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Figura 1 – Últimos dias de Carlos Gomes, 1899. Quadro de Domenico de Angelis e Giovanni Capranesi.

Óleo sobre tela, 224cm x 484cm


Reprodução fotográfica, fonte: BELÉM, Prefeitura Municipal, Fundação Cultural do Município de Belém – MABE.
Catálogo de Conservação do Museu de Arte de Belém: memória e inventário. Serie Caminhos da Cultural.
CAPITULO 1
A ESPETACULARIZAÇÃO POLÍTICA
DA MORTE DO MAESTRO CARLOS GOMES

“Identificar os mentirosos e suas verdades, identificar os


verdadeiros e suas mentiras, em meio a tanta convicção e
sinceridade é missão espinhosa”
Maestro Antônio Carlos Gomes

“Suspiros angustiadores, são as vozes do meu canto”, este trecho da letra da canção Quem
Sabe escrita em 1945 com poesia de Bittencourt Sampaio, poderia ser a frase que resumiria o
amargo pranto do compositor, sem forças em seus últimos momentos, relembra toda sua trajetória
e pensa no futuro. Falando com dificuldade por causa das enfermidades advindas de um câncer na
boca que o levara a morte, provavelmente se ver perdidos em pensamentos desejando a presença
de seus filhos Ítala e Carleto, que tão longe estavam para uma possível despedida para quem ele
tanto se dedicou.

Desta quimera, cena que poderia estar em uma de suas trágicas óperas, fora esta pintada,
ele vestido com um robe branco, recostado numa chaise longue em um luxuoso quarto, imagem
está gravada num quadro que romanticamente remonta o dia fatídico na cidade de Belém do Pará
em 16 de setembro de 1896. Ao seu lado, fora pintado, triste e consternado o governador Lauro
Sodré e outros tidos nobres brasileiros, que estavam lá, acompanhando e ouvindo as derradeiras
palavras do compositor em seu leito de morte. Na cena que traz uma narrativa, um dos grupos que
lá estava, recebe o bispo Dom Antônio Manoel de Castilho Brandão, que lá estava para dar a
extrema-unção ao enfermo, pois havia chegado aquele terrível momento que todos em fé, tinham
esperança que nunca chegasse. Toda essa mise en scene gravada a tinta óleo em tela acontecia na
antiga casa que hoje não é mais existente. No Atestado de Óbito, fora firmado pelos Drs. Almeida
Pernambuco e Holanda Lima a hora que maestro faleceu às 10 h e 20 min da noite de 16 de
setembro de 1896, na casa nº 59, na Travessa Quintino Bocaiúva, de cachexia cancerosa, sob nº
2265, lavrado em 17 de setembro de 1896 às fls. 115 v. e 116 do livro nº 24 do Cartório do Primeiro
Ofício de Nascimentos e Óbitos de Belém.
Na pintura deste acontecimento, apenas os importantes homens que detinha algum tipo de
poder tiveram a honra de estarem gravados, omitindo a presença da multidão que se encontrava
por dias aguardando notícias ao lado de fora da casa, assim como os jornais da época apresenta
inúmeras informações de atividades que o povo lá fizera. Vigílias tornaram-se comuns naquele
mês de julho. Orações ao som das protofonias das tão aclamadas composições do compositor
serviam de trilha sonora para os discursos gritados em forma de homenagem vindas daqueles que
queria de alguma forma manifestar apreço pela vida e obra do artista. A bela e pujante petit-Paris
dos trópicos tornou-se espaço de execução musical de triste melodias por dias a frente. Ouvir esses
trechos musicais durante os meses que se seguiram neste penoso martírio tornou-se comuns, seja
nas praças, nas esquinas e onde pudessem tocá-las, para quem sabe com ela emanar energias
positivas e homenagens ao enfermo relatam biógrafos. Onde chamasse atenção, estaria lá algum
grupo ou um instrumentista solo a tocar em terras nortenhas.

Inúmeras eram as ações para deixar em registro aquelas condolências. Tão importante
quanto a presença naquele derradeiro dia era deixar sua assinatura como presente, já que “no
corredor estava uma mesa com um livro, em o qual inscreviam-se todos aquelles que,
completamente afflictos, apresentavam os seus sentimentos” registara o Jornal Diário de Notícias
do Pará de 18 de setembro de 1896. Dentro da casa, o quadro mostra que se apertavam várias
personalidades entre os móveis e o piano daquele quarto que fora tão luxuosamente preparado pelo
governador. Essa dedicação fizera ele questão de deixar registrado nos Relatórios dos Presidentes
do Estado, a tão humana benfeitoria feita pelo Dr. Lauro Sodré, ato que tornou-se sinônimo de
“manifestar pelo modo mais bello e patriótico o seu amor pelas artes, com o generoso acolhimento
e cuidados prestados a Carlos Gomes na longa agonia da enfermidade que o victimou”1. Honraria
como esta, até então, apenas políticos tiveram, a exemplo, das solenidades que se seguiram em
1895 no Rio de Janeiro pela morte de Mal. Floriano Peixoto. Desde então, ter um apoteótico
cerimonial de condolências como tal tornou-se símbolo político e de reconhecimento popular da
importância e grandeza patriótica para os ilustres mortos naqueles primeiros anos de República.

Dos homens presentes nesta hora extrema, em sua maioria nortistas, sabe-se que eram eles
numa rede de poderes a que o maestro estava ligado à anos, os promotores na imprensa, nos
discursos do plenário, nos salões e demais locais públicos paraense das virtudes do compositor
brasileiro. Diziam ser os únicos e últimos amigos a prestarem tamanha ajuda solidária ao nobre
moribundo que a pátria sulista ousou esquecer.

1
DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO PARÁ, 1897 Relatórios dos Presidentes dos Estados Brasileiros (PA) - 1891
a1930.http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720437&pesq=maestro%20carlos%20gomes&pasta=a
no%20189.
Deste dia, vastas são as notícias publicadas na imprensa. Em seus editoriais apresentam
inúmeras crônicas que narram as cenas ocorridas nos dias que se seguiram, apresentando discursos
acalorados e emocionados vindos daqueles que possuíam socialmente voz ativa para falar. Estes
durante os meses que o maestro viveu em Belém, sempre encontravam uma forma de falar palavras
amáveis a respeito do artista. No dia 12 de julho de 1986, o jornal Diário de Notícias do Pará, nos
traz que “a nota alegre de hontem foi o jubilo de que se achou possuído o povo paraense pelo
anniversario natalício do bravo maestro Carlos Gomes. Toda a imprensa se ocupou d’aquella
privilegiada individualidade artística”. Nesta nota, é cita que pra lá “affluio o que há de mais
notável no nosso meio, a sauda-lo pelo dia do seu aniversario”. E também salienta que ainda
tinham a esperança de que “estas demonstrações de apreço hão de minorar as dôres que consonem
o seu phísico que todos desejavam fosse curado para maior gloria da Patria, que faz votos para
que na constelação do cruzeiro continue a bilhar aquelle astro de esplendora grandeza”.

Perceptível que Carlos Gomes era admirado e defendido por grande parte da Imprensa
Nacional e naquele Estado não seria diferente. Nos principais jornais do Pará, a exemplo: Folha
do Norte, Diário de Notícias, O Pará, A República, dentre outros, entre homens e discursos,
nomeados eram cada um destes “benfeitores e promotores de gesto altamente patriótico”, pelo
fato apoiarem o doente, ou até de preparem o cadáver para as homenagens póstumas nos braços
do povo apaixonado paraense que aguardava-o para homenagens, argumentavam os jornalistas.
Assim fizeram desde a chegada deste enfermo compositor vindo da Europa para no Norte
comandar o recém Conservatório de Música do Pará, trazendo todo o seu prestígio a afrancesada
cidade de Belém.

“Afinal, hipotecar solidariedade ao sofrido compositor brasileiro no seu martírio, e,


depois, representar-se nas suas exéquias, eram gestos que indicavam um elevado grau de
virtude cívica, legitimados perante o corpo social como expressão de consciência da hora
grave vivida pela pátria ao perder o seu principal artista. Tais contingências somadas às
figurações do mito gomesiano na memória coletiva, certamente iluminam os caminhos
pelos quais o imaginário de Carlos Gomes foi realimentado e retrabalhado no Pará, tanto
em associações de operários como em agremiações elitizadas, todas de alguma maneira
reunindo os órfãos do fechar das asas do Condor...” (COELHO, 1948, p. 36)

Como falado, meses antes do fatídico dia, a população já havia demonstrado seu apresso
pelo compositor que tão ansiosamente o aguardavam. Em 06 de maio de 1896, o Diário de Notícias
do Pará emite nota que, “Hoje deve aportar n’esta capital o vapor Obidence que traz a seu bordo
o cabeça de leão, maestro Carlos Gomes, uma das nossas glorias nascionaes”. Quase toda a
cidade o aguardava ansiosa e fazia os preparativos para recebê-lo. O jornal A Folha do Norte de
05 de maio de 1896, exemplifica este momento, apresentando como a sociedade e empresários se
mobilizavam para essa aclamada chegada. Nele, o Sr. Alberto Sclolosser, proprietário do
frequentado CAFÉ RICHE, vê-se colocar metade do lucro daquele dia como doação para que
aplicar-se nos festejos de recepção do maestro que escolhera o Pará para morar e trabalhar. Assim
também fizeram outros comerciantes, grupos sociais e políticos estavam envolvidos neste ano e
faziam ações para arrecadar fundos para a recepção. O historiador Geraldo Mártires Coelho cita
que:

“As páginas dos jornais da época listam certamente todas as associações


culturais, musicais e dramáticas atuantes em Belém, muitas vezes com a
respectivas identidades sociais reveladas pela condição profissional de seus
integrantes, devido à participação que tiveram nas manifestações públicas
em torno da figura reverenciada de Carlos Gomes” (1948, p. 35-36)

Não fora a primeira vez que ele lá esteve. O encanto popular paraense se dera muito antes
da chegada para lá morar e faz rememorar diversos acontecimentos daquela época e o
entendimento da representação que o compositor possuía naquelas mentalidades. Gomes, em maio
de 1882, lá esteve para reger a sua maior obra, a ópera I Guarany no recém criado Teatro da Paz,
espaço construído aos moldes europeu que trazia ares de modernidade e desenvolvimento para
aquela capital. De forma entusiasmada era narrada a chegada do testa di leone, pois era aquele que
encarnava a figura de gênio musical e de herói triunfante em terras europeias estava ali aportando
para reger uma aclamada obra. Sobre a sociedade, Coelho sobre essa chegada, cita que
representava através da arte o que vinha “triunfando na sociedade urbana brasileira, com
marcante ressonância em cidades como Belém, a música e o teatro representavam dois elementos
modelares do tipo de sociabilidade visível nos primeiros centros do país no final do Oitocentos”
(1948, p. 28). Na república, a erudição dos homens do império serviu de espelho e contraponto
para os intelectuais deste novo período. Iniciou-se na década de 1890 e nos primeiros anos do
século XX, um engajamento na participação política e cultural dos bacharéis, maçons e dos líderes
políticos locais chamados coronéis. De fato, politicamente e socialmente era o coronel o principal
elo entre a população e o Estado2.

A ostentação tornava-se o modo de vida operante naquelas primeiras décadas, que via na
arte e mecenato, parte importante para de demonstrar riqueza de um modo de vida abastado,
pertencente a um circuito cultural proeminente na capital do Pará. Eram estes os frequentadores
assíduos dos salões de arte, eram os homens das letras, profissionais liberais, educadores e que
juntos a seus familiares formava parte importante desta nova elite cultural da cidade. O
memorialista Apolinário Moreira comenta sobre o cenário musical, as recepções elegantes que
ocorriam. O uso corrente do idioma francês tornou-se comum naquela época nos espaços públicos
e de arte como sinônimo de erudição e fineza. As demonstrações de um comportamento

2
CUNHA, Marly Solange Carvalho da. Terra, poder e as relações familiares: José Porphirio de Miranda Jr.. Revista
de Cultura do Pará, v. 17, 2006, p. 65-107.
europeizado estava sempre presente nas reuniões familiares, nos passeios públicos, sem falar nas
indumentárias que importadas ou copiadas da Europa3.

Neste clima de grande metrópole que ganhava a cidade de Belém. Em paralelo, os jornais
paraenses, ansiosos por notícias, enxergavam no compositor o progresso e a modernidade para
aquela pacata cidade que crescia largamente graças ao ciclo da borracha. Assim, registrando essa
chegada com riqueza de detalhes da acolhida feita pelo Governo Estadual e sociedade, a Folha do
Norte de 15 de maio de 1896 publica:

“Carlos Gomes
Veio hontem no Obidense, conforme se esperava, o eminente compositor
brasileiro maestro Carlos Gomes. Logo que dêu aquelle vapor em nosso
ancoradouro, varias lanchas, tendo a seu bordo representantes da nossa
sociedade, partiram do littoral, em demanda do Obidense, entre ellas a
Tucunaré, onde iam as commissões das sociedades Propagadora das Bellas
Artes, Atheneu Commercial, Ordem e Progresso, o capitão Meirelles,
ajudante de ordens do Governador, representando-ao s. exc, bem como
muitos outros cavalheiros, admiradores do illustre viajante, em caracter
particular, em nome da imprensa e outras corporações.
O preclaro artista, cujo aspecto physico acha-se grandemente abatido,
abraçou com viva comoção a quantos foram recebel-o, referindo-se em
phrases de reconhecimento ao dr. Lauro Sodré e ao Estado do Pará quando
o soldou o sr. Capitão Meirelles.
Em virtude da sua enfermidade é pouco perceptível a falla de Carlos
Gomes, precisando empregar-se detida attenção para comprehender-se o
que elle enuncia.
Passadas as naturaes emoções do primeiro momento, o grande artista
manifestou o intenso jubilo que lhe ia n’alma ao ver de n ovo um dos
trechos da querida patria, e onde já sabia estavam-lhe preparados, com
máxima solicitude, os confortos de que carece em tão pungitiva
emergência.
O desembarque effectuou-se no trapihe da Amazon Company, onde grande
massa de povo aguardava a chegada do maestro, a quem saudou
respeitosamente.
Um carro de praça postado pouco adiante do trapiche conduzio o insigne
artista á casa n 50, á travessa dr. Fructuoso Guimarães, em cujo percurso
foi acompanhado pelo capitão Meirelles e maestro Roberto de Barros e
outros.
A residência do inspirado artista está montada com a máxima decência,
nada faltando relativamente aos confortos e ás comodidades que requer a
sua enfermidade.
Ahi o esperavam, além do dr. Antonio Marçal, outras pessoas, com quem
o maestro trocou effusivos cumprimentos.
Está, pois, satisfeito o ardente e intenso desejo que tanto torturava a alma
magnânima de Carlos Gomes, nas críticas horas em que em extranhos lares
soffria as primeiras arremettidas do mal que ainda o afflige: vio já um
pedaço da patria querida, está entre patrícios que o veneram e acarinham e
sobe este céo lucido e eternamente primaveril que lhe aqueceu a ardentisou
a inspiração.
Dando-lhe as boas vindas, a Folha reitera ao immortal autor da Fosca os
votos que a seu respeito fez com a máxima sinceridade na edição de quarta-
feira ultima.
Uma hora depois de instalado na sua nova residência, o glorioso artista
recebeu a visita do sr. Dr. Lauro Sodré.”

