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Michel Lallement HISTORIA DAS IDEIAS. SOCIOLOGICA; VOL. | DAS ORIGENS A MAX WEBER Este livro é um 6timo subsidio para professores e estudantes dos cursos de t sociologia, pois, além de mostrar a | ie aed | evolugao da producao teérica sobre 0 fato social, traz oportunos marcos de referéncia (balizas) da ciéncia sociolégica, bem como alguns dos textos mais representativos dos grandes autores das ciéncias sociais CS EMU ROSES TEES CR TEC SRS ET iii Hira os tts sociofégicas, do Michel Lalemant om dois volumes, ofereco aos professes © estudantes de sooblogia Fobchlel atin) Historia das idéias sociolégicas da vida om sociedad Oprimeiro volume esboga a trajetéria da reflexéo dos filbsofos e tedlogos antigos | sobre 0 fendmeno da vida em sociedade, ese estende alé a idade Moderna, ‘quando surgem Durkheim e Weber, considerados os pioneiros da visdo cientiica do fato social. Av segundo volume se reserva a apresentagao dos desenvolvimentos da | sociologia contempordnea a partir de Talcott Parsons, nos EUA, na década de 1930, Este primelro volume se esirutura om trés partes, A primeira parte questiona, do onto de vista do *viver em sociedade", as muiltipias filosotias que balizam 0 poriodo que se estende da Antigaidade até ao Século ‘das Luzes. A segunda parte Dados Internacionais de Catalogagiio na Publicagao (CIP) 1ara Rrasileira do Livro, SP, Brasil) Lalloment, Mi eh Histiria das idéias soclologieu: das ovigens Mex Weber. Mictet Laterent ; traduga de Epnain F. Alves. | Petripolis, RI Vozes, 2008, Isp 978-85-326-2918.0 Talo original Hise des ies sosiolgiqus des iginas a Weber. eo Bibliograf | |. Sociologia —Histvia 1. Titulo, cpp-301.09 Jj Indices para catdlogo sistemtico: 1. Idéias sociologicas : Historia 301.09 Michel Lallement Historia das idéias socioldgicas Das origens a Max Weber ‘Tradugdo de Ephraim F, Alves y EDITORA VOZES _ Petrépolis © 2000 by HER/Editions NATHAN. Titulo original faneés: Histoie des idées sociologigues ~ des origines & Weber Direitos de publicugdo em lingua portuguesa: Editora Vores Lids. Rua Frei Luis, 100, 25689-900 Peinipolis, RI Internet: hup:/sww.vozes.com.be Brasil Todos os direitos reservados, Neshuma parte desta obra polerd ser ‘eproduzida ou transmit por qualcuer forma e/ow quiisquer eins (eletrinico ou mecénieo,incluindo fotocdpia € gravagde) ot arquivada em qualquer sistema ou ‘banco de dados sem permisstoescrta da Eiitora, Faivaracto e org. lterdrta: Maria da Coneeigao B. de Souza Capa: Marta Braiman ISBN 978-85-326.291 8-0 (edigao brasileira) ISBN 2-091910740 (edigo francesa) Este vo foi compost eimpeesto pela Eltora Vazes Ld Sumario 1. A questo do “viver em sociedede” da Antigitidade Aldade Classica 2. Das filosofias da histéria aos precursores da sociologia - - Parte Il — Géneses - 1. Teorias sociais esocialismo = ------ += 85 2.A sociologia na virada do séeulo - - 143 Parte UII - Fundagdes 195 1, Emile Durkheim e a escola francesa de sociologia - 197 2, Max Weber, uma sociologia compreensiva do mundo modemo 255 Bibliografia. - 313 indice 333 g hese Introdugao 1. Uma cigncia reflexiva ‘A fim de explicar a persisténcia das diferengas tebricas que divi- dem os especialistas em cincias soviais, hoje é costume evoear uma situago de crise cr6nica. A sociologia nto foge & regra. A concor- ‘inca entre escolas de pensamento ¢ a existéncia de doutrinas di cilmente concilidveis so, muitas vezes, apontadas como 0s sinto- mas mais evidentes desse mal-estar profundo. Para rebater essa cri- tica, os socidlogos aigumas vezes citarain como razio a relativa jar ventude da sua disciplina. E verdade que se a compararmos com ou- {ras cigncias sociais como o direito,a hist6ria ou a economia polit ca, asociologia— como cigncia constitufda ~ € de produglo recente, ‘A definigio de um objeto proprio, a aplicago de métodos originais e investigagio cienilfica, eo reconhecimento institucional (eriagao de revistas especializadas, de cétedras universitérias...)s6 ganharam ‘corpo cefinitivamente pela primeira vez, em alguns paises indus- trializados, no extremo fimn do séeulo XTX, Mas, pode-se verdadeiramente, quase dois séculos depois de ‘Augusto Comte haver forjado 0 neologismo “sociologia”, conti- nuar evocando tenazmente uma eterna crise de juventude? Certe- mente ni. As dispatas entre escolas, a existéncia de paradigms altemativos nfo constituem, com efeito, 0 apandigio dos socislo- 20s. Basta olhar, para se convencer disso, as disciplinas vizinhas: a economia, a psicologia, @ lingistica... todas elas, também, s80 0 paleo de Asperos e incessantes debates tedricos. Exatamente ao eontririo daqueles que, como Karl Popper (4 légica do descobriment cientfico, 1934), se interessam pela prox dugdo e a validade das teorias em um universo depurado de toda forga social, hé muitos epistemélogos ¢ sociélogos que, cada um A sua maneira, chamam a atengdo para o carter necessariamente re- lativo ¢ histérico de toda teoria cientifiea (D. Bloor; P. Bourdieu; Escola de Frankfurt; M, Foucault..). Em A estrutura das revolu $0es cientificas (1962), Thomas Kuhn explica, assim, que até no seio das ciéncias da matéria 0 consenso te6rico entre 0s pesquisa dores nio & nem perfeito nem permanente. Ele evoca a idéia de luna sucessaio de paradigmas dominantes (conjunio de objetos, de questdes, de métodos, de conhecimentos... legitimados em ‘um dado momento por uma comunidade de sabios) que balizam o per- ‘curso histérico das eiéncias, Deste iltimo ponto de vista e com a mesma validade de qual- quer outro enunciado cientifico, as teorias sociolégicas sofrem com a relatividade ¢ a fragilidade histérica. Possuem, no entanto, ‘uma inewavel particularidade: « capacidade de usar seus proprios instrumentos para fazer da cigncia (a comegar pela propria socio logia) um objeto de estudo privilegiado, Dado que a produgio de conhecimentos cientificos é uma pratica social como qualquer ou- tra, 0 aleance das teorias sociolégicas deve, portanio, ser dupla- ‘mente avaliado: de um lado, segundo a sua mais-valia intelectual «¢, do outro, através do prisina das implicagbes e das configuragies sécio-histéricas no quadro onde se moldla o saber. 2. Meméria da sociologia 0 trabalho de sondagens de opinio, de analise estatistica, de consulta aos arquivos... é pritica obrigatéria na aprendizagem da Profissdo de socidlogo. Pois a sociologia é, antes de tudo, uma cigncia empirica. Essa pratica nfo teria, contudo, grande utilidade se néo se inscrevesse em uma obra e uma meméria coletivas que a histéria das idéias contribui, a sew modo, para resgatar. Ee os “Todo uabalboescreve C. Wright Mill ~ toda ese0- Ih de estidos e métodos em socilogi, supbe ume “taora do progresso cientfico”. Todo progresso ci- entific &cumulativo, Nao & obra de um tice bo- tet, ras de mites pessoas, que revdem erica, qe eerescntam ¢ ampiem. ara se atual, devese asociaro seu tbalho an que fi feito ea gue Se fz recesirio para se dislogar, énecesirio para 2 ob- jevidade(C. Wright Mills. inaginago soctoleg- ca, 1959). O ponto de vista epistemotégico de Mills deixa transpareeer ‘um otimismo mais ou menos diseutivel. Nao € duvidoso em con- trapartida que, tendo o lastro de um passado jé rico, a sociologia se tenha hoje tornado uma disciplina de referénciae que se deve levar em conta. Ela oferece, a quem se prope perscrutar com a liapa as priticas e representagies sociais, uma caixa de ferramentas, mui- tas das quais ja foram varias vezes experimentadas. Por iss0, sob pena de ter que reinventar continuamente e de modo ingénvo as anilises e os conceitos-chave de sua disciplina, 0 socidlago no poderia prescindir da historia de sua especialidade. Da mesma for- 1a, ser-he-ia impossivel apreender 0 aleance o sentido de qual- quer inovago, se esta ~ condigdo necesséria mas ni suficiente ~ no fosse cotejada com outras pesquisas e pontos de vista precexis- tentes. Conhecer a sociologia é, portanto, nfo apenas saber prati cé-la, mas saber igualmente mergulhar em sua hist6ria 3. Uma historia complexa e uma obra sempre em andamento Contrariamente a uma visio simplista ¢ caricatural do desen- volvimento das cigncias,ndo se pode conceber a histéria da Socio- Jogia tomando simplesmente por modelo uma acurmalacao linear, regular ¢ virtuosa de um saber que se poderia, de uma vez por to- das, conservar no Pantedio das idéias. Mas por qué? Antes de mais nada, porque as idéias nfio se reproduzem por si mesmas como ~ usando de novo uma metifors muitas vezes toma- da de empréstimo ~borboletas geram borboletas. A produgdo dos conhecimentos esté ligada, em boa parte, a fatores contextuais de- terminantes. Os movimentos da hist6ria e da socieéade contribu- ‘em para criar continuamente novos problemas, para invalidar cer- ‘0s esquemas antigos ¢ estimular novas anilises. Depois das catis- ttofes humanas provocadas pelos regimes totalitarios do século XX, por exemplo, nossas maneiras de pensar a otdem social, ou ainda, de ler certos pensadores dos séculos passados, -iveram ne- ccessariamente que passat por uma modificagao, Noutras palavras, como seria ilusério fechar-se no mundo etéreo da abstragio para ‘compreender o alcance ¢ os limites das teorias sociolSgicas, Em termos mais precisos, convém evitar um duplo obsticulo: {tanto quanto importa ressituar as idéias em seu contexto social, cultural e institucional, da mesma forma seria vlo, ro exiremo ‘posto, reduzr estas a determinantes puramente histdricas, Preten- der que as andlises deMarx ou de Weber so hoje caducas por esta- rem inteiramente dominadas pelas preocupagées da época deles & cair em uma atitude arbitréria que condena a ignorar que certos instrumentos, certos modos de uestionamento do social podem resistir ao desgaste do tempo. Em nome de preceitos metodolégi- cos que j foram devidemente comprovados, existem assim muitos socidloges contemporineos que se reportam sempre a Marx, We- ber..., sem necessatiamente abracar, aliés, 0 conjunto das convie- ses destes iltimos. Deve-se igualmente dissipar uma segunda ilu- sto simplista: aquela que atribui um eardterfixo a historia das idéi- as. Toda época, com efeito, possui a sua maneira propria de ler celebrar obras, embora pondo de parte contribuigdes cue outras {geraydes talver (re}descubram. Por conseguinte, uma obra que tra= tt da historia das idéias é necessariamente relativa porque, quer 0 autor se defenda quanto a isto ou nfo, ele é parte das representa- 90es coletivas uma vez que se exprimem através dele, Ei ois exemplos permitirio ilustar 0 que pretendo dizer. Na hora atual, Max Weber se apresenta como personalidade cientfica de primeizo plano no grupo dos pionsiros da sociologia alema. No ex tanto, a despeito do valor intrinseco da obra, esse juizo nao era algo cevidente no inicio do século XX. Como escreve Norbert Elias, nos anos vinte, Max Weber estava ainda looge de se destacar do grupo dos especialistas alemes em cién- cias socsis, a0 passo que hoje, com o reeuo do ten po, le reconecido gragas 4 triagem efetuada silea- ciosamente pelas geragSes seguintes (Vorberd Elias par lui méme, 1991). ‘O segundo exemplo mostra que os livros também poder: conbe- cer as vicissitudes do reconhecimento institucional: naatualidade, O suicidio, de Durkheim, étrangiilamente apresentado aos estaclantes como a obra capital do socidlogo francés, quem sabe até como uma bra indispensivel da historia da sociotogia. Ora, comparado com ‘5 outros, esse estudo conheceu menos sucesso, enquanto Durkheim vivia, inclusive entre os disefpulos miais chegados. 4, Convite a uma histéria das idéias sociolégicas ‘Sea sociologia se afivma tho tardiamente na histria das cinci- as sociais, as consideragdes sobre a maneira de “viver ei socieda- 4” logo acompanharam os esforgos de reflexdo dos fildsofose de outros pensadores do politico. Deste modo, para compreender a originalidade das idéias que se pode qualificar, a partir do sécalo XIX, como “sociolégicas” (tendo em conta que enunciam novos pontos de vista sobre os seres humanos ao viverem em sociedade ¢ porque enuncindas por individuos que se vao reconhecer como so- cidlogos), é necessério inscrever a sua gnese em um movirnento de longo prazo. O risco primeiro de semelhante projeto & 0 de efetuar um vo ‘nito por alto, necessariamente caricatural e fragmentatio, da histé- i tia da sociotogia. Por isso, sem pretensio de ser extustivo (mas como isso poderia ser possivel”) ¢ com a clara conse:éncia do es- quecimento as vezes injusto de certas abordagens, da redugio de certas anélises sutis e complexas, do menosprezo de certos fatores insttucionais, esta obra privilegia nfo apenas 0 ponto de vista socio- lgico.em sentido estrito(@ custa da psicologia social, ca antropolo- aia, da lingitistica...), mas jgualoente dos autores ou das escolas que parecem hoje as mais significativas para se compreenctr tanto a s0- ciologia contemporinea como 0 mundo modemo. Devs-se precisar em segundo lugar que, destinado a estudantes que vio abragar a car- reira de socidlogos e a ndo-especialistas, este livro é antes de tudo uma introdugdio, Nao poderia, em caso algum, substituir a consulta cuidadosa 20s texios originais: quer ser, rmuito pelo contrério, um convite an contato direto com as grandes obras da soviologia, en- contro que neninum manual seria capaz de substitur. A presente obra se compie de dois volumes. O prtteiro € con- sagrado aos precursores e a0s fundadores da sociologia. O seguin- do apresenta os desenvolvimenios da sociologia conlemporainea a partir da década de 30, primeiro romo se estrutura ei rs partes, A primeira parte questiona, do ponto de vista do “viver em socie- dade”, as maltiplas filosofias que balizam o periodo que se estende a Antigtiidade ao Século das Luzes. A segunda parte avalia, em primeiro lugar, as teorias do social assim como se desenvolvem com a temtica socialista, Apresenta a seguir as diferentes escolas sociol6gicas que entram em confronto, nos paises indusralizados, no fim do sécuto XIX. Eibora 0s contatos entre socislegos de pat ses diferentes tenham sido estabelecidos bastante rapidamente, convém apesar de tudo, como se verd,raciocinar em termos de tra- digo nacional. A terceira parte, enfim, 6 consagrada adois autores de importancia primria, autores contemporiineos um dooutro (mas ‘que nunca debateram juntos!) e que adquiriram depois de mortos titulo de “pai fundador” em sociologia. Trata-se, respectivamen- te, de Emile Durkheim e de Max Weber. st OCI Sioa 69 a pawn A questao do “viver em sociedade” da Antigitidade a Idade Classica Com os gregos da Antigilidade vem A luz um sistema inédito éc participago na vida politica: a democracia (Baliza 1). Belode ‘a0 mesmo tempo um pensamento filoséfico livre ¢ originl sobre ‘asociedade. Mas se essas reflexes produzem principios novos e inteligibilidade da realidade social, adotam também una posi- ‘io normativa (para determinar 0 que deve ser), posigio estranba ‘0 espirito daquilo que vai ulteriormente constituir 0 ponto de vista sociolégi A Idade Média nfo se mostra propicia ao desenvolvimento de novas concepgées. Durante esse longo perfodo, predomina um pensamento submetido a idéia de Deus, Sera necessério esperar 0 Renascimento ¢ a Idade Cléssica para que os seres humanos ces- ‘sem progressivamente de pensar a ordem da sociedade com refe- €acia a um prinefpio divino transcendente a eles. Dessa ruptura ‘vio nascer as primeiras teorias do contrato social, enfoques que formalizam a constituigo da sociedade como mero produto de aco dos humanos. A democracia ateniense Historia ‘Adotadias sob a pressio dos eamponeses,artesos ¢ somerciantes «que eagiaz contra traniae as desigualdades, as refommas de Cliste- ss (308 a) abala completamente face politica da Crcia Antien sss reforms cian as cones dew regioe que confer oper Povo: a democraca, A substitucia das antgas tibos por noves di. ‘vis6es institu, no seio de um mesmo corpo police, nals unidedes Unidas sitadasw uma distincia igual do poder. No V século,céeule do esrtego Prices, Atenas se torn a veradira capt da Gri, lugar de fermentagio cientifica, flosbficaeatistica. Neste conjunte ox res Herder (484425) Tulides (65-39) 0 px. ‘mero gragas sous tabalhos sobre as guerra persas,o segundo pels tips observages "tnogrtieas” que enna oe ta do Peloponeso ~ desempentiam 0 papel de pioneios das iéncias so. bias. A guerra co Peloponeso (431-404 aC), que opde Esparta a Ate. ‘as, ple fim & democraciaateniense. Em 404, um povern> oligirqu. £0 (0 dos Trints Tiranos)sobe ao poder. Critias, primo da ne de Pla, fo, acha-se sua fente. Em 403, um govema democriticn reassume © poder: & 0 que vai condenar Séerates Organizasio Para falar em termas mais conformes ao uso em matéca consti tucional, opovo possia no somente aelegibilidedenecesssi para ocuparos cargos eo direito de cleger magistaios mas amber reito de deviir em todos os dominios da politica da Estado ee dre {0 de julger,constisido em tribunal, todas as causasimportanes, Vis © crimings, plies ¢privadas. A concentra da sutoriede na AssemblGi, a fragmientac20 eo carter otto dos posos tel, nistativos, a escola por soreio, a auséncia de burocracla semua, ‘2th, os jiris populares, tudo isso contrib para impedis que secras: fe um aparciho patidrioe, por via de conseliéncia, de wn ote Politica insttuctonalizada. A diregto des questSes era direta e pes. Bee pines soal, ¢ no havia lugar para mediocres fantoches, manipslades por tris do palco pelos dirigentes ‘reais’. Homens como Péricles consti tulam, sem davida, uma elite politica, mas essa elite nfo se pespetus vva por si mesma [.]