Você está na página 1de 6
(Copyright © aoooby Leyla Perrone-Moisés capa oso Baptist da Cota Aguiar sobre Biblioteca (1945), leo sobre ea de Maria Helena Vieira da Sa "aris, Mase National d’Art Modeme, Centre Georges Pompidou. Copyright ©2000 anacrisest Prepare indice nometca (Carlos Abert Inada Revieto (Carmen da Costa ‘Beatriz de Freitas Moreira Dads taco ea Pale (oP) (Cerra atin dive. one nt Tal yok cnet enin ees ey eran as Ss ao: Cpt ate. tpsecrs Cit ee na eT ote cosine leks pasos ait: Sean Enno: Leeabaete ees [2000] ‘Tedosos direitos desta edo revervadoet Rus Bandera Pelistayeac. 32 04s22-002 — S50 Paulo — sr ‘Defone (1) 3846-0801 Fax (u) 3846-084 ‘n.compankiadasetss.combr Emme S4-Carneiro e seus duplos* (O melhor amigo de Mario de $4-Carneiro se chamava Fer- nando Pessoa. Seu poema mais famoso se chama “Quase”: “Um, pouco mais de sol — eu era brasa,/ Um pouco mais de azul —eu cera além_/ Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém..”. A tentasao é grande, de dizer que Sé- Carneiro foi quase tio genial quanto Pessoa. Tal julgamento, elo- .gioso e depreciativo, seria um tanto injusto, porqueimplicariauma consideragdo de grau e uma desconsideragao das diferengas. A comparacao com Pessoa é, no entanto, inevitavel, nao ape- nas porque houve entre eles essa ligasao existencial, mas também porque os primeiros poernas de Pessoa, decadentes e preciosos, se assemelhavam muito aosdo amigo. A verdade é que Pessoa foi além (além é uma palavra cara a S4-Carneiro, tanto quanto a palavra **Si-Cameiroetses doubles" La Quinzaine literaire, n° 562, Paris, 16a31/5/1990, Sobrea edigio francesa de Céuem fogo:Cielen few, trad, Jorge Sedase Dominique Bussllet, Paris La Différence, 1990. 162 quase),e Sé-Carneiro permaneceuag morte prematura, S4-Carneiro nasceu em 1890. Fil mie desde aidadededoisanos, tevew: solitéria e feérica, numa bela quinta sonhos,os medos ea falta deamorme sibilidade do menino. Apés varias vi hia do pai, S4-Carneiro einstalouer ocursode direito. Daiem diante,s6ve poradas. Duranteesses anos parisiens respondéncia com Pessoa, ¢ juntos revista Orphen, aventura maior dome 26 de abril de 1916, num quarto de ho tou-se na cama vestindo um smoking O suicidio de Sé-Carneiro exerce ‘fo sobreseusleitores.Nenhuma critic tagdo de traducio pode deixar de refi escritores se suicidaram sem que esse f inextricdvel, aleitura de suas obras. E« esse fato prolonga econclui a obra, faz s6dio escrito em outralinguagem mas Sua morte foi teatral,enfitica, cat ‘mos encontrar no romance A confisst tos de Céw em fogo (1915), obras em q) dramiticas ¢ estereotipadas, os estado modelos estéticos, as preciosidades es mente datadas. Tais defeitos nos inclinz ‘como falsa, artificial e mal-acabada. 0) ‘uma desuas fantasias,no ato mais verd: haver, Sé-Carneiro nos impée uma Quase todos os seus contos terminan is duplos* 0 de Sé-Carneiro se chamava Fer- is famoso se chama “Quase”: “Um asa,/ Um pouco mais de azul —eu ne um golpe de asa... Se ao menos rentagio € grande, de dizer que Sé- tuanto Pessoa. Tal julgamento, elo- into injusto, porqueimplicaria uma sconsideracao das diferencas. ag,no entanto, inevitével, nao ape- ‘sa ligagdo existencial, mas também le Pessoa, decadentes e preciosos, se aigo.Avverdade é que Pessoa foi além {-Carneiro, tanto quanto a palavra ‘nga iterairn?562,Paris,16331/5/1990. age Civlen festead Jorge Sedas Dominique quase), e S4-Carneiro permaneceu aquém, em parte por motivo de morte prematura, ‘S4-Carneiro nasceu em 1890. Filho tinico de pai rico, 6rfio de mae desdeaidadede dois anos, teve uma infancia ao mesmo tempo solitéria e feérica, numa bela quinta dos arredores de Lisboa. Os sonhos,s medos ea falta deamor moldaram aimaginagao ea sen- sibilidade do menino, Apés varias viagens pela Europa,em compa- nhia do pai, S-Carneiro se instalouem Parisem 1912 paraafseguir ocursode direito. Dafem diante, 6 voltoua Lisboa por curtas tem- poradas. Durante esses anos parisienses, manteve uma intensa cor- respondéncia com Pessoa, e juntos conceberam e realizaram a revista Orpheu, aventura maior do modernismo portugues. No dia 26 de abril de 1916, num quarto de hotel da rua Victor-Massé, dei- tou-sena cama vestindo um smoking e ingeriu estricnina. O suicidio de Sé-Carneiro exerce uma compreensivel fascina- sosobreseusleitores. Nenhuma critica da obra nenhuma apresen- tacéo de tradugao pode deixar