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4 AS ORIGENS DA TRANSFERENCIA (1952) Nota Explicativa da Comissio Editorial Inglesa Este € 0 tinico artigo de Melanie Klein sobre o tema da transferéncia e retine diver- sas idéias que ela, com freqiiéncia, expressava e ilustrava clinicamente em seus es- critos, Sua concepgdo de transferéncia é rica, envolvendo o que ela chama de “si- tuagSes totais”. No seu modo de ver, as interpretagdes deveriam abarcar tanto as relagées de objeto iniciais que sao’ revividas e evoluem ainda mais na transferéncia, como os elementos inconscientes nas experiéncias da vida corrente do paciente. Em Inveja e Gratidao (1957), cla cunha 0 uso da expresso “lembrancas em sentimen- tos” para a ocorréncia na transferéncia de emogoes e fantasias pré-verbais. Por muitos anos j Melanie Klein havia sustentado 0 ponto de vista de que as Telagdes de objeto comegam desde 0 nascimento, concepgo que implica que o nar- cisismo e 0 auto-erotismo nao sao estados anteriores as relagdes de objeto, e sim que s&io estados contemporneos as primeiras relagdes de objeto. O presente artigo con- tém sua Gnica — assim mesmo, breve — discussio do narcisismo primArio, incluindo um apanhado da relag%o de suas concepgdes com as de Freud, O leitor observard que nesta discussio Melanie Klein est4 descrevendo estados narcisistas, que sio es- tados de retirada para dentro de objetos internos. Na sua terminologia, estados nar- cisistas sao diferentes de relagdes de objeto narcisistas, que resultam de identifica- go projetiva conforme a maneira descrita em “Notas sobre Alguns Mecanismos Esquizéides”, pag. 31. -70-— | | 4 AS ORIGENS DA TRANSFERENCIA (1952) Em seu “Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria”, Freud (1905) define a situagao de transferéncia da seguinte maneira: ‘Que so transferéncias? Sao novas edicdes ou fac-sfmiles dos im- pulsos ¢ fantasias que sao despertados e tomados conscientes durante 0 andamento da anlise. Possuem, no entanto, uma peculiaridade, caracte- rfstica de sua espécie: substituem uma pessoa anterior pela pessoa do mé- dico. Em outras palavras, toda uma série de experiéncias psicolégicas € revivida, nao como algo que pertence ao passado, mas que se aplica a0 médico no presente momento.”” De uma forma ou de outra, a transferéncia opera ao longo de toda a vida ¢ influencia todas as relagdes humanas, mas, aqui, estou preocupada apenas com as manifestagGes da transferéncia na psicandlise? E caracte- rfstico do procedimento psicanalftico que, na medida em que ele comega a abrir caminho dentro do inconsciente do paciente, seu passado (em seus aspectos conscientes e inconscientes) va sendo gradualmente revivido. Desse modo, sua preméncia em transferir suas primitivas experiéncias, relagdes de objeto e emocées ¢ reforcada, e elas passam a localizar-se no psicanalista. Disso decorre que o paciente lida com os conflitos e ansie- dades que foram reativados, recorrendo aos mesmos mecanismos € mes- mas defesas, como em situagées anteriores. Segue-se daf que, quanto mais profundamente conseguirmos penetrar dentro do inconsciente ¢ quanto mais longe no passado pudermos levar a anflise, maior seré nossa compreenséo da transferéncia. Assim sendo, & relevante para 0 meu t6pico um breve resumo de minhas conclusées rela- tivas aos estégios mais iniciais do desenvolvimento. ‘A primeira forma de ansiedade € de natureza persecut6ria, O trabalho intemo da pulsdo de morte, que, de acordo com Freud, € dirigido contra 0 organismo, dé origem ao medo de aniquilamento, ¢ essa € a causa primor- dial da ansiedade persccutéria. Além disso, desde 0 infcio da vida pés- natal (nfo estou considerando aqui 0s processos pré-natais), os impulsos destrutivos dirigidos contra 0 objeto incitam o medo da retaliagso. Esses sentimentos persecut6rios a partir