. Alguns dos dispositivos institucionais que os atenienses inventaram com tanta imaginaeao perdem a sua feigo aparentemente estranha a luz dessa realidade politica, O ostracism 0 mais conhecido: um homem cuja influgneia fosse julgada peri- ‘gosamente excessiva podia ser exilado por dez anos, sem perder to- davia, ¢ isto & importante, seus bens ou 0 seu estatuto de cidadio” (MLL Finley. Démocratie antique er démocratie maderne. Patis, Pa- yor, 1916, p. 75-76). 1. Filosofia e politica na Antigiiidade grega No século V aC os sofistas sio, na Grécia, os primeiros que oferecem uma reflexdo critica sobre a onganizacao dos seres hu- manos em sociedade, Em seu sentido primeiro, o termo “sofia” designa aqueles que possuem competéncia e saber (sophia). Mais tarde, progressivamente, serve para qualificar intelectuais como Gorgias de Leontino, Hipias de Elis ou Protégoras de Abdera que exercem, de cidade em cidade, a arte da persuasiio mediante pala- vra. Os sofistas fustigam a escravidio e usam abundantemente a arma critica. Langando difvida sobre a existéncia dos deuses, efes encaram a justiga, ¢ também toda institui¢ao que concorre para & manutengdo da oxdem social, como uma simples convengaohuma- nna, “O homem é a medida de todas as coisas” (Protigoras): assim se exprime claramente e de forma lapidar essa negagdo da trans- cendéncia, Platdo e Arist6teles irdo contrapor— cada um a sua ma- neira — uma resposta critica aos sofistas. ILL. A cidade ideal de Platéio Plato (427-348 aC) entra em cena, na historia, depois da queda da democracia ateniense. Marcado pelas turbuléncias politicas de seu tempo e pela condenagio & morte, de Sécrates (do qual foi disci- plo), ele proc antes de tuco um meto para cheger 4 cidade ideal, modelo de sociedade que escape & desordem e a erosio do tempo. Este aristocrata ateniense redige A repiiblica, obra na qual ex- Se os meios para se alcangar esse objetivo, Até a morte, Platio vive sempre animado por essa mesma preocupago com a ordem, Em As /eis, obra da maturidade, ele da um conjunto de indicagbes mais detalhadas ainda (embora diferentes das anteriores) com o in- tuito de realizar o tipo de sociedade que ele julga perfeita. Mas o contributo de Plato nto se reduz s6 a essas duas obras. Platio nos legou iniimeros outros escritos, muitos deles em forma de dilo- ‘208, como por exemplo Apologia de Sécrates, Protigoras, O ban- quete... Sempre com a mesma preocupagaio de pedagogia politica, © filésofo funda a Academia, uma espécie de escola destinada a formar homens de Estado. Excetuando duas experiéncias desastra- das na Sicilia, assessoranco o tirano Dioniso de Siracusa, o proprio Platao se mantém sempre & margem da vida politica, A originalidade de Plato consiste em sustentar primeiramente, contrariando Parménides e Heréclito, que hé um mundo das Idéias, mundo estivel e perfeito cujo reflexo mutivel se vé na realidade (Texto 1). Gragas a reminiscéncia, os seres humanos se beneficiam da experiénoia de uma vida anterior, a de uma alma iriortal ¢ ima. terial que foi preeipitada em um compo e que se beneficiara da con- ‘templagdo das Idéias de Bem, de Belo... Nesse mundo das ldéias se acha a justiga em si, principio que os seres humanos éevem tomar ppot base no decorrer de sua vida terrestre, para construir una cida- de ideal e assegurara salvagio da alma. A organizacio da cidade ~ penhor da felicidade individual — nao ¢ portanto agora, como pen- savam os sofistas, questio de opinides mas de técnica. “Entrada permitida s6 aos gedmetras” — esta era a formula gravada no fron- to da Academia, Essa expresso revela a ruptura introduzida por Plato, Com este iltimo o politico balanga entre a filodoxia (amor a doxa, & opinifo) ¢ a filosofia (amor & sabedoria, sophia). me i pores PLATAO~A alegoria da caverna ‘Agora, continuei, representa-te da seguinte maneita 0 estado de nossa natureza no que s¢ refere 4 instruglo ¢ & ignordncia, Imagina homens em uma morada subterranea, em forma de ca~ ‘vera, tende sobre toda a sua targura uma entrada aberta a luz; cesses homens se encontram ali desde a inflincia, com pernes € ppescogo acorrentados, de tal sorte que nio podem movimen- tar-se nem ver senfio o que fica bem A sua frente, pois os grithbes ‘8 impedem de voltar a cabega; a luz thes vem de uma fogueira ‘acesa em uma elevacio, ao longe, por tras deles; entre a fogueira, ‘¢03 prisioneiros passa um caminho elevado: imagina que ao lon- ge desse camino est construido um pequeno muro, semielhante ‘20s tapumes que os manipuladores de marionetes erguem & sua, frente ¢ por cima dos quais exibera suas habilidades. Estou vendo ~ disse ele Imagiza agora ao Jonge desse murinho homens que carre~ ‘gam objetos de toda sorte, que sobrepassam 0 muro, ¢estatuetas ‘de homens ede animmsis, de pedra e de madeira, ¢ de toda espicie de material; naturalmeote, entre esses carregadores, alguns fa- lam e outros estio calados, ‘Eis — exclamou ele — um quedo estranho ¢ estrankos prisio- tes se assemelham a nés — respondi —e em primeito lugar, ‘pensas que.em tl situaglo eles jamais tenham visto outra coise di- ferente deles mesmos e de seus vizinhos exceto as sombras proje- tadas pelo fogo sobre a parede da caverna que esté diante deles?? E como? ~ observou ele — se estio forgados a permanccer ‘com a cabega imOvel durante toda a vida? E para os objetos que destitam, nfo se dio mesmo? Incontestavelmente ‘Se, portanto, pudessem conversar entre si nfo pensas queto- ‘mariam por objetos reais as somibras que vissem? 2a Agom, meu car Glauco, continuei, deve-se aplicar ponto ‘por ponto esta imagem aquilo que acima dissemos, comparar 0 mundo que a vista nos mostra a morada na prisdo, ¢« luz da fo- _gueira que ailumina ao poder do sol. Quanto & subida para are- sitio superior e d contemplacZa de seus objetos, se a considera. como a ascensdo da alms para a regifa inteligivel, nfo estarés enganado segundo penso, porque to hem desejas conhecé-Ia Sabe Deus seela ¢ verdadeira, Quanto amim, esta éa minha opi ‘itl: no mundo inteligivel a idgia do bem é percebida por dltimo com dificuldade, mas nfo se pode percebé-la sem cencluir que cla seja a causa de tudo aquilo que ha de reto e belo en todas as coisas; que ela, no mundo visivel, geroui a Iuz e 0 scberano da uz; que, no mmendo inteligivel,é justamente ela que 6 soberana «e dispensa a verdnde e a inteligéncia; e que ¢ necessirio vé-la para se portar com sabedoria tanto na vida privada como na pir blica (Platio, A repuiblica, livro Vil, 314-517), Mas, 0 que € o modelo da cidade ideat? E uma cidade regida pela justica, responde o autor de A reptiblica. E aquilo que é justo é a atribuigdo de status em fungtio da competéncia prépria de cada individuo, Mediante um sistema de educacdo estritamente codifi- cado, convém selecionar os individuos em virtude das suas quali- dades e colocé-los emi trés classes diferentes: 0s artesios (encarre- gados dos problemas econdmicos), os guerreiros (tesponsiveis pela defesa da cidade) e os guardides, dotados de uma sabedoria que 08 habilite para o exercicio do govemo. A fim de constituir tuma grande familia unida, os membros das classes superiores (di- tigentes, magistrados..) devem viver sem trabalhar ¢ em completa comunhiio de bens, de mulheres e de filhos (Texto 2). “Enquanto 08 filésofos niio forem reis nas cidades (..) ~ explica lato ~ no cessario (..) 08 males das cidades, nem, parece-me, os do género hhumano” (4 repitblica, 4736). pases PLATAO~ As classes na cidade platonica © mito dos metais ‘Vou, portanto, faz8-lo~embora nfo saiba de que audécia © de que expressées usarei para isto ~e tentarei persuadir em pri ‘meito lugar 08 chefes e os saldados, em seguida os outros cida- dos, que tudo aguilo que lhes ensinamos ao educé-los e ins- tui-los, tudo aquilo de que acreditavam ter o sentimento © a ex- pperigneia, ndo era, por assim dizer, outra coisa sendo soho; que, na realidade, eram entio formados e educados no seio da terra, cles, suas armaas ¢ tudo 0 que les pertence; que depois de té-los inteiramente formado a tera, a mile deles, 05 deu 3 luz; que, en- to, devem olhar 0 pais que habitam como sua mae e sua nutri Gefendé-la contra quem a stacasse, © tratar 0s outros cidadios ‘como irmiios, como filhos éa terra assim como eles. Nao é sem raz que sentias vergonha dizendo essa mentirat ‘Sim, confessei, tina muito boas razdes; mas uve todavia o resto da fabula: “Vés sois todos inmos na cidade, vamos di- zer-lhes, continuand esta ficgo, mas o deus que vos formou fez. entrar ouro na composigio daqueles dentre vés que tem capaci- dade para comandar, por issa so 0s mais preciosos. Misturow pata na composigdo dos auxiiares; ferr0 e bronze na dos traba- Ihadores ¢ dos outros artosfos. De modo geral,iteis gerar filaos semelhantes a Vis mesmos; mas como sois todos parentes, pode ‘acontecer que do ouro nasga umn rebento de prata, da prata um re- ‘bento de ouro, ¢ que as mesmas transmyotagdes se produzam en- ‘tre os outros metais. Deste modo, antes de tudo e sobretudo, 0 ‘deus ordena 20s magistradas que vigiem atentamente os filhos, ‘que prestem muita atengo ao metal que se acha misturado com, sua alma ¢ $¢ 08 seus préprios filhos tém alguma misture de bronze ow de ferro, que nilo tenbam piedade por eles, e que hes ‘concedum o género de honra devido a sua natureza, relegando-os, ‘para a classe dos artestios e dos trabalhadores, mas se destes tilt os nusce um filho cuja elma contenks ouro ou prata, o deus pga ae ee sea horadoeduesno-o aut para ograu de guar dito quer para od sunlit, vse que um ores aioe oes cidade precerd que for guardadaylo er oupeiotecees Chatto. repel, 149. ‘A comunidade de bens, de mulheres de fos entre os guardides Além desta eduucagao, todo homema sensato hd de reconhever qu énecesiio dares moraine bens que ncn inpegan de sera gars to petits quam pose caus cic levema pris os outoseladoe, ods ver eto, continu, se par serem wis deve vere tmorr do mance gue vo dizer anes de tal near dls sur nada como préprnforn os ajc de pcre dade). Todas as mules denotes ues seo comune todos: "etna das bit empaiciar om nun dles dace, ‘ma forma, os filhos serio comuns, ¢ 08 Pais no conhecerio seus fies nr estes seus pais (Pato. bd e470 459) Esse ordenamento ical da cidade tal como Plato o imaging, é somente a projegio na ordem social da esirutura da alma humana, Para Plato, a alma se divide, com efit, em trés pts (deseo, coragio, rizto) que corespondens a ottas tanta virudes (temp, ranga, coragem, sabedoria).O equilibria da alma enconttao sou equivalente, aragas ao estabelecimento das ts clases, como equa, brio da cidade A incivisibilidad, a estbilidade, a avtaruiaices, némica eo esto gerenciamento da sociedad (da qual sie exclu. dos 0s poetas) slo os eitrios desta exeeléncia platbnice 1.2, Aristételes e 0 bem-viver em sociedade Arisiételes (384-322 aC), discfpulo de Platio na Academia, & também o seu principal contraditor. Fundador, também, de uma mae z q i 4 d 3 4 4 peewee escola (0 Liceu), Atistételes produziu uma obra pletorica que aborda a maior variedade de assuntos como por exemmplo a logica, afisica ou ainda abiologia, Mas, & claro, sio as obras de moral e de politica que nos interessam em primeira instdncia: a Ltica a Nicé- ‘maco e, sobretude, A politica. Axistoteles s¢ afasta de Platio recusando no apenas 0 print pio de comunidade mas também a pertinéncia de toda oposigio en- tre mundo sensivel e mundo das Idéias. Nao ha razao para sepatar forma e matéria, almae corpoe, a fortiori, andar & procura de une justiga ideal, Abandonando o idealismo plat6nico, Aristételes pre- coniza que se d8 atengio aos fatos sem, no entanto, refugiar-se na ‘vulgar empiria, Para além da complexidade do real, a ess&ncia das coisas & apreensivel gragas A pesquisa, nfo de principios percidos ro céu das Idéias, mas da sua finalidade. Em virtude desse prin pio, Arist6teles define o ser hummano como um animal racional, que vive & procura da felicidade na terra. Para alcangar essa meta, 0 ser humano deve dar provas de virtude levando a vida com modera- fo, com perfeigao e independéncia. Gragas a vontade, & rao e 8 educago, s6 se atinge realmente esse ideal quando a virmude se tor- nou umn verdadeiro habito, uma espécie de segunda natureza que, cde maneira espontinea, govema do melhor modo 6s nossos atos, ‘Mas o ser humano— assim pensa Aristoteles ~ nasceu antes de tudo para viver em sociedade: ele & um “animal politico”. Dotado da palavra, acha-se apto para deliberar com seus semelhantes de modo que diga 0 que é justo ¢ 0 que é injusto, estabelega para si ‘mesmo regras de vide em comum, procure por consenso © melhor dos regimes... Esse comércio da palavra se corrobora através da amnizade (philia) e autoriza a busca do “bem-viver em sociedade” que fandamenta toda comunidade politica (Texto 3), Diversamien- tedePlatio, Arisisteles alimenta a persuastio de que nio existe ne- ‘nhum sistema politico perfeito em si nem regras perfeitas de vida ‘om sociedade, Na medida em que se afastam da tentagio da tirania, trés regimes the parecem, no entanto, mais aceitiveis: a democra- cia, a oligarquia ¢ a monarquia, Os melhores modos de convi- véncia e de governo dependem, finalmente, de alguns outros fato- Fes como 0 clima (“A acrépole & oligérquica e mondrquica, en- quanto a planicie é democrdtica”) oa demografia (uma densidade muito forte pode provocar perturbagoes). Scerige assim a politica como ciéncia rainha, Aristételes conti- hua prisioneiro de uma filosofia que faz da natureza um modelo absolute para a organizagao da cidade. Primeiro objeto entregue pela natureza, 2 sociedade €, & imagem do corpo, um todo que tem a primazia necessariamente sobre as partes que oconstituem. A fa- nilia, lugar de procriagdo ¢ de educagio, forma neste sistema 0 grupo social de base. Ao contratio do que € preconizado por Pla- Bo, nem se deveria questionar sobre a dissolugo dessa célula na- tural nem reivindicar a