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A engenharia da desordem

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 12 de setembro de 2012
Todo mundo sabe que a base eleitoral do ex-presidente Lula, bem como a da sua sucessora,
está nas filas de beneficiários das verbas do Fome Zero. Embora a origem do programa
remonte ao governo FHC, o embrulhão-em-chefe conseguiu fundi-lo de tal maneira à
imagem da sua pessoa, que a multidão dos recebedores teme que votar contra ele seja
matar a galinha dos ovos de ouro.
No começo ele prometia, em vez disso, lhes arranjar empregos, mas depois se
absteve prudentemente de fazê-lo e preferiu, com esperteza de mafioso, reduzi-los à
condição de dependentes crônicos.
O cidadão que sai da miséria para entrar no mercado de trabalho pode permanecer
grato, durante algum tempo, a quem lhe deu essa oportunidade, mas no correr dos anos
acaba percebendo que sua sorte depende do seu próprio esforço e não de um favor recebido
tempos atrás. Já aquele cuja subsistência provém de favores renovados todos os meses
torna-se um puxa-saco compulsivo, um servidor devoto do “Padim”, um profissional do beija-
mão.
O político que faz carreira baseado nesse tipo de programa é, com toda a evidência,
um corruptor em larga escala, que vive da deterioração da moralidade popular. É impossível
que o crescimento do Fome Zero não tenha nada a ver com o da criminalidade, do consumo
de drogas e dos casos de depressão. Transforme os pobres em mendigos remediados e em
poucos anos você terá criado uma massa de pequenos aproveitadores cínicos, empenhados
em eternizar a condição de dependência e extrair dela proveitos miúdos, mas crescentes,
fazendo do próprio aviltamento um meio de vida.
Mas o assistencialismo estatal vicioso não foi o único meio usado pela elite petista
para reduzir a sociedade brasileira a um estado de incerteza moral e de anomia.
Na mesma medida em que se absteve de criar empregos, o sr. Lula também se
esquivou de dar aos pobres qualquer rudimento de educação, por mais mínimo que fosse,
para lhes garantir a longo prazo uma vida mais dotada de sentido. Durante seus dois
mandatos o sistema educacional brasileiro tornou-se um dos piores do universo, uma fábrica
de analfabetos e delinqüentes como nunca se viu no mundo. Ao mesmo tempo, o governo
forçava a implantação de novos modelos de conduta – abortismo, gayzismo, racialismo,
ecolatria, laicismo à outrance etc. –, sabendo perfeitamente que a quebra repentina dos
padrões de moralidade tradicionais produz aquele estado de perplexidade e desorientação,
aquela dissolução dos laços de solidariedade social, que desemboca no indiferentismo moral,
no individualismo egoísta e na criminalidade. Por fim, à dissolução da capacidade de
julgamento moral seguiu-se a da ordem jurídica: o novo projeto de Código Penal, invertendo
abruptamente a escala de gravidade dos crimes, consagrando o aborto como um direito
incondicional, facilitando a prática da pedofilia, descriminalizando criminosos e criminalizando
cidadãos honestos por dá-cá-aquela-palha, choca de tal modo os hábitos e valores da
população, que equivale a um convite aberto à insolência e ao desrespeito.
Só o observador morbidamente ingênuo poderá enxergar nesses fenômenos um
conjunto de erros e fracassos. Seria preciso uma constelação miraculosa de puras
coincidências para que, sistematicamente, todos os erros e fracassos levassem sempre ao
sucesso cada vez maior dos seus autores. Tudo isso parece loucura, mas é loucura
premeditada, racional. É uma obra de engenharia. Se há uma obviedade jamais desmentida
pela experiência, é esta: a desorganização sistemática da sociedade é o modo mais fácil e
rápido de elevar uma elite militante ao poder absoluto. Para isso não é preciso nem mesmo
suspender as garantias jurídicas formais, implantar uma “ditadura” às claras. Já faz muitas
décadas que a sociologia e a ciência política compreenderam esse processo nos seus últimos
detalhes. Leiam, por exemplo, o clássico estudo de Karl Mannheim, “A estratégia do grupo
nazista” (no volume Diagnóstico do Nosso Tempo, ed. brasileira da Zahar). A fórmula é bem
simples: na confusão geral das consciências, toda discussão racional se torna impossível e
então, naturalmente, espontaneamente, quase imperceptivelmente, o centro decisório se
desloca para as mãos dos mais descarados e cínicos, aos quais o próprio povo, atônito e
inseguro, recorrerá como aos símbolos derradeiros da autoridade e da ordem no meio do
caos. Isso já está acontecendo. A ascensão dos partidos de esquerda à condição de
dominadores exclusivos do panorama político, praticamente sem oposição, nunca teria sido
possível sem o longo trabalho de destruição da ordem na sociedade e nas almas.
Mas também não teria sido possível se o caos fosse completo. O caos completo só convém
a anarquistas de porão, marginais e oprimidos. Quando a revolução vem de cima, é essencial
que alguns setores da vida social, indispensáveis à manutenção do poder de governo, sejam
preservados no meio da demolição geral. Os campos escolhidos para permanecer sob o
domínio da razão foram, compreensivelmente, a Receita Federal, o Ministério da Defesa e a
economia. A primeira, a mais indispensável de todas, porque não se faz uma revolução sem
dinheiro, e ninguém jamais chegará a dominar o Estado por dentro se não consegue fazer
com que ele próprio financie a operação. A administração relativamente sensata dos outros
dois campos anestesiou e neutralizou preventivamente, com eficiência inegável, as duas
classes sociais de onde poderia provir alguma resistência ao regime, como se viu em 1964:
os militares e os empresários. Cachorro mordido de cobra tem medo de lingüiça.

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