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Eiligio atualizada segundo 0 novo Acordo Ortogritico da Lingua Portuguesa ‘Copyright © 2005 by Editions La Découvert, Paris Ficha catatogrélica eaborada pelo Departamento ‘Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP Dose, Frangois, 1950- (0 Desatio Biogréfico: Escrever uma Vida J Frangois Dosse: tradugdo Gilson César Cardoso de Souza. ~ Sto Paulo: Bditora sda Universidade de Sto Paulo, 2009 440 p. 25,5 em. Inclui bibliogratia, ISBN 978-85-314-1181-6 |. Biogeatias (Histéria). 2, Hist6ria (Biografia Historica) 1, Souza, Gilson César Cardoso de. HL. Titulo, cpp-92001 Direitos em lingua portuguesa reservados & Edusp ~ Eaitora da Universidade de Sao Pavlo A. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 {6° andar ~ 4, da Antiga Reitoria — Cidade Universitaria (05508.010 ~ So Paulo ~ SP~ Brasil Divisio Comercial: Te. (11) 3091-4008 / 3091-4150 SSAC (11) 3091-2911 ~Fax (11) 3091-4151 ‘wwedusp.com-br~ e-mail: edusp@usp.br Printed in Brazil 2009 Foi feito 0 depdsito ezal AIDADE HEROICA Também a arte musical tem sido, depois de muito tempo, objeto de empreendi- mentos biogrdficos. Lembremo-nos de que a primeira grande biografia escrita sobre Beethoven foi da lavra de Romain Rolland. Publicada em 1903, tinha por objetivo “fazer com que os homens respitem sopro dos herdis”. O essencial das biogra- fias de compositores que acompanham a histéria da musica sio as monografias que informam ao piiblico de melémanos as etapas de elaboragdo das obras-primas do patrim6nio musical. Nesse dominio, como em outros, © foco incide evidentemente nos maiores, nos herdis criadores, Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Mabler...: “A concepgdo mais difundida dessas biografias de compositores consiste em separar material em duas partes: a vida e a obra. Quarenta por cento so assim consagra- dos & narrativa da vida do misico, em geral nao problematizada historicamente, 60% ao estudo panordmico da obra em si, contendo um certo néimero de elementos técnicos de pegas escolhidas””®*, E 0 caso, entre outros, da biografia de Haydn por Mare Vignal", conforme 0 esquema clssico, adotado até os anos 1960, da tese de doutorado em Letras pés-lansoniana. As variantes so, porém, numerosas. Varios estudos biogrficos do o méximo de atengao a ldgica da obra, como os escritos por Serge Gut, que era miisico antes de ser musicdlogo professor na Sorbonne**. A tendéncia inversa pt te 0 compositor e sua evolugao, integrando na trama cronolégica alguns elementos de sua obra, como sucede a propésito do mesmo compositor, Liszt, na biografia de Allan Walker. As edigdes Fayard adquiriram nesse campo uma s6lida reputagio gragas a uma colegdo de biografias de compositores particularmente erudita, “La Bibliographie des Grands Musiciens”*”, Esse éxito deve ser creditado a Jean Nithard, que concebeu a ilegia exclusivamen- colegao para leitores como ele proprio, ou seja, melémanos nao especialistas, Nithard comegou como o senhor “Administragio” das edigdes Fayard, ocupando-se das finangas da casa. Apaixonado pela mtsica, decidiu que havia lugar, no inicio dos anos 1980, para uma série especializada de biografias de compositores, com obras em geral volumosas eeruditas. A dupla de musicélogos Jean e Brigitte Massin, prestigiosa pela minticia e a qualidade da andlise de suas biografias, 6 a precursora da colegio da Fayard. Eles 266. Bruno Moysan, entrevista com 0 autor. 