igualdade entre homem ¢ mulher, Pois a or- ganizagdo social deve respeitar 0 padrio da natureza: ora, como se comprova, o homem é naturalmente dominador e a mulher levada 4 subordinagdo. Em nome desse mesmo principio, o filésofo se re- usa a condenar a escravidlio que é, a seu ver, para os homens nah- ralmente inferiores. Texto3 ARISTOTELES— As formas de cidade © que é uma cidade? ‘Vemos que toda cidade ¢ uma espécie de comunidade, eque toda comunidade & consttuia em vista de um certo bem (pois é em vista de obter 0 que Ihes parcce um bem que todos 0s seres hbumanos realizam sempre os seus atos): dat resulta claramente ‘que se todas as comunidades visam um bem determinado, aquela que € mais alta de todas e abrange todas as outras, visatambém, inais que as outras, um bem que esti acima de todos os outos. Esta comunidade & a que se chame de cidade, & a comunidade politica (Aristteles. Politic, I, 1) Be auitrmicinnaslineancnaga ieee Seis e Os diferentes tipos de constituis0 ‘Os termes consttugdo e govemo tém o mest sinifcado,& o governo é a autridade suprema dos Estados, autordade supre- amaque se achanecessariameate nas mios ou dein s8 hose, 08 deumpequeno grupo eu da mss dos cidadifos. Quando o deten- torlinico da sociedad, ow o pequeno grupo ou a massa goversam. em vista do interesse comum,ess28 consttuigdes so necessaria- mente consttuigdes eorretas, ao passo que os governas que tém cm visto interesse particular, ou de um sé homem, ox de um pe- aqueno grupo eu da massa sfo desvios do tipos precedentes. Ou cnffo, com elite, queles que fazem parte do Estado nia deve. ser chamnados de cidadios ou enido devem participar das vanta~ ‘ens da comunidade, Ente as formas de govemo de tipo monir~ 4uico,costumsmos designar com o nome de realeza aquela que leva em conta o interessecomum; quando a autoridade éexerida por um pequeno grupo, indo, todavia, além de. unidade, € uma ‘ristocracia (chamada assim ou porque S10 os melhores que e0- ‘Yemuam, ou porque ase tem em visa maior bem para cidade seus membros). Quando, enfim, « multieio administra 0 Estado ‘emvista da utiidade comum, 0 governo recebe o nome conn a todas as constiuigdes, saber, uma repiblia propriamente dit, © aqui se rata de un fato bem natural: pois se € possivel que um s6 individuo ou um poqueno grupo de individuos se sobressaiam na virude, a0 contéro & entfe dificil que um mimero de homens ior aleance a perfeigo em todaa espécie de virtudes (perfeiclo ‘que ne entanto € alcangada no valor militar, pois este surge do seio «das massas; e por eonsoguiate € nesta titima forma de govemo ‘quea classe combarente detémo poder supremo c todos 08 quese~ _guem a careira das armas tém parte no poder) ‘As formas de que aeabamos de falar podem softer desvios: a ‘iratia 6 um desvio da realezs a oligarquia, da aistocracia,¢ a ddemocracia, da replica propriamente dita. A tirana, com efei- to, Guma monarquia que tem em vista unicamente 0 interesse do soberano; a oligarquia tem em vista ointeresse dos rcos: 8 de- rmocraca, o dos indigents; enenhuma dessas formas de sover- no tem por mete. a utilidade comum (Aristteles. ibid, I, 7) Esse: Fon ieriiocola Cwnleiade Sees 2.0 teocentristn da Tdade Média Depois da Grécia, ¢ Roma que ocupao posto mais alto na hi vin ccd. Ma pio Romane, qv a perso no do peso do gigantismo e do absolutismo, nio produz renhuna refle- xfo politica original. Vitima das invasdes barbaras, Roma cai em 410 sob o ataque do visigodo Alarico. No plano intelectual, im- pOe-se entio um nome: o de Santo Agostinko, bispo de Hipona, 2.1, As duas cidades de Santo Agostinho (354-30) No intuito de refutar as teses pags que atribuiam a queda de Roma a uma adesto progressiva ao crstianismo, Sante Agostinho re- dige, entre 412 © 426, A cidade de Deus, Esta obra constitu, a0 mes- mo tempo, uma tentativa de refutar as idéias milenaristas. O movi- ‘mento milenarista, sustentado por alguns Padres da lereja entre os segundo e quarto séculos, serve-se com efeito da autoridade do Evangelho para condenar as desigualdades sociais. Tomando por base o livro do Apocalipse, de Sao Joao, que anuneia a queda da Ba- bilGnia e o advento de um milénio de paz felicidade, o milenaris- ‘mo antecipa e augura uma sociedade justae feliz. Mas, persuadicdo de ue somentea f& pode salvar (no as obras), Santo A.postinho se ope ‘Vigorosamente a essa intromissio religiosa na vida politica e social ‘Mas 0 coragiio da demonstragdo, efetuada por S: i See ee oposigtio entre dois tipos de “cidade humana”: a cidade terrestre e acidade de Deus. Na primeira, 08 seres humanos vive no pecado ena dependéncia mitua, cultivam o apetite desordencdo, a violén- cia €0 amor por si mesinos até chegar ao desprezo de Deus, A se- gunda é uma cidade cosmopolita em que os seres humanos vivem no exclusive amor a Deus, na fé ¢ na humildade. Em nomte dessa segunda forma de vida humana, Santo Agostinho preconiza 0 de~ sapego frente aos negécios do mundo terrestree a estrita observn- ia das regras, mesmo que injustas, das instiniigdes existents. Bee Livro de cabeceira de Carlos Magno, 4 cfdade de Deus consti tui, fora de divida, e de maneira um tanto paradoxal, uma pega iam- pportante para o pensamento e a prética politica da primeira [dade Média, Da doutrina agostiniana se deduziu, por exemplo, a teoria agsim chamada das “duas espadas”, Deferdida pelo Papa Gregorio ‘Magno (540-6014), ela consiste em reconhecer a existéncia ns terra de dois tipos de poder delegados por Deus: um, espiritual, conferi- do as autoridades eclesidsticas que detém todo o poder na esfera religiosa; 0 outro, temporal, que compete ao rei, que pode dispor dos seus siditos como bem Ihe aprouver. 2.2. As nupturas da Idade Média Em conseqiiéneia da invasio do Império Romano do Ocitente pelos bitbaros, o periodo que decom entre 0s Ve X séculosse ca racteriza, essencialmente, pela ruina e pelo estilhagamento das ci- (G. Vico. Principios de uma nova eléncta relativa d natureca comum das ages [1725]. Patis, Nagel, 1986, p. 367), | tenelle) ea Igreja ou, em termes mais precisos ainda, os pregado- 12s (Bossuet). Baliza 3 Condorcet & o autor de um livro escrito durants o Terror, as pressas, enquanto aguardavaa condenagio: Esboco de wm quadro histérico dos progressos do espirito humano (1795). Nesta obra, verdadeiro compéndio das grandes conquistas da filosofia do sé- culo XVII, Coadorcet expde pormenorizadamente as dez etapas | pelas quaisa humanidade passou para ir & procura “da verdade e da felicidade”. No espectro da historia humana, a Revolugio France- sa ocupa 0 firn do nono perfodo, Gragas ao progresso das Luzes ¢ da virtude, 0 tltim momento vai ser 0 do estado social, o dos direi- tos dos homens ¢ da igualdade social. Condoreet compartilha com Vico este otimismo das Luzes que o leva a desenrolaro fio da his- téria no sentido do progresso, Mas, da mesma forms que ele, con- tribui também para dar forma a uma intuigao coletiva: das ciéncias da sociedade. Suamatemética social (aritmética potitica),a andlise lingiistica e 0 recurso aos documentos, tudo isto so instrumentos de racionalizagao do social que os sociélogos vao herdar. 1.2, Razdo e ordenamento social: 0 espirito das lets segundo Montesquiew Sem renunciar ao prinefpio de razito, Charles de Montesquieu (Baliza 3) rompe com as leituras evolucionistas e progressistas da histéria, do tipo de Vico e Condorcet. Como ele se mostra indepen dente de todo ponte de vista normative, muitos consideram Mon- tesquiew como o verdadeiro precursor da sociologia. Para poder avaliar devidamente a real singularidade das idéias deste tiltimo, convém resgatar es termos do debate intelectual que, na articula- ‘sao dos séculos XVII e XVII, que opde os libertinos (Bayle; Fon- Charles de Montesquieu (1689-1755) ‘Nobre e proprietirio de temas, Charles de Montesquiewnascewem 1689 no castelo de la Bréde (Bordéu),e batizado como Charles-Louis de Secondat. Estudh diseitoe se bacharela como advogado e maistar- td conselheiro no parlamento de Bordéus. Fregiienta a seguir os libex- tinos de Paris e publica no anonimato, ema 1721, As cartas persas. ‘Nessa obra de fice, em que visjantes persas descobrem Paris, Mors. tesquieu tece uma vigorosa critica social (do despotismo de Luis XIV ‘muito em particular). Nela sustenta, por exemplo, que 0 divircio & ronnal porque é conveniente que uma muller que se aborrece poss ‘tocar de marido, a fim de ter roves flhos. Pense também gue & de miocracia 6, na teori, o methar de todos os sistemas politicos, mas, na realicade, o mais frgil ¢ 0 mais dificil de manter pos os seres huma- nos, por natureza, esto pouco dispostos a submeter-se &disciplina da virtudle politica (¢ 0 famoso apilogo dos troglodites). Depois de ter renunciado a seus cargos piilivos, Montesquieu viaja pela Europa e constatna diversidade das legislagdes conforme cada pais, Redigeentio Consideracdes sobreas causas da grandeza e decadéncia dos romanos (1734) ¢, mais tarde, O esplrito das leis (1748), obra que teré imenso sucesso a despeito de ser candenada pela Iareja. Destinadas a celebridade, as sutis anilises de Montes- ‘quieu serio particularmente estigmatizadas por um utopists, Mo- relly, autor de um Cidigo da natureza (1755). Em nome de ume cxi- tica da prapriedade privada e éo Estado, Morey alega que tito con vvém tanto procurartirarfigdes do comportamento dos seres huma- nos assim como so, e sim da maneira como a natureza os formou. Os tibertnos, infatigaveis na esgrima conta sistemas metais- cos e teolégicas, se comprazem mais que ninguém em sublinbar & SL. ‘extrema diversidade dos modos de organizagao dos humanos em so- ciedade. Esses livres pensadores péemn, assim, em evidéncia, o card- ‘ter necessariamente relativo — 4s vezes até irracional — das inslitui- ges humanas. Militantes da tolerncia, mostram o absurdo dos sis- ‘temas que ¢rigem um valor ou uma instituig20 em algo absoluto. Do lado da ortodoxia catélica, procura-se articular fé e raziio, contingéncia e necessidade, Para Bossuet, contrarinmente a0 que ppensam 0s libertinos, a desordem das sociedades humanas é ape- nas aparente. Com efeito, quem sabe elevar-se acima do emara- nhado confiuso dos acontecimentos vera que a ago dos humanos no é guiada pelo capricho, mas por um plano providencial. assim que Deus rena sobre todos os povos. Nao se deve falar nem de acaso nem de sort, ou entio falar aqui simplesmente como se fosse um nome para co- brira nossa ignorincia. O que &acasp diante de nos- sos conselhos incertos, un plano concertado em um conselho superior, isto 6, no conselho eterno que en- cerra todas as causas¢ toios os efitos em ima mes- ma ordem. Desta mianeice, tudo coxcorre para um mesmo fim; e& por ni compreendermos @ todo que éencontramos 0 acaso ou a iregulardade nos encon- twos particulates (Bossuet. Discurso sobre a histiria aniyersal, 1861, parte 3, cap. VIL), Como a ordem do universo é um puro produto de Deus, conclu Bossuet, s6 existe uma atitude possivel para todos os mortais (in- ‘cluindo aqui os reis): submeter-se a essa ordem. ‘Montesquieu também acredita que a realidade social é ordena- dae segue uma légica. Mas esse conhecimento nio é questio de f& ‘ou de moral, A inteligéncia do mundo social supde, em primeiro lugar, que se abandone definitivamente, como os libertinos, toda renga em um plano providencial em favorde uma anilise das cau- ‘sas que dio forma a0 mundo social. Trata-se, em seguade lugar, de “descrever o que &, eno 0 que deve ser”, Primeite examninei os aS filosotias da isla, gos precursores. seres humanos ~ escreve Montesquieu no prefacio de O espirito das leis ~ ¢julguei que, nesta infinita diversidade de leis e costu- mes, nfo erarn unicamente conduzidos por sua fantasia”. Eis, por- tanto, otrago de génio sociolégico de Montesquieu. Enquantoeste likimo recenseia uma pléiade de costumes, hibitos, usos, cren- ‘4s... descobre também af um todo ordenado que recebe a suacoe- réncia de algumas causas profundas. Em suas Consideragdes sobre as causas da grandeza ¢ deca- déncia dos romanos (1734), Montesquieu jé havia dado a entencler que no é a (deusa) Fortuna que governa o mundo” ou, noutres par Iavras, nfo se pode reduzir a hist6ria a causas patticulares. “Os r0- ‘manos chegaram a exercer 0 Gominio sobre todos os povos, ndoape- ‘nas mediante a arte da guerra, mas também por sua prudéncia, salbe- doria e constincia, seu amor & gloria e A patria” (cap. XVII). Se Roma acabou sendo veoeida isto nfo se explica, portant, como 1e- curso a pequenas causas (simples falhas militares, por exemplo), ‘mas simplesmente pela perda das virtudes da prudéncia, da sabedo- ria... A expanstio do Império viciou as virtudes politicas e civicas ‘que davam sustentagaio a sua arte militar. Assim, ela arrastou Roma ‘para o turbilhdo da decadéncia, A exemplo desta anilise s6cio-his- ‘rica, a pesquisa das causas leva Montesquieu a estudar as leis, “*re- lagdes necessitias derivadas da natureza das coisas”. O termo lei as~ sume, para ele, um dupio significado. Designa, em primeiro lugar, 1a légica dos trabalhos de Newton, leis fisicas que sio relagdes in- varidveis entre fenémenos da natureza. Mas as leis sio também. re- ‘as, resultantes da atividade do legislador, que nos impoem obriga- ses e ordenam a vida social; slo as leis positivas (Texto 11). ‘Mowresquieti— Das lets Das leis em geral As leis no sentido mais amplo sf as relagdes necessirias de rivadas da natureza das coisas, neste sentido, todos os seres tm ‘suas leis; a Divindade tem suas leis; ¢ mundo materil tem suas leis; as inteligéncias superiores a0 ser humano tém suas leis; 08 ‘animais tém suas leis; 0 ser humano tem suas leis. ‘Aqueles que disseram que uma fatalidade cega produziu to- dos os efeitos que vemos no mundo enunciaram un enorme ab- surdo, pois que maior absurdo dizer que uma fatalidade cega te- ria produzido seres inteligentes? H, portanto, ums razio primitive; e as leis so as relagdes ‘que se acham entre ela eos diferentes seres, eas relacdes desses iversos seres enire si (C. de Montesquieu. O espinto das leis [1748]. In: Ceurres completes. Pats. Seuil, 1964, p. 530). Das leis positivas A lei, vista em termos gerais, 8a raz humana enquanto Bo- vverna todos os povas da terra; ¢ as les politicase eivis de cada nego nao devem ser meis que os casos particulares em que se aplica essa razio humana, Elas devetn ser de tat modo adequadas a0 povo para o qual si feitas, que s6 por um grande acaso as de uma ragio podem convir a uma outa. necessitio que elas esejam em relaclo com a natureza @ ‘como principio do govemo estabelecido, ou que se queiraestabe- lecer, quer elas © formem, como fazem as leis politcas, quer 0 ‘mantenhara, como fazem 2s leis civis. Devem estar em relagdo com o fsica do pais: o clin glacial, tropical ou temperado; a qua- lidade do terreno sus situagio, sua grandezs; o género de vida dos ppovos, lavradores,cagadares ou pasiores; devem estar em relagSo 34. 