3
MOREIRA, Apolinário. “O último discurso acadêmico”. Revista da Academia Paraense de Letras. Belém, janeiro
de 1977, p.77.
No mar de palavras que circundaram toda a agitação que houve na pomposa recepção
realizada para o artista, que teve a presença de banda de música, lanchas com várias comissões da
sociedade e de jornalistas que foram lá recebê-lo e logo transportá-lo para casa, de princípio, nas
narrativas que se seguem é sentido o sentimento de esperança naquelas, pois se é possível entender
que ao dizer que “sobe este céo lucido e eternamente primaveril” poderia ser o artista “aquecido
e ardentizado” de inspiração composicional da qual fazia-lhe falta desde os últimos
acontecimentos em sua vida.

A notícias não ficavam apenas emitidas nas narrativas da imprensa. Corriam pela cidade
os falatórios a boca miúda entre os moradores. Belém tinha um pouco mais de 50 mil habitantes4,
e boa parte da população esteve presente naquela recepção. Tudo que foi visto motivava os
comentários nas rodas de conversas. As cenas que viram, principalmente a impressão que tiveram
que lhes causaram o aspecto físico de Gomes, era o que mais comentavam. Ver como definhava
com a enfermidade aquele envelhecido compositor que em nada lembrava o imponente maestro
das fotos e ilustrações expostas exaustivamente nos últimos anos comovia a população. Forte e
ativo outrora, a imagem atual era de um fraco homem que despertava os sentimentos mais penosos
naqueles que tiveram a oportunidade de vê-lo chegar e abraçar cada um dos presentes como se
tivesse através deles se despedindo do povo brasileiro. Está fora a sua última aparição pública.

Na casa preparada para ele, já o aguardava uma junta médica comandada pelo Drs. Paes de
Carvalho e Numa Pinto. Em 16 de maio de 1896, o jornal Folha do Norte publicava para acalmar
a população que a comissão de médicos teria dito ao recebê-lo que “o que precisa antes de tudo e
por todos os motivos, é de muito descaço: que, não tem razão para entregar-se ao desanimo em
que o vêmos: seu estado com quanto não deixe de melindrar, não é para desesperar”.

4
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1890: https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00
Figura 2: Última foto do compositor tirada dias antes de sua morte,
na cidade de Belém pela ocasião da posse no cargo de Diretor do Conservatório de Música do Pará.
Autor desconhecido.

As repercussões e falatórios corriam pelo o país. A respeito da recepção e estado de saúde


do artista, a semanal Revista Ilustrada do Rio de Janeiro, na sua edição 714 do ano de 1896,
publicava matéria escrita pelo editor da revista, o Luís de Andrade, sob o pseudônimo de “Júlio
Verim”, trazendo elogios aos políticos e enaltecimento ao governador do Pará pela acolhida ao
ilustre artista neste momento tão delicado e de comoção nacional:

“Carlos Gomes
Temos seguido, palpitantes de commoção, as vicissitudes da doença, que
ultimamente tem afligido o grande brasileiro, e se alguma cousa nos tem
consolado neste transe, de ver padecer um homem que se ama, que se
idolatra mesmo, é ver a carinhosa sollicitude com que todos, desde o chefe
do Estado até o povo, procuram dar um lenitivo qualquer ao illustre
enfermo.
Póde-se dizer que o Brazil unanime, de Norte a Sul, ora se alegra com as
noticias de que o maestro apresenta melhoras, ora se consterna com os
telegrammas que noticiam graves soffrimentos.
Mas, não é só no Brazil que isto se dá e que este sentimento se manifesta.
O estrangeiro domiciliado aqui compartilha a mesma comoção e em alguns
paizes europeus e americanos a sorte do autor do Guarany preoccupa
também os bons corações.
Na Republica Argentina, por exemplo, sabemos que se projecta um
concerto em sua honra, no qual todas as bandas militares executarão
musicas do inclyto compositor.
E assim que se consegue reduzir a nada esses preconceitos que, muitas
vezes existem entre os povos.
Em Portugal e na Itália, é vivo o interesse em saber notícias do nosso
maestro.
Pelo seu lado, o Congresso de S. Paulo já escreveu bella página votando
uma lei que é galardão para elle, grande homenagem e séria garantia para
o futuro de seus estremecidos filhos.
Em Pernambuco, na Bahia e em outros Estados, demonstrações honrosas
têm sido levadas a effeito.
Mas, sobretudo, no Pará, nesse bello risonho Estado que tem á sua frente o
bello talento de Lauro Sodré, tudo quanto é possível imaginar-se tem sido
posto em pratica, para conservar tão preciosa vida e suavizar os
soffrimentos de Carlos Gomes.
Honra a esses patriotras!
Nós, aqui diariamente, galvanisamos a esperança de que a natureza vença
a doença pertinaz e que a vida do maestro se prolongue, como felizmente
tem acontecido, para gloria da patria e sincero jubilo de quantos apreciam
o gênio e sabem dar lhe devido valor!
Deus conserve, ainda por muito tempo, tão preciosa existência.
Taes são nossos votos
Julio Vernin”

Em tempos de dominação da Primeira República, imersa no controle das oligarquias


latifundiárias, caracterizada pelo predomínio do poder da classe média e dos militares, cada dia se
tornava mais conflitante com a expansão crescente da burguesia industrial, que entravam fortes
nas disputas pelo controle de setores de poder, por isso, todas as repercussões que tomavam conta
do país abriam discussões que não eram pertinentes ao Governo Estadual de Lauro Sodré e seus
embates políticos. As notícias e falatórios que circulavam a respeito do artista e de seu estado de
saúde, também ganhava o debate acerca do uso dos recursos públicos para esse tratamento. Muito
dispendioso estava sendo para o Pará trazê-lo a assumir o recém criado Conservatório, como
também, o seu tratamento sendo pago pelo Estado antes mesmo deste tomar posse da direção da
instituição de ensino.

Um outro ponto agravante eram as questões que envolvia já algum tempo a vida deste
compositor no aspecto político. O simbolismo que dele emanava naqueles novos tempos não o
fazia bem aceito. Carlos Gomes era o representante máximo das glórias do império, do na Europa
exilado D. Pedro II. Por isso, fora ele preterido pelos republicanos, para quem tantas coisas já
haviam lhe negado.

É importante compreender que ainda no Império, havia para muitos Gomes se tornado “voz
dos abolicionistas”. Ao escrever a ópera Lo Schiavo e estreá-la no Brasil em 27 de setembro de
1889 numa conturbada produção, dedicada a princesa Isabel, em gesto de retribuição pela Lei
Aurea por ela assinada 13 de maio de 1888 que extinguiu a escravidão no Brasil oficial, já neste
período teve ele inúmeras dificuldades para no Brasil ver seus trabalhos sendo executados. Para
ter sucesso nesta ópera, teve ele que mudar o personagem principal, que ao invés de ser um negro
escravizado como no enredo original escrito pelo Visconde de Taunay, fora novamente usada a
imagem do índio, agora das tribos Takuyas para contar a história da escravidão no país. Mesmo
assim, a repercussão de uma ópera intitulada “O Escravo”, desperta diversas debates e
acirramentos. “A voz autorizada do Supremo abolicionista devia ser altamente ouvida na apoteose
do Sublime Maestro da Abolição”, escreveu o mulato engenheiro André Rebouças em
correspondência para Joaquim Nabbuco5 colocando o compositor como símbolo deste momento.

5
Correspondência. Fundação Joaquim Nabuco JN-CPp 40 doc. 915, 3.
Carlos Gomes pagaria amargamente por representar simbolicamente dois grandes desprazeres
daquela burguesia republicana. Por ser símbolo do império e por ter escrito algo em homem a
abolição. Existia clara uma relação representativa em jogo neste período de transição. Carlos era
entendido claramente de duas formas enquanto indivíduo. Ora era visto como homem público a
serviço da pátria em construção e ora seria o artista político de um tempo que eles queriam
esquecer.

Politicamente e financeiramente, década ingrata para torna-se anos de 1890 para ele.
Gomes em carta de 08 de novembro de 1891 nos mostra seu pensamento para com o congresso
nacional que o perseguia. Neste mesmo ano da promulgação da nova Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil, também marcava mais um ano de tentativas para obter uma pensão
do governo. Escreve ao amigo Emílio Henking:

O Congresso, já sabes, brilhou como ele só podia brilhar...


- As cigarras, quando guincham e arrebentam por si, não fazem melhor figura!
Agora vou pedir a Nenê Aranha que me dê pelo menos licença de pegar um bando de vira
bostas no suspirado do Guanabara, mas que sejam vira bostas de várias cores, como o
caráter dos deputados paulistas.
Não sei, enfim, de que modo agradecer aos congressistas da terra paulista; só compondo
para eles um novo Hino, mas eles já têm o da opinião pública! – Ainda não sei o rumo
que devo tomar, mas brevemente saberás. 6

Nestes embates políticos e na não separação de arte e política, um novo trajeto é dado a
reputação artística de Carlos Gomes. O novo destino traçado vai da glória ao esquecimento em
poucos anos. Sua trajetória em vida ganhava uma triste dimensão de enredo. É na carta para César
Bierrenbach escrita ainda em Milão, no 22 de novembro de 1895, que Carlos Gomes apresenta
claramente o seu entendimento circunstancial daqueles tempos, e mostra o lhe fez aceitar o cargo
de diretor do Conservatório de Música de Belém do Pará, já que em sua terra natal – Campinas –
estava desprestigiado e não conseguiria nenhum cargo em qualquer estabelecimento musical,
intencionava por ser o local que quando criança e adolescente lecionou canto e piano, além de
compor e cantar suas primeiras obras que permitiu sua projeção.

O Dr. Bierrenbach, encostando-se sobre o tronco de um jequitibá, puxa por um cigarro,


desenrolando febrilmente após arrancar pelo isqueiro de chifre, rasga fogo, acende o pito
e, rompe o silencio entre a fumaça aromática.
- Então não fumas? Tonico, tu que eras um fumador constante?
- Quem dera! Já fumou muito, mas hoje não posso fumar nem folha de banana seca!
- Então falta, conta, narra, desembucha. Onde é que te dói?
- Doer não dói, mas... é ruim de doer...
- Por isso mesmo (?) explicação que te pedi. Sou todo ouvidos!
- Serei breve – disse o Tonico
“Há cerca de dois anos escrevi de Milão a um poderoso Campineiro, expondo-lhe o
projeto da fundação de uma Eschola, um Lyceo ou Conservatório de música na terra natal,
por mim dirigido.

6
Carta de Carlos Gomes a Emílio Henking. Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1891. MCG.
N’aquela minha proposta havia um misto de sentimentos sinceros e naturais em
todo o bom brasileiro, sentimentos leais e baseados sobre a mais sólida palavra do homem
prático e sério: o patriotismo.
Ingenuidade minha! Fraqueza humana!
A resposta que tive, depois de muita demora, sabes qual foi? Foi a seguinte:
- Fim! – respondeu-me o todo onipotente, – a Ideia é boa mas... é preciso dar tempo ao
tempo. 7

Ponto importante a ser visto nesta carta, é que não fora só em Campinas as negativas para
lá desenvolver uma escola de música. As cidades de São Paulo, Barbacena e do Rio de Janeiro,
em meio a tantas incompreensões que a política emanava naqueles tempos, também lhe dava
negativas, possivelmente pela crescente acusação de impostor e de forasteiro a que lhe era
atribuída, onde politicamente era alimentado os falatórios daquela época de transição, fazendo-se
crer que em nada tivesse ele a ver em referencial de brasilidade e inspirador para este novo Brasil:

“Já saberás do mano Juca ou pelos jornais ter eu aceitado o lugar de diretor do
conservatório de musica de Belém no Pará.
Ainda não recebi a nomeação oficial, mas tenho fé em recebê-la muito
brevemente.
Se como espero, tiver de realizar a minha residência no Pará, realizar-se-á
também o meu sonho antigo, o ultimo sonho de brasileiro patriota, morrer em
terra do Brasil.
A proposta, da qual te falo n’esta carta, não tendo sido aceita, me privou de
restabelecer-me em Campinas com meus filhos e, lá ficar até o fim do meu fim.
No Rio não me querem nem para porteiro do Conservatório, em São Paulo nem
para boleiro, em Campinas não me compreenderam, julgando-me talvez um
impostor, um forasteiro. Assim pois tudo acabou em eiro, isto é, sem cheiro!”8

Como visto, as especulações sempre estiveram presentes em sua vida. Assim, neste últimos
momentos, originou-se dois movimentos acerca da representação e simbolismo presente no
maestro. Em um, havia a procura por parte do governo de um esquecimento proposital do
compositor, já por parte de alguns políticos e imprensa um enaltecimento patriótico e solene que
pegava carona nas repercussões e acontecimentos.