de fontes internas so intensificados por experiéncias externas dolorosas, pois, desde seus primeiros dias, a frus- tracfio e 0 desconforto despertam no bebé © sentimento de que est4 sendo -71= atacado por forgas hostis. Dessa forma, as sensa bé por ocasiao do nascimento e as dificuldades inteiramente novas dao origem & ansiedade per: cuidados dispensados apés o Nascimento, partic periéncias de alimentagao, so sentidos como Ao falar de “forgas”’, estou empregando uma aquilo que o bebé concebe vagamente como maus. O bebé dirige seus sentimentos de gratificagao e amor Para 0 sei “bom” e seus impulsos destrutivos e sentimentos de PeTseBuiczo pary aguilo que sente como frustrador, isto €, 0 seio “mau”, Nesse CSt&gio, og Processos de ciséio esto em seu ponto mais alto, eo amore o 6dio, bem como os aspectos bons e maus do seio, sio mantidos amplamente separa. dos um do outro. A relativa seguranga do bebé baseia-se em transformar g objeto bom em objeto ideal, como uma protecdo contra o objeto perigoso © persecutério. Esses processos — isto €, cisdo, negagao, onipoténcia e idealizagao — sao predominantes durante os trés ou quatro primeiros meses de vida (0 que denominei “posicao esquizo-parandide”, 1946). Dessa forma, em um est4gio muito inicial, a ansiedade Persecutéria e seu corolé- tio, a idealizagao, influenciam fundamentalmente as relagées de objeto. Os processos primérios de projecao e introjecao, estando inextrica- velmente ligados com as emogées ¢ ansiedades do bebé, iniciam as rela- s6es de objeto: pela projecao, isto €, pela deflexao da libido e da agresséo em direcao ao seio da mae, fica estabelecida a base para as relagées de objeto; pela introjegio do objeto, em primeiro lugar o seio, as relacses com os objetos internos passam a existir. O uso que fago do termo “rela- ges de objeto’ baseia-se na minha asserg&o de que o bebé, desde o inicio da vida pés-natal, tem com a mae uma relacéo (se bem que centrada pri- mariamente em seu seio) imbufda dos elementos fundamentais de uma re- lag&o de objeto, isto €, amor, édio, fantasias, ansiedades e defesas'. Em minha concepg4o, como expliquei detalhadamente em outras oca- sides, a introjeg’o do seio € 0 infcio da formacao do superego, a qual se estende por muitos anos. Temos elementos para supor que, desde a Pre meira experiéncia de alimentagao, o bebé introjeta 0 seio em seus varios aspectos. O nticleo do superego é, portanto, o seio da mie, tanto o bom iSGes, vivenciadas de se adaptar a ¢Qtl° be secutéria, O confong ularmente as Primeiras ¢ Provenientes de foreas bo, as Palavra um tanto adulta ee objetos, sejam eles ene "6 uma caracterfstica essencial da mais antiga de todas as relagbes de objeto ser 0 este Uma relacfo entre duas pessoas, na qual nfo entra nenhum outro objeto, Isso 6 de vial a tancia para posteriores relagées de objeto, apesar de que, sob essa forma exclusiva, ¢ jesen velmente no dure mais do que alguns poucos meses, dado que as fantasiasrelativas 20! €" penis — fantasias essas que dao inicio aos primeiros estigios do complexo de Edipo a zem a relagdo com mais de um objeto, Na anfllise de adultos criancas, 0 Ee iam “des 223 experimenta sentimentos de uma bem-aventurada felicidade através da revivesei Felagko inicial exclusiva com a mie ¢ seu seio. Tais experiéncias seguem-se freq! ins anflise de situacées de citime ¢ rivalidade, nas quais um terceiro objeto, em sltima Pai, est4 envolvido, te B ° =72= ud nas; en 4 eu: a puanones da Tealidade © fantasias sobre ela; e, conseqiiente- eo ee Ds a anueiee Persecutéria e a idealizagao — am- um corelério do objec nena nicer, sendo 0 objeto idealizado A crescente cay idade ; ae ne : ipacidade do ego de integragao e sintese leva cada vez a mesmo durante esses primeiros meses, a estados em que 0 amor ¢ 0 ea foams aspectos bons e maus dos objctos