sua teoria econômica. Além de Pa- ferentes disciplinas, Josiah Williard Gibbs foi
reto ter sido o primeiro teórico da sociologia a uti- um dos que primeiramente descreveu um siste-
lizar a noção de sistema, o sistema por ele descrito ma físico-químico como complexo, próximo ao
diferenciava-se claramente de uma abordagem me- final da última década do século XIX.
cânica, pois apresentava uma dimensão processuale • Lawrence Joseph Henderson (1878-1942) não
uma tendência à manutenção de sua sistematicidade, era cientista social de formação nem de pro-
por meio da diferenciação de fronteiras como o fissão, mas sim um fisiólogo pesquisador de
meio ambiente. Harvard. Ele foi colega (durante sua forma-
ção e de profissão) de Walter Bradford Can-
non (1871-1945), um dos maiores fisiólogos
Considerações finais estadunidenses e que cunhou o conceito de
homeostase (equilíbrio, equilibração, retorno ao
A sociologia sistêmica de Pareto não realizou equilíbrio), fenômeno que acontece somente
uma analogia mecânica oriunda de outras discipli- em sistemas complexos.
nas do conhecimento científico para a construção • Lawrence Joseph Henderson tornou-se, mesmo
de sua noção de sistema social, cujas características, antes da década de 1930, um profundo conhe-
como se buscou demonstrar, apresentavam-se, de cedor das ideias de Pareto (sobretudo da noção
maneira implícita e explícita, muito sofisticadas. de sistema social desenvolvida por ele), que
Entretanto, a maioria dos manuais de sociologia foram compartilhadas com Talcott Parsons –
consagrou a ideia, no bojo da teoria sociológica, de certamente também foram compartilhadas
que Pareto desenvolveu um sistema social inspira- primeiramente com seu colega W. B. Cannon,
do na mecânica física. Esta tem sido a visão oficial, dada a especificidade de suas pesquisas.
quando, na realidade, a noção de equilíbrio sistê- • L. J. Henderson identificou no sistema propos-
mico, desenvolvida por Pareto para explicar a socie- to por Pareto a mesma fundamentação episte-
dade, não encontrava paralelo em qualquer outra mológica que os sistemas complexos, descritos
teoria sistêmica disponível no conhecimento cientí- por Gibbs, apresentaram. A complexidade sis-
fico no início do século XX. têmica, descrita em sistemas físico-químicos,
As ideias de Pareto apareceram nos Estados estava sendo estudada em sistemas vivos por
Unidos aproximadamente na década de 1920, W. B. Cannon.
tornando-se logo conhecidas por alguns estudio- • Pareto publicou suas ideias sistêmicas em
sos, com especial destaque pelo eminente bioquí- 1916/1917, tanto em italiano como em fran-
mico e fisiólogo L. J. Henderson, da Universidade cês; L. J. Henderson entrou em contato com
de Harvard. O conceito de homeostase, como vi- a noção de sistema desenvolvida por Pareto,
mos, foi desenvolvido somente em 1932, por Wal- ainda na década de 1920; Walter B. Cannon
ter Cannon. A noção de equilíbrio sistêmico, em publicou o conceito de homeostase em 1932.
Pareto, idêntica à noção de homeostase formulada
por Cannon, não poderia ser fruto de uma relação A ideia de que Pareto tenha realizado analogias
analógica com a fisiologia e, portanto, organísmica, mecanicistas, acredita-se, é um equívoco na história
uma vez que Pareto formulou a sua noção de equi- da teoria sociológica, uma vez que a sua noção de
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sistema extrapola qualquer fundamentação episte- Brasil, ela é confundida com outra obra de Sorokin,
mológica mecanicista e traz implicitamente a noção também volumosa (608 páginas), intitulada Sociologi-
de realimentação e auto-organização, noções estas cal theories of today, publicada nos Estados Unidos em
desenvolvidas nos anos de 1950 e 1960, respec- 1967 e traduzida no Brasil sob o título Novas teorias
sociológicas, pela editora Globo e USP, em 1969.
tivamente. Embora Pareto tenha tido uma visão
sociológica interdisciplinar na produção do conhe- 8 Utilizaram-se a edição de língua espanhola de 1966 e
a de língua inglesa de 1968. Todas as traduções foram
cimento sociológico, a utilização do conceito de
feitas livremente para este trabalho.
sistema foi profundamente original e vanguardista.