267. Mare Vignal, Haydn, Fayard, 2001 268. Serge Gut, Liszt, Fallois/L’ Age d'Homme, 1989, 269, Allan Walker, Liszt, Fayard, 2 vols., 1990, 1998, 270. Harry Halbreich, Honneger, Fayard, 1992; Jean Gallois, Ernest Chausson, Fayard, 1993; André Lischke, Tchaikovsky, Fayard, 1993; L. Bianchi, Palestrina, Fayard, 1994; Tadewz Zielinski, Frédéric Chopin, Fayard, 1995; Roger Tellart, Claudio Monteverdi, Fayard, 1997; Allan Walker, Liszt, Fayard, 1998; Manfred Kelkel, Alexandre Scriabine, Fayard, 1999; Roger Delage, Emmanuel Chabrier, Fayard, 1999; Joél-Marie Pauquet, César Franck, Fayard, 2000. 189 0 DESAPIO BIOGRAFICO. ESCREVER UMA VIDA passam pelo crivo da critica factual os escritos mais ou menos hagiogrdficos do sécu- lo XIX*", Esses estudos biogréficos permitiram situar melhor, como se da na histér literdria, o vinculo entre a vida e a obra do artista, a importancia da sensibilidade do momento, os motivos musicais € as miltiplas relagbes com o piblico. A tensio permanece forte entre o anseio de resgatar a vida de um miisico e a vontade de e célogo Rémy Stricker, que tem sélida formagao de miisico, nao se contenta com a mera justaposigao de vida e obra. Ele € autor, na Gallimard, de numerosas ¢ volu- mosas biografias cuja originalidade consiste em interrogar, por meio da misica, a palavra de um sujeito criador. Ele problematiza sua relago com cada biografia. A vida e a obra estdo inextricavelmente ligadas na perspectiva de resolugao de uma tensdo maior, prépria a cada compositor. Essa abordagem utiliza, entre outras coi- sas, a psicandlise como grade de leitura’”. Resulta daf que jamais desvendamos © enigma biogrifico, pois a andlise passa pelo trajeto do imagindrio dos compo- sitores. Assim, Rémy Stricker interroga o liame entre misico ¢ loucura no caso de Schumann: “Sua miisica no era produto da deméncia, isso € claro (pois nem a melancolia nem a mania so criadoras); ela elaborava de modo envolvente as ob- sessGes da loucura™”. Para analisar a tensio entre misica ¢ literatura na sob a forma de ficgo, podemos evocar 0 Doutor Fausto de Thomas Mann, que s¢ inspira na vida do inventor da misica serial, Arnold Schénberg, numa obra composta durante 0 periodo tragic que vai de 1943 a 1947°", Seu heréi, Adrian Leverkiihn, 6, na verdade, uma mistura de Schiinberg e Nietzsche, mas também a Alemanha in- a biogra fancia se sente subjugado por crever sobre sua misica, o que implica outra linguagem. © musi- scrita biogrifica, desta feita teira, imagindria aparece como obra do narrador, um amigo de Adrian, que desde a i ignatéria de um pacto com o Diabo. seu talento e sua inventividade. O relato persegue um efeito de coisa vivida, comum a0 género biografico, em virtude de sua proximidade, da forca das lembrangas ¢ das itas deixadas por Adrian. E: de de uma biografia, no entanto, imaginéri s, se ndo inteiramente. Confio em minha meméria e, de resto, anotei diversas notas, manus a mescla pretende suscitar a autenticida- “Minhas citagdes siio mais ou menos litera Jean e Brigitte Massin, Wolfgang Amadeus Mozart (1970), Fayard, 1990: Ludwig Van Beethoven, Fayard, 1967 272. Rémy Sricker, Robert Schumann, le musician et la folie, Gallimard, 1996; Franz Schubert, le naif et la mort, Gallimard, 1997; Georges Bizet, 1838-1875, Gallimard, 1999; Le dernier Beethoven, Gal- limard, 2001; Berlioz dramaturge, Gallimard, 2003, 273, Rémy Sricker, Robert Schumann, le musician et lu folie, op. cit, p. 221 274, Thomas Mann, Le docteur Faustus, Hachette, Livre de Poche, col. “Biblio”, 2008. 