sao sinte- es oe forma de ansiedade — a ansiedade de- Sees cermenee ee agressivos do bebé, dirigidos ao Be ee no perigosos também para 0 scio quarto € © sexto més essas emogées sao reforcadas, Pois, nesse estagio, o bebé percebe ¢ introjeta cada vez mais a mie como uma pessoa. A ansiedade depressiva € intensificada, pois o bebé sente que destruiu ou est4 destruindo um objeto inteiro com sua voracidade ¢ agres- so incontrolaveis. Além do mais, devido A sintese crescente de suas emo- g6es, ele agora sente que esses impulsos destrutivos sao dirigidos contra uma pessoa amada. Processos semelhantes se dio em relagao ao pai e a outros membros da familia. Essas ansiedades ¢ correspondentes defesas constituem a “posicéo depressiva””, que chega a um clfmax por volta dos seis meses e cuja esséncia € a ansiedade e a culpa relativas A destruicao e perda dos objetos amados internos ¢ externos. E nesse estagio, e ligado & posicao depressiva, que se instala 0 com- plexo de Edipo. A ansiedade e a culpa acrescentam um poderoso impulso em diregao ao infcio do complexo de Edipo, pois elas aumentam a neces- sidade de externalizar (projetar) figuras més ¢ de internalizar (introjetar) figuras boas; de ligar desejos, amor, sentimentos de culpa ¢ tendéncias re- paradoras a alguns objetos, ¢ 6dio e ansiedade a outros; de encontrar re- presentantes de figuras internas no mundo externo. Entretanto, nao € ape- nas a procura de novos objetos que domina as necessidades do bebé, mas também 0 impulso em direc&o aos novos alvos: afastando-se do seio em direcao a0 penis, isto €, dos desejos orais em direc&o aos desejos genitais. Muitos fatores contribuem para esses desenvolvimentos: 0 impulsiona- mento da libido, a crescente integrago do ego, das habilidades ffsicas e mentais e a adaptagdo progressiva a0 mundo externo. Essas tendéncias esto ligadas ao processo de formago de sfmbolos, o qual capacita a crianga a transferir no somente interesse, mas também emogoes ¢ fanta- sias, ansiedade e culpa, de um objeto para outro. ‘Os processos que descrevi esto ligados a um outro fendmeno funda -B- mental que governa a vida mental. Acredito que a pressfo exercida pelas primeiras situag6es de ansiedade seja um dos fatores que fazem aflorar 4 compulsao a repeticao. Voltarei mais tarde a esta hipétese ‘Algumas das minhas conclusées referentes aos primeiros estégios dg infancia sio uma continuagao das descobertas de Freud. A respeito de certos pontos surgiram, cntretanto, divergéncias, uma das quais € muito relevante para 0 presente t6pico. Refiro-me 4 minha asser¢ao de que as relagées de objeto so operantes desde o infcio da vida pés-natal ‘Durante muitos anos, mantive a opinifio de que 0 auto-erotismo ¢ narcisismo so, no bebezinho, contemporaneos da primeira relagao com os, objetos, externos e internalizados. Reafirmarei concisamente minha hips. tese: 0 auto-erotismo e o narcisismo incluem o amor pelo objeto bom in- ternalizado e a relago com o mesmo, 0 qual, na fantasia, constitui parte do corpo e do self amados. E para esse objeto internalizado que, na grati- ficagao auto-erética ¢ nos estados narcfsicos, ocorre uma retirada. Con- comitantemente, desde 0 nascimento est4 presente uma relagdo com obje- tos, primariamente a mae (seu seio). Esta hipdtese contradiz 0 conceito de Freud de que estdgios auto-erdticos e narcfsicos excluem a possibilidade de uma relagio de objeto. No entanto, a diferenga entre a opiniao de Freud e a minha 6 menos ampla do que parece a primeira vista, uma vez que as afirmagées de Freud a esse respeito nao sdo inequfvocas. Em v4- rios contextos ele, explfcita e implicitamente, expressou opinides que su- geriam uma relagio com um objeto, o seio da mie, precedendo c auto- erotismo € o narcisismo. Uma referéncia deve ser suficiente. No primeiro dos dois artigos da Enciclopédia, Freud (1922) uisse: “Em primeiro lugar, a pulsao parcial oral encontra satisfagao ligando- se & saciagdo do desejo de nutrigio; e seu objeto é o seio da mie. Ela en- tio se distancia, torna-se independente e ao mesmo tempo auto-erdtica, isto €, encontra um objeto no préprio corpo da crianga” (S.E. 18, pag. 245). O uso que Freud faz do termo “objeto” € aqui um tanto diferente do uso que eu faco, pois ele est4 se referindo ao objeto de um alvo pulsional, a0 passo que eu tenho em mente, além disso, uma relagdo de objeto que envolve as emogées, fantasias, ansiedades e defesas do bebé. Nao obs- tante, na citagao acima, Freud fala claramente de uma ligagao libidinal com um objeto, o seio materno, que precede 0 auto-erotismo e o narcisismo. Neste contexto gostaria de lembrd-los também das descobertas de Freud relativas as primeiras identificacdes. Em The Ego and the Id?, fa- lando a respeito dos investimentos abandonados de objeto, ele disse: “. - ? Pg, 31, Na mesma p4gina, e ainda referindo-se a essas primeiras identificacdes, Freud suger que clas sZo uma identificac&o direta e imediata, a qual acontece mais cedo que qualquer inves” mento de objeto, Esta sugesto parece impliar que a introjegdo até mesmo precede rl objeto. —74— os efeitos da primeira identificagao no perfodo mais remoto da infancia sero gerais ¢ duradouros. Isso nos leva de volta A origem do ideal do ego...” Freud define ent&o as primeiras ¢ mais importantes identifica- g6es, que permanecem ocultas por detrés do ideal do ego, como a identifi- cago com 0 pai, ou com os pais, ¢ as coloca, segundo suas palavras, na “pré-histéria de cada pessoa”. Essas formulagées aproximam-se daquilo que descrevi como os primeiros objetos introjetados, pois, por definigéo, as identificag6es so 0 resultado da introjecdo. A partir da afirmativa que acabo de discutir e do trecho que citei do artigo da Enciclopédia, pode-se deduzir que Freud, apesar de nao ter levado mais adiante esta linha de pensamento, admitia que, na mais tenra infancia, tanto um objeto quanto processos introjetivos desempenham um papel Ou seja, no que se refere ao auto-erotismo e ao narcisismo, depara- mo-nos com uma inconsisténcia nas concepges de Freud. Tais inconsis- téncias, que ocorrem em numerosos pontos da teoria, mostram claramente, penso, que em relagdo a essas quest6es espectficas Freud ainda nao tinha chegado a uma decisao final. Com relaco & teoria da ansiedade, ele afir- mou isso explicitamente em Inhibitions, Symptoms and Anxiety (1926, ca- pftulo 8). Sua percepgao de que muito daquilo que se referia aos primeiros estdgios do desenvolvimento ainda Ihe era desconhecido ou obscuro esté também exemplificada ao falar sobre os primeiros anos de vida da menina, como sendo (Freud, 1931) “‘. . . obscurecidos pelo tempo ¢ sombrios. . .” ‘Nao conhego a viséo de Anna Freud a respeito desse aspecto do tra- balho de Freud. Porém, quanto & questo do auto-erotismo e do narcisis- mo, ela parece ter levado em conta apenas as conclusées de Freud de que um estégio auto-erdtico e narcisista precede qualquer relagdo de objeto, e no ter dado margem a outras possibilidades subjacentes em algumas afirmagées de Freud, como essas a que me referi acima, Essa € uma das raz6es pelas quais a divergéncia entre a concepgdo de Anna Freud ¢ a mi- nha sobre a tenra infancia é muito maior do que a que existe entre as opi- nides de Freud, tomadas como um todo, ¢ as minhas. Afirmo isto porque acredito que & essencial esclarecer a amplitude ¢ a natureza das diferengas existentes entre as duas escolas de pensamento psicanalftico, representa- das por Anna Freud e por mim. Tal esclarecimento faz-se necess4rio no interesse da formacio psicanalitica e também porque pode ajudar a susci- tar discuss6es frutiferas entre os psicanalistas, contribuindo assim para uma maior