de referir essa morte. Ora, muitos escritores se suicidaram sem que esse fato contamine, de modo tio inextricaveh a leitura de suas obras. £ que, no caso de $4-Carneiro, esse fato prolonga e conchui a obra, faz parte da obra como um epi- s6dio escrito em outra linguagem mas no mesmo estilo. Sua morte foi teatral, enfética, cabotina. “Defeitos” que pode- ‘mos encontrar no romance A confissio de Luico (1914) e nos con- tos de Céu em fogo (1915), obras em que abundam as cenas melo- dramaticas ¢ estereotipadas, os estados de alma raros ditados por modelos estéticos, as preciosidades estilisticas por vezes terrivel- mente datadas, Tais defeitos nos inclinariam a considerar essa obra come falsa, artificial e mal-acabada. Ora, pela realizagao efetiva de ‘uma de suas fantasias,no ato mais verdadeiro edefinitivo que pode haver, $4-Carneiro nos impde uma suspensio de julgamento. __ Quase todos os seus contos terminam de modo decepcionante. 163, (O desenlace nunca esté& altura das expectativas criadas, a conclu- io € freqiientemente substitufda por enigmaticas exclamagbes ou porreticéncias. Mas,em seu préprio final, $4-Carneiro nao falhou. Saiu de cena em grande estilo ou, para usar uma expresso sua, “envolto em seu orgulho adamantino”, Nos trés pormenores que compdem a cena de sua morte —o quarto de hotel, o smokinge o veneno—encontram-se cifradas as principais caracteristicas de sua personalidade e de sua obra. Sé- Carneiro foi um daqueles intimeros estrangeiros atraidos pela Paris da Belle Epoque. A cidade grande ou “a Cidade”, cujo esplen- dore refinamento ele nao cessa de louvar, aparece em seus contos de modo original, porque ele a captou com um olhar excéntrico e voraz. Provinciano, ele exagera seu deslumbramento, ¢ sua Paris se torna especial. Cada lugar ¢ cada momento é fixado por ele com ‘uma sensibilidade extremamente decadente e, a0 mesmo tempo, com um entusiasmo desmesurado diante dos progressos da técni- caeas audécias da arte de vanguarda. O resultado é um entrelaga- mento de estilos, uma avalanche de materiais preciosos arrastados numa velocidade futurista, em frases enroscadas como volutas, muito modern style. ‘A Metropole, em seus contos, ¢ uma cidade desejada e nunca possuida, como aquelas mulheres francesas que seus herdis corte- jam em vao. E uma Paris de passeios solitirios e de lugares impes- soais: hotéis, cafés, music-halls. Assim como o protagonista, as per- sonagens secundirias ao estrangeiros folhetinescos: russos loucos, ingleses misteriosos,raparigas do Norte... Asintrigas seguem todas o mesmo esquema: uma paixdo amorosa, a morte (ou o assassina- to) da mulher, o prosseguimento de uma relagao com um homem (0 ex-amante da mulher ou seu substituto). Tudo se passa num clima de sonho que logo se torna pesadelo. 164 Seriam versdes menores dos c Contos cruéisde Villiers de 'Isle-Ade rasgos de genialidade propria. Quan do estilo alambicado, das palavras er Sombra—,vé-se de repente surpree glisticas, situagdes ou idéias que sao historia do homem que, desejandi “Jouco” (precursor do “ato gratuito’ $08) ¢, depois de o cometer, hesita razio dada pela premeditagao do ato proprio fato de o ter premeditadoe O conto-chave do volume, € ta neiro,sechama“Fu mesmo outro”. suas narrativas,como de seus poema sico da personalidade. Raramente, levado a tais excessos. Em sua poesi suas prOprias maos,“brancas e linda suas préprias imagens nos espelhos ciasepalavras ternas, Na vida, S&-Ca tracos vulgares, por nao se achar fisi de seu Génio. Dai, talvez,anecesside vvezes magros, louros e lindos; dup! relagdes apaixonadas e assassinas. Noiltimo conto de Césuem foge personagem especial: Ferniando Pass cil encontrar seu referente. A crise di semelhantea de Pessoa-Foiacrisede seviu de repente privada de valores sa,e sobretudo a dos jovens portuge as glorias perdidas e um futuro sern das expectativas criadas, a conclu- la por enigméticas exclamagbes ou prio final, S4-Carneiro nao falhou. ou, para usar uma expressio sua, ntino”. ‘ompéem a cena de sua morte—o eneno—encontram-se ciftadasas a personalidade e de sua obra. Sé- meros estrangeiros atraidos pela grande ou“a Cidade’, cujo esplen- de louvar, aparece em seus contos captou com um olhar excéntrico € seu deslumbramento,e sua Paris se da momento é fixado por ele com ate decadente e, ao mesmo tempo, «do diante dos progressos da técni- uarda. 