Nesta situação, onde a imprensa amiga e dele admiradora noticiando cada detalhe, pegando
carona nas repercussões surgem os cientistas salvadores com fórmulas ditas por eles como
“milagres da ciência”. São médicos que afirmavam ter a cura, através de seus elixir e
procedimentos da terrível enfermidade do compositor. Dias após essa chegada, os jornais do Rio
de Janeiro, São Paulo e do Pará publicam notas afirmando que um médico alemão, o Sr. Niemmer,
professor de farmácia em Ouro Preto, estava indo para capital do país e de lá embarcaria para o

7
Carta a César Bierrenbach. Milão, 22 de novembro de 1895. MCG.
88
Carta para César Bierrenbach (MCG) Origem: Milão, 22 de novembro de 1895.
Pará, pois garantia ter a fórmula para esta cura, era mais um suspiro de esperança para a população
que os jornais diziam está apreensivas com as notícias:

“Dá-nos a Folha uma notícia que muito nos alegrou, e vem a ser, que um
professor alemão da eschola de pharmacia de Ouro Preto, assegurou que
curaria ao ilustre maestro Carlos Gomes, seguindo logo para o Rio aonde
devera ter chegado em 28.
Este professor deverá partir para esta cidade em 30.
Que Deus o traga com brevidade e a salvamento e que restitua ele a saúde
ao nosso ilustre hospede são os anhelos anciados do
Gurany.”

Parte importante a se entender é como comum eram nestes editorias a produção de matérias
noticiosas para um interesse político e especulativo. Sérgio Miceli afirma que era comum a
dominação de grupos de políticos, empresários e da burguesia nas notícias:

Não havendo, na República Velha, posições intelectuais relativamente


automizadas em relação ao poder político, o recrutamento, as trajetórias
possíveis, os mecanismos de consagração, bem como as demais condições
necessárias à produção intelectual sob suas diferentes modalidades, vão
depender quase que inteiramente das instituições e dos grupos que exercem
o trabalho de dominação. Em termos concretos, toda a vida intelectual era
dominada pela grande imprensa que constituía a principal instância de
produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e
posições intelectuais. Os escritores profissionais viam-se forçados a
ajustar-se aos gêneros que vinham de ser importados da imprensa francesa:
a reportagem, a entrevista, o inquérito literário, e em especial, a crônica.
(1977, p. 15)

É em meio a tantas honrarias e homenagens, seja na chegada ou nos momentos póstumos,


que há de se perceber nestes discursos vinculados na imprensa, também assim como no quadro
pintado por De Angelis e Camprenesi, a falta de palavras das pessoas comuns, do chamado povão
que lotava as ruas em busca de acompanhar este acontecimento considerado de tamanha
importância e inédito para aquela cidade. Entre os relatos da morte do tido grande artista nacional,
vemos citadas apenas personalidades, onde a imprensa faz um papel imprescindível na criação de
narrativas que apostam na forma positivista de descrever os fatos, e nelas constroem reputações,
imagens e projeções dos momentos, com o uso do apelo emotivo a que a morte se vincula nas
mentalidades.

Ponto importante de se perceber é que sempre nestas narrativas, havia menções as


personalidades que se dedicavam exaustivamente e financeiramente, que se revezavam em visitas
e palavras amáveis encorajadoras, e se faziam humanamente presentes como se estes fossem da
família do compositor naquela cidade. O que se observa é que foram estes homens que se
projetaram como sendo os novos símbolos de bondade e patriotismo. Em tempo de criação de
novos ídolos e heróis, eles eram os que serviriam para os propósitos de inspiração de ideais
republicanos que estavam sendo construídos e ganhariam futuramente condecorações e
homenagens tal qual o maestro.
Um ponto a se considerar em meio as inúmeras notícias que eram vinculadas é que estas
atendiam também a ânsia criada na população por estes órgãos de imprensa. As notícias serviam
para alimentar os falatórios diários, e nesse jogo, se é possível identificar a ânsia da imprensa em
a dar como furo a notícia da morte do compositor. As notas não eram de exclusividade da imprensa
paraense. Jornalistas do Rio de Janeiro, São Paulo e do Pará acompanhavam in loco cada momento,
cada procedimento que era feito e acabam entrando na contramão da estratégia de esquecimento e
difamação deste compositor que fora imposto pelo governo para aqueles que lembrassem ou
defendesse o regime monárquico. O jornal xxxxx chega dias antes de sua morte, publicar o
passamento do compositor, gerando comoções mesmo antes do dia que realmente acontecera. O
jornal O Lynce de 20 de maio de 1986, publica nota afirmando que sobre a conferência do Dr. Paes
de Carvalho, “o resultado concludente dessa conferência foi que o glorioso auctor do Guarany,
sendo impossível operal-o. O tratamento a fazer-se é todo antipsetico e considerado simples
palliativo”. No dia 6 de setembro de 1896, Machado de Assis, publica artigo na revista A Semana,
afirmando a morte eminente.

“Carlos Gomes não deixará esperanças dessas. ‘Talvez ao chegarem estas


linhas ao Rio de Janeiro, já não exista o inspirado compositor, que entrou
em agonia’, diz uma carta do Pará publicada ontem no jornal do Comércio.
Pois existe, está ainda na mesma agonia em que entrou, quando elas de lá
saíram. Hão de lembrar-se que há muitos dias um telegrama do Pará disse
a mesma cousa, foi antes dos protocolos italianos. Os protocolos vieram,
agitaram, passaram, e o cabo não nos contou mais nada. O padecimento,
assim longo, deve ser forte; a carta confirma esta dedução. Carlos Gomes
continua a morrer. Até quando irá morrendo? A ciência dirá o que souber;
mas ela também sabe que não pode crer em si mesma.” (ASSIS, 1994,
p.142).9

Sobre este momento de conflitos políticos, Geraldo Mártires Coelho (1948, p. 30-33),
afirma que é nesta Belém da época da folies du látex, emergente nas mentalidades urbanas,
frenética e mundanas nas aspirações comportamentais da belle époque, que se tornou comum ver
o Dr. Lauro Sodré sendo exaltado de forma positivista como novo santo e grande homem, e neste
caso, em narrativas de altivez, era contado como ele abraçava o artista gênio decaindo em
enfermidade, como forma de conforto humano aos últimos dias de Carlos Gomes, frase-título esta,
que fora dada ao quadro romântico pintado após a morte do compositor campineiro, encomendado
pelo intendente municipal Antônio Lemos o qual abre e motiva este capitulo no estudo das
representações. Sua conclusão e exposição se deu três anos após a morte do maestro, em 17 de
setembro de 1899, a título de homenagem, mas afim também de intencionalmente registrar na
história na cena os seus “participes”. Assim declarou Antônio Lemos:

“inaugurei no salão de honra da Intendência uma grande tela alegórica,


representando os últimos dias de Carlos Gomes, falecido nesta capital a

9
ASSIS, M. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3.
16 de setembro de 1896. É um formosíssimo trabalho artístico dos
pintores Domenico De Angelis e Giovanni Capranesi, os quais receberam
por ele inúmeros elogios da crítica europeia”. (LEMOS apud COSTA,
2006, p. 2)

Neste jogo de especulações e criações de imagens por influenciadores da época


espetacularizando a morte para um fim, é pela iconografia pictórica que encontra-se sem dúvidas
uma das formas de melhor compreensão das representações de acontecimentos numa análise com
ênfase histórica. Embora esta mencionada obra não corresponda plenamente a uma memória
nacional, ou ainda queira nos apresentar uma visão estereotipada e mitológica dos fatos ocorridos,
é através dela, um dos meios pelos quais podemos compreender e revelar detalhes, estratégias,
construções realizadas por estas figuras de importância política e social naquele momento, que
estavam na busca de criar representações que os enaltecessem, num processo que se apoderava da
história real e desempenhava um papel decisivo neste na construção visual, referencial-histórica
do país, moldando-as aos seus interesses políticos e pessoais.

É na pictografia da imagem romantizada do quadro “Os últimos dias de Carlos Gomes”


(figura 1) e em no acervo fotográfico que fora produzido, publicado e expostos em repartições e
espaços público ou pela imprensa da República Velha, encartes, ilustrações e outros que ainda se
pode ter acesso, é que se é possível conferir sob a égide de um individualismo de interesse político,
o início da ressignificação deste artista dentro de uma estratégia de socialização, apresentando
novas narrativas e representações através das imagens que circundavam nos diferentes atos que
se deram, seja na recepção, comemoração de aniversário ou de exéquias que se seguiram, todos
tiveram significativas repercussões políticas no país. Por elas, existe a possibilidade de
compreender parte deste processo, principalmente como mesclavam a arte a política, através do
sentimentalismo e simbolismo para representar as formas de poderes, usando assim estratégias de
persuasão coletiva.

A obra “Os últimos dias de Carlos Gomes”

Procedimentalmente, a respeito desta obra e sua feitura, é imprescindível vislumbrar como


que em meio as orientações políticas, puderam ousar dois pintores estrangeiros e professores de
pintura na Escola de Bellas Artes do Pará, com algum tipo de liberdade de ação, criar uma pintura
narrativa acerca desta morte. Esta antes de tudo, é entendida no seu interesse de construção
imagética para representar o poder, usa da arte visual para uma persuasão, numa exposição de
forma apelativa, usando de uma espiritualidade privilegiando os sentimentos mais profundo, visa
persuadir com o tamanho peso que a morte tem nas vidas das pessoas, todos aqueles que pelo
retrato desta cena estivessem à procura. Desde o final do século XVIII, as aperfeiçoamento das
técnica de pinturas e paletas de cores possibilitaram uma nova forma de pintar o corpo morto, de
modo que ele se tornasse belo e até mesmo amado, pois neste século, a morte deixa de inspirar
medo. (CORBIN, 2012, p.298) afirma que “O novo valor e a nova dignidade conferidos ao corpo
defunto resultam da crescente emoção suscitada pela morte individual.”

Já no século XIX, Corbin10 (2012, p.300) afirma que instaura-se uma nova dignidade do
cadáver: “O crescimento do desejo de eternidade acompanha a nova sedução da morte romântica,
concebida como um sono em que a suavidade, associada à presença do anjo, torna-se
insidiosamente uma promessa de sobrevida”. Todas as imagens que nestas criações imagéticas são
postas, representam símbolos importantes num conjunto de decoração funerária que traduzem de
início a esperança implícita. Isto é conceitualmente chamado de “A Bela Morte” ou a Morte
Romântica. Este estilo de representação torna-se tema recorrente nas pinturas e representações, e
neste período na fisionomia, “ressalta-se a beleza do morto: ‘o rosto calmo que parecia dormir e
repousar de todas as suas fadigas’” (ARIÈS, 1982, p.454).

No livro O homem diante da morte de Phillipe Ariès, encontre uma interessante definição
acerca do conceito de morte romântica: Este é o tempo das belas mortes (no século XIX), a morte
sublime. Temos na morte o reconhecimento de um porto seguro desejado e por muito tempo
esperado, ou seja, o repouso antigo que misturava-se a outras ideias mais novas de eternidade e de
reunião fraternal, a morte torna-se motivo de felicidade. O romantismo veio destacar e exaltar a
natureza da morte. (1982, p.446). Assim, “A convicção do irrepresentável da morte, ou seja, a
putrefação convida à estetização do cadáver, imagem de uma vida passada, à representação da
beleza da morte”. (CORBIN 2012, p.298)

Nestas construções, são usadas pelos artistas fielmente as raízes estéticas do Romantismo
oriunda do movimento filosófico e literário surgido na Alemanha na segunda metade do século
XVIII, o Sturm und Drang (em vernáculo “Tempestade e ímpeto”), para representar, reivindicando
delas os direitos do sentimento contra a razão, da originalidade contra a convenção, da experiência
mística e da fé, afim de se chegar a uma imagem que mexesse com uma infinitude racional e
alcance a emoção dos apreciadores.

Não é de interesse se ater em considerar real ou não a cena assim como fora pintada, mesmo
sabendo que este quadro fora considerado polêmico, por não ser condizente com a real forma da

10
COLI, Jorge. Como estudar Arte Brasileira do Século XIX? São Paulo: Ed. Senac, 2005.
CORBIN, Alain. Dores, Sofrimentos e misérias do corpo. In CORBIN, A.; COURTINE J.;
morte do compositor. Essa polêmica perdurou até o final do século XX, como descreve cem anos
depois o jornal Correio Popular de Campinas, em 15 de setembro de 1996, que o quadro presente
no Museu de Arte de Belém “retrata uma cena que não existiu: Carlos Gomes deitado em sua
cama e rodeado de ilustres, quando na verdade ele morreu sozinho em uma rede”. Nesta
representação iconográfica, é perceptível ver sendo criada uma nova narrativa, não baseada nas
obras e qualidades artísticas do compositor como antes fora, mas sim na perspectiva de construir
um mito gomesiano, que pudesse motivar os desejos de uma república recém-criada, carente de
mitos próprios (CARVALHO, 1995).