compreensao geral dos problemas fundamentais do inicio da infancia. A hipétese de que um estagio que se estende por varios meses prece- de as relagdes de objeto implica que, exceto para a libido ligada ao pré- prio corpo do bebé, os impulsos, fantasias, ansiedades e defesas ou nao estiio presentes no bebé ou nio estdo relacionados a um objeto, ou seja, eles operariam in vacuo. A anélise de criangas muito pequenas ensinou- S75— me que néo cxiste urgéncia pulsional, situagdes de ansiedade, proce mental que nao envolva objeto, externo ou interno; em outras Palavras as relagées de objeto esto no centro da vida emocional. Além - mais, amor ¢ Gdio, fantasias, ansiedades © defesas também operam des. de 0 comego ¢ encontram-se ab initio indivisivelmente ligados a rela. cées de objeto. Este insight mostrou-me varios fendmenos sob uma no. va luz. Formularei agora a conclusao sobre a qual se assenta o presente anti. go: sustento que a transferéncia origina-se dos mesmos processos que, nos estagios mais iniciais, determinam as relacdes de objeto. Dessa forma, na anflise temos de voltar repetidamente as flutuagées entre objetos amados e odiados, externos e internos, que dominam o inicio da infancia, $6 po- demos apreciar plenamente a interconexo entre as transferéncias positiva e negativa se explorarmos o interjogo inicial entre 0 amor e 0 6dio, eo cfrculo vicioso entre agressio, ansiedades, sentimentos de culpa e uma maior agresséo, bem como os varios aspectos dos objetos para os quais sio dirigidas essas emogées ¢ ansiedades conflitantes. Por outro lado, através da exploraco desses’ processos arcaicos, convenci-me de que a anélise da transferéncia negativa, que havia recebido relativamente pouca atencio’ na técnica psicanalftica, constitui uma precondigao para analisar as camadas mais profundas da mente. A anélise tanto da transferéncia ne- gativa quanto da positiva, bem como de sua interconexao, constitui, como venho defendendo h4 muitos anos, um princfpio indispens4vel para 0 tra- tamento de todos os tipos de pacientes, criangas e adultos igualmente. Substanciei este ponto de vista na maior parte de meus escritos, a partir de 1927. Tal abordagem, que no passado tomou possfvel a psicanilise de criangas muito pequenas, revelou-se nos tiltimos anos extremamente frutf- fera para a anélise de pacientes esquizofrénicos. Até por volta de 1920 presumia-se que os pacientes esquizofrénicos fossem incapazes de esta- belecer transferéncia, e assim nao poderiam ser psicanalisados Desde entio, a psicanélise de esquizofrénicos vem sendo tentada por meio de vé- rias técnicas. Contudo, a mudanca de visio mais radical a esse respeito ocorreu mais recentemente e est estreitamente ligada ao maior conheci- Tonto dos mecanismos, ansiedades ¢ defesas operantes na infincia mais remota. Uma vez descobertas algumas dessas defesas contra o amor ¢ 0 6dio, engendradas nas relagées de objeto primérias, tomou-se plenamente compreendido o fato de que pacientes esquizofrénicos séo capazes de de- senvolver tanto uma transferéncia positiva quanto uma transferéncia ne- gativa. Esse achado € confirmado se aplicarmos consistentemente no tra * sso foi devido em grande parte ao fato de se subestimar a importincia da agressividade. 764 tamento de pacientes esquizofrénicos* 0 princfpio de que € tao necessario analisar a transferéncia negativa quanto a positiva e de que, de fato, uma no pode ser analisada sem a outra, Retrospectivamente, pode-se ver que esses avancos considerdveis da técnica so apoiados, na teoria psicanalftica, pela descoberta de Freud das pulsdes de vida e de morte, que contribuiu fundamentalmente para a com- preensao da origem da ambivaléncia. Devido a estarem as pulsdes de vida ¢ de morte — ¢, portanto, o amor e 0 édio —, no fundo, na mais estreita in- teraco, a transferéncia