0 fesultado é um entrelaga- ede materiais preciosos arrastados + frases enroscadas como volutas, tos, éuma cidade desejada e nunca res francesas que seus herdis corte- sseios solitrios e de lugares impes- Assim como o protagonista, as per ageiros folhetinescos: russosloucos, 4oNorte...Asintrigas seguem todas > amorosa,amorte (ou o assassina~ ato de uma relagdo com um homem eu substituto). Tudo se passa num na pesadelo. Seriam verses menores dos contos de Oscar Wilde, out dos Contos cruéis de Villiers de V'Isle-Adam, se nao houvesse, aqui eali, rasgos de genialidade propria. Quando o leitor comesa ase cansar do estilo alambicado, das palavras enfiticas — Ouro, Iris, Mistério, Sombra—,vé-se de repente surpreendido por felizes ousadias lin- _listicas, situagdes ou idéias que sao verdadeiros achados. Assim, a histéria do homem que, desejando ficar louco, comete um ato “Jouco” (precursor do “ato gratuito” de Gide em Os moedeiros fal- 505) €, depois de o cometer, hesita loucamente entre a prova de razio dada pela premeditagao doatoeaprovadeloucuradadapelo proprio fato deo ter premeditado e cometido. conto-chave do volume, e talvez de toda a obra de S4-Car- neiro, se chama “Eu mesmo o outro’. O drama queesté na origem de suas narrativas, como de sens poemas, 60 do desdobramento narci- sico da personalidade. Raramente, na literatura, 0 narcisismo foi levado a tais excessos. Em sua poesia, Sé-Carneiro dirige versos as suas préprias maos, “brancas e lindas”; nos contos, os herGisbeijam suas prOprias imagens nos espelhos, prodigam a eles mesmos cari- ciase palavras ternas. Na vida, Sé-Camneiro sofria por ser gordo eter tracos vulgares, por no se achar fisicamente altura de sua Alma e de seu Génio, Dai, talvez,a necessidade de criar duplos, no mais das vvezes magros, louros e lindos; duplos com os quais ele mantinha relages apaixonadas e assassinas. ‘Novtiltimo conto de Céu em fogo (“Ressurreicéo”), aparece uma personagem especial: Fernando Passos, “o genial Artista”. Nao é difi- cilencontrar seu referente.A crise de identidade de $4-Carneiro era semelhante de Pessoa. Foia crise de toda uma gera¢do européia que seviu de repente privada de valores seguros e de func social preci- sa, esobretudo a dos jovens portugueses, num pafs estagnado entre as glrias perdidas e um futuro sem perspectivas. 165 (Os melhores poemas de S-Carneiro assemelham-se aos de Pessoa, pela temética da perda do “eu”. O melhor de seus poemas é “Disperséo”:“Perdi-me dentro de mim/ Porqueeu eralabirinto,/ E hoje quando me sinto,/ E com saudades de mim”. Esse poema se inscreve, de modo ainda mais explicito do que os de Pessoa,na tra- digo conceptista portuguesa ilustrada por S4 de Miranda no sécu- Jo xv: “Comigo me desavim,/ Sou posto em todo perigo;/ Néo 1Posso viver comigo/ Nem posso fugir de mim. Entretanto, a crise de S4-Carneiro, mesmo em sua melhor expresso literdria, permaneceu no terreno psicol6gico individual. Como uma mosca presa entre dois vidros, ele buscou uma saida impossivel entre o “eu” eo “ideal do eu”. Dafa constante dualidade de sua personalidade pottica e de suas personagens de ficcao. Sé- Carneiro sublimou, com um enorme reforgo de estetismo, suas tendéncias homossexuais ¢ seu mal-estar existencial. Pessoa, enquanto isso, soube fazer de seus problemas pessoais (sobre os uais foi discreto) coisa diversa. Como $é-Carneito, cle os teatrali- zou, mas num palco textual em que se desenrolam, com o distan- ciamento da ironia, dramas intelectuais e metafisicos. Fazendo explodir todos os espelhos, Pessoa multiplicou-se, nao em perso- nagens duais de melodrama, mas em varias personagens-obras. Desvencilhando-se do fardo doeu’, pode viver aventuras mentais etextuais queo dispensaram de existir,e portanto dese matar exis- tencialmente. Saramago e um sob No dia 30 de novembro de 19 Fernando Pessoa. Foi enterrado no nome de um triste lugar. Morte een nais portugueses da época, ¢ cont dedicados ao poeta. Mas a verdad quarto dele que morreu naquele diz doantes,eosrestantes dois quartos! pelo menos, nao hé registro da mo primeiro quarto jé nao esta nos P Jerénimos,paraondefoitrasladado tendrio desua morte, Como assim? Ora, todos sabert quatro:0Ele-Mesmoeostrésheteré Reis e Alvaro de Campos. B isso s¢ duvidosas, como Bernardo Soares heterdnime, e varios outros quas * Jornal da Tarde, Sto Paulo, 30/11/1985,

Você também pode gostar