5 precursores. ‘com o grau de liberdade gue constituigo pode softer; areligito dos habitantes, suas inclinagées, suas riquezas, seu nimero, seu comércio, seus costames, sues maneiras. Enfim, elas tém relagies etre si, tom relagGes com sua origem, como objeto do legistador, ccom a ordem das coisas sobre as quais so estabelecidas. Deve set consideradas de todos esses pontos de vista. ‘Eo que pretendo fazer nesta obra, Vou examinar todas essas relagdes: todas juntas formam aquilo que se denomins o espirito das leis, io estabeleci separagiio entze as leis politcas e as civis, pois, como niio abordo as les, mas o espirito das leis, eesse espi- Fito consiste nas diversas relagdes que as leis podem ter com coi- sas diversas, nfo tive tanto que seguir a ordem natural das leis {quanto a dessas relagdes c dessas coisas (C. de Montesquieu. Ibid. p.532). Na verdade, Montesquieu esta mais interessado no espirito das leis que nas leis como tais. Mostrar que ha um espirito nas leis sig- nifica por em evidéncia a articulagao coerente entre as leis hums- nas e a “natureza das coisas”. Se apresentam variagbes e so em ‘geral proprias das sociedades que as promulgaratn, as leis positi- vas dependem, com efeito, de certos fatores determinantes: a for- ma de govemo, a liberdade politica, o clima, a natureza do terreno, 0s costumes, o comércio, as revolugdes, a moeda, a demografia, & religido e a ordem das coisas sobre as quais estebelecem a5 leis Montesquieu explica, por exemplo (livro XV), por que a escravi- do se acha ligada ao elima: nos paises quentes, o calor & tamanho {que diminui a vontade de trabalhar. As tarefas penosas s6 podem, portato, ser executadas “sob o temor do castigo!” Por outro lado, como a sea ver “sobretudo uma sociedade nite seria capaz de subsistir sem um governo”, Montesquieu opta por compteender o mundo humano a partir da sua organizagao politi- ca. Como o resume 0 quadro abaixo, ele distingue trés espécies de governo ~0 republican, o monarquico ¢ o despético— que define por sua natureza (quem é 0 detentor da soberania?) eseu principio {0 motor da agi politica). Quadro 1 Regime |Republicano |[Mondrquico | Despético Natureza [Opovoe — |Oreiésoberano.e 0 déspota zoverna soberana, | governa segundo _|sem lei, sem eis fixes. Apoia-se|regras ou poderes sobee poderes | intermedirios. intemediios Principio [Virtue _|Fonra Tenor (0 regime republicano funciona gragas a virtude, noutras pala- vas, 0 amor & coisa piblica (res publica), o sentide do coletivo. Segundo o povo detenha em parte ou totalmente a soberania, 0 e- gime é aristocratico ou democrético, Montesquieu toma claramen- te partido pelo regime aristocrético, ¢ 0 inotivo principal € porque © povo em seu conjunto & pouco apto aadminisirar da melhor for- 1a possivel a coisa publica, No regime monérquicofaz-se neces- sécio que haja “canais por onde flua o poder”. A este ttulo, o poder intermedifrio cabe classe dos nobres. Mas para que esta participe do jogo politico, deve ser motivada para esse esforgo. Tal é0 papel do sistema da hon, conjunto de preeminéncias e distingdes, que satisfazem a vaidade natural da nobreza, Para evitar atentagao do despotismo, Montesquieu exalta, alémn iso, as virudes da separagio des poderes (executive, legislativo, ndiciério) pois, escreve ele, “poder freia poder”. Observando gue «© potier ce julgar nfo cria problemas de airibuigao, pois nfo é dado ‘uma cdmara, Montesquieu prope que se atribua o poder execti- ‘yo a9 monarea e o poder legislativo a um corpo de representantes do povo € 8 um corpo de representantes da nobreza eujas decisbes > 2 bas filosotias da historia aos precursores.. sssim se equilibram. Como sublinha Louis Althusser (Montes~ guieu: apolitica ea historia, 1959), este diagrama reflete perfeita~ apente os interesses de um aristocrata liberal que pensava em pro~ teger a sua classe contra os desmandos da monarquia ¢ também contra a subversio democritica 13. Natureza esociedade Como afirma que 0 conhecimento das sociedades ¢ tema de citncia, ¢ mio questi de crenga, Montesquieu se configura, ‘como acabamos de ver, como verdadeiro precursor da sociologia, ‘A seu ledo se impée igualmerte ~ por outros motives ~ 9 nome de Jean-Jacques Rousseau (Baliza 4), Em perspectiva geneal6gict, 8s Jeflexdes de Rousseau devem se alinhar diretamente com as teorias do direito natural. Pois é, antes de tudo, uma resposia original & ‘questio do contrato social que nos é oferecida por Rousseau, Co- ecemos por prescindir dos fatos — escreve ele no seu Discurso sobre a origem eo fundamento da desigualdade entre os komens (1755) —e imaginemos a existéncia ficticia de um estado de natue reza que teria precedido a entrada dos seres humanos em sociecLa- de. No estado de natureza, 0 ser humano — que Rousseau chama de hhomem natural ou homem selvagem ~é solitério, independente ¢ bom. Como nio tem o uso da razio, ndio distingue o bem do mal Baliza 4 Jean-Sacques Rousseau (1712-1778) Filho de um relajoviro de Genebra, Rousseau éabandonado des- 4de.0 nascimento ¢ educado sob a protego da senhora de Warens. Rousseau vive muitos anos na miséra, nntes dese tornar, por gum tempo, secretirio de embaixada cin Veneza ¢ depois eaixa de um fi aneivia,. Na vida artistca (em (752), leva a cena uma 6pera cémi- ‘ae ama comédia que obtém sucesso de piblico, mas é sobzetsdo como eseritor que Rousseat se impoe até os dias de hoje. A partir de 174L,_freqiienta os saldes parsienses e conkece diversos filesofos. Mas os seus habitos ¢ mancira de viver sempre o manterdo separado desse meio literdro, Em 1749, responde a uma questio submetida a tum concurso pela Academia de Dijon: Seo progressodas ciéncias € das artes contribuix para corromper ou depurar os costunies. Sita- sndo-se nos antipodas das posigBes em voga,afirma Rousseau gue © progresso das ciéncias ¢ das artes corrompeu os costumes. Seu dis curso, vivamente discutido, conquista-lhe a celebrideds. Amigo de Diderot, Rousseau colabora depois na Enciclopédia eredige particu- Iermente, em 1755, 0 verbete Economia politica. Em 1755 ver a Iume também 0 Discurso sobre a origen: eo furidamento da desi- -gualdade enire-os homens Em 1761 1762, Rousseau publica d nova Helolia; O contrato sociale 0 Emit. Esta titima obra desencadeia as paixdes contra cle 6 parlamento de Patis manda prendé-lo ele € eondenado pelo arce- bispo de Paris. Esta obra tem algo de revolucionéric, que € 0 fato de Roussean defender uma nova concepgao, ado serhumneno como per fectbilidade infinite. Contraasteorias da cucagdo pe o treinamnento ‘0u pelo jogo, Roasseau (como Kant) preconiza 0 trabelho como mé- todo ativo de aprendizagem, O trabalho permite, com efeito, que a ‘erianga ganhe a liberdade intemalizando o mundo exterior. No Eini- lio, le recomenéa assim uma educagdo em dois tempos: — Uma educego doméstiea (do nascimento até os 15 anos) com ‘© objetivo de fornentar 0 desenvotvimento do homem natural. Urge, portant, privilegia ainteracdo da erianga com as coisas (no com ‘0s humanos), evitar Gesenvolver as eapacidades abstratas do espiti- to, obrigar a criangaa ler...Pode-se assim forjar um individuo autén- tico que nfo aceitarsficarbitolado em scus paptis sociais e que a au toridade ha de preferir sempre o apelo &razio; ~ Uma educagio social que permite enfim, aprender a conhecer (8 hurmanos para com cles conviver em bos inteligéneia. [Na seqiléncia de sua vida, e sob a pressio de mitas persegui- ses, Roussemu nfo cessa de emigrar de pais em pats para se instalar, afinal e definitivamente, em Paris, a partir de 1770. Isolado, more nee dade 17, depois de pubinr As confer esDevonelor fe um caminhanie soitiio, as filosofias da histéria aos precursores... Fe No estado de sociedade (estado civil), 0 ser humano & aocon- trario, totalmente determinado por sua pertenga social © sempre tentado a prejudicar os outros. Quando redige © Discurso, de 1755, Rousseau visa precisamente a ordem da sociedade civil imposta a tele bem como @ todos os seus contemporaneos, Nesse espago ele denuncia vigorosamente as imimeras ¢ monstruosas desigualdacles que separam os individuos, desigualdades de origem social, moral politica, e que no passam de meras convengdes humanas. Rous- seau entio se pac a lamentar com saudade o fim do estado denate- reza, estado marcado pela auséncia de propriedade, miséria ¢ cor- rupcio. Se a entrada em sociedade produziu certamente coisas boas (a azo, a consciéncia, osentimento moral, as ciéncias, 2s ar- tes...}, 0 estado civil gerou todo o cortejo de desigualdades, servi- ‘d0es, leis e outras guerras que dividem e sufocam a liberdace clos setes humans. Segundo Rousseau, longe de ser 0 produto da necessidade, 0 estado civil se impés ao sabor dos acasos, Sucederam-se na histé- ria 0 acidentes: 0 surgimento da divisio do trabalho, 0 progresso das técnicas ou ainda a emergéncia da propriedade precipitararn o aumento da brecha entre cose pobres, poderosos ¢ oprimides. “O primeiro que disse, depois de cercar um terreno, ‘Isto é meu!’, € encontrou geate bastante simples para erer nele, foi o verdadeiro fundador da sociedacle civil” (Discwrso, op. eit, parte I). Na tentativa de eliminar todo cariter iniquo da vida em socie- dade, ¢ contrariamente a uma lenda tenaz, Rousseau no se esfalia defendendo um retrocesso social, em nome do “mito do bom sel- vagem', Sabe que o homem civilizado deve viver em sociedade. Mas como viver nesse estado sendo ao mesmo tempo livre e sub- ‘metendo cada um a mesma lei? A fim de responder a essa questiio, Rousseau propde, no Contra‘o social, que os seres humanos esta- belecam um pacto a fim de encontrar uma forma de associagao “mediante a qual cada um unindo-se a todos nio obedega todavia sendo a si mesmo”. oria. Abs precursores... a: ‘final, se cada um se dia todos, nfo se dé @ ninguém. E ‘corto nfo ha um associado sobre o qual se ganhe o mesmo direi- to que se Ihe cede sobre si, ganha-se 0 equivalente de tudo 0 que se perde, e mais forga para conservar 0 que se tem. Se, partanto, separarmos do pacto social aquilo que nao Ihe pertence & esséncia, veremos que se rediz aos termos seguintes: "Cada um de nés poe em comum sua pessaa ¢ todo o sen poder soba suprema direglo da vontade geral; erecctemos ainda cacla ‘membro como parte indivisivel do todo” No instante, no lugar da pessoa particular de enda pactuante, este ato de associago produz um corpo moral e¢oletivo, compos Como resolver esse aparente paradoxo? Na hora do contrato social ~esclarece Rousseau ~o individuo deve ceder todos os seus ireitos ao soberano, pois 0 soberano no é nada menos que o pri- prio povo. Nesse movimento ~ tornando-se cidadio ~ o ser hums- ‘no ganha uma liberdade civil total. Com efeito, “cada um quando se dé a todos, ndo se dé a ninguém” (Texto 12). A conseqiigncia politica dessa alienagio contratual é importante. A lei, promulgada por todos ¢ para todos, j ndo aparece como o produto de um parti- cularismo, mas como a expressio daquilo que Rousseau denomina a voutade geral. Esta vontade geral, manifestagao do interesse pi blico, é superior 4 soma das vontades particulares, superior sim- ples combinacio dos interesses egoistas, Texto 12 ROUSSEAU Do pacto social ‘Suponho os seres humanos tendo chegado ao ponto ex que 0s obsticulos prejudiciais 4 sua conservagio no esado de natu- reza predominam, por sua resisténcia, sobre as forgas que cada individuo pode usar para manter-se nesse estado, Ent50, ese es- tado primitive no pode mais persistir: e 0 género bumsno ikia pperecer se no mudasse de maneira de ser (..) “Encontrar uma forma de associago que defenda e proteja, de toga a forga comum a pessoa e os bens de cada associado, € pela qual cada um, unindo-se a todos, obedega somente asi mes- ‘mo, e perimanega tio livre como antes”. Este&o problema funda- ‘mental para o qual 0 Contrato social aprescata a selugdo. odes as cléusulas desse contrato (..) se reduzei, enfim, 8 uma s6:a saber, aalienagao totat de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidsde: pois, primeirumente, cada um ‘se dando intairamente, a condigao & igual para todos; e como a ccondig&o é igual para todos, ninguém tem interesse em fazer que cla se tome onerosa para os outros (..). tode tantos membros quantas sio as vozes da assemble, o qual recebe deste mesmo ato a sua unidade, 0 seu ew comm, sua vida © sua Vontade, Essa pessoa pibica, formada assim pela niao deto~ das as outris, panhava antigameate o nome de cidade, e ganha ‘agora o nome de reptblica eu corpo politica, 0 qual é chamado, pporscus membros de Fstado quando é passive, soberano quando ative, poder em comparagio a seus semelhantes. Quanto a sets associados, toma coletivamente o nome de povo, e se chamam «em particular cidadios, como participantes da sutoridade sobera~ a, stdites, enquanto submetidos ds leis do Estado. Mas esses termos muitas vezes se confundem e so tomados um pelo outro. Basta que se saiba distingui-los quando sto empregacios em toda a sua precisio (J. Rousseau, Do contrato social [1762]. fa: Ozu wes politiques. Pavis, Bordss, (973, p. 257-258). Rousseau deduz desse esquema a concepsto ideal de organiza- Ho politica que é a mais fiel &soberania do povo. Isto nfo é,no en- tanto, evidente ~ reconbece ele — "se houvesse um povo de deuses, cate se governaria democraticamente. Um governo t&o parfeito ‘io convém a seves humanos” (Ibid, livro IH, eap. 1V). Nos fatos, aoreseenta ele, 0 importante € que 0 poder legislativo caiba a0 ovo que, como soberano absoluto, & o tinico que pode represen~ tar-sea si mesmo: & mula toda lei que 0 povo em pessoa nfo ratif ou; no & tei Amado desse principio, 0 autor do Contrato social denuncia vi- _gorosamente todos os modos indiretos de representayic, a comegar pela deputagio, Por isso, ¢ numa posieo contrétia & de Montesqui- ‘eu, Rousseau julga severamente 0 perlamentarismo & inglesa. “O ovo inglés pensa que é livre, mas se engana redondamente: apenas ‘0 € durante a eleigio dos membros do parlamento; assim que sio cleitos, € escravo, nfio é nada” (Jbid., livro IIL, cap. XV). Quando aborda o problema do poder executive, Rousseau desta vez se faz discipulo de Montesquieu. Com este diltimo, reconhece de born gra- ‘do que nao existe, absolutamente falando, o melhor govern, 2. Revolugdes € ordem social Por aplicago & anilise da sociedade do principio de razao, principio estreitamente ligado ao abalo indivicualista que funda as ‘eorias do contrato social, as Luzes marcam um ponto de inflextio na historia das idéias. Mas 0 ponto de vista sociolégico so vai con- solidar-se realmente na confluéncia das mudangas decisivas que assinalam o fim do século XVII € 0 conjunto do séeulo XIX. No- ‘vos esquemas de anélise, antes de mais nada, garham corpo na cigncia (quimica e biologia) e marcam duradouramente a sociolo- gia em seu nascedouro, Duas outras mutagdes desempenbam um papel mais decisivo ainda na lenta constituigdo da disciplina. Tra- ta-se das revolugdes politicas e industriais. De mais de um ponto de vista, sobretudo a Revolugdo Francesa — mas também os outros infimeros sobressaltos poltiicos que saco- dem a Europa no século XIX — apresenta-se como a conseqiiéncia histrica do espirito das Luzes, Pela ruptura com a hierarquia ea tra- digo cm prol da liberdade eda igualdade, os seres humanos exibem sua cepacidade promettica de moldar a propria historia. A Revolu- fo Francesa ratifica, assim, a ruptura com um regime baseado so- bre as ordens ¢ 0s privilégios. Exaltada pelos revolucioairios, eon- testada pelos reaciondrios, essa revolugio constitui uma fonte de re- flexdo inesgotivel para aqueles que se debrugam, como os primei- 10s soci6logos, sobre o vinculo social (Tocqueville, Comte). 