Na ilusória construção da morte, o quadro de De Angelis e Capranesi, se pode observar


que além do personagem principal da obra pictórica, que encontra-se na centralidade, vemos por
este simbolicamente divididos dois grupos de importantes personagens, que foram identificados
no artigo de Emerson Oliveira (2007, p. 98)11. Da esquerda para a direita, os dois primeiros são os
próprios pintores italianos, De Angelis e Capranesi, respectivamente, que pela imagem,
provavelmente tomam notas de quem estava lá no quarto e dos fatos lá ocorridos. Pintam-se
provavelmente para dar veracidade ao fato de que lá estiveram, mas também, projetam-se como
pintores de um aclamado momento, dando através de suas imagens a assinatura a obra, assim como
outros pintores também faziam, a exemplo, o pintor paraibano José Américo nas obras do “Grito
do Ipiranga” e “Tiradentes”. Logo atrás, identifica-se o jornalista Licínio Silva que acompanhava
o compositor em Belém por designação do amigo Antônio Lemos. Olhando fixamente para
Gomes, Raul Franco, o seu enfermeiro. Com a mão no queixo, lastimando provavelmente vir a ter
o mesmo destino, o professor e colega músico Ernesto Dias. Logo após, de uniforme, o coronel
Gama Gosta, que estava lá como membro da comissão executiva do Diário de Notícias do Rio de
Janeiro, acompanhando e dando notícias a imprensa sobre o estado de saúde do compositor. Já ao
fundo, de cabeça baixa, Clemente Ferreira. Ainda no grupo da esquerda, em primeiro plano,
Visconde de São Domingos junto a cadeira do piano. No lado direito, simbolicamente posto como
a Cristo, sentado ao lado de Deus, encontra-se o governador do Pará, Lauro Sodré, e ao lado dele
o vice-governador, Gentil Bittencourt. Dando a sensação de movimento a cena, Carlos Gomes
tenta através das mãos, em movimentos leves, expressar algo, já que dificilmente conseguiria falar
com o cancro na língua e com a fraqueza de seus últimos minutos. Hierarquicamente atrás do
governador, está o senador e intendente Antônio Lemos, como mencionado, fora quem
encomendou a obra. Logo após vem os jornalistas Marques de Carvalho, Antonio Leite Chermont
e João do Rego. Já no penúltimo grupo, pode-se ver os médicos José Paes de Carvalho, Miguel
Pernambuco e Numa Pinto em conversa com o bispo Dom Antônio Manoel de Castilho Brandão.

11
OLIVEIRA, Emerson Dionisio Gomes de. “Últimos dias de Carlos Gomes”: do mito “gomesiano” ao “nascimento”
de um acervo. Revista CPC, São Paulo, n. 4, p. 87-113, maio/out. 2007. Disponível em: . Acesso em 12 jul. 2019.
No último grupo, representando as artes e artistas do Estado do Pará, o deputado federal Pedro
Leite Chermont (primeiro presidente da Associação Paraense Propagadora das Belas Artes), já à
sua frente, o Capitão Serra Pinto (inspetor do Arsenal da Marinha). Logo em seguida o General
Cláudio do Amaral Savaget (chefe do 1º distrito Militar) e o Coronel Augusto de Vasconcelos
Chermont (inspetor do extinto Arsenal de Guerra), (OLIVEIRA, 2007, p. 98).

Figura 3 – Detalhe do rosto de Carlos Gomes representado no quadro Últimos dias de Carlos Gomes, 1899. Quadro de Domenico de Angelis e
Giovanni Capranesi. Reprodução fotográfica, fonte: BELÉM, Prefeitura Municipal, Fundação Cultural do Município de Belém – MABE.
Catálogo de Conservação do Museu de Arte de Belém: memória e inventário. Serie Caminhos da Cultural.

Seguindo fielmente as tendências estéticas e filosóficas do período, ponto a ressaltar acerca


da visão da morte, é que ela passa a ser um objeto de amor e desejo naquela época. A representação
da aparência bela do morto também é um signo de ausência de sofrimento físico, não só isso, é
signo também da ausência de sofrimento espiritual. Por isso o rosto do morto passa a exprimir
tranquilidade que indicia um possível reencontro no além com aqueles que ficaram.
(RODRIGUES, 1983, p.175). Silio Boccanera Junior que não estava presente na hora da morte,
escreve ao jornal sobre aquilo que ouviu dizer : “Expirou o eminente maestro. Cerrou-lhe os olhos
o Dr. Lauro Sodré… A morte de CARLOS GOMES foi completamente serena. O arquejar
regularíssimo diminuiu a pouco a pouco e o último suspiro esvaiu-se num ofego quase
imperceptível. A expressão do rosto é serena.”12.

Esta morte romântica quando analisada em diversos aspectos estilísticos, pode se perceber
a preocupação com a estética e a criação de uma representação docilizada do compositor. Em meio
as deformidades no rosto e corpo causadas pelos efeitos do câncer, sem falar de seus traços de
caboclo, existe uma forte sensibilidade dos pintores em retratá-lo de forma que este pareça belo
aos padrões estéticos arianos da época, com gestos e expressões suavizadas, como se estivesse
caindo em um sono calmo e profundo. Esteticamente ainda se percebe com o uso das cores opacas
e das técnicas do Chiaroscuro, a luminosidade contrasta dando palidez a cena, no sentido de

Trecho do capitulo "Momentos Finais", do livro - "Olhos de Águia" - Maestro Antônio Carlos Gomes - A
1212

Trajetórias de um Gênio – de Denise Maricato. 2014


nostalgia, permeando na pintura de modo que represente uma atmosfera de profunda tristeza; a
disposição espacial em que o moribundo fora colocado pelo artista e a demonstração de afeto deste
para aqueles que não o deixaram na solidão na hora da morte são elementos bastante característicos
desta construção estética romântica da bela morte da época, algo que apresentado em outras formas
de ilustração desta morte.

Figura 4: Fotografia do leito de morte do maestro Carlos Gomes, Setembro de 1896. Acervo da família.

Comum era o engajamento político neste período que tinha o intuito de criar uma arte
voltada ao engrandecimento da nação brasileira através de pinturas históricas e criações de
símbolos, que no caso o usavam agora de pessoas que representasse uma brasilidade e conquistas
importantes para o orgulho do país. Assim como na pintura, vemos na fotografia acima, como uma
outra expressão artística que fora usada para alicerçar as construções representativas e as
ressignificações dos novos heróis brasileiros. Deste dia, inúmeras fotos foram produzidas, onde
nesta, se é possível conferir a quebra de um discurso imagético produzido no quadro dos pintores
De Angelis e Capranesi e do relato dos jornais que apontavam ter ele morrido solitário numa rede.
Nesta foto, fora montada uma outra cena que se preocupou com inúmeros simbolismos. Há de se
observar que o quarto não lembra em nada o ambiente criado por De Angelis e Capranesi, mas
vale perceber que a fotografia também não fica longe da imagem mitológica por eles criada.

Como dito, envolto a inúmeros simbolismos, percebe-se um corpo embalsamado, tendo ao


lado, símbolos que divergem da realidade social e religiosa do mesmo. Cercado de flores e de
objetos como partituras de suas obras, instrumentos musicais, o símbolo da libra representando a
arte musical, e uma cruz acima de sua cabeça, se percebe o primeiro conflito, o religioso.
Simbolizando o cristianismo, o crucifixo é um dos principais pontos de discordância, já que Gomes
era maçom, e neste período, participantes da maçonaria não recebiam consagrações católicas.
Existem relatos que nenhum sacerdote o visitou em sua agonia e nem na hora da morte, assim
desmentindo o que apresenta no quadro. Ele não recebeu extrema-unção, nem hóstia consagrada,
mas ambas as imagens convergem para as exigências de um apelo religioso, e aponta a força que
a igreja católica detinha nas mentalidades daquela época. Existem narrativas que citam, que num
gesto piedoso, o Dr. Pedro Clermont colocou-lhe sobre o peito um crucifixo na hora final, mas que
em nenhum momento quisera Carlos Gomes receber as consagrações católicas.

Ponto que este trabalho se atem é que ambas as imagens foram idealizadas aos moldes da
"bela morte" do Romantismo que tinha como ferramenta também o apelo através da religião. Em
ambas, a imagem tenta construir, seja com o piano na pintura ou com as partituras na foto a ilusão
que até nos seus últimos segundos, a dedicação e amor a música fora uma constante. Fizeram para
quem sabe calar o falatório de que naqueles meses, em nada Carlos Gomes serviu para engrandecer
o Conservatório de música, já que não tinha a possibilidade de falar e nem forças para escrever.
Na foto, se é destacado o tão esperado repouso, o sono intérmino, a clareza, mas também o triunfo
silente do grande artista diante da morte, deixando como legado sua obra. Diziam os jornais, que
o maestro não morrera; antes, cruzara os umbrais da Fama. Algo mais imagens queriam esconder.

O mito Gomesiano

Antes de compreender o mito gomesiano, é preciso entende-lo como pertencente as


inúmeras estratégias de mudanças sociais que usou o da simbologia no Brasil nos anos iniciais da
República até a Era Vargas. Junto a esta criação vem a instituição de marcos patrióticos e a
construção de novos heróis nacionais nestes processos de ressignificações históricas que
ocorreram nos primeiros tempos do século XX. Estes marcos iniciam com o decreto que declara o
dia 17 de Setembro, feriado no estado do Pará:

“Decreto nº 316 de 17 de setembro de 1896 – Feriado dia 17 de setembro


do corrente ano – O Governador do Estado, em homenagem à memória do
maestro CARLOS GOMES, resolve declarar feriado em todas as
repartições do Estado o dia de hoje – Palácio do Governo do Pará, 17 de
setembro de 1896 – Lauro Sodré”.

Outro ponto são as representações que foram criadas em homenagem ao artista. A imagem
do artista morto em sua pátria e outras ilustrações passam a usadas como souvenir nos jornais,
distribuídas no comércio e demais repartições, a ser exposto nas casas daqueles que faziam parte
de uma burguesia em reconfiguração, contudo, segundo Silio Boccanera: “Carlos Gomes morreu,
porém, torturado por mil dissabores e pela angústia de não ter sido compreendido nem auxiliado,
senão por meia dúzia de amigos e fiéis companheiros.”13

Figuras 6 e 7: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Jornais ilustrados imprimem diversos cartazes em homenagens póstumas. A obra e a


reputação, do artista forma um novo discurso, este agora criado aos moldes do novo regime
político. Com as repercussões, homenagens, discursos, notícias, dar-se prosseguimento, diversos
processos e ações que acabam por criar uma nova imagem e leitura deste artista antes símbolo das
glórias monárquicas, agora alinhando ao discurso político de valorização do regime republicano,
mesmo que foram estes mesmo republicanos participes no declínio do compositor no Brasil.

Esta obra acadêmica de estilo austero é entendida como um material significativo de fontes
e informações pelas quais nos remeteram a fatos históricos e contextualizações. Para dar início a
compreensão, é preciso entender este processo que retrata personagens reais, detentores de algum
tipo de poder, sendo pintados em um cenário idealizado. Ver presentes os poderosos locais
registrados ao lado daquele que fora o artista brasileiro de maior reconhecimento mundial durante
o período monárquico, abre inúmeros campos argumentativos pelos quais o se podem argumentar
a respeito dos interesses e repercussões que souberam estes se aproveitar de um declinado artista.

Uma das estratégia para legitimar e construir o mito gomesiano fora o uso da panteonização
nos discursos que se seguiram a respeito desse processo de morte e pós-morte do compositor.

13
BOCCANERA, Silio. Um artista brasileiro. Typ. Bahiana. 1913. P. 56
Termos como “uma de nossas glorias nacionaes”, “grande-homem, cérebro da música
nacional”, “astro de esplendorosa grandeza”, eram comuns na imprensa, frases comuns nas
inúmeras formas que o compositor já estava acostumado a ser descrito outrora. Era na retomada
dos conceitos emitidos a ele oriundos da outrora imperial que estava em desuso durante o início
da República.

Se é perceptível neste panteão criado para Carlos Gomes, sua conversão a “uma coisa da
qual a sociedade dispõe”, assim como do sociólogo Émile Durkheim argumenta sobre a estratégio
de heroicizar. Nesta descrição modal, ele tem seu o seu valor atrelado ao fato de ser capaz de
transmitir os modos, os costumes e comportamentos dos indivíduos associados a uma estrutura
social abrangente. Ironicamente, fora os mesmos republicanos que o considerou antiquado e
representante do passado monárquico, que agora ressignifica-o em uma narrativa heroica e de
representação de progresso patriótico.

Hermeneuticamente, por essa construção biográfica heroica, usando as sugestões analíticas


de François Dosse (2009), vemos que as narrativas que se seguem usam de uma prerrogativa que
visa transmitir modelos e valores para as novas gerações; que de uma forma “modal”, tenta dar a
este indivíduo um valor que possa ilustrar o coletivo, ou seja, a sociedade e seus avanços14.

O jornal Ordem e Progresso, de 27 de setembro de 1986 exemplifica bem esta construção


heroica desta biografia para um exemplo a ser seguido por um coletivo. O artigo escrito por R.
Bertoldo Nunes abre com a chamada “Imitai-o, moços!” e em seu corpo trás frase de Múcio
Teixeira “Como é bello, meu Deos, um povo inteiro, chorando um homem só” para legitimar
através do apelo sentimental, a descrição do clamor daquele povo pela morte do artista. A liberdade
poética a que o jornalista se utiliza ao contexto desta morte, sacraliza-o a uma eternidade que
adentra profundamente a um saudoso imaginário, e amplia significativamente a dramaticidade das
exéquias. O texto se torna um dos meios necessários para essa panteonização necessária a um
interesse político. No trecho “Entretanto, aquelle Niagara de harmonias sempre em actividade,
não podia de facto ter eterna permanência; aquelle deslumbrante meteoro devia fatalmente
occultar-se ás nossas vistas. Desappareceu totalemente? Não!”, vemos exemplificado o que
Chartier nos apresenta a partir de suas leituras dos conceitos de Ernst Kantorowicz, escritor do
livro Os dois corpos do rei. Ele nos apresenta um debate entre a presença física e sua troca pela
presença mística num velório de um Rei, citando que “Habitualmente, é seu corpo físico que é

14
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São
Paulo: EDUSP, 2009, p. 369.
dado a ver aos seus súditos enquanto que seu corpo místico e político, o que garante a
continuidade dinástica e a unidade do reino, está invisível” (2011, p. 03).