190 AIDADE HEROICA passagens logo apés a leitura deste rascunho""”. © narrador pede desculpas ao leitor pelos perfodos de auséncia, pelas lacunas quanto ao que seu amigo se tornou: “Com efeito, vivi muitas vezes longe dele, principalmente durante meu servigo militar”? ‘Ao mesmo tempo, Thomas Mann atribui a seu narrador um interesse profundo no relato, amplamente tributdrio do presente desse narrador e, na verdade, do autor: “E © fago para lembrar ao leitor as circunstancias hist6ricas em que foi redigida a bio- grafia de Leverkiihn, chamando-Ihe a atengdo para o fato de as tribulagdes inerentes a0 meu trabalho se confundirem perpetuamente, a0 ponto da indistingaio, com as que geraram as emogdes do momento’ Na esfera da musicologia, Jean-Paul Gisserot, que estreou como jornalista no Ouest-France e depois foi trabalhar com Nathan, fundou uma pequena editora e con- fiou a Rémy Stricker a tarefa de criar uma colegio de biografias de compositores: “Pour la Musique”. Essa colegao procura falar de misica por intermédio de mono- grafias de compositores: “Pour la Musique 6, pois, um convite a viajar nas melodias de um grande compositor sob a forma de um texto que evita a rigidez da cronologia, do inventério e de uma sistematica qualquer. Cada autor escolheu um miisico de que gosta a fim de travar um didlogo com ele € com o leitor””. Pelo prisma da tradigao sociolégica, deparamos com a obra de Norbert Elia que se interroga sobre o génio musical, sobre essa grandeza singular que emerge do tecido social, valendo-se do caso de Mozart”. Repelindo a ideia de um enigma que escaparia a toda explicagdo, Elias nao tenciona negar o génio de Mozart, mas fornecer elementos explicativos que nos levem a compreendé-lo gracas ao método cientffico da sociologia. Nao elabora um relato cronolégico da vida do compositor, mas parte de um modelo te6rico enraizado na “constelagdo que constitui o individu - aqui, um artista do século XVIII — por seus lagos de interdependéncia com outras personagens s da época”?™ Elias valoriza, em sua interpretagdo, 0 cardter socialmente deslocado de um Mozart posto em relagdo de dependéncia e inferioridade, por sua condicao de artis ta burgués, com respeito a uma aristocracia fechada em si mesma e segura de sua prosépia, Eis a origem de seu génio musical, caracterizado pela “busca permanente so 215. Idem, p. 164. 216. Idem, p. 185. 277. Idem, p. 212. 278, Rémy Sricker, apresentagio da colegio “Pour la Musique’, edigdes Jean-Paul Gisserot. Essa colegio ji tem em seu ativo varios titulos sobre: Beethoven, Berlioz, Brahms, Chopin, Debussy, Gershwin, Haydn, Liszt, Mozart, Ravel, Schumann, Tchaik6vski, Verdi e Weber 279, Norbert Elias, Mozart. Sociologie d'un génie, Le Seuil, 1991 20, Idem, p. 25, 191 0 DESAFIO BIOGRAFICO. ESCREVER UMA VIDA de afeto”**!, Seguro do préprio talento desde a infancia, Mozart, ainda assim, nunca se considera verdadeiramente reconhecido nessa sociedade cortesa, tanto que a vida Ihe pare subjetividade, A lei social a que se submete nao é a sua; Mozart padece da mesma inadequagdo que afeta todos os grupos burgueses condenados a uma posigao de in- ferioridade no mundo da Corte. A vida de Mozart ilustra a dificil passagem para a criagio artistica auténoma, que tenta abrir caminho pelos meandros das relagdes de dependéncia da sociedade aristocrética, Segundo Elias, esse mal-estar social, fonte de