2.1. O ponto de vista reacionério sobre a Revolugio Francesa Em completa opasigio as Luzes, forja-se, depois da Revolugao Francesa, um discurso reacionfrio (Texto 13). As opinides que convergem no intuito de denunciar a ruptura politica de 1789 (mas também, no plano econdmico, a imposigaio da ordem do mercado) diagnosticam, todas, um verdadeiro traumatismo. Este chogue, que provocaré um forte eco na tradigdo socioldgica, é 0 da diluiglo do vineulo social Texto 13, MatsTRE~ Os perigos da Revolugio Francess Paralevara cabo a Revoluiso Francesa foi necesirio subver~ tera eligi, uluajar moral, Vilar todas a5 propriedades © co- never todo 0 gdnero de crimes para tal empreitaca diabéica 14 ‘necessirio empregar um nimero tamanho de homens viciosos, {he jamais talver fants vicis tenbam agido em corjunto para tfesur un mal qualquer. Plo contéco, par restabelecer a or dem, o Rei convacar todas es virtues; ee hi de queré-Io, sem dividn; mas, pla ntureza mesma das coisa, sel forgo 8 iso. Seu interesve mais prements set aliara justgn e« misricrias shomensdignos virto pr srmesmos colosarse nos postos onde postam sec itis, 2 rligio, emprestando sea espectto politica, the dara as forgas que ela 6 pode ter dessin wugust. Mio duvido que muita gente hi de pedir que ine mostrers © fundamento dessas magnificas esperangas; pas seri entio que alguém aeedita que o mundo politico ands a0 acso, eno ¢or~ ‘anizndo, diigido, animado gor essa mesma sabedoria que bri Thano mado fisico? As inos clpadas que subvertem um Bsta~ do, enizam pezessariamentecilacerogbes dolorosas; pois 2 num agente live pode cortrariar os planos do Crisdor, sem atrair, na esfera da sua atividede, males proporcionaisa grandeza do atentado; ¢ essa lei pertence mais & bondade do Ser supremo que a sua justiga, ‘Mas, quando 0 ser humano rabalha para restabelecer a or- dom, cle se associa com 0 autor da ordem; e¢ favorecido pelaia- tureza, isto &, pelo conjunto das coisas segundas, que si0 0s mi nistos da Divindade. Sua ago tem, deste modo, algo de dvino; tla se tora ao mesme tempo suave e imperisa; ela no forca fda, mas nada lhe resse; dapondo, ela cura. A medida que oper, ese que ces oda nguitude, esta pena agtagzo que é O efsto eo sin da desordem; com so8 a ios do irs babilidoso, o corpo animal machueado sente que ext se repe- rando pea cessugio da dor (de Maiste. Consideragbes sobre a Franc (1796), Pars, Complexe, 1988, p. 132-1331 Nessa matéria, a primeira critica de peso vem do estrangeiro. Deve-se a pena de um conservador inglés, Eénmund Burke (1729- 1797), Em uma carta sua dirigida aos franceses, 0 autor das Refle- xGes sobre a Revolucdo Francesa (1790) emite um juizo severo sobre os acontecimentos de 1789: “a tirania que se poe acima das leis é menos de se temer que aquela que as usa como wm manto”. A Revolugo Francesa ~ prossegue cle — mio & seniio “a prostituigao da propria razio”. Burke apresenta, assim, o movimento de 1789 ‘como um extremismo jrracional, como a expresso de uma vonta- de insensata: a de reconsthuir attficialmente a sociedade a partir dessa abstragdo que sio 05 direitos do homem. Esta idéia ocupa igualmente o centro das reflexes de Joseph dde Maistre (1753-1821), nobre francés que afitma que a natureza {do ser humano é ser socidvel. O erro da filosofia das Luzes ¢ da Re- vvolugfo € té-Io considerado ao inverso coma um homem abstrato, separado de toda vineulo social. [A constituiglo de 1795, como as mais amtigas que ‘la, feta para 0 Homem. Ora, no ha Homem 29 aos precursore ‘muado, Teno visto em aninka vida franceses, italis- thos, russos ete. Sei até, gragas a Montesquieu, ae se pode ser persa; mas quanto a0 Homer, declaro ja. ‘ais 2-10 encontrado er minha vida, se existe, nfo 6 ‘de meu conhecimento (Joseph de Maistre, Cosice- ragies sobre a Franca, 1791, cap. VD). Das filosofias da historia a Para J. de Maistre, sio imediatas as conclusdes que se deve ti- ar: fundamento e a estabilidade de uma sociedade repousam. nfo sobre a ago da razo, mas sobre a tradi¢So, nao sobre 0 individio ‘mas sobre a comunidade, 0 Visconde Luis de Bonald (1754-1840), autor da Teoria do ‘poder politica e religiaso na sociedadde demonstrada pelo racioct io e pela historia (1796), também se inscreve nesta linhagem 28 ti-evoluciondria ¢ antiindividualista, O visconde nfo apenas con- sidera evidente a fundagto religiosa das sociedades humanas, mas pensa sobretudo que a0 procutarlibertar-se de toda coergdo part construir uma nova sociedade, 08 revolucionarios esquecem que sociedade tem a primazia sobre 0 individuo. Ora, o individuo sb existe por estar firmemente inserido em uma rede complexe (grt pos profissionais, Familia, nagdo) que Ihe dé o exist como ser so- Cial (Texto 14). Aqui se pode avaliar tanto 0 absurdo como 0 peri- ‘go.de um gesto que, pretendendo ser emancipador, dissolve © prd- prio fundamento de toda vida em sociedade. Texto 14 BONALD~ Familia e sociedade (0 ser bumano no nasee, como o bruto, vestido ¢ armado; nio recebeu da ntureza este instinto de conservagio pessoal ‘que, sem educagdo de liglo, nem mesmo de exemplo, faz o ani ‘mal discernir o que Ihe é tril ou the & prejudicial, ¢ 0 faz buscar sua presa ou evitar seu inimigo. O animal, epito, nasce perfeito, ‘eaquilo que Ihe ensinamas ¢ para nossas necessidades ouncssos przeres, € no para os dee: 0 ser amano nace pefetvel;& necesito qu prenda a vive queues pos lige tudo o que éneessrio sua conservago; que se combata pela ago de sous prprios drgdos tudo ugulo que se opi reali. go de suas necesitaes ou 20 desenvolvimento de ss fal dass, Urge, porto, que ele aprenda tudo daqueles que Opes eseram na creira da vida, qu apenda afl pun aprender 4 express seus pensrents, tanto para 0} outs emo par mesmo, E necessiri, portato, que ee eeu obedegd E eu sostaria de perguntar 208 materialist, que véem nose humae !pents ur anita mais complexo que os outros, como paderio explicn esse pode patemo, essa trou mates, ese Fespeito filial uj grossa aparéncianiosobrevive no nial a tempo tio cure da gstapdaedosletamento, depos do qual pi, ne, fithotes nao se recouhiecem mais, e que, no homem civilizado, nas ainda talvez no homer etvagern,forman, ene os mem. dyes de uma mesta fail, ns fo estos lgas io unves 6 ti fortes, ho daradoutos quanto ava dos fhe, eque sobre. vu 3 morte dos pals? Perguntare a esses fibsobs que ens nan que a evianga nfo deveria na a seus pals gue, na sun unio, lange de pensar iho sb einen pense ms sai ¢o pestoa, porque todos eses sentiments decbed ci res rit, que fo pase consar na nature do omen e mus Years Mo custoaos pra ss inclines? Nig devers duvidat Aso, uma vor podeosa se fez ouvir de um poo ote: “Hone ris te pictua mle” eela vai ressoaratéo fm dos empos ei, Sonment ela rca fania humane da animale ex levou a0 tas de soctedade (LA, de Bonald. Demonsrac flesiiew do Principio constiatve da soledade. Pars, Lec, 830,97). Para Bonald, como para de Maistre, aliés, o desenvolvimento do espirito critico, a difusio do protestantismo (a0 gual se associa a doutrina do livre exame) sZo as razdes que provocaram a entrada em crise da tradigao e da Igreja. E urgente, pensam esses reaciond- rios, pér um freio 2 isto: vamos restituir os direitos ireligiao cat6- Beene lica, restaurar os sistemas comunitirios. Estas sf0 as palavras de ordem dos contra-revolucionarios. Numa palavra, exige-se um verdadeiro retorno a sociedade do Ancien Régime, a uma monat- quia de direito divino. 2.2, Liberalismo, individualismo e democracia (O liberalismo que se desenvolve na Franga, essencialmente en- {re 1818 e 1840, toma o contrapé da posigio reacionétia pelo feto éedefender explicitamente os valores e as insttuigies criadas com a Revolugio Francesa, Longe de se confuundir com a sua Forma econdmica (aquela que preconiza as virtudes da coneorréncia eda livre empresa), o liberalismoé uma doutrina globalizante que exal- tas direitos do homem como individuo. Ao lado de Frangois Gut zote de Benjamim Constant, os fildsofos Vietor Cousin ¢ Théodo- re Jouffroy sio muitas vezes apontados como os porta-bandeiras desse tipo de liberalismo, sensiveis acima de tudo a liberdade indi- vidual, Para Constant, por exemplo, enquanto a liberdade dos anti- 120s (a dos gregos) repousava sobre a participagdo coletivanos 3s- suntos piblicos, a liberdade dos modernos & aquela que 44 lite ‘curso aos polos de interesses pessoais (indistria, religito, niges..). A tinica misséo do Estado, deduz entio Constant, deve ser garantir 0 usufruto dos direitos individvais. Oaristocrata Alexis de Tocqueville (1805-1859) pode, de certa ‘maneira, ser incluido nesta corrente individualista. Mas, diversa- mente dos autores precedentes, aquele que foi juiz auditor em Ver- salhes é, antes ce tudo, um tebrico da democracia (Texto 15), Ao evocar a democracia, Tocqueville tem em mente demonstra: a existéncia de um movimento historico inelutével que produz @ igualdade das condigdes no seio da sociedade, Na democraciz, os seres humanos estio inseridos em um sistema onde a mobilidade social permite a todos ferem acesso a qualquer posigio oua qual- ‘quer grau, Diversamente do Ancien Régime francés, que tinka sua Bene base na hierarquia ¢ nos privilégios, o regime democritico se ba- seia sobre o principio de iguatdade, Tocqueville nio ignoraa fragilidade desse sisteme politico que ele preconiza, Sabe de modo pertinente que toda democracia pode sucumbir @ centralizagio ou degenerar em despotismo. Por isso ele vai procurar ne modelo norte-americano de democracia liberal 08, possiveis meios para escapar desse desvio. De uma viagei que fez além-Atlintico, Tocqueville tira matéria para escrever Da demo- eracia na América (1835), obra capital onde demonstea que a au séneia de aristocracia latfundidria e o estabelecimeato progress vo de instituigdes que promovem a soberania popular contribui- ram para o sucesso politico do regime americano, Este sistema, da constituigiio federative, mostra-se eficez porque reiie as. vanta gens préprias das pequenas e das grandes nagées. A diviséo dos poderes, a liberdade associativa e 0 seu uso efetivo e, por fim, a in- tima articulacdo entre espirito religioso e espirito de liberdade, eis ‘08 contrapontos que os norte-americanos souberam utilizar para afastar os Tiscos da servidio. Texto 15 ‘TOCQUEVILLE ~ A democracia americana Igualdade eliberdade em democracia ‘A igualdade pode estabelecer-se na sociedade civil, eno rei- rnar no mundo politica, Pode-se ter direito de se eatregar aos 'mesmos prazeres, de ingressar nas mesmas profissécs, de se en- ccontrar nos mestos lugares; numa palavra, de viver da mesma ‘maneira e de comer ats da riqueza pelos mesmos meios sem {que tomem todos a mesma parte no govero. Pode até acontecerque se estabeleea uma espécie d2 igualda- de no mundo politico, embora nao haa liberal politica, Cada Jum ¢ gual a todas os seus semelhantes, menos win, que &, sem istingla, o senhor de todos, e que toma, igualmente, entre to~ dos, os agentes do seu poder. ‘Seria cil fazer diversas outras hipéteses, segundo as quais uma muito grande igualdade poderia facilmente combinar-se ‘com as instituigdes mais ou menos livres, e até com as institut ‘ges que no o etiam absolutamente. Embora os seres humanos ‘possaim tornar-se absolutamente iguais, sem serem inteiramente livres, e por conseguinte a igualdade, no seu gran mais extremo, se confunla com a liberdade, hé base, portanto, para se distin- guir uma da outra, ‘0 gosto que os seres humanos sentem pela liberdade € 0 que -sentem pela igualdade sto, com efeito, duas coisas distintas, ¢ eu iio receio aorescentar que, nos povos democriticos, sao duas ‘coisas diversas (A, de Tocqueville, Da democracia na América, Paris, Gallimard/Folio, 1961, UL, p. 138). Das virtudes da associngi0 A primeira vez que ouv’ dizer, nos Estados Unidos, que cer mil homens se haviam comprometido publicamente a nao con- suit licores fortes, a coisa me pareceu mais jocosa que séria, © no vi bem de imediato por gue esses cidadios, tio amantes da sobriedade, nfo se contentavam em beber s6 agua no seio da fe tmilia, Acabei compreendeado que esses cem mit americanos, assustados com 0 alasirar-seentre eles do alcootismo,tinbamde- cidido conceder a maior importincia & sobriedade. Tinham agi do, precisamente, como um: grande senhor, que se vestisse com ‘arande simplicidade para inspirar aos cidadios simples o despre: 20 do luxo, Deve-se ucreditar que se esses cem mil homens vi- ‘vessem na Franca, cada umdeles se dirigiria individuslmente a0 {governo, para the requerer que vigiasse os bares em toda a super- fcie do reino. Nao existe nada, a meu ver, que seja mais digno de strairnos- so olbar que as associagSes intelectuais e motais da América (.). [Nos paises democriticas a iéncia da associagio € a ciém- cia-me; 0 progresso de todas as outras depende do progresso desta, San parece mais precisa e mais clara que todas as outras. Para que os seres hurtanos continuem sendo civilizados ou se tomes civili- sno zados, €necessirio que eatre eles se desenvolvae se aperfeigoe & arte de se associar, na mesme proporpio em quesumente aiguale dade de condigdes (A. de Tocqueville, bid. p. 159-160), E quanto a Franga? Nesse pais, explica alguém que nele realiza uma carreira politica de deputado e de ministr (abandonada depois do golpe de estado de Napoieao II] em 2 de dezembro de 1851), a Revohugto teve efeitos ambivalentes. Se inegavelmente gerou direi- tos novos, ndo rompeu com o centralismo e o burveratismo. Este é uum dos grandes temas de O Ancien Régime e a Revolugdo (1856). “Se.a centralizagdo — escreve Tocqueville — nfo perecen na Revohi~ ‘edo, € que ela mesma era o comezo dessa Revolugio e seu sinal”. Enquanto a derocracia anda pari passu com umapromogiio da igualdade das condigdes, o problema principal detectado por Toc queville é a emergéneia simulténea, na Franca, de uma sociedade atomizada, A paixio pela igualdade custa um prego muito alto: €0 isco da privagdo da liberdade! Sob o Ancien Régime, com efcito, uma pluralidade de poderes regionais e de corpos (aristocracia, lero, nobreza da provincia...) servia de contrapeso ao Estado cen- tralizado, Como a Revolugdo contribuiu para dissolver esses cor- Pos, 08 individuos se tornaram incapazes de constituir contrapode- res resistira tendéacia dominadora do Estado. Entio, para instau- rar uma verdadeira democracia livre, Tocqueville propée que se estabeleca tim poder judiciario “forte ¢ independiente” e se promo- ‘va, a semelhanga do modelo americano, tanto as associagées como a descentralizacao politica. 23. O positivismo de Augusto Comte Augusto Comte, inventor do neologismo “sociologia” e pai do positivismo (Baliza 5), também se mostra sensivel 8s mutagées das sociedades curopéias do século XIX, Comte percebe nesse movi- ‘mento de conjunto a passagem de uma sociedade “militar e teooré- tica” a uma sociedade “industrial e cientifica”. Mas 0 parto dese novo mundo no é indolor: como intimeros observadores de sua époce, ele éiagnostiea uma crise profunda da sociedade acidental {A fim de remediar essa crise, ele deseja consagrar-se a uma tarefa de roflexio e de reformador cientifico (Plano dos trabathos cient {flcos necessérios para reformar a sociedade, 1822), Fm assirn fie endo, ¢ imitando Hobbes, do qual toma emprestado o termo de fi- sica social, Comte se entrega a uma empreitada fundadora para as jas sociais: aquela que consiste em elevar a politica 20 nivel de cigncia (Baliza 6). No intuito de resolver a crise social, Comte no propugna, & nisto vai se opor 20s conira-sevolucionétios, uma volta da histéria sobre si mesma, E igualmente ao contririo dos socialistas, ele nfo procura tampouco transformar 0 mundo pot alguona atividade re- volucionéria qualquer. Comte augura, isto sits, uma nova ordem social, com base no em ‘‘crengas teologicas” mas nas conquastas da filosofia positiva (Texto 16). Esse positivismo € dectinado em duas regras elementares: observar os fatos sem emitir qualquer jul- 70 de valor e enunciat leis Baliza 5 Augusto Comte, fandador do neologismo “sociologia”™ Filho de empregado, Augusto Comte (1798-1857) € acima de tudo uim jovem e brilhante poitéenico, afastado, porém, no decurso de seus estucos, com alguas outros colegas, por causa de agitagio. [Assistente de Casimir Périer depois de Saint-Simon, Comte leva, mazgem das instituigées, una vide de intelectual solitrio. Mas Com- te também desperta o interesse: 0 inglés John Stuart Mill he éedica- 14 durante mito tempo, por exemplo, amizade ¢ grande admiracio. Autor de uma obra abundante, Comte se deixa faseinar pelo encon- tro com Clotilde de Vaux, mulher que ele idolatra ¢ contribu, por ‘esse simples fato, para algumas inflexies marcantes de seus textos. Cabe a Comte o mérito de te criado 0 terma “socialogia”, pala- va que vai substituir 0 termo fisice social. Comte fora esse neolo- gismo reagindo ao belga Quételet que se serve, por seuturmo, da no- ‘20 de fisica sovial a fim de designar os tabalhos de estatistica apli- ccados & criminalidade ¢ demografia. Por no acreditar na apticagio das probebilidadtes no campo dos fendmenos sociais, Comte inventa “sotiologia” (do latim socius que significa “s6cio, associado”, e do rego logia, no sentido de “discurso cientifica”), sermo que aparece pela primeira vez na ligfo ntimero 47 das Cursos de flosofia posit!