Assim, podemos com base neste conceito acima argumentar analogamente, que é
produzido durante o funeral dois corpos, o corpo real que é escondido na mortalha e no ataúde
que percorre as ruas para um clamor público, e o corpo político, que nunca morre, se torna visível
nas imagens e representações que serão criadas, comprovada em outro trecho do artigo de Teixeira:

“Este astro luminoso passou apenas a outro hemisphério; a alma


desprendeu-se do involucro, o genio subio ao pantheon.
Esta methamorphose era prevista, natural, inevitável
Acima do diluvio da morte – que tudo submerge e aniquilla – paira a arca
da posteridade, guiada pela consciencia dos povos – que é o Noé das
gerações hodiernas.
E’ nesse tempo angusto que se rendem verdadeiras oblações ao gênio,
entoando-se a symphonia da verdade historica.
Para o ingresso nessa arca miraculosa, onde os empenhos são baldados,
torna-se preciso a senha de um mérito transcendental, a consagração
unanime de um grande povo.
(...)
Carlos Gomes está para o mundo artístico na mesma relação de Deos para
o Universo todo: produzio e fez-se admirar.
E’is porque esta multidão de povo accumulou-se triste nas praças e ruas,
cheia de pasmo e de respeito, abrindo alas para deixar passar o seu
féretro: eis porque as representantes de todas as nações veem tomar parte
na sua apotheose; eis porque a Amazonia – pungida de sentimento, abraça
extremecidamente a Patria e mui particularmente a Paulicea na
intensidade de sua dor. (...)
Na odysséa da vida de estudante seja sua imagem o vosso ramo de
atividade, seja ella o vosso santelmo.
No amor á Patria, na perseverança ao trabalho, na conquista da gloria,
tomai-o por modelo.
Imitai-o, moços
R. BERTOLDO NUNES ”.

Uma fonte primorosa são as narrativas e imagens criadas pela imprensa para promover, a
chamada “morte solenizada de pessoas de projeção social, quer pela atuação que tinham na vida
política ou econômica, quer pelo lugar que ocupavam nas letras ou nas artes”, por Geraldo
Mártires Coelho (1995), um dos atuais estudiosos do mito gomesiano, prática tão comum na época.
Usando de uma exacerbada construção romântica, este Requiem agora composto pelos
republicanos para uma representação direcionada a sociedade, na ocasião de todo um cerimonial
aparatoso e espetacular para o referido compositor, é criada uma narrativa de morte, esta,
configurada como um último rito de submissão coletiva a que o morto teve ainda em vida, que
representa também, tentativa de marcar o início de sua representação na história, está, agora feita
pelos políticos e influentes. Essa representação será construída pela liberdade que os interesses
políticos acreditam ter pelo benefício que por eles fora dado ao recepcionarem o moribundo em
seus últimos momento.
Nesta representação e ressignificação, a égide da grandeza de sua obra oriunda de uma
singular atitude heroica a que lhe é atribuída, por entenderem que ao compositor ousar dar aos
moldes da música europeia uma brasilidade aos temas musicais, sua imagem e sua música serão
reconstruída a partir deste momento aliando-as ao estereótipo do que é ser um “homem de valor
patriótico” aos moldes republicanos. É alicerçada uma construção apenas com base nos seus feitos
e repercussões, e não mais pelo que fora dito outrora pelo compositor e seus posicionamentos
políticos. É uma investidura fantástica para se recriar memórias ao interesse político republicano.

Usando da estratégia da função maior que há presente no espetáculo que cerca a morte de
um ilustre, isto é, da cristalização do pensar e do sentir de quem nestes atos, direta ou indiretamente
participou, a sociedade, principal destinatário destas narrativas, fora erigia a um luto nacional, a
uma comoção estrondosa, usando de manifestações tão fortemente fidelizadas e divulgadas
abertamente. Inúmeras foram as comemorações póstumas que se seguiram, como também,
inúmeras foram as presenças, ausências e repercussões, que se deram em todo o país. O luto se
espalhou obrigatoriamente no país. O comércio fechou, assim também a bolsa de valores, o
congresso, as escolas e demais repartições públicas. A imprensa convocava a população a
acompanhar os atos de exéquias por onde passara o cortejo ao corpo do compositor. Políticos
brigavam e disputavam para ter um momento de homenagem em seus Estados, que ironicamente
haviam recusado dar abrigo e espaço de trabalho enquanto este estava vivo e falido.

Ouvindo com os olhos

Pela pictografia histórica, à leitura de uma obra é trabalhada através de uma formulações
de hipóteses que buscam transformá-la em fonte histórica. Nesta obra polissêmica de De Angelis
e Capranesi, é compreendido que há expressado um tempo, uma ótica, um enquadramento. Por
isso, de antemão é pertinente percebê-la baseada num sistema referencial e interpretativo que visa
agregar sentidos e sentimentos que valorizem as ações tomadas em um determinado momento,
nisso, é imprescindível torná-la em um evento cultural, um sujeito histórico pertinente a análise.

Belém - como Manaus - viveu naquele período um entusiasmo e uma fé no


progresso que foram legitimados e alimentados pela presença de uma vida
cultural que se espelhasse nas grandes cidades européias. O entusiasmo
fora tamanho que Márcio Souza chega mesmo a defender que, por alguns
anos, as duas capitais amazônicas estavam dispostas a rivalizar não apenas
com Recife, Salvador e São Paulo, mas também com as capitais, Rio de
Janeiro e Buenos Aires (SOUZA, 1994, p.74).
Parte considerável da história de uma obra de arte é conferida pela tradição de sua leitura
como imagem documento. Neste estudo a imagem é entendida como um esboço inacabado de um
momento, do que possibilitou compreender os contextos a que ela está envolvida, principalmente
através das personagens presentes nela e as que não estão. O início da República é marcado por
inúmeros conflitos políticos, crises sociais e econômicas que se relacionam diretamente com o
declínio do artista. É preciso ter cautela e construir argumentações que desconfiem das imagens
produzias e com base em processos metodológicos de análise, historicamente sejam comprovadas,
assim como afirma Chartier, “As representações mentais sempre distorcem, ocultam ou
manipulam o que foi e essa é a razão pela qual focalizar sobre elas não pode senão abrir os
caminhos do relativismo, do ceticismo e das falsificações” (2011, p. 01)15. As personagens
presentes ou não na obra, além de um convívio significativo com o compositor e participavam de
importantes momentos e decisões políticas na região e no país. São estas as mesmas que se
colocaram como responsáveis pelas consequências históricas a partir do pós-morte do estudado.

“Uma questão importante para o trabalho histórico é medir a possível


distância entre, de um lado, aquilo que é lícito representar e, de outro, os
gestos efetivos, as práticas reais. Frequentemente, os historiadores devem
se contentar com o registro das mudanças nos sistemas de representação.
Seria temerário concluir demasiado rápido sobre a realidade dos
comportamentos a partir de representações codificadas que dependem tanto
das convenções ou dos interesses envolvidos no ato de mostrar – pela
pintura, pela gravura, pela fotografia – quanto da existência ou da ausência
dos gestos que são mostrados.” (CHARTIER, 1999, p.81)

Por isso, na busca da identificação real, exercemos de maneira adequada o uso “função
crítica” a qual o historiador deve se ater, a análise do quadro se atem a entender as representações
ilusórias ou manipuladoras do passado para se estabelecer a realidade do que realmente foi.

Na história e no processo historiográfico, Roger Chartier (2010) afirma em seu artigo


Defesa e Ilustração da Noção de Representação que há de o historiador “escutar os mortos com
os olhos” (p. 01), para a partir desta metáfora perceber que devemos ir mais além do o que se
mostra aos olhos, para ai poder adentrar em métodos e formas que visem o entender da conjuntura
fenomenológica e sociopolítica, total ou de parte dela, e assim perceber presentes nas vozes que
emanam daquelas representações as possíveis verdades e interesses que a circundam. Já para
Walter Benjamin em seu livro “Sobre o conceito de História” para se estudar a história, “devemos
despertar os mortos”16. Revivendo as memórias também daqueles que direta ou indiretamente o
cercava, assim, encontraremos entre os escritos, documentos, jornais e outras fontes, que nos

15
Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n. 23, jan./jun. 2011
16
BENJAMIN, Walter Tese IX de “Sobre os conceitos de história” apud LÖWY, Michel Walter Benjamin:
Aviso de Incêndio - Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” (tradução das teses de Jeanne Marie
Gagnebin e Marcos Lutz Müller) São Paulo: Boitempo, 2005, p.87.
permitirão entender os fatos e as mentalidades de uma época. É pertinente entender que um neste
universo das representações que são criadas, estas também representam uma realidade daquele
momento, pois devem ser entendidas como representações das práticas comuns da época que usam
de práticas de representações para construir uma narrativa.

Criada ou não a partir do real, essas representações imagéticas possibilitam muitas vezes o
entender de forma preciosa das narrativas criadas para um ideal, como também, criar inúmeras
argumentações e hipóteses ao analisar de forma mais ampla, as possíveis assinaturas e articulações
presentes nas diversas relações que estes indivíduos e grupos tiveram, que de alguma forma se
relacionam com o mundo social que cercava o estudado. Chartier firma que nos estudos devem ser
percebido que “Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades e
destinatários particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória para entender as situações
ou práticas que são o objeto da representação” (2011, p. 02). Por isso, nesta operação, é seguida
a cartilha que procura classificar e hierarquizar as configurações múltiplas que possibilitam o
compreender da realidade da época e os porquês das narrativas nas condições expostas.

“Todos sabem que eu não tenho política, que não me meto em barulho (a não ser o da
música), mas que como brasileiropatriota tenho o direito de censurar ou aplaudir os atos
e procedimentos de quem governa a nossa terra, do mesmo modo que qualquer politico
te diletante da música está no direito de gostar ou não de minha música. Cada vez me
convenço ainda mais de que a arte e os artistas de algum merecimento, todos reunidos,
nada valem, em comparação a um só da política”.

No contexto de sua feitura, em nada fora fácil para que esta tela pudesse está hoje exposta
no salão principal do Conservatório Carlos Gomes. O intendente municipal Antônio Lemos
liderança política no Estado e de oposição do governo de Lauro Sodré, teve sua solicitação de
liberação dos impostos de exportação que insidiam sobre a obra pintada na Itália negado pelo
Ministro da Fazenda, assim como publicou o jornal A imprensa (RJ) de 1899:

“O sr. ministro da Fazenda negou a isenção de direitos, solicitada pela


intendência municipal do Pará, para um téla e respectiva moldura,
representando os últimos momentos do maestro Carlos Gomes.
Essa téla, que é de grandes dimensões, foi pintada na Itália e destina-se ao
Instituto de Música do Pará”

Dias depois, com a repercussão política e social que a negativa gerou em toda a sociedade,
que mesmo tenha passado três anos, estava ainda mantendo luto simbólico na imprensa, dias
depois o mesmo jornal notícia “foi concedido o despacho libre de direito á tela procedente de
Itália, representando os últimos momentos do maestro Carlos Gomes, e destinada ao Estado do
Pará”.
Ainda em Belém, descreve a agitação gerada pela disputa entre políticos demais da elite
paraense por um momento de discurso junto ao corpo naquele velório durou três dias, assim
publica o Jornal do Brasil do dia 19 de setembro de 1896:

“CARLOS GOMES
PREPARATIVOS PARA O ENTERRO
Belém, 19 – Reina indisivel agitação nos preparativos para os funeraes de
Carlos Gomes.
De toda a parte chegam coroas que são collocadas junto do ataude.
Para amanha fallarem no cemiterio já estão inscriptos mais de 60 oradores.
Todas as corporações civis, militares e admistrativas far-se-ão representar
no préstito que será de uma imponencia nunca vista.
O governo vae designar uma commissão de paraenses para acompanhar o
corpo do illustre maestro a Campinas cujo povo pedio o cadáver do seu
illustre filho.
O fúnebre cortejo começará amanhã a desfilar para o cemiterio, ás 88 horas
da manhã”

Entre a chegada do compositor a Belém até a sua morte, através dos inúmeros grupos
sociais de apoio e produção as artes, e com forte apoio da imprensa, fora criada no imaginário da
população a figura de herói apátrida, estava lá em terras desconhecidas, sendo acalentado pelo
povo do norte que como família o recebera.

“Era o martirológico do artista, resultante, principalmente, do tipo de


sensibilidade que combinava influências românticas e positivistas na
construção da imagem tanatológica do herói prometeico que tornava à
pátria, agora entristecida pelo abatimento e pelo sobre do filho glorioso por
tanto tempo ausente do seu seio” (COELHO, 1948, p 32)

Os discursos que seguiram em inúmeras publicações representam a visão estética da morte


romântica e do sentimento doloroso que alimentava ainda o imaginário daquela população no fim
do século XIX a respeito da morte. Sua morte estava envolta dos mesmos enredos comuns em suas
óperas trágicas de exaltação patriótica. Os textos e as imagens produzidas narravam usando do
apelo imagético do sentimento que emanava de seu martírio para a construção de uma
representação que vislumbrava transmitir a sua dedicação a arte e a vitimização por ela, para assim
construir a imagem da bela morte tão exaltada na ficção, que neste caso tinha um fim. Assim
encontrar métodos de expor a morte assim como Goethe e de problematiza-la assim como fazia
Nietzche, para construção de uma história faustiana, ao usar o "Sturm und Drang", do "morre e
devém" (stirb und werde), da "morte e transfiguração". Spengler (1918)17, afirma que essas
construções situam-se numa posição de vitalismo exacerbado, para quem morrer é ainda viver até
o fim.