positiva e a negativa encontram-se basicamente interligadas. A compreensio das primeiras relag6es de objeto e dos processos cor- relatos influiu essencialmente na técnica sob varios angulos. Sabe-se h4 muito tempo que, na situagao de transferéncia, o psicanalista pode repre- sentar a mae, 0 pai ou outras pessoas, que ele, em alguns momentos, tam- bém representa na mente do paciente 0 papel do superego e outras vezes o do id ou do ego. Nosso conhecimento atual capacita-nos a penetrar nos detalhes especfficos dos varios papéis atribuidos pelo paciente ao analista. Na realidade, existem muito poucas pessoas na vida do bebezinho, mas ele as sente como um grande ntimero de objetos, pois Ihe aparecem sob diferentes aspectos. Assim, o analista pode, em determinado momento, re- presentar uma parte do self, do superego ou qualquer uma de uma ampla gama de figuras internalizadas. Da mesma forma, supor que 0 analista re- presenta 0 pai ou a mae reais ndo nos levard muito longe, a menos que compreendamos qual aspecto dos pais est4 sendo revivido. A imagem dos pais na mente do paciente sofreu distorgdes em graus variados, através dos processos infantis de projegio ¢ idealizagao, e freqtientemente con- servou muito de sua natureza fantasiosa. Em termos gerais, na mente do bebezinho, toda experiéncia externa est entrelagada com suas fantasias ¢, por outro lado, toda fantasia contém elementos da experiéncia real, e € unicamente analisando a situagio de transferéncia em sua profundidade que seremos capazes de descobrir 0 pasado, tanto em seus aspectos rea- listas quanto em seus aspectos fantasiosos. &, também, o fato de terem sua origem na infancia mais remota que explica a forga dessas flutuagdes na transferéncia, bem como suas répidas alternancias — as vezes, até mesmo numa tnica sessio — entre pai e mae, entre objetos onipotentemente bon- dosos e perseguidores perigosos, entre figuras externas ¢ internas. Algu- mas vezes, 0 analista parece representar simultaneamente ambos os pais ¢, nesse caso, freqiientemente em alianga hostil contra o paciente, quando T Bese onica é ilustrada pelo artigo de H. Segal “Some Aspects of the Analysis of a Schizophre- nie” (1950) € pelos artigos de H. Rosenfeld ‘Notes on the Psycho-Analysis of the Super-eg0 Conflict of an Acute Schizophrenic Patient’ (1952a) e “Transference Phenomena and Trans- ference Analysis in an Acute Catatonic ‘Schizophrenic Patient” (1952b). -11- entdo a tansieréncia negativa adquire grande intensidade. O que foi en- t&o revivido ou tornou-se manifesto na transferéncia € a mistura, na fan- tasia do paciente, dos pais como uma tnica figura, “a figura dos pais combinados”, como descrevi em outro lugar’. Essa é uma das formagées de fantasia caracterfsticas dos estégios mais iniciais do complexo de Edipo, que, se mantida em toda a sua forca, prejudica as relagdes de objeto € o desenvolvimento sexual. A fantasia dos pais combinados ex- trai sua forga de outro elemento da vida emocional arcaica, isto €, da poderosa inveja assuciada aos desejos orais frustrados. Através da andli- se de tais situagGes iniciais, aprendemos que na mente do bebé, quando ele estd frustrado (ou insatisfcito, devido a causas internas), sua frustra- dio se casa com 0 sentimento de que um outro objeto (logo representado pelo pai) recebe da mae a ambicionada gratificagao ¢ 0 amor a ele nega- dos naquele momento, Aqui est4 uma raiz da fantasia de que os pais esto combinados numa permanente gratificagdo métua de natureza oral, anal e genital. E isso, para mim, é 0 prot6tipo de situagdes tanto de inveja quanto de citime. Existe um outro aspecto da anélise da transferéncia que € necessario mencionar. Estamos habituados a falar da situacdo de transferéncia. Mas ser4 que temos sempre em mente a importancia fundamental desse con- ceito? Minha experiéncia