9 Achou-se pertinente, não apenas a título de curiosida-
de mas para dar uma ideia mais específica do tipo de
pesquisa e o quanto L. J. Henderson estava envolvido
Notas na área da fisiologia, apresentar a bibliografia de al-
guns (poucos) de seus trabalhos (livros e artigos) pu-
1 Ao nos referimos ao termo “pós-clássicos”, queremos blicados em língua inglesa, quais sejam: a) The order
fazer alusão à sociologia do entre-guerras, com o de- of nature (1917, 1925, 1971, 1977), 1st ed. Harvard
clínio do durkheimianismo e com a sociologia que se University Press, Cambridge, London; b) Blood. A stu-
seguiu de 1945 a 1968, momento este chamado por dy in general physiology (1928). Yale University Press,
Cuin e Gresle (1994, pp. 205-246) de “tempos das New Haven and Humphrey Milford, Oxford Univer-
ambições”. sity Press, London; c) The heats of combustion of atoms
2 Não se pode esquecer que o positivismo proposto por and molecules. J. Phys. Chem. 9 (1905): 40-56; d)
Auguste Comte, claramente explicitado em seu Curso Concerning the relationship between the strength of acids
de filosofia positiva (1983), sobretudo na Primeira Li- and their capacity to preserve neutrality. Am. J. Phy-
ção, em que expõe a finalidade do curso, era transpor siol. XXI (1908): 173-179; e) The theory of neutrality
os preceitos indutivistas-dedutivistas, utilizados tanto regulation in the animal organism. American Journal
na física como na biologia, para a nova ciência, que ele of Physiology XXI (1908): 427-48; f ) A critical study
acabara de propor, a sociologia. on the process of acid excretion. Journal of Biological
3 O nome completo original era Principi fondamen- Chemistry IX (1911): 403-424; g) The functions of an
tale della teoria dell’elasticità dei corpi e ricerche environment. Science 39 (1914): 524-27. Disponível
sull’integrazione delle equazioni differenziale che ne de- em <http://mitglied.multimania.de/Windeln/>.
finiscono l’equilibrio. 10 Os grifos são nossos; aliás, o livro todo poderá ser
4 Utilizou-se a edição francesa de 1932. Advertimos lido com muito proveito pela maioria dos sociólogos
que as citações, neste caso, dar-se-ão por meio da nu- (Merton, 1970, p. 59, nota 10).
meração dos parágrafos, como tem sido feito em toda 11 É importante frisar que, nas três primeiras décadas do
a obra original. século XX, muito pouco se conhecia sobre sistemas
5 Mesmo sem que se discuta a noção de sistema desen- complexos, como as noções de retroalimentação, au-
volvida e utilizada pela filosofia moderna, e atendo-se to-organização, dinâmica dos sistemas não lineares ou
somente aos avanços que o termo obtém a partir do a chamada física dos sistemas desordenados. A ciber-
desenvolvimento da cibernética, como na década de nética, por exemplo, surge, de fato, a partir de 1943
1950 (com a noção de auto-organização) e na déca- (Rodrigues, 2006, p. 53).
da de 1970, com os trabalhos de Maturana e Vare- 12 A título de ilustração, Walter B. Cannon publicou,
la (1997; 1995), que trouxeram à luz o conceito de em 1937, em parceria com o então professor assis-
autopoiese, além de toda a vasta reflexão sistêmica tente Arturo Rosenblueth, um livro intitulado: Auto-
proposta por Niklas Luhmann (1998), principalmen- nomic neuro-effector systems. É curioso que, seis anos
te após 1980, falar em “modelo mecânico” para se mais tarde, Arturo Rosenblueth escreverá, em parceria
referir a sistema como fundamentação teórica parece com Norbert Wiener e Julian Bigelow, um artigo de-
encerrar uma contradição epistemológica. Sobre essa nominado “Beahivior, purpose and teleology” (1946),
discussão, ver Rodrigues (2006). considerado por Latil (1959, pp. 7-8) um dos artigos
6 Neste trabalho, utilizamos a edição em espanhol, publi- que inaugura o nascimento da cibernética como ciên-
cada pela editora Depalma, em 1951, em Buenos Aires. cia. Sobre este tema, ver Dupuy (1996) e Rodrigues
(2006).
7 Não raramente, quando se faz referência a essa obra no
DA FISIOLOGIA À SOCIOLOGIA? 177
13 Utilizou-se neste trabalho essa edição de 1946. . (1941), The study of man. Filadélfia,
14 Para uma discussão sobre a legitimidade do uso de University of Pensylvania Press.
analogias nas ciências sociais, ver Rodrigues (2007). INFOPLEASE. (2012), “Walter Bradford Can-
15 O primeiro desses artigos foi publicado em 1943, em non”. The Columbia Electronic Encyclopedia. 6
Philosophy of science, por Rosenblueth, Wiener e Bige- ed. Columbia University Press. Disponível em
low, sob o título: “Behaviour, purpose and teleology”; <http://www.infoplease.com/encyclopedia/pe-
o outro intitulava-se “A logical calculus of the ideas ople/cannon-walter-bradford.html>.
immanent in nervous activity”, publicado em 1943 LATIL, Pierre. (1959), O pensamento artificial. São
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