17
Spengler, O. Der Untergang des Abendiandes. Umrisse einer Morphologie der Welt-geschichte, 1918-22. Beyer,
Munique.
É pertinente entender que com as produções imagéticas que se seguem, constroem assim
seu produtores uma ideia de memória daquilo ou daquele que está ausente. Sobre as imagens que
são assim produzidas, é possível usar uma análise conceitual expondo conceitos de Chartier, que
nos apresentar o conceito de representação do objeto ausente (coisa, conceito ou pessoa), como
aquilo que está sendo “substituído por uma ‘imagem’ capaz de representá-lo adequadamente”
(2011, p 03). Neste conceito, representar portanto, é fazer conhecer as coisas imediatamente pela
“pintura de um objeto”, “pelas palavras e gestos”, “por algumas figuras, por algumas marcas”.
Nestas representações são construídas os enigmas, emblemas, fábulas e alegorias, para um
interesse particular ou ideológico. É preciso entender que construir o representar de alguém no
sentido político e jurídico, é também “ocupar o lugar de alguém, ter em mãos sua autoridade”
(Chartier, 2011, p 03). Já os representantes que os fazem, podem ser duplamente definidos como
“aquele que representa numa função publica, representa uma pessoa ausente que lá deveria estar”,
e “aqueles que são chamados a uma sucessão estando no lugar da pessoa de quem tem o direito”.

É neste sentido que percebe-se a tomada de direito da produção dos discursos e dos atos
que se seguiram após a morte deste, por aqueles que divulgavam, como já falado, serem seus
últimos benfeitores. Nestes discursos, se encontram diversos métodos de legitimação,
principalmente com o uso clamor público. De todo, era pertinente nesta recém criada república,
essa legitimação, pois estes usavam dos recursos públicos para as homenagens que se seguiram e
que nelas, os reais interessados se incluíam no intuito de obter prestígio.

Neste jogo de criação apresentações e representações, é pertinente repensar as relações que


mantém as modalidades da exibição do ser social ou do poder político com as representações
mentais que emanavam no coletivo. Daí vem a atenção que devemos prestar a esses
“procedimentos” que dão segurança o compreensão do funcionamento reflexivo desta
representação. Para ele fora-se criado os quadros, molduras, enfeites, encartes, selos, decoração;
Seus feitos estão em textos e em todo um conjunto de dispositivos discursivos e materiais que
constituem o aparato formal de enunciação.

Nos dias que se seguem as exéquias ao compositor na cidade de Belém e as disputados por
seu sepultamento abrem de um campo a ser explorado nas reflexões, principalmente pelo que tange
a oficialização governamental do luto por esta morte. Um dos fatores principais é o fato que o
governo de Campinas/SP solicitava o envio do corpo para lá sepultá-lo e isso despertou uma
revolta na população, a qual tinha já o heroicizado e por dias estavam revezando-se em solenidades
fúnebres.
Em 13 de outubro de 1986, o jornal A Notícia, do Estado do Rio de Janeiro publica matéria
que divulgava está na porta do escritório do jornal, para os inúmeros curiosos, uma série de fotos
enviadas do Pará dos funerais do compositor, e que nestas fotos, de forma clara se poderia ver o
corpo em seu caixão de tampo de vidro, o nome presente nas coroas de flores e ainda, que “A
nitidez das phografias permite reconhecer não só as inscripções das filas das corôas como as
physionomias das pessoas que estão á frente do grande cortejo com que o Pará honrou o
inolvidável compositor paulista”.

Figura 3 e 4 produzidas pelo português Felipe Augusto Fidanza dos


cortejos na cidade de Belém ao corpo de Carlos Gomes.
Dois dias depois do falecimento, o corpo do maestro foi transferido para o conservatório
de música. O cortejo varou a noite de Belém. Desatrelado das parelhas de animais, o carro
funerário era conduzido pelo povo, numa insólita romaria colonial, anunciada pelos acordes de O
Guarani e iluminada pelas velas e archotes levados no préstito ou dispostos nas varandas das casas.
De 18 a 20 de setembro de 1896, o corpo ficou exposto em câmara ardente, nos salões do
conservatório de música, que se transformou em santuário cívico e espaço para as representações
do afeto coletivo pelo compositor, como registram as imagens de época. Em seguida, foi levado
para o Cemitério da Soledade, um misto de panteão e cemitério-jardim, onde estavam sepultados
heróis da guerra do Paraguai, como o general Henrique Gurjão, acompanhado por
aproximadamente 70 mil pessoas, que levavam andores, quadros, alegorias e guirlandas. Numa
Belém, cujos círculos letrados eram fortemente influenciados pelo positivismo, mas a gente do
povo cristã, o cortejo fúnebre tornou-se uma verdadeira procissão cívica, em grande parte por
iniciativa também do governo do Pará, que instrumentalizou a morte de Carlos Gomes
CAPITULO II

PARA ONDE FORAM OS “VIVAS A CARLOS GOMES”?

O historiador José Alves de Lima (2016), argumenta que após inúmeras revoltas armadas,
Revolução Federalista, Guerra de Canudos e suas repercussões, a sociedade encontrava-se
estarrecida, cansada das inúmeras turbulências políticas e se sentindo insegura, já que
historicamente é sabido do atentado contra o Presidente Prudente de Moraes que vitimou o
Ministro da Guerra, o Marechal Carlos Machado Bittencourt. O próprio Carlos Gomes, quando
estava em Chicago regendo concerto lá como representante brasileiro na Exposição Brasil
Chicago, narra a situação do país em carta para o editor italiano Tornaghi em 9 de outubro de 1893:

“Meu bom Tornaghi,


Você deve ter acompanhado os acontecimentos revolucionários do Brasil...
A guerra civil, ou melhor incivil, porque entre militares, está arruinando as
poucas esperanças que tínhamos para o futuro. Os homens sensatos
parecem ter enlouquecido!
Eis realizada a profecia do Imperador Dom Pedro!
Nem preciso falar sobre a péssima impressão que todos os componentes da
comissão brasileira tivemos. Surpresa, incerteza, confusão... tablau!
Aqui, por enquanto, ignora-se a verdade sobre o ocorrido e o progresso da
revolução, que talvez se estenda pelo continente...
Mas todos já podemos calcular a ruína que isso acarretará...
Não cuido de política, nem da do meu país, mas infelizmente conheço
Mello e Peixoto de perto, e receio que isso é apenas o começo!
Gostaria de estar enganado. Amém! (...)” (NELLO VETRO, 1984, p. 317)

Gomes temia todas as incertezas que a instauração da República gerou no país e sabia dos
resultados que estava ocorrendo a fora. Relata em carta, total desconfiança no governo de Floriano
Peixoto, que tinha sido eleito vice-presidente em fevereiro de 1891, e tornara-se presidente do
Brasil em novembro do mesmo ano, face à renúncia do então presidente Deodoro da Fonseca em
meio a uma mais grave crise política. É sabido historicamente, que o governo de Peixoto ficou
marcado intensas rebeliões. Das mais graves fora em 1892, com a publicação do Manifesto dos 13
generais, que tinham interesses em assumir o poder. Neste, contestavam a legitimidade do governo
inconstitucional que se instaurou com Peixoto, já que Constituição da República Velha criada aos
moldes da dos Estados Unidos por Ruy Barbosa em 24 de fevereiro de 1891, dizia no seu artigo
42: "Se, no caso de vaga, por qualquer causa, da Presidência ou Vice-Presidência, não houver
ainda decorrido dois anos do período presidencial, proceder-se-á nova eleição". Não fazia ainda
um ano que Deodoro da Fonseca havia assumido o governo, e deveria ele convocar novas eleições
em vez de assumir a presidência até o término previsto do mandato de Deodoro, coisa que ele não
fez. A Segunda, foi a Revolta da Armada, resultado de diversos conflitos entre o Exército e a
Marinha, e a Revolução Federalista, crise política de ideais federalistas que buscavam depor o
governador gaúcho Júlio de Castilhos, eclodiram ambos em 1893. A violência fora a arma usada
por Floriano Peixoto para debelar estes conflitos, consolidando-se no poder, o que lhe fez ganhar
a alcunha de "Marechal de Ferro", assim como estava repercutindo no mundo a sua brutalidade de
atos.

Esta era uma época de transformações e os interesses com as artes e seus artistas colocados
como coadjuvantes, e não só das artes, pois fora durante o governo provisório decreto em definitivo
da separação entre Estado e Igreja. Outro ponto importante, é que foi concedida a nacionalidade
brasileira a todos os imigrantes residentes no Brasil. Além disso, foram nomeados governadores
para as províncias que se transformaram agora em estados e adotando uma nova estruturação de
governança.

A luz de criação de novos símbolos, uma das primeiros ressignificações fora desenvolvida
na criação de uma nova bandeira nacional em 19 de novembro 1889, com o
lema positivista "Ordem e Progresso". Antes o lema por inteiro dos positivistas18 fosse "O amor
por princípio, a ordem por base e o progresso por fim", adaptado para apenas duas palavras, foram
mantidas as cores verde e amarela da bandeira imperial, pois o decreto nº 4, que criou a bandeira
republicana, nos seus considerados diz que: "as cores da nossa antiga bandeira recordam as lutas
e as vitórias gloriosas do exército e da armada na defesa da pátria, e que essas cores,
independentemente da forma de governo, simbolizam a perpetuidade e integridade da pátria entre
as outras nações". Seguindo este ideal, é criado quadro em 1919 repleto de simbolismos,
ressignificações para um nacionalismo patriótico.

18
Com sua influência ampla e profunda na sociedade brasileira, principalmente na elite militar e política, o Positivismo
foi a base fundamental da compilação do texto da Constituição de 1891 e também da implantação da República pelos
militares em 1889. VALENTIM 2010. p. 41
Figura 2: "Pátria" (1919), de Pedro Bruno, idealiza a confecção da nova bandeira do Brasil,
com um casal de idosos ao fundo representando a monarquia.

O ano de 1896 estava sendo um ano difícil, já que ouvia murmúrios e aspirações por uma
guerra civil e até desintegração de território, grande temor dos republicanos. Como numa cortina
de fumaça aos problemas, unindo toda uma população na comoção pelo tido como mais ilustre
artista que as américas tivera até então, será Carlos Gomes usado como uma das armas para buscar
uma unidade territorial e consolidação do regime republicano?

Entre 1890 e 1896 inúmeras foram as tentativas de conseguir junto ao Governo Federal
uma pensão para o artista manter-se após a falência oriunda de investimentos maus sucedidos,
processo de separação, perdas familiares e explorações das editoras de suas obras. A constar, essas
mesmas tentativas ele tivera negada durante o império de D. Pedro II. Até então, o Imperador
apenas liberava verbas pelo governo para sua manutenção na Europa, sem vínculos vitalícios. Na
República, os pedidos se seguiram simultaneamente, sejam diretamente ao Governo Federal ou ao
governo Estadual de São Paulo. É endereçada carta ao seu filho Carleto, em julho de 1891, onde
relata a possível proposta de uma pensão vitalícia do governo republicano brasileiro, pelo qual
pede sigilo na Itália:

“Entre as boas noticias que hoje te dou é aquela da certeza que o Chefe do
Governo proporá às Câmaras uma pensão vitalícia para mim. Já era sem
tempo! Necessito, entretanto, que tu não fales disto a ninguém em Milão”19.

Um ano antes, em carta endereçada ao seu amigo, político e mecenas, Visconde Alfredo E.
de Taunay, transcrita abaixo na íntegra, em uma das poucas vezes que fala de sua vida atrelada a
recepção de suas obras, em Milão, no dia 19 de outubro de 1890 escreve sobre sua situação
financeira lá na Itália e as desavenças e explorações que passava, segundo ele, oriundas dos
editores e produtores musicais daquele país:

Amigo Alfredo:

Il silenzio non sempre se traduce per oblio.


Desde que tomei a tarefa do Condor, escrevo-lhe diariamente com o
pensamento e com o coração de amigo, sempre constante e grato.
Hoje, porém, escrevo-lhe com a penna, e note que é com a mesma com que
há dias tracei a última nota do Condor.
Está prompto, isto é, a creação, faltando só o trabalho manual da
instrumentação.
Disse creação, mas Deus queira que não seja criação do gado no campo,
para o que não carece arte.
Não repare no meu involuntário silencio; o trabalho foi incessante, a febre
foi quase mortal; e ainda hoje vivo afflicto pela febre da incerteza na
execução desta opera, onde os personagens são quase todos de grande
importância, como é o theatro para o qual foi escripta!...