diz que, ao desenredar os detalhes da transfe- réncia, € essencial pensar em termos de situages totais transferidas do passa Jo para 9 presente, bem como em 1ermos de emogées, defesas e rela- gées de objeto. Por muitos anos — e até certo ponto isto ¢ verdade ainda hoje - a transferéncia foi compreendida em termos de referéncias diretas ao ana- lista, no material do paciente. Minha concepgao da transferéncia como al- g0 enraizado nos estagios mais iniciais do desenvolvimento ¢ nas camadas profundas do inconsciente € muito mais ampla e envolve uma técnica através da qual os elementos inconscientes du transferéncia sio deduzidos a partir da totalidade do material apresentado. Por exemplo, relatos de pa- cientes sobre sua vida cotidiana, relagévs & atividades nao sé nos ofere- cem um insight quonto a0 funcionamento do ego, como também revelam, se explorarmos seu contetido inconsciente, as defesas contra a ansiedade suscitadas na situagao de transferéncia. Isso porque 0 paciente esta fadado ‘a lidar com conflitos ¢ ansiedades, revividos na relagéo com o analista, empregando 0s mesmos métodos por ele usados no passado, Ou seja, ele se afasta do analista como tentou afastar-se de seus objetos primfrios; tenta cindir a relacio com ele, mantendo-o ou como uma figura boa, ov como uma figura m4; deflete alguns dos sentimentos ¢ atitudes vividos em 3 Ver The Psycho-Analysis of Children, especialmente os capftulos 8 ¢ 11. aye) Ai lista ea! ee outras pessoas em sua vida cotidiana, Atendo-me ao meu tema, discuti experiéncias, situagdes e emocées d. Sobre essas bases so construfdas as como os desenvolvimentos emocion: atengao do analista tanto quanto as de desenvolvimentos posteriores, Somente através da ligagdo contfnua das experiéncias mais recentes com as anteriores ¢ vice-versa (e isso significa um trabalho Arduo © paciente), somente explorando consistentemente a interagao dessas experiéncias € que o presente e 0 passado podem se aproximar na mente do paciente. Este € um aspecto do processo de inte- gragdo, o qual, 4 medida que a anélise progride, abrange a totalidade da vida mental do paciente. Quando a ansiedade ¢ a culpa diminuem e o amor € © 6dio podem ser mais bem sintetizados, os processos de cisio — uma defesa fundamental contra a ansiedade —, bem como as represses, atenuam-se, enquanto © ego ganha em forga e coesio; a clivagem entre objetos idealizados © persecutérios diminui; os aspectos fantasiosos dos objetos se enfraquecem. Tudo isso implica que a vida de fantasia incons- ciente, menos radicalmente separada da parte inconsciente da mente, pode ser mais bem utilizada em atividades do ego, tendo como conseqiiéncia um enriquecimento geral da personalidade. Refiro-me aqui as diferencas, em contraste com as semelhangas, entre a transferéncia ¢ as primeiras re- lag6es de objeto. Tais diferengas so uma medida do cfeito curativo do Procedimento analftico. - as Sugeri acima que um dos fatores que levam & compulsio a repeticao € a pressao exercida pelas primeiras situag6es de ansiedade. Quando as an- siedades persecutéria e depressiva ¢ a culpa diminuem, h& menos premén- cia a repetir continuamente experiéncias fundamentais ¢, em conseqiién- cia, antigos padrées e modos de sentir so mantidos com menor ae de, Essas mudangas fundamentais resultam da anflise consistente la trans- feréncia; esto ligadas a uma revisio de alcance profundo das primeiras relagdes de objeto ¢ refletem-se na vida presente do paciente, bem como na modificagio das atitudes em relagao ao analista. ae iando- em ver de perce- “Por veres, 0 pacene pode tentr fugir do present refegiand-seno pasado, cm verde ere Crna no ean Es suvos moet, come bcos een ee ga prin Palmente contra 0 reviver o passado em relacio aos objetos originals. -79-

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