- va (1830-1842), Autor de uma obra pletirica e as veres rida, Comte desenvolve Jum pensamento tio vigoroso quanto evolutive, Pelo fin da vida, ele quer, por exemplo, constituir uma verdadeira religiio aova: a “reli- ‘sito positiva”, Com esta iltima, espera poder fazer face és mazelas sociais erestabelecer uma comunidade espiritual (Sistema de polite capositiva ou tratado de soviologia que insttui a religtio da Huma- nidade, 1851-1854), Nesta nova religido, que formalmente imita 08 sitos da Igreja Catblica, a Humanidade (ow o Grande Ser) toma o lu- garde Deus. Aplicado a sociedade positivista, 0 esquema comtiano vem a ser 0 seguinte: os industriais ¢ os barqueiros substituer a aristocracia, a ciéncia ea religiio de Humanidade a regio crista¢, enfin, a Repiiblica a Monarqui Além de Emile Littré (1801-1881), discipulo que nfo aprecia _nuito as titimas produgGes intelectusis do mestre, o persamento de Comte faz, principalmente, escola no Brasil, onde se constituem ‘grupos de positivistas que erigem, sté 1940, mumerosas igrejas de ‘Humanidade, “Saber para prever e prever para poder” ~ eis a formula que me- lhor resume 0 espitito da filosofia positivista, Em virtude desses preceitos, Comte rejeita a economia politica clissica, que acha de- masiadamente abstrata, mas também a filosofia e a psicologia de uum Vitor Cousin que preconiza a introspecgo para dai deduzir 0s = men | EEA ‘ones oe 2 nooo i ee pata geo a i 14 cn cep a Ga 98) Texto 16 ComTe-0 espirito positive Desde que a subordinagio constante da imaginagéo a obser- vac foi unanimemente reconhecida como a primeira condi¢20 fundamental de toda sadia especulago cientifica, uma viciosa interpretago muitas vezes levou a abusar muito dasse grande principio légico, para fazer que a ciéncia real degenerasse em ‘uma espécie de estéril acumulacZo de fatos incocrentes, queniao ppoderia oferecer outro mérito essencial send o da exatidiopar- ial. Imports, portant, sentir bem que o verdadeito espirite po- sitivo se acha tio afsstado, no fundo, do empirisine como do imisticismo; & entre essas duas aberragGes, igualmente funestas, [yee altel Hilosofiae socleds que ele deve sempre catminhar: a necessidade de tal reserva per- ‘manente, tio dificil como important, bastaria aids, para verifi- ‘car, em conformidade com nossas explicagbes iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente proparada, de ‘modo que no possa, absolutamente, convir ao estady nascente a Humanidade. £ nas leis dos fendmenos que consisterealmen- ‘ea ciéneia, a qual os fatos propriamente ditos, por exatos ¢ nu- merosos que possam ser, nfo fornecem jamais sendo indispens&- vis materiais. Ora, considerando a destinagdo eonstante dessas leis se pode dizer, sem exagero slgum, que a verdadeira ciéncia, bem longe de ser formada de simples observagées, tendo sempre a sispensar quanto possivel a explorasio ciret, substtuindo-a por sa previsiioracional que constitu, de todas os pontoscde vista, © principal earster do esprito pesitivo, como 0 conjuato des estudos astronémicos no-lo fard claramente sentir. Tal previsio, conse- iiéncia necesséria das relagdes constantes descobertas entre 0s fendmenos, no permitiré nunca que se confimnda a ciéncia real com essa vi erudicGo que acumula maquinalmente fatos em as- pirar a deduzi-los uns dos outros. Esse grande atributo de todas as, nossas sis especulagées importa tanto sua uilidade efetiva quan- to i sua prépria cignidade; pois a exploragiio direta dos fendme- os realizados nZo poderia bastar para nos penmitir nodificar a sua realizagio, se nio nos levasse a podé-lo convenientemente. Assim, 0 verdadeiro espirito positive consiste sobretuda a ver ‘Para prever, a estudar 0 que &, a fim de concluir dai oque ser, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis nawrais (A. Comte. Discurso sobre o espirito pasttvo [1844] [extraido de A cidncia social. Paris, Gallimard, 1972, p. 235-237). ‘Comte esta convicto de que combinando ordem e progresso 0 Positivismo vai superar a teologia e a revolugio. Seu segredo? A. construgo de uma sociedade unida, de uma religido da humanida- de que consolide e aperfeicoe os Fundamentos da sociellade (isto é, areli « familia, a linguager, a propriedade..), Acha-se assim senate Ea das Hosoi da storia 26s definida a missao da sociologia, disciplina que toma de emprésti- ‘mo algumas conquistas do método cientifico para se aplicer & ob- servago ¢ ao enunciado de leis relativas aos fendmenos sociais. Inspirado pela modema biologia nascente, mas consciente dos limites da enalogia, Comte compara o objeto da sociologia~ a so- ciedade ~ 2 um corpo onde os esforgos sio coordenados a fim de realizar um tinico objetivo. Otodo prevalece, portanto, sobre a par- te. A sociedade vem necessariamente primeiro, 6 0 alfa e omega do social. “A sociedade se compde de fanailias e niio de individuos (..). Uma sociedade nao se pode entio decompor em individuos como tampouco uma superficie geométrica nfo o é em linhas ou uma linha em pontos” (Sistema de politica positiva ou tratacto de sociologia que insttuia religiéo da Humanidade, 1851-1853, I), Como discipulo de Hobbes, Comte atribui, por outro lado, um lugar central forga (forga do némero e/ow da riqueza) no ordens- ‘mento social. A orem se encontra mantida com ¢ auxilio de um poder que Comte qualifica de “temporal”. Tal &0 ¢aso, por exem- plo, do poder real. Na sociedade industrial esse poder esté entre as mos daqueles que do provas de real competEncia (industriais, banguciros) para dsigir os outros. Mas esse poder, do qual somen- te se beneficia um reduzido nimero, pede para ser equilibrado por uum poder “espiritual”. Para Comte, este cabe por direito aqueles que compreenderam o sezredo dia ordem social (sacerdotes, sdbios, socidtogos). O exercicio desse poder tem como meta fazer que se aceite o mundo real fal qual ele é, provoque o amor dos chefes mas também lembre a estes ltimos os limites de suas funges, 24. A lei dos trés estados Fundando a sociologia, o grande feito de Augusto Comte & ‘operat uma reconciliagfo entre duas tradigSes diametralmente opos- tas: de um lado, os saudosistas da comunidade perdida (come de BES Se eer Palle 1 hilsofiae ocedade ss Maistre ou de Bonald), do outro lado, os adeptos da idéia de razio € de progresso. Comte consegue apropriar-se num lance dessas duas problemticas quando atribui & sociologia un: duplo campo de estudo; a estitica e a dindmica sociais. Tomando emprestada dos bidlogos a dicotomia anatomis/fisiologia, ele define a est como 6 estudo dos determinantes da ordem e do consenso social Areligito, a propriedade e atividade econdmica, a fumitiae a lin- guagem participam a este titulo de um equilibrio muito apreciado pelos contra-revolucionarios ¢ que, aos olhos de Comte, impée-se como © momento prévio para 0 desenvolvimento gradual pro- gressivo da ordem social. O estudo do progresso do espirito humano e das sociedades & precisamente o objeto da dinimica social. Desde 9 seu tereciro opiisculo (Plane..), e depois novamente na primeira ligio de seu Curso de flosofia positiva (1830-1842), Comte postula que o de- senvolvimento do espirito humano passa por trés estados. Como 08 estados da sociedade nao fazem mais que refletir o estado das idéi- as, ahistoria dos seres hummanos é escandida, também, par esse rt- smo temério (Baliza 7): =O primeiro estado & teoldgico ow ficticio, Neste, o espirite humano “representa os fenémenos como se fossem produzidos pela agdo direta e continua de agentes sobrenaturais". O fetichis- ‘mo (crenga em uma vida prépria de que seriam dosados os obje- 03), 0 politefsmo ¢ 0 monoteismo pontuam, desta maneia, a in- fincia da humanidade onde vai culminer a Idade Média. Esta época, caracterizada por sua estabilidade, é dominada por um sis- tema feudal e militar. ~Ossegundo esiado 0 estado metafisico ou absrato. Nesse es- tado do espirito humnano, “os agentes sobrenaturais da sociedade teolégica dio o lugar a forgas abstratas” como a Natureza. Aplica- | | | | | | : i : a aos pr t are 3 daa sociedade, esta fase adolescente, transtéria desondenada corresponde a um esiado militar. Vem, afinal, o estado cientifico ou positive. Chegando a ma- turidade, o espirito humano descarta a busca de qualquer causa tl- ‘ima para consiclerar os fatos e ‘suas leis efetivas, isto €, suas rela- Bes invariveis de sucessdes e de semelhangas”. No planohistéri- co, este estado esté em conformidade com a sociedsde industrial No seu seio podem novamente impor-se a ordem ¢ © consenso ‘Tendo os industriais suplantado os guerteitos, 08 seres hunnnos ‘do fardo mais a guerra para obter poder eriqueza, mas irfio cope rar para dominar a natureza e produzir em abundancia paratodes. 2.5. Revolugio Industrial e invengao do social ‘A Revolugio Industrial, que comega conquistando a Inglaterra no fim do século XVII, vai evelar outro movimento emancipador, ‘odos homens contra @ natureza. Esse voluntarismo econémico tem :miiltiplas conseqiiénciss. A industrislizag3o e a urbanizagio diluem 08 lagos sociais tradicionais e abalam tanto as técnicas como 0s ces- tumes. Com a emergéncia do proletariado— classe nova, mivel eas, vvezes rebelde (Texto 17)~ vo sobrevir problemas inéditos. dificcis, condigdes de trabalho, promiscuidade e falta de higiene, aleoolis- mo, prostituigdo, delingiiéncia, concubinato e nascimentos ilegit mos... A fim de sapar aquilo que se denomina no século XIX a “questo social”, contribuirpara aumentar “a utilidade e ober-es- ta, mas também melhor controlar um setor da sociedade que pa- rece escapat-thes, as classes dirigentes ¢ as autoridades politicasse empenham em conhecer melhor este mundo novo. 0 set cn sina 6D. eget FU, 87.967, eR a (CUEVALIER~ O proletariado, classe perigosa? ‘Com mas forte rezo, nesta primeira metade do século XIX, «sta palavre ~ proletariado ~ considerada, ndo nos dicioniios ‘onde ainda nto gankou seu lugar, mas nos documentos ltericios ‘esociais da paca, bem como nos fos, traz ainda a marca de Ow tros caractees, nZo econdmicos, mal depurados desses antago nismos étnicosefisicas que animam as violencias que descreve- mos, e sofre a concorréncia de outras palavras e de outras ima- gens que exprimem melhor 9s carateresbiol6gices das futss so- is. Assim aparece aa obra de Balzac, onde 0 proletstiade nao tanto uma classe, mas antes uma raga, e evoes menos tm esta~ mento profissionale caracteres econdmieos do que uma forrma selvagem e bdebara de viver ¢ morte. Assim aparece na aailise de Fregier que, colocando o esfarrapado nas classes perigosas, ‘esereve, ndo sem algums hesitagdo.e um constrangimento que se deve levar em conta: “Quando, em vez de atenuar a miséria pela sobriedade e pela parciménia, 0 proletrio, pois &plausivel com certeza usa esta qualificagio ao falar do esfarapado e do waga- ‘bundo, © proletirio, insist, almeja beber na taga dos prazeresre- servados & classe zicaeabestada, quando procura nfo umedecer 03 labios nessa tage, mas beber até se embriagar por um tolo or gulho, degrada-se tanto mais quanto mais quer se exaltar™ Ousras palavras, com efeito, ganham mais relevo ainda, Sto aquelas usadas por -ecoutourier ao escrever em 1848; *Nio hi sociedade perisiense, nfo ha parsienses. Paris nfo passa de um acampamento de abmades", Ou Jules Breynat, que eserevia em 1849, nos Socalistas modernos: “A burguesia ou, melhor dizen- dl, 0 povo que chegou i abastanca pela ordem e pelo traballn, dleveria sera vtima desses birbares...Ebrio de desordem emer. ticnio, esse populzcho que 0 pove lancava do seu seo sitou 0 poder” (..) ‘Aattude das populagdes burguesas em face das classes tra- ‘balhadoras toma essim emprestaca a maior de suas caracteris- ticas da alitude antige para com uma populagio que era consid | i : rada nfo pertencente cidade, suspeita de todos os crimes, de to- dos os males, de todas as epicemias, de todas as vionits, nfo somente por seus tracos prOprios, mas pelo mero fato de sua or- ‘gem exterior clade: por essa imigragZo, em que se Via logo ‘uma proliferagao ds antiga mendicéncia. Como nio se lembrar esse espantoso relatério de um prefeito do Sena, citado por Mo- rogues, onde o incremento da produgo manufaturcira da capital & descrito come tendo pavoado a cidade ~ ako de operitios, como se poderia crer e para o maior tucro dos empregadores ~ ‘mas de mendigos ocupados em viver custa da burguesia? (Louis Chevalier. Classes trabathadloras e classes perigocas. Paris, lon, 1958, p. 458-460). Os érefios de administragdo e outras sociedades erucitas multi- plicam entio observagdes de campo © sondagens. Na Franga, a ‘Academia de Ciéncias Morais e Politicas encarrega Villermé, Be- noiston de Chateauneuf, Buret... de estudara classe operdria, Mes- mo sendo hoje um pouco contestado (em razio de uma metodolo- gia de observagdo relativamente fluida e impregnada de forte mo- ralismo), 0 Mapa do estado fisico e moral dos opertrios emprega- dos nas manufaturas de algodao, 1a eseda (1840), tragado por Vile Jemé, constitui um dos mais eélebres exemplos dessas radiografi- 4s sociais do mundo operario, Desenvolve-se também a “estatstica moral” (Texto 18). A cri= minalidade, expresséo bein clara do “desregramento social”, € 0 primeiro objeto que dé margem a produgdo de séries estatisticas anuais. Estende-se, rapidamente, © campo de invest gacSo social para a demografia, a indistria, a edueagao, a nutrigao... Na Ingla- terra, no inicio da década de 1830, funda-se a Statistical Society of London. Na Franca, ctia-se ema 1834 0 Bureau de la Statistique Gé- nérale (algo como o nosso IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia ¢ Estatistica, Nota do tradutor), Essa mensuragio dos fatos sociais se enriquece no plano cientifico recorrendo aos trabalhos de mate- sinensis sai E22. fitosofas da storia nos precursores. iéticos brilhantes como o belga Adolphe Quételet. Este tltimo enuncia uma teoria normativa do “justo meio” ou, mais exatamen- te, do “homemn médio”, Normal & aquilo que correspond & médi. Este € 0 axioma que Quételet pretende promover quando, com o auxilio de um instrumento estatistco, sai 4 procura das normas dos modos de ser do patolégicos. Texto 18, que geralmente ele mesmo redigee cujo contetido,primciramen- teconsagrado as questdes demograficas (leis da mortalidade, na- talidade, casamentos etc), se ampli sobretudo a partir dc 1827 para 8 instrugdo, as prisdes, a medida do porte médio,aestatisti- a da livraria ¢ dos jornais, os preqos, as instituigdes beneficen- tes, ete, a ponto de suscitar os protestes de um leitor inguieto com esse ilvio de niémeros. Os primeiros comentéios de Qué- telet sobre a estatistica da criminalidade aparecem em um me- ‘morando apresentado em 1828 a Academia da Bélgica epublica- doem 1829 comotitulo Pesguisas estaisticas sobreo Reino dos Paises Baixos. A parte mais importante &a que se rere os deli- tos ¢ crimes. Quetelet compara os resultados do Censo francés para 1825-1826 aos das estatisticas dos Paises Baixos. Pela pri- ‘ocira ver se refere “A assustadora exatidio com a qual oseximes, ‘sereproduzem” e apresents um quadro que poderia indicaraten- déncia ao crime nas diferentes idades da vida, ao menos para a Franca, considerada em seu estado atual (.) ‘© nascimento da estatistica e da sociologia criminal é rico cm lisies, Situa-se no ponto de interseegdo de uma conjantura econémice-social com uma conjuntura cientifica. O fato de a “cincia do homem’” ter sido inicialmente “cigncis do erime” constitui um exemplo ao mesinio tempo das mutagées urbanas © das psicologias sociais que valorizam a propriedade, a ordem, a continéncia sexual. Ela nasceu de uma fascinagio pelo crime, desordem em uma sociedade racional de produgao. E outta fascinasio: a do nimero, A idéia que somente aquilo quese pode contar é certo, que a quantificaso ea mensurago es- tatistice so o paradigma da verdade mostcam o prestigio de que .gozam os matematicos, Comega a era dos politSenicos (M., Perrot Para ma histéria da estaistica. Pais, Insze, 1977, p.