19
Carteggi Italiani II, Carta 85: (Museu Imperial – Arquivo Histórico – Petrópolis), Rio de Janeiro, 04 de julho de
1891.
Oh! Os artistas! Elles matam ou dão vida ao papel que rabisco!
O assumpto já você conhece.
Note, porém, que o libretto não é, como diz a Gazeta de Noticias, sem
interesse dramático.
Sem interesse seria um assumpto político ou a quarta pagina de qualquer
jornal...
Eu não sou menino de escola para acceitar a responsabilidade de escrever
uma opera para o Scala, sem um libretto digno do theatro e deste público
exigente.
O libretto, porém, sem ser uma absoluta novidade, é comme les autres,
como o da Aida, Rei de Lahor, etc, ect. Não há mais nada de novo sobre a
terra, e menos ainda nos theatros. O genero humano, por outro lado,
também já está tão blasé, que nada lhe causa espanto nem commove.
A minha musica?
A minha musica é, como todas as outras, escripta sobre as cinco linhas do
costume. Quanto ao resto, ao successo, não depende só das notas
miseráveis que escrevi.
Você sabe que um successo também depende da vil moneta, que não possuo
sinão para acudir as necessidades diárias de meus filhos ...
Deus sabe como vivo aqui!
Tendo liquidado minhas antigas dívidas, contando com a pensão do actual
governo, fiquei seriamente logrado!..
A empreza do Scala só me dá a quantia de trez mil francos e fica com o
direito na Europa e metade do lucro futuro da opera. Sòmente para o Brazil,
eu fico proprietario absoluto, até da impressão da ópera para canto e piano,
e das representações theatraes.
Pensei em vender esse direito da impressão a algum editor do Rio, para
fugir do monopólio do Ricordi (com que não estou hoje muito corrente...)
Tive, porém nova desilusão, ultimamente, com os editores do Rio, que me
recusaram dar 500$000 por 12 peças de músicas novas que para lá mandei.
O Bevilacqua offereceu 50$000, mas o Arthur, depois de tel-as meses em
casa, devolveu-as, não sei com qual pretexto.
Entretanto, quando lá apparecem as minhas operas, elles todos ganham
dinheiro ... e eu os fico vendo vender a minha musica, rindo-se de mim.
Mondo ironico, meu Alfredo!
E que fazer? Se escrevo operas, e vendo-as aqui, não me dão para viver; se
vou para o Rio com um Escravo, faço fortuna de um Musella e...tomo
descompostura pelos jornaes, voltando para a Itália na mesma.
O que mais tentar?
E você que é contrario a que eu mude de officio e tome o logar (por uma
só vez) dos emprezarios que vão para o Brazil!....
É para enlouquecer! Mas graças a Deus, ainda não me tocou mais essa
última desgraça. Tenho suas cartas até a última de 19 de janeiro. Os
exemplares do Escravo que lá appareceram sem a carta à Princeza tinham
sido impressos antes da minha viagem para lá. A nova edição traz
novamente a carta.
Mandei tirar o seu nome do libretto e da partitura, conforme o seu desejo.
Tive pezar nisso, mas era de meu dever obedecel-o.
Inútil lhe dizer que vivo aqui augmentando dividas novas e passando a vida
material com as maiores privações. No tempo do Império nada obtive do
governo; muito menos espero do governo actual.
Viva o Brazil! Viva a Nação Bazileira! Mataram o homem, mas não hão de
ter o gosto de fazer desapparecer as obras do artista...
Receba um abraço do seu sempre grato amigo –
Carlos Gomes”. (BOCCANERA, 1904)

Em tempo atuais, ainda é difícil a compreensão de todos os processos que levaram a


Proclamação da República, pois não foi algo resumido a um dia, a um local, um ato ou ainda a
uma medida. Simbolicamente se tem o dia 15 de outubro de 1889 como marco desta mudança,
mas “pode-se dizer que o sistema imperial começou a cair em 1871 após a Lei do Ventre Livre”
(CARVALHO, José Murillo. Op.cit, p. 297.). Para CARVALHO, a primeira clara indicação do
divórcio entre o imperador e os barões, teve como base o descontentamento de uma elite que tinha
poder e voz nas decisões, e que se acentuou ainda mais com a Lei dos Sexagenários e por fim com
a abolição da escravatura em 1888, esta, sem indenização aos exploradores da mão de obra escrava.
Neste contexto estava Carlos Gomes que meses antes, no vapor italiano Brazile, retornara ao país,
no dia 09 de julho de 1889, onde narrava no dia 10 de julho Jornal Diário do Commercio que o
“ilustre brasileiro e sua filha, a interessante menina Ítala, um mimo de graça que nos traz à
imaginação todas as seduções de Cecy, tão cândida e tão meiga na obra do grande mestre”. O
mesmo jornal dizia que músico trazia algo novo em suas mãos, encadernado a primor em três
cópias, uma delas em especial destino. Estava ele ali para apresentar sua última grande obra
encomendada com tema estritamente nacional, a promessa de novo sucesso e orgulho,
comentavam os jornais. Era a então ópera Il Schiavo (O Escravo) inspirada em enredo proposto
por Alfredo d`Escragnolle Taunay (1843/1899), com libreto escrito aos desafetos20 pelo experiente
dramaturgo italiano Pavancini.

Sobre minhas pobres notas musicaes.

A situação financeira do compositor e a necessidade constante de manter-se em um padrão


de vida condizentes aos grandes compositores sempre foi a sua maior fraqueza. A fama pede
investimentos na imagem e no estilo de vida, e dela, Carlos Gomes sempre fora refém. Com os
resultados dos infortúnios familiares, artísticos, o abandono de mecenas e vendo sua reputação cair
vertiginosamente, a respeito da sua obra agora se referia elas como “pobres notas musicaes”, não
só no sentindo financeiro, mas como esquecidas, desvalorizadas, que em nada mais representava
naquele fim de século como outrora fora. Em carta escrita para o compositor Francisco Braga, em
19 de janeiro de 1896, ainda em Milão, diz:

“A respeito das indicações que me pedes sobre as minhas pobres notas


musicaes nada te devo dizer, não sendo a ti necessárias.
A música – bem sabemos – não é mais do que papel borrado. A expressão
não se escreve. Seria de minha parte um desaforo indical-as a quem como
tu nasceu com a alma d’artista” (GOÉS, 2011, p. 205)

20
Pavancini impedira de executar tal obra na Itália juridicamente, ao não concordara com o enxerto do Hymno a
Liberdade, poema de Francesco Giganti, amigo e mecenas do compositor. Mas do outro lado do oceano não teria
problemas e o grande homem estava lá com a nova obra nacional, que não era uma simples obra, vale salientar, tinha
ela dedicatória e interesses políticos na sua propositura de enredo, letras e notas musicais, pois guiavam uma intenção,
pelos quais vamos nos debruçar.
Anos antes, em Milão a 19 de maio de 1988, escrevendo ao então amigo, o barítono De
Anna, relata “Do Imperador não posso esperar nada, nem deve mais pedir qualquer ajuda
material”. Em meio a dividas e apertos financeiros, ainda argumenta o desejo de retomar as
produções que havia pausado já faziam-se dez anos, “Quero trabalhar: aliás estou trabalhando e
descanso um momento a pena da música para escrever a você. O que mais me atormenta é o
compromisso de Lecco, sem conta as tremendas necessidades diárias da minha vida e dos filhos”
(NELLO VETRO, 1982, p. 263).

Mesmo considerado monarquista e de tamanho apresso do Imperador, Gomes já se


descrevia neste período injustiçado pelo país a respeito de sua obra que tanto engrandecia o Brasil
no Velho Mundo. O desespero das dívidas e não vendo antes a entrada tão comum de dinheiro que
vinha de clubes e sociedades musicais, de mecenas e políticos, em carta escrita no dia 06 de agosto
de 1888, narra sentir-se doente, mesmo que não seja fisicamente, mas de alma ofendida pela
indiferença dos seus compatriotas. Envolto com as dificuldades de montar a sua próxima produção
no Brasil e com ela conseguir amenizar as perdas financeiras do litigio e maus investimentos,
naquele ano se sentia explorado pelo empresário italiano Musella, tal que ficara responsável pela
montagem no Brasil de sua obra, e que não lhe respondia em nada, e provavelmente só estava a
ganhar dinheiro usando de seu nome através de fraudes. Comenta em outra carta para De Anna:
“que iria fazer, agora, no Rio ou em São Paulo, se dos próprios brasileiros (dos quais esperava
um auxílio para a viagem) não obtive nenhuma resposta??! Entende agora o motivo da minha
doença moral?”(VETRO, 1982 p. 283). Em 25 de novembro do mesmo ano, escreve novamente
ao amigo, e revela o tamanho de sua dívida na Itália e por que ainda não estava no Brasil “(...) já
estaria lá se tivesse 40 mil francos para saldar todas as minhas dívidas na Itália (cerca de 25 mil)
e com restante acertar outras coisas e partir para o Rio. (...) O Escravo já nasceu desgraçado, ou
pelo menos tão azarado quanto o seu autor” (VETRO, 1982, p. 286). No mesmo acervo, encontra-
se carta do dia 3 de maio de 1889, onde se diz explorado pelo produtor Musella e abandonado
pelos brasileiros que antes lhe financiavam, relata o compositor: “(...) tampouco, poderei partir,
pois me falta tudo, tudo...” (p. 299). Na mesma carta pergunta ao amigo barítono se o mesmo teria
coragem de ir para o Brasil sem contrato ou garantias, para lá ver se seria o protagonista da ópera,
tendo como garantia apenas a amizade do compositor, algo que o cantor aceitou e no Brasil, ambos
foram recebidos com festa, como noticiaram os jornais da época.
Divorzio

“Se de viver con me, più non ti agrada. Se, come dici, D’amarmi, sei stanca,
Ciascun di noi si scelga la sua strada. A destra io volgerò tu volgia manca.
Io no mi informerà dove tu vada. Quanto all’amor, ti dò carta bianca.
Amare che voi fa quello che ti piace. Questo ti chieggo sol; Lasciami in
pace”
“Se viver comigo não mais te agrada. Se, como você diz, que de me amar
estas cansada, Cada um de nós escolhe seu próprio caminho. Bem, eu vou
te deixar saudades. Eu não vou me informar pra onde você vai. Quanto ao
amor, dou-lhe carta branca. Amo que você faça o que quiser. Eu só peço
isso a você; Me deixe em paz” Canção Divorzio de Carlos Gomes, 1884.

Escrita em 1884, com poema de A. Ghislanzoni a canção Divorzio aparentemente resume


o que sentia o compositor a respeito de tal ato que tanto lhe custou tempo, energia, dinheiro e
saúde. Não é correto afirmar que seu declínio tenha início com a proclamação da república, ou
ainda com o abandono dos seus mecenas brasileiros, por que é sabido que todos os lucros que teve
e estes corresponderam maior parte de sua conquista patrimonial, teve relação como o seu trabalho
na Itália e demais países como forte fonte de arrecadação. As questões pessoas e familiares,
foram seus primeiros martírios para este declínio financeiro.

Em 1879, com a separação de Adelina Peri (1842/1887), cita Marcus Goés em artigo
publicado em 11 de setembro de 201121, os fatos que ocorreram foi um prato cheio para a sociedade
milanesa da época declinar sua imagem e por consequência a atração por suas obras. A imprensa
italiana fez cair significativamente sua reputação, divulgando detalhes de um processo judicial
cheio de vulgaridades, onde o compositor acusou a mulher de traição, que “Tudo isso consta por
escrito com detalhes no processo que correu no Tribunal de Justiça de Milão, então presidido
pelo magistrado Cesare Malacrida, que assina o documento de desfecho da lide, na qual nem se
chegou a promover inquéritos ou indagações sobre o suposto adultério.” (p. 01). Atualmente estes
arquivos encontram-se no acervo do Senado Italiano.

Em trecho da carta pertencente hoje ao arquivo do Museu Teatral do Scala de Milão,


escreveu em 08 de abril de 1879, ao amigo Leone Giraldoni:

Caro Leone,
Infelizmente, na primeira apresentação de Maria Tudor, o público não quis
ouvir e a corrente contrária se manifestou logo no princípio do II° ato!
Na segunda representação, não parecia mais o mesmo público: aplaudiram
as peças principais, e por fim fizeram bisar o Dueto de amor do II° ato!
Como se explica tal eningma? (...)” (NELLO VETRO, 1982, p 141)

Provavelmente neste momento, ainda não compreendia ele o efeito das repercussões de sua
separação na imprensa. Pouco tempo depois, o declínio se agravava ainda mais com a morte do

21
https://www.movimento.com/2011/09/outra-inverdade-na-vida-de-carlos-gomes/
filho Mário Antônio em 25 de agosto de 1879, com apenas quatro anos, em uma viagem que fazia
o compositor com o filho para apresentar-se pela Europa. Desde então o prestigio de Carlos Gomes
na Itália começa a declinar vertiginosamente e ele entra em um período infértil de composições e
de depressão de dez anos de duração.

No arquivo da Casa Editora G. Ricordi de Milão, há carta escrita em 11 de julho de 1879,


que diz Gomes ao amigo Tornaghi “O amigo Giulio deve ter-lhe comunicado os graves dissabores
que tive na minha vida familiar e por isso acho inútil reperti-lhe o que desejo calar e que me causa
imensa dor só em lembrar!”(VETRO, p. 142). Em outro trecho de carta de 24 de julho do mesmo
ano diz para o mesmo amigo: “Tudo vai bem, ... bem demais... mas o coração do seu Gomes está
despedaçado. Sofro bastante, e não sei quando poderei sarar desta ferida!” (p. 143). Neste
período os problemas pessoais se agravavam, as disputas com a mulher e o luto lhe colocavam em
descuidos com a saúde física e mental, e ainda inúmeros eram os gastos. A Gazzetta, jornal italiano
havia escrito matéria acerca da saúde do compositor após os fatos e agradecendo as retificações,
escreve ao amigo Giulio Ricordi, dono da editora de respectivo nome:

Gênova, 7 de setembro de 1879.


Meu caro Giulio

Quem sabe o que deve estar pensando de mim! Mas como fazer para
escrever-lhe, sem falar dos meus contínuos dissabores? – Farei o possível
para enfadá-lo o menos possível.
Agradeço-lhe pela retificação na Gazzetta sobre a minha doença, mas saiba
que eu estou gravemente doente, e o desmentido serviu pelo menos para
sofrer aqueles que querem absolutamente ver-me morto; tem razão: eu fiz
tanto mal a eles! A perda de Mario, a minha dor aguda em causou insônia,
e... tomei ópio por vários dias, descuidei de uma constipação, em seguida
a febre reumática; o médico me deu quinino em abundância... se não
enlouqueci, é sinal de que não enlouquecerei nunca!
As questões com a mulher, a demanda, o Presidente do Tribunal, a menina,
a mobília que vai e vem de Gênova para Milão... Meu Deus! – Entendeu
algo desta minha estranha narrativa?
(NELLO VETRO, 1982, p. 144 e 145)

Trabalha pelos infelizes para que Deus te faça feliz!

