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Islam

Não pensem, por favor, que eu esteja polemizando ou discutindo com a véia dos gatos. Estou
falando sobre ela para terceiros, o que é coisa totalmente diversa. Para uma discussão com ela
falta a condição fundamental de todo debate, que é a posse intelectual do objeto em discussão
por parte de ambos os interlocures. O que ela sabe do Islam é a versão esquemática, simplificada
e, em última análise, falsa, que o enfoca, seja pelo contraste com a noção popular do
cristianismo, seja pelo confronto com o estereótipo da “modernidade”, dos “direitos humanos”
etc. O islam tal como eu o conheço (o Islam do estudioso de islamologia) tem inúmeros
elementos que não se enquadram nesses esqueminhas. Por exemplo, o Islam vulgar que a véia
dos gatos conhece não admite nem o livre arbítrio, nem a filiação divina de Jesus Cristo, nem a
morte de Nosso Senhor no Calvário, mas no Islam esotérico (as tariqas) qualquer dessas três
coisas pode perfeitamente ser aceita sem que se veja nelas nenhuma contradição com a
ortodozia oficial. Isso é assim porque o Islam não se compreende a si mesmo como uma “via de
salvação”, como o cristianismo, mas como uma “sociedade sacra”, uma espécie de Código Civil
e Penal divino (‘din”), que regula só a conduta externa das pessoas e não a intimidade das suas
almas (que para o cristianismo é tudo). A vida interior das almas é assunto da “tariqat” (“o
caminho’), que em grande parte escapa do controle da “lei” (shariah). Na perspectiva da tariqat,
todos os dogmas cristãos podem ser aceitos como veradeiros, porque dizem respeito à salvação
das almas individuais e não ao regulamento da vida social. Isso quer dizer que em gerall as
comparações vulgares entre Islam e Cristandade — que a véia dos gatos repete com fidelidade
canina — estão cem por cento erradas, porque reduzem os dois termos da comparação a
espécies do mesmo gênero, objetos de uma analogia inversa. Não posso entrar numa discussão
desse tipo sem me rebaixar ao nível de idiotice da minha pretensa contendora.

Ademais, ela não está interessada nem em Islam, nem em Cristianismo, só em trazer dano à
minha reputação por todos os meios concebíveis, de modo que o único objeto possível de uma
discussão com ela seria eu mesmo, e aí eu não entraria como debatedor e sim como réu de um
tribunal de fantasia que só existe na cabecinha dela. Não sou palhaço o suficiente para me
submeter a isso.

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