[25€ 134). | | i | | | | | | i cess Teorias sociais e socialismo No decorrer de todo o séeulo XIX as doutrinas socialistas vaio se {forjando na reagao contra os infimeros abalos que atormentamo cor po social dos paises europeus, Instrumento para a agdo ou simples expresso sonhada de uma ruptura radical, 0 socialismo, conjunto alids muito heterogéneo, floresce principalmente em trés paises: A Alemanhe que, através da Reforma, deu ao mundo a liberdadeespiritul; a Franga, que The dew a liberda- de politica pela Revolugio: ea Inglaterra, que leva termo a obra libertadora, dando ao mundo a igualda- de social (Moses Hess. triargula européia, 1841), ‘Na miilitincia no seio do nascente movimento revoluciondirio, Karl Marx e Friedrich Engels conseguiram dar um verdadeiro golpe teSrico de impacto englobando sob os termos de socialistas “utépicos” uma pléiade de analistas, como Saint-Simon, Fourier, ‘Owen, Cabet, Weitling.... que eles pretendiam ultrapassar reali- zando urn estudo cientifico da sociedade industrial. Marx contrai, de fato, uma enorme divida com as aventuras intelectuais de sua época. Em uma formula célebre, Lenin jutga assim que Mars é op sucessor legitimo de tudo aquilo que a humanidade eriou de relhor no século XIX: a filosofia alema, a economia politica in- lesa, o socialismo francés”. Definir 0 marxismo com este simn- 5 5 ples trindmio ¢ certamente reducionistn, De fato, querse sirva da ‘vor dos “utopistas”, da de Marx ou de seus herdsiros, 0 discurso socialista interessa a0 historiador da sociologia na medida em que constituiu, sobretudo, 0 ensejo para enunciar mumerosos pontos de vista eriticos e normativos sobre uma sociedade em processo de profunda transformagio. 1. Socialismo, utopia e anarquismo Segundo sugere Karl Polanyi, o socialismo mademno se apre- senta, antes de mais nada, como um movimento de reconstrugio ‘Yoluntéia da sosiedade em um contexto particular, o da desenvol- vimento de uma economia de mercado (Texto 19), As conseqiién- cias dessa avalanche mercantilista sio arrasadoras: cla significa, explica Polanyi, a destruigio das relages sociais tradicionais, a emancipagaio do econdmico do social. No Século das Luzes, é ver- dade, jf esté constitaido um corpo de reflexes que se volta para, um mito regulador: 0 mito da cidade comunitéria. Na Franga, pen- sadores como Morelly, Mably, Meslier e outros procuram o ideal social desenhando — segundo o modelo da natureza~ 6puras de so- ciedades utépices, comunidades de homens de bens enfim desem- baragados das tentaydes do egoismo. ‘Texto 19 Socialismo, 0 que 6? Durkheim: O socialismo ndo é uma sociologia em miniatura ( socialistno nfo é uma ciéucia, uma sociologia em miniat- +a, mas um grito de dor e, 4s vezes, de cdler, langado pelos seres ‘humanos que sentem com toda a vivacidade 0 nosso mal-estarco- Ietivo. Ele esta para os ftos que o suscitam camo 0s gemidos do enfermo para o mal que o fiz soffer ¢ as necessidades que o ator- mentam. Ora, ¢ que € que se diria de umn meédico que tomasse as respostas ou os desejos de seu paciente por axiomas cientificos? ‘Aids, as teorias que se oper em geral 20 socialism no sto de a \ i ‘ ‘outta natureza e nem merecem tampouco a qualifieagio que thes recusamos. F quando 08 esanomistas preconizam 0 laisser-faire, ‘pedem que se reduza a zerv a influéncia do Estado, que & concot- Tencia goze de liberdade irrestrita, no apdiaon tampouco suas re vvindicagdes sobe leis cienifieamente induzidas.(..) Depois de ter discutido as definiges recebidas e ter demons~ ‘rado a sua insuficiéncia, procuramos nés mesmos descobrir quais os sinais pelos quais se poieria reconhecer o socialismo ¢ distin~ ‘gui-lo do que nfo éele e, por uma comparagio objetiva das dife~ rrentes doutrinas que tm por objeto as coisas sociais, chegames & Formula seguinte: di-se 0 nome de teorias socialistas a todas, ‘aquelas que precenizam asubordinagie mais ou menos eomple~ ta de todas as fungies ecendimicas ou de algumas delas, mesino difusas, aos Orgios diretores ¢ conscientes da sociedade (E. Durkheim. O socialismo. Paris, Alcan, 1928, p.6 ¢ 27). Polanyi: O socialism contra 0 mercado ‘Osocialismo é, antes de tudo, a tendéncia inerente de umaci- viligagao industrial a transcender © mercado auto-regulador sz ordinando-o conscientemente a uma sociedade democritica, E ‘a golugdo que ver naturalmente aos operérios, que no veempor que a produgio nao devaser diretamente regulada nem por que ‘os mercados devam ser mais que um elemento itil, mas secunda~ rio, de uma soviedade livre. Do ponto de vista da comunidad to~ ‘mada no seu conjunto, o sosialismo & simplesmente uma forma, de dar prosseguimento acesforgo por fazer da sociedade um sis- ‘tema de relagdes verdaclezamente burmanas entre as pessoas que, ra Europa Ocidental, sexapre esteve associada & tradigdo crit Do ponto de vista do sistema econémico, representa, 80 contra rio, uma ruptura radical cam o passado imediato, na medida en {querompe com a tentative de fazer do luero privado o estimmalan- te geral das atividades produtivas e onde ndo reconhece as pes- soas privadas 6 direito de dispor dos principais instrumentos de produg3o, Eis por que, no fim das contas, os partidos socialistas encontram dificuldade fara reformar a economia capitalista, ‘mesmo quando se mostram bem decididos a ndo tocar no sistema de proptiedade (Karl Polnyi. A grande transformagéo (1944). aris, Gallimard, 1973, p. 302-303). ee aes LL A génese da idéia socialista na Inglaterra ‘Mas esti fora de diivida que é no século XIX que a doutrina socialista ganha toda a sua amplitude. A Revolugio Industrial e 0 surto concomitante de um proletariado urbano criam as condi- ‘Ges econdmicas da emergéncia desta nova concepgdo da socie- dade. Dois pafses se acham particularmente envolvidos: Inglaterra Franca. Na Alemanka, dado que a ruptara econémica ¢ mais tar- dia que nos dois outros paises, a idéia sociatista é mais explorada pelos intelectuais. Na Inglaterra, primeiro pats que se industrializou rapidamente, © movimento cartisia se forma em 1836 e atua com eficicia até 1848 (Texto 20), Para caracterizar o nascente movimento socialis ta inglés, € necesséirio primeiramente observar que seus principais tebricos sio, com algumas raras excegdes, oriundos da classe diri- zene, Suas concepgdes se forjam no contato com um conjunto de doutrinas por vezes antagénicas como o radicalismo, uilitarismo (ou ainda, o romantismo politico. Em segundo lugar, a pritica so- cialista parece hesitante: oscila constantemente entve agiio politica (reivindicagao do suftégio universal) ¢ lutas sociais (reivindica- ‘8es contra as leis sobre a pobreza e em prol de uma legislacto do trabalho). Deve-se acrescentar a isto a incerteza quanto ao tipo de alianga que se deve estabelecer (deve-se ir com ou contraa burgue- sia radical?). © conjunto oferece a imagem de um movimento bal- buciante e pouco incisivo tanto na prética como na teoria, Neste grande conjunto, Robert Owen (1771-1858) & 0 homem, que melhor simboliza o socialismo 4 inglesa (ver também @ Baliza 8), Proprictéio de uma fébrica téxtitem New Lanark Escdcia), este industrial, autor de Uma nova visio de sociedade (1813-1814), funda um sistema educacional ¢ produtivo baseado sobre convic- Bes que ele extrai da filosofia das Luzes. Racionalista esclareci- do, Owen acredita nas virtdes da educagio como remédio contra a confasio social; pattidrio das teses deterministas (o ser humano ‘Texto 20 Ro 0 eavtisme © grande perio do caiso como agitsfo popular de ina sheen de 1836 #1846, poi fase comega por ots de 18351836 vata o pnto emia em 1835- 1839, segundo perodn, mito mais cro, exende-sede 1840 11842, Bai, depts de un vivo, agiago ease paras tnplncem 1847-1848 eterna por uma sie de facassos de thal ue de 1888 Ociano sacs apd iis re eeses erin depois as aptagies poles de 1832 esindcais de 1854 ese dayatgos offs artes, vile da radio rial de enneipgio denocien, Urns hostiidae visa cont a das “bases genes, fbrea eo asl Gacy tnd worthon, ber om ptesalrevoiciniio que vase ftveaiemam movimento dersivindieayoplisn qd 08 ac cals tec de dopa cami em se prove, mas 0 al Gs perros orgulhost ecumentamente conser um carer Secomate socal independ Em 18364 grupo deeestos Tedines, entre o guns ee cham radials, owen ini Satta funda London Morkng Men's vocation Assos ao dos iabladore de Lone). A ete dese grupo ea- enone dois tae, las Lovet (1800-187) ery Hottorogvon 17921849), que deseucaeiam un camparha Acaylugto pelo suégio waver, Espeam asim aliara clase pen a programa qs obtera uid de ods os dssca- Teneseremeaso desecesso fora plitc sbin ocaminio paraas forma econ seis, Com Francs Pace rei- tema Cart do pove (189) donde o movimento tem nome. Compara seis evindeagis~ ods polices, Eis 0s seis pontos: 1) 0 suligio universal (maseulino}; 2) A renovagao anual do Parlamento; 3) 0 voto seereto; { | ——— SEs 4 mnie ptamentar pa os depts ese |. Forman associagSes em todo opal initando a Assoca- | ss sees a rCisCSCsCi—Cs—ziéds$ a : =S=S=S=Ssisi‘i‘Cr*sCs—SOS—sO res, muitos dos quais consideram que s6 padem contar consigo Ines pars coveraar sues telvndearba roe. Hite -geral do socialismo, t. I. Patis, PUF, 1972, p. 321-322) & produto das circunstancias, do sew meio), miflita em favor de wma religifo racional ¢ de uma ciéncia social da producdo, da pedago- gia e do governo que libertam o ser humano, Baliza 8 Alguns grandes vultos da ideologia socialista na Inglaterra William Godwin (1756-1836): 0 autor de Investizagdo sobre a Justica politica ¢ sua influéncia sobre o moral e a felicidade (1793), ‘pode ser consicerado 0 verdadeiro precursor do socialism inglés. Do Século das Luzes, 0 pastor Godwin ¢ herdeito de uma sblida f6 racionalista que elepeservico de uma projeto de corsunisme anar- quista. Gedwin procarasubstinir a sociedade coeritiva por uma or- ganizagio social descentralizada, que respite a liberdade e a8 op {ges individuais. Gochwin preconiza a supressio da propriedade pri- ‘vada que a sen ver § intrinsecamente portadora de desigualdades € de egoismo, mas também a do matriniénio, expressio da “pior de to- das as propriedaies”. ‘Thomas Spence (1750-1814) e Thomas Paine (1737-1809): em nome dos Direitos Humanos, Spence, professor miltante, une-se «8 Godwin para denunciar a propriedade privada, Em contraponto, | i i i | i i j | | | cle propde a coletivizagio das terras em beneficio de um Pstado fe- derativo e redisteibutivista. [gualmente defensor obstinado dos Di- reitos Humanos, Paine & um publicista que milita em prol de umade- ‘ocracia que combine redistribuigo das rendas, sistema de aposer- tadoria e tributagdo sobre a propriedade de terras, De muitos pontos dl vista, Paine representa um inspirador daquilo que ulteriormente se tornatd a doutrina do Welfare Stare. (Os neo-rieardianos: estes economistas, fortemente inspireclos pela obra de David Ricardo, claboram uma critica do capitalismo ir Austral, Wiliam Thompson (1783-1833), célebre por ter sido opri- imeito a utilizar o teemo de mais-valia, insere-se na confluéncis do utiitarismo benthamiano e da economia ricardiana. Militante por tum socialismo cooperativisia, denunciador das relagdes de dowina- ‘gio sob as quais sie postos os trabalhadores, procura o meio, pels cumulagio de riqueza e urna justa distribuigio da rends, para con- seguir a maior quantidade possivel de felicidade para os seres hum.2- ‘nos. Thomas Hodgkin (1787-1869), oficial de marinhs que moitas vvezes foi apresentado come uma ponte ligando Ricardo ¢ Marx, a- shou fama pelo fato de considerar o trabalho como a tinica fonie de valore por sua vivacidade militante (conclamagao a luta de classes). Individualista, preconizs a atua¢do dos sindicatos e 0 deseavolvi- ‘mento da educagao, (Os escritores romantieos: para levar a tecmo sua critica roman- tica, inteiramente tingida de comantismo, Samuel T. Coleridge torn ‘como modelo a Idade Média, momento histtico em que oindividuo est ainda em fsio com as comunidades de base (como as corpora- 803). Atribui a Igreja a responsabilidade de organizar a nova sucie- Gade. Sensivel ao impacto da indistria, o filésof Thomas Carlyle também se mostra um saudosista da Mlade Média (assim idealiza a vida monéstica), Em Passado e presente (1843), ataca vigooss- mente 0 capitalisme industrial. Adversério da economia politica classiea, eigncia sinistra por estar cheia de abstragdes, mostra-se wm, critico feroz de um capitalisme que conjuga pobreza. desigualdace, Carlyle recomenda néo uma revolta politica, mas social © moral, uma forma de socialismo reacionsvio onde o Fstado ¢ a aristocracia ! i | ‘sua fabrica-modelo, onde inova em matéria de educagdo infantil, redugo da jornada de trabalho e Tota contra a pobreza. Em 1824, (Owen vai tentar nova aventura: parte para a América e funda ali uma comunidade de “perfeita igualdade” (New Harmony = Nova _| Harmonia). Mas o projeto fracassa, e Owen regressa em 1829 para militar ao lado dos movimentos operdrios e cooperativistas, Parti- ipa assim, em 1833, da ctiagao da primeira confederagiio nacional a Gra-Bretanha, 1.2. O socialismo na Franca ‘Também na Franga 0 socialismo encontrou um terreno fértil Gracchus Babeuf (1760-1797), Etienne Cabet (1788-1856) e tam- bbém Flora Tristan (1803-1844), ferozmente zelosa das idéias femi- nistas, so alguns dos muitos nomes que marcam a génese do mo- vimento operirio, Mas o parto, efetivamente, foi muito demorado: pode-se balizar verdadeiros tragos desse movimento apenas a con- tar da Restauragio,e depois sob a monarquia de julho (revolta dos teceldes lioneses, 20 inicio da década de 1830). No plano teérico, 0 primeiro que vai dar um grande impulso a idéia socialista é un aristocrata francés (Saint-Simon) que, a partir da Restauragao, se pea refletir e a atuar em prol da classe trabalhadora, “a mais nu- ‘mezosa e a mais pobre”, Depois de 1830, ganha corpo um neocatolicisimo (Ballanche, Chateaubriand) que se esforca por articular a concepgzio ordindtia da fé cat6lica com umma filosofia da mudanga social. Nessa dinin cca se deve inserir 0 socialismo de inspiragao erst. Seu alvo outro nfo é sendio a mudanga da sociedade com o fito de tomé-la confor: ‘me aos principios cristios de fraternidade: Péticité de Lamennais (Palavras de um crente, 1834) e Filipe Buchez (sio-simoniano, promotor do movimento cooperativista) séo duas pontas de langa dese movimenio. Seus pensamentos esto, no entento, longe de ser originais, e se acham relativamente isolados no seio da Igreja, Firmemente apoiado nessas crengas, ele dirige com sucesso | Outros autores influenciam muito mais a reflexio tedrica e ago social. £ 0 caso por exemplo de Augusto Blangui, que teata tomar opader em 1839, ou ainda de Luis Blane que, em. organizacao do trabatho (1839), preconiza areunifo das cooperativas operdrias eum mesmo ramo em umm tinico organismo. Todos esses