André Rebouças a Carlos Gomes escreveu: “Trabalha no ‘Escravo’. Faze uma preghiera
no estylo da do Nabucodonozor do Verdi. Trabalha pelos infelizes para que Deus te faça feliz!
Beijos ao Carleto – Teu André Rebouças”22. Lo Schiavo é uma ópera de temática abolicionista,
mas teve o enredo alterado, onde o personagem principal passou a ser um índio da tribo dos
Tamoyos, ao invés de um Negro. Na adaptação, o índio fora escravizado no período de colonização
do Rio de Janeiro, e vivia dilemas, conflitos e amores na sua relação com o homem branco. Esta

22
VIEIRA. (Pg. 199-200)
obra fora amplamente divulgada como dedicada a então princesa regente Isabel Cristina
Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga, a princesa Isabel, no intuito, segundo o
compositor, de recompensa e homenagear ao grande feito da regente, tido e divulgado como
patriótico na época, a assinatura da então Lei Áurea em 13 de maio de 1888. A respectiva
dedicadora fora publicada no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro:

“Senhora:
Digne-se Vossa Alteza acolher este drama, no qual um brasileiro tentou
representar o nobre caracter de um indígena escravizado.
Na memorável data de 13 de maio, em prol de muitos semelhantes ao
protagonista deste drama, Vossa Alteza, com animo gentil e patriótico, teve a
gloria de transmudar o captiveiro em eterna alegria de liberdade.
Assim a palavra escravo, no Brasil, pertence simplesmente à legenda do
passado.
E’, pois, em sinal de profunda gratidão e homenagem que, como artista
brasileiro, tenho a subida honra de dedicar este meu trabalho á excelsa Princeza,
em quem o Brazil reverencia o mesmo culto espirito, a mesma grandeza d’animo
de D. Pedro II, e eu, a mesma generosa proteção que me glorio de haver recebido
do Augusto Pae de Vossa Alteza Imperial.
Hoje, 29 de julho, dia em que o Brazil commemora o anniversario da
Augusta Regente, levo aos pés de Vossa Alteza este Escravo – talvez tão pobre
como os milhares de outros que abençoam a Vossa Alteza na mesma efusão de
reconhecimento com que sou de Vossa Alteza Imperial, Subdito Fiel e Reverente,
A. Carlos Gomes
Milão, 2 de julho de 1888”

Carlos Gomes até então, mesmo mestiço, não tinha tomado um lado, mas ao escrever uma
ópera com o respectivo tema, visando a agradar ao império e os militantes dos movimentos
abolicionistas, como seu compadre e também mestiço o engenheiro de prestigio do imperador, o
André Rebouças, a elite, percebem a ópera como resultado deste processo de abolição, a procura
de uma ressignificação do povo escravo e da própria sociedade, esta como encomendada pelo
império, iniciado ao Carlos Gomes receber um convite feito pelo imperador, para a composição
de uma Marcha Popular dedicada à libertação dos escravos, que pode também ter o motivado dar
forma à ópera Il Schiavo (VETRO (1982: 24).

Em carta do acervo da Biblioteca do Conservatório de Música de Parma, escrita por Gomes


ao barítono De Anna, em 13 de maio de 1888, vemos como o sentimento do compositor para com
o Imperador, que em sua primeira viagem a Europa, adoece gravemente e CG se sente responsável
pela saúde e melhoria deste:
Meu caro De Anna,
Não pode imaginar o susto que levei há dias, vendo o estado gravíssimo do
meu estimadíssimo Imperador. Imagine que, além da pleurite e do diabetes,
ele teve uma congestão cerebral!
Mercê, depois de Deus, dos tratamentos do médico Imperial e do Dr.
Semola, o Imperador pôde superar também esta tremenda crise.
(...)
O Imperador volta á terra brasileira, não mais ao país da escravidão, mas
sim à terra civil pois, deve saber, as câmaras votaram pela imediata
libertação de todos os escravos do Império!! É justamente o caso de dizer,
como na ópera O Escravo:
“Viva Dom Pedro!
“Viva o Brasil,
“Terra civil,
“De liberdade!
(...) (NELLO VETRO, 1982, p. 262)

Antes, símbolo do monarquismo como já dito, mesmo propositalmente esquecido e


humilhado por parte destes republicanos e pela burguesia brasileira em transformação, esta, que
decorrente ao fim da escravatura passava por ajustes econômicos, sócias e políticos de vasta
abrangência. Em ambos os grupos, não lhe era oferecido espaço para a sua música. Acerca desta
restrição, existe a suposição que se deu decorrente inicialmente das inúmeras solicitações de apoio
financeiro ao governo e aos mecenas que o compositor costumeiramente fazia, ou ainda, a sua
forte personalidade, principalmente ao negar-se a compor o Hino da República, ato que foi
considerado por ele de grande ofensa a D. Pedro II, seu principal mantenedor.

Juvenal Fernandes (1925), no livro “Carlos Gomes: do Sonho a Conquista”, cita que o
compositor após a estreia de sua ópera nacionalista “O Escravo”, no dia 09 de novembro de 1889
– quando estava em direção a Campinas para rever seu irmão, o José Pedro, recebe a notícia da
Proclamação da República. Consternado, vendo as impossibilidades de suas demandas pessoais e
profissionais serem compreendidas e atendidas pelo novo regime naquele momento, de saída ver
a única opção o seu retorno a Itália e fixar-se por lá novamente, e adiando o sonho prometido de
dirigir o Conservatório Nacional de Música do Rio de Janeiro, o qual havia lhe prometido o
imperador. Sentia-se mais seguro onde por anos havia vivido e sabia como proceder do que
naquele governo que ainda tão inseguro estava em formação.

Ao retornar a Itália, nos primeiros dias do ano de 1890, “recebeu espantado a notícia do
Banco Ultramarino afirmando o depósito de 20 contos ouro por ordem do Governo Provisório.
Juntamente com o depósito estava a encomenda de um hino para ser oficializado como Hino da
República” (p. 154), dinheiro que mandou o banco devolver se sentindo ofendido por essa paga.
Achava ele antes de ler a encomenda que finalmente havia o governo percebido sua importância
para a divulgação do nome do país lá fora, “afinal meus patrícios estão se lembrando de eu vivo”
(Rinaldi, 1933, p. 103), comentou, por isso achava que lhes haviam enviado dinheiro. Essa
pequena fortuna supriria inúmeras necessidades que tinha, seja para manter a casa, a educação dos
filhos e impostos ao padrão de vida que deveria ter um compositor pelas convenções italianas,
sairia muito caro. Mas ao ler, de pronto declarou: “Não posso! Seria aceitar o eterno castigo de
me ver sempre, por dentro, com a mancha da ingratidão” (BITTENCOURT, 1945, p. 73).

O Carlos Gomes da década de 90 do século XIX, não era mais o mesmo de outrora. Os
insucessos se repetiam, as lamentações foram crescendo com os inúmeros dissabores desta vida
de compositor sem garantias e envolto de “exploradores”, como dizia aos amigos por carta. Antes
tinha total estima e proteção do Imperador, mesmo que dele nunca tenha recebido título político e
garantias, tão pouco pertenceu ao círculo imperial brasileiro, provavelmente por ter passado quase
toda sua vida na Itália. Nesse contexto encontramos um Carlos Gomes com problemas familiares,
empobrecido em litígio com seus editores de Milão, e do Brasil, tentando encontrar mercado para
suas obras e por elas sobreviver. No mesmo ano, assiste a um país em Assembleia Constituinte
tentando, através de debates acalorados, promulgar uma nova constituição. É neste clima que tenta
estrear sua nova aposta, a ópera O Condor no Rio de Janeiro, mas nessa estreia, encontra um outro
Brasil.

Sobe o pseudonomo de “Modesta”,

Em carta endereçada ao baiano Theodoro Teixeira Gomes, em 16 de julho de 1892, vemos


um compositor que já compreendia que não tinha o mesmo prestigio de outrora. De forma franca
Theodoro relata a não necessidade do compositor em se dirigir a cidade de Salvador para
acompanhar a montagem de sua ópera O Condor, “Você me declara francamente que a minha
presença na Bahia não adianta nada no sentido pecuniário e eu bem compreendo visto a má
quadra que estamos passando que não devo contatar com recitas de benefício mas só o que você
ajustou com o Sansone”(GOÉS, 2011, p. 173). A má quadra que ele fala é descredito que sua
música ganhou no novo regime, e que o sujeitou, o que argumenta Marcos Goés (2011) a sucumbir
a produção da Companhia Ducci, do desprestigiado empresário Sansone, que fazia recitas com
cantores desconhecidos. Goés comenta “Nota-se nesta carta também o nível a que desciam as
execuções de óperas de Carlos Gomes no Brasil” (p. 176). A República impôs a mudança e Gomes
era o símbolo maior da monarquia, o que restou dos monarcas exilados, o quem o Brasil deveria
esquecer naquele momento.

Tiradentes e Rui Barbosa foram duas personalidades favorecidas pela


máquina republicana, da mesma forma que a imagem de Carlos Gomes foi
atingida por uma espécie de negativo desse processo. Em boa parte do
século XX, ressalvando-se importantes exceções, Carlos Gomes foi
renegado a segundo plano. Justamente ele que é o primeiro artista brasileiro
a obter projeção internacional, que é o maior operísta da América. Na
Primeira República, havia pelo menos um motivo fundamental para esse
esquecimento: o nome de Carlos Gomes estava intrinsecamente ligado à
monarquia e ao imperador deposto pelos militares. O compositor de
Campinas e a ópera, o gênero musical por ele cultivado, foram associados
ao passado. Devido a esses e a outros aspectos, a obra e algumas
contribuições meritórias de Carlos Gomes deixaram de ser lembradas.
(SABOYA, 2002, p 02)

No ano antes de sua morte, em 12 de julho de 1895, após realizar uma série de
apresentações da ópera Il Guarany em Belém do Pará, abordo do vapor Brasil do Lloyd Brasileiro,
escreveu o maestro ao seu amigo Manoel José Souza Guimarães, algo que previa que tão
brevemente aconteceria consigo:

“A minha saúde tem sofrido muito ultimamente; além disso a minha antiga
moléstia na boca piorou muito no Pará. A inflamação da garganta se tem
agravado e isso quer dizer que o clima do Pará não é bom para mim. Mas
o que fazer? No Rio de Janeiro não me querem nem para porteiro de
Conservatório. Em Campinas minha cidade natal e São Paulo idem. No
Pará, porém, me querem de braços abertos! Não me querem no Sul,
morrerei no Norte que é toda terra brasileira! Amém!”

Em outro momento, em trecho da carta endereçada em 12/08/1895 a Manoel José de Souza


Guimarães, o compositor comenta sua insatisfação com o governo republicano e com o desenrolar
pelo seu não apoio as mudanças políticas, algo que ele aparentemente, assim como boa parte dos
demais brasileiros da época, não entendia completamente o que mudaria, nem as causas injustas
que passariam os que se negassem ao sistema político aderir.

“(...) O meu estado de saúde vae-se agravando cada vez mais...


A inflamação da garganta tem sempre augmentado (nota que há mais de
um anno não fumo absolutamente! Já me esqueci completamente do
charuto...)
Creio que bem pouco poderei á vista de uma espécie de erupção cancerosa
que, devido talvez ao clima do Pará, me apareceu no centro da língua.
O meu caso, compadre, é decididamente grave...
Dou-te esta notícia com toda calma, pois francamente já não me sinto preso
a esta vida inglória, vida de humilhações...
Não levarei saudades do mundo nem do Governo da República que tão
injusto tem sido commigo.
Sinto por-me não poder destruir tudo quanto minha mão tem escripto com
tanto enthusiasmo em pról da arte nacional...
Confesso entretanto a minha gratidão aos amigos do Pará que afinal de
contas foram os unicos a darem um emprego que condiz com o meu officio,
conforme o meu antigo desejo.
Sei que tudo quanto se passa no venenoso gabinete do Conservatorio do
Rio.
Bem sei que, desde o tempo do Governo Provisorio até hoje, qualquer vaga
que se tenha dado ou que se der nunca deixei, nem deixarei de ser
lembrado... para ser propositalmente excluído!
Agradeço a tua bôa vontade a respeito da proposta de algum lugar pra mim
no Conservatorio.
Soube desse assumpto, porque já em outros tempos e até ultimamente,
antes da viagem para Chicago, já havia manifestado esse desejo, chegando
até a insistir fazendo a parte ridícula do importuno!
Você me diz: ‘Si eu quisesse o Conservatório do Rio e si o Miguez quisesse
ceder etc.’ Não creio, entretanto, que ele possa (querendo) ceder o que não
lhe pertence. Não creio também que o Governo aceite outro diretor que não
seja indicado pelo professor Miguez.
Cada mortal cede ao próprio destino: o meu foi ou vae ser de acabar de
sofrer no Pará; assim seja! (...) ” GOÉS (p. 197-198, 2007)

Neste clima de preterição, qualquer imagem produzida acarretará inúmeras compreensões


narrativas acerca dos conflitos e resoluções da época. De princípio, para um melhor compreender,
sem se perder reproduzindo narrativas romantizadas e heroicas tão presentes nas biografias deste
compositor, há de se buscar compreender o valor que é dada a obra e o sentido emanado pela
mesma, algo imprevisível nas operações historiográficas que buscam sua compreensão. Também
é significativamente importante captar as intenções que envolvem a sua feitura, seja no caso dos
autores e dos que se envolvem direta e indiretamente. Em seguidas as possíveis leituras do
ambiente cultural em que se contextualiza. Além disso, é preciso ter conhecimento da crítica e
consequências acerca da obra e as condições de sua produção, para assim se chegar a uma forma
de compreender as relações impostas que emanam da imagem, e a forma de representação
simbólica de todos os personagens que os espectadores da obra estarão sendo persuadidos
propositalmente. Esse é um processo, que segundo Roger Chartier (1999), estabelece uma forma
de compreender as configurações socioculturais que expressam convictamente as condições do
momento histórico.

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