desesperanca interior, es- clarece mais o percurso do compositor que a referéncia a um talento raro, puramente pessoal, isolado da sociedade. Nesse ponto, Elias permanece & margem do conceito heroizado de criago: “Trata-se de uma das muitas formas de deificagdo dos ‘grandes’ homens, cujo reverso € 0 desprezo as pessoas comuns. Pelo préprio fato de guindar- mos um individuo acima da medida humana, rebaixamos os demais”™®, Ele niio se satisfaz com a dicotomia geralmente praticada, que opde o artista genial, verdadeiro semideus, ao homem Mozart mais ou menos desprezado. Em nossos dias, a abordagem sociolégica dos compositores ¢ utilizada por um pesquisador do Centro de Sociologia da Inovagiio de Bruno Latour ¢ Michel Callon, na Escola de Minas”: Antoine Hennion. Tomando a Luc Boltanski e Laurent Thé- yenot o modelo das cidades, Hennion se interroga tal como o musicélogo Joél-Marie Fauquet™ sobre Johann Sebastian Bach, que se tornou a prépria encarnagao da gran- deza musical na Franga do século XIX*°, Os autores se esforcam por determinar os ingredientes que fazem essa grandeza e criticam 0 método que se limita a vida do compositor, considerando que 0 gosto contemporanco € fruto de toda uma histéria, a dos tragos, das interpretagdes diversas que 0 trouxeram ao nosso conhecimento. Seu projeto nao é também uma histéria da recepgaio de Bach no século XIX, que press poria uma obra jé inteiramente constituida. Os autores querem dar conta dos usos de Bach, expediente que permite evidenciar “o cardter ativo e produtivo do gosto™, Segundo os autores, esse estudo de caso provoca uma alteragio quando Bach se torna sinénimo de misica. O compositor muda entdo de status e a mésica se transforma em Bach. Repudiando 0 relato de vida, cujas armadilhas, intengao moral carente de sentido e ele sofre de um grave déficit de afirmagio de sua 281. Idem, p. 11 282. Idem, p. 82. 283. Ver Frangois Dosse, L'empire du sens. L’humanisation des sciences humaines, op. cit. 284, Jo8l-Marie Fauquet, César Franck, Fayard, 1999, 285. Antoine Hennion, Joél-Marie Fauquet, La grandeur de Bach, L'amour de la musique en France au XIX" sidele, Fayard, 2000. 286. Idem, p. 16. 12 AIDADE HEROICA e ex6rdio & admiragao e A imitago denunciam, os autores nem por isso pretendem desqualificar 0 empreendimento biografico, mas “requalificd-lo, sublinhando expli: citamente seu cardter engajado, performético”™”. No Ambito da filosofia, Vladimir Jankélévitch, grande apreciador de mis também consagrou monografias a compositores. A diferenga do uso dominante entre os musieélogos, ele mistura vida e obra em torno de um eixo problematico que é 0 de sua epistemologia abrangente, procurando no misico uma modalidade do pen- nto do tempo, do instante, do impalpavel, do fugaz, de tudo quanto escape & racionalidade racionalizante. Reencontramos a temitica propria a esse fil sua leitura da vida dos mdsicos***: “Em musicologia ele nao € citado, pois ninguém o considera um musicélogo. Mas, a meu ver, é um dos poucos que colocam a questo do porqué da misica, Elabora uma filosofia da criagdo musical na qual o sujeito e © tempo sao igualmente importantes. Resulta daf uma andlise da modernidade nas- cente, marcada por Bergson”, a, fo em 287. Idem, p. 99. 288. Viadimir Jankélévitch, Fauré et l'inexprimable, Plon, 1974; Debussy et le systéme de instant, Plon, 1976. 289. Bruno Moysan, entrevista com 0 autor. 193

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