pionei- 10s desempenham um papel importante na revolugdo de 1843. Com relagio a0 século XVII, quando se procura caracterizar as douttinas socialistas de molde francés, ¢ necessirio raciocinar em termos de continuidade e de ruptura. Fortemente marcadas pelo espirito de 1789, essas doutrinas possuem em comurn com a filosofia das Luzes um projeto de emancipagio: a construgio de uma sociedade que funcione sem referente transcendente (divino particularmente). Mas, ¢ aqui se acha uma ruptura importante com as Luzes, pensadores como um Saint-Simon imaginam novas for- ‘mas de eristianismo e resgatam por prépria conta o esquemacatd- lico de organizagio em cujo seio os fundadores da ciéncia social ‘ocupam o Iugar dos Padres da Igroja. segundo traco caracteristico dessas doutrinas é a defesa de uma politica cientifica da sociedade. O objetivo ¢ claro: encontrar centregar as chaves ~ muilas vezes tomadas emprestadas da fisica newteniana, do naturalismo de Cuvier e Linné... ~ da criagio de ‘uma sociedade artificial onde todos os individuos estario esponta- neamente em harmonia, Enfim, um derradeiro elemento importan- te: 0 lago por vezes amb{guo que os socialistas mantém com os conservadores (come Bonald). Como estes iltimos, nfo escondem uma certa nostalgia da comunidade perdida e professam uma real hostilidade quanto ordem imposta pelo mereado, forma deregu- aco que destr6i os mecaniswnos da solidariedade, 1.3, Do industrialismo sio-simoniano aos falanstérios fourieristas Saint-Simon (1760-1825), eis aqui a sua maior originalidade, impde, em primeiro lugar, a idéia socialista na Franga acrescentan- Sees eestor do a cla uma visdo “industralista” de sociedade (Texto 21). Sa- int-Simon, nobre francés, morou um tempo e combateu na Atnéri- a, Militante ativo durante a Revolugo Francesa, recebe até 0 ba- tismo tepublicano, Autor de umas dez obras que servein particu Jarmente como introdugdo & “fisiologia social”, Saint-Simon en- ‘cerra a sua obra com Uin novo cristianismo (1825), livro que pre- coniza uma regeneragio da religido cristf a servigo do proletaria- 40. Quanto ao resto, longe de ser fixo, 0 pensamento so-simonia- zo é fortemente mareado por ma filosofia cfclica da historia que declina a evolugo da humanidade em periodos orginicos (reina 2 unidade entre 08 grupos humanos) ¢ criticos (periodos de anarquia, divisio e inreligiio) (ntrodugao aos trabalhos ciextificos do sécu- Jo XIX, 1807), Munido com essas lunetas, Saint-Simon se langa a analisar a sua época. Em oposigio 20 dinamismo éa América, jo- ‘ven nagio que promete a liberdade e a igualdade, 0 velho conti- nente apresenta sintomas ¢ defeitos das épocas ctiticas. Trata-se, nesse caso, do peso do aparelho de Estado e do parasitismo social das classes ociosas. Na mente de Saint-Simon, a oposigo entre ociosos (“os zan- ‘Bhos”) ¢ produtores (“as abelhas”) constitui precisamente o funda- mento histérico de todos os antagonismos de classes, Por esse motivo, Saint-Simon denuncia a fundamental inutlidade dos mi- litares, juristas, metafisicos e outros burgueses que vivem de ren- da, Ao contririo, nfo se cansa de elogiar a classe dos produtores, aquela que compreende 05 patrdes industriais, comerciantes, agricultores, chefes de obras e operirios. Este paregirico serve a uma tese: o interesse geral da sociedade coincide com o dos produ- tores, A pardbola que apareceu em O organizador (1819-1820) ilustra bem o ponto de vista aqui defendido, Se a Franga, explica Texto 21 ‘SAINT-SIMON ~ Do indusirialismo ao novo cristianismo 0 dificil, nos dias de hoje, n80 € constituiro sistema indus- trial e cientifico, preparado por todos os progressos da civiliza~ ‘glo a0s séculos anteriores, mas, ao contrario, impedir que clese constitia, estabelecero sistema feudal eteol6gico, solapado em seus fundamentos hi seis sfzulos, e sucessivamente destruido em todas as suas partes, durante esse perfodo, de umm modo tio completo que a geragao presente procure em vo, nos detitos desoe sistema, um meio parase fazer uma pale imagem dag logue cra. Eis oque ndo & apenas dificil, mas absoluramente qui inérico, acima de todo poder humane. ‘Vossa Majestade logo reconheceria como é justa essa asset fo, se adotasse o principio politico geral que tenho a honra de: tne propor. Sua conduta certamenteivitaria toda a tropa dos zansios, ‘qu fasiam cessar imediatarente as suns dissensbes intestnas, suas querelas de familia, par unr todas as suas forgas contra se ‘melhante plano, Mas esse mesmo plano poria num dtitno cm ti~ vidade, e faria concorrer coma realeza, as verdadeitas forgas po iticas, as dos sdbios, dos drigentes industriais, edo povo, orgas queso, por assim dizer, trom frescas em politica, dado que ja- ts lutaram até hoje com osen verdadeiro cartier fundamental. Sustentada por esses apoies, Voss Majestade poderia escutar, sem abalar-se, as Vis gritarias dos gentis-homens, dos tonsura dos, dos militares, dos propsitiios ociosos e dos jurists, Alits, seo zumbido dos zangios assmisse um cardter muito sedicioso, as ahelhas saberiam como thes ensinar que se 2 funcio delas & produziro mel, mesmo assim sio dotadas também dem Ferd para castigar quem perturba a colméia (..). Sire, o principio fondamental estabelecido pelo divino autor do cristianismo, ordena que todos os seres hismanos se vejam. como irmios e cooperem do modo mais perfeito possivel para o ‘bem-estar uns dos outros. Ese principio ¢ o mais geral de todos, 6s prineipios sociais. Compreende, em suas conseqiéncias, ni apenas toda a moral, mas também toda a politica. E 0 verdadeiro principio consttuinte (..) 5 1 | Deus, portanto, ordenou, quando deu aos seres humanos 0, principio geral do cristianisma, que o primeito grim de consi ragdo social acabaria por pertencer nos sébios, a0 artistas e a0s industriais; que a diregSo da sociedade passaria por suas mos. ‘Numa palavra, que o sistema industrial cientifica, ovo esta. nisin definitive e completo, oque dino mesmo, fcara const- tuido quando estivesse suficientemente preparado. Hoje se acha cumprida essa condigio (Saint Simon. Do sistema industrial. Paris, Renoward [1821], relangado em O novo eritinismo. Par ss, Point-Seuil, 1969, p. 103-103) Saint-Simon, perdesse em cada ciéncia, cada arte, cada inddstria, cada profissio as cingiienta personalidades mais importantes, iria tomat-se urn corpo sem alma, Ea contrapartida, seo pais perdesse no mesmo dia todos 0s parentes proximos do rei, todos os minis- tros, todos os membros da alta hierarquia, os prefitos.. e 0s dez mil proprietérios mais ricos, “este acidente afligria certamente os franceses, visto serem bons, mas dai no adviria nenhum mal pott- tico para o Estado” (Obras, tomo 2), Substimair 0 governo dos ho- mens pela administragio das coisas ~ noutras palavras, gerir a in- dastria, fundamento da sociedade, de modo cientifico e racional, sem nenkum controle do Estado — eis o imperative no qual vai fi= nalmente desembocar a reflexto sio-simoniana (Baliza 9). Baliza 9 s sio-simonianos A lgreja sio-simoniana (1828-1832) Sob a égide de Prosper Enfantin e Saint-Amand Bazard, consti- tui-se uma igreja sio-simoniana que desvia a doutina do mestre para o sentimento religioso, sentimento concebido como fator de re- ‘generago da fhumanidade. Os sBo-simonianos reivindicam, ass, ‘um modelo de vida baseado no amor ena fraternidede, Para eles, 0 | i | Seer ativsmo 0 fundamento deta verdad socibildade. Mis, a0 rem comunidads em Mail Moatat,ogniposio-smno- Sao go sss as Rigs de i, com sus Paes es oi Tis Sob supe de otra aie, ogrpo logo Seda terse Eafantin cheg a passarum ino na pista Pierre Leroux (1797-1871) Pierre Leroux é um dissidente do sto-simonianismo. Esse dire- tor de uma grifiea, que funda, Le Globe (jornal sio-simoniano), ompe com a igreja sZ0-simoviana em 1831 e elege-se deputado em 1848, Nele encontramos trés grandes eixos de reflexo. Lerouxcon- dona primeiramente, com muita severidade, a filosofia eclética de Victor Cousin, flésofo “oficial” da monarquia de julho. O pensa- ‘mento deste titima se resume, segundo Leroux, a uma filosofia do ‘egoismo calculista misturada com passividade (Refuragao do ecle- smo, 1839), Em opasigiio a individualismo, Leroux forja, por vol- tade 1831, 0 termo “socialismo”. Leroux contesta, por outro lado, 3 vontade sfo-simoniana de reconstruir um saber total a partir da. ei dda atrago universal. Para ele, existem otdens diferentes do real (fi- sica, social) irredutiveis ente si. Procura por isso ligar tradigio ¢ progresso com o auxilio de uma forma nova de teologia politics. Le- roux critica, enfim, a plutoctecia, govemo do dinheiro e da riqueza aque reina na Franga ¢ exeluio tabalho da cidade: o culto do deus Plutos substituiu ~ explica ele~ 0 do proletirie Jesus (Da plutocra- cia, 1843), Impregnado, assim como Saint-Simon, de uma forma de cien- tificismo, Charles Fourier (1772-1837), filho de um comerciante lions, desenvolve uma filosofia social que repousa sobre oprinct- pio da atrago apaixonada, manifestagio no sein da sociedad dos hhumanos da lei universal evja ago no mundo fisico fora revelads por Newton, No universo, assevera Fourier, o conjunto das formas de oxisténcia (dos insotos aos astros) funciona gragas a um meca- nismo de relagdes analégicas, Deve existir, por conseguinte, uma | i | | unidade do sistema de movimento que anima o mundo material e spiritual, Acharn-se assim estabelecidas as bases candnicas de uma nova ciéncia: a ciéncia da analogia dos quatro movimentos (material, orgénico, animal e social). Neste quadro, e sem jamais distinguir imaginacio ¢ previsto, Fourier elenca diversos princi- pos etemos e, acima de tudo, trés paixdes humanas essenciais: a “esvoagante”, que comesponde a uma necessidade de variedade periédica, a “compésita”, que ¢ a reunifio da felicidade dos sen dos ¢ daalma e, enfim, a “eabalista” (mania de intriga), Com base nesta dinéimica, a humanidede deve chegar em oito ‘tapas (periodo primitivo, selvageria, patriarcado, barbirre, civili- zaso, semi-associavo, sociantrismo, harmonia) a plenitude, que € a do mundo societirio. Se a considera necesséria para aleangar a harmonia, a etapa da civilizaco nem por iso esté menos sujeita a indimeraseriticas, Fourier nfo tem meias palavras quando fustiga 0 comércio (atividade de parasitas), a indistria (que produz a um s6 tempo miséria e riqueza). Da mesma forma censura severamente 0 ‘casamento burgués, expressiio de imensa Para ultrapassar esses miiltiplos limites, este homem, tio ran- zinza como caleulista € minucioso, tem em mira umm projeto alter- nativo de sociedade, Pde-se a construi-lo com 0 auxitio de uma ‘matemitica social, a das séries apaixonadas (Texto 22). Por sé- rie Fourier compreende uma reuniao de individuos onde cada um exerce uma atividade bem delimitada. A ordem societitia sonha- da por Fourier ~ e para a qual ele espera, em ao, atéo dia da mor- te, por um mecenas - repousa sobre esta arte de dar existéncia por céleulo a ordenamentos sociais, Essas composigdes devem tomar forma no scio de comunidades organizadas a que Fouier dé o nome de “falanstérios” Contudo, algumas iniciativas mais ou menos bem-sucedidas viram a luz: € 0 caso do falanstério de Condé-sur-Vesere (1832), que Fourier se apressa a denunciar, ou ainda 0 “familistério” de Guise (Aisne), fundado pelo fabricante de fomos Jean-Baptiste ‘André Godin com base na associagio de trabalho ¢ capital... Mas 08 falanstérios ficam send, antes de tudo, un modo de organiza ‘gio social que fica sempre apegado as nuvens do sonho fourierista No entanto, gragas & sua dimensdo subversiva durante longo tem- po escondida ed ago de discipalos figis como Victor Considérant, ‘o fouricrismo vai exercer uma influéncia consideravel sobreo mo- vimento socialista e irrigar muito particularmente numeroses dou- trinas libertirias nos séculos XIX e XX. 1.4, A critica social de Proudhon Depois da revolugio de 1848, os escritos do socialista Piere Joseph Proudhon (1809-1865) vao provocar o impacto mais pro- fando sobre o movimento operirio francés. Filho de tanoeiro, nas- ido em Besangon, Proudhon produz uma obra plet6rica, contradi- Texto 22 a diistria ou de uma mesma paixdo (...). See eee ag ori ee a ciecenieamma omen Paap aemmarnall peat etter turei 2 partir dai que se Deus houvesse dado tanta influéncia & atragio apaixonada c téo pouce A razio sua inimniga, era para nos D). Mas como é que os capitalistas podem, no fimn das conias, obter um valor D’ superior dquele que investiram inicialmente? O segre~ do reside na mais-vatia e na exploragdo, dois pivds do sistema ca- pitalista cuja existéncia e cujo mecanismo Marx se esforga por desvelar. A mais-valia corresponde diferenga entre o valor de uso da forga de trabalho e o seu valor de troca (0 salério). Ora, o salério ago permite exatamente a reproduedo equivalente a forga de tra- balho; esta iltima produz, portanto, um valor superior ao que custs «8 sua utilizagao pelo capitalista (Texto 29). Como o trabalho dos assalariados nio recebe uma remuneragao & altura do seu resultado © 08 detentores dos meios de produgdo se apropriam da mais-valia, entdo, assim conclui Marx, di-se exploragao, Essa usurpagiio est no fimago dos conflitos de classes. Ela abre um furo num sistema atravessado por contradigdes (o desenvolvimento das capacidades de produgao nfo ¢ acompanhado por um aumento proporcional da procurs...), marcado pela queda tendencial das taxas de lucro eine vitavelmente fadado, por este fato, & faléncia, Texto 29 MARX ~ Mais-valia ¢ reproducioa social O valor de forga de trabalho & determinado pela quantidade de trabalho necessério para conservé-la ou zeproduzi-la, mas 0 cemprago desta forea nao tem outros limites senko os das energias ativas eda forga fisica do trabalhador. O valor didrio cu semanal sda forga de trebalho & absolutamente distinto do seu exercicio didrio ou semenal; da mesma forma, & necessério seber distin- uit entre 0 alimento de que um cavalo necesita ¢ o tempo due ante o qual ele & capaz de transportar seu cavaleiro. A quantida- de de trabalho que limita 0 valor da farga de tabalho de gperdrio no impe nenfium limite & quantidade de trabalho questa forea € capaz de executar. Veja o exemplo do nosso tecelio. Vimos ‘que para renover todos os dias a sua forga de trabalho ele deve produit toda dia nm valor de 3 xelins, ¢ isto trabalhando 6 ho ras, Ora, isto nfo o toma incepaz de trabalhar 10, 12 horas ou mais. Acontece que pagando 0 valor cotidiano ot semanal da forga de trabalho, o capitalista adguirixo diteito de utilizé-la du- rante todo 0 dia ou toda a semana, Vi portant fazer oopertion trbalhar durante mais tempo, digamos, daze hors por dia. Aci- ra das seis horas necessrin &reprodugo do seu selicn, ist &, do valor de sua forga de trabalho, 0 teceliio devera trabalhar ow~ tras seis horas, que denomiaaze horas de sobretabalho; este sobretabalho e retliza em ua matb-vaiae em um sabrepro= Gif. Seo nosso tcc, ais rable 6 bors, aeesceta 20 81~ ovo um valor de 3 xelis, um alr perfeitmeateigval a0 Selirio, ele aerescentari em 12 horas uin valor de seis xelios, © produzi um excedente de eido proporcional. Como vende sua forga de tabalho, o valor total do produto que ele cri per- tence ab capitalist, propristiotmporsri daforga de wabalho. ste vaidesmbolsar 3 tine reali assim um valor de 6x2 lin. Ter, comefeito, desemoolsado um valor no qual exo cis talizadas 6 hors de trabalho ereesbeu em trea um valor qual estto crstalzadas 12 hors de trabalho. Repetindo est opera- Gio cada dia, o capitalist desembosard cada it 3 xelns © et Solar 6, mice Gos qua serv para pasar um novo salio © acuta mete consti usa mais-vala pola qual o capitalist ‘io paga equivalentealgum E sobre esta modalidade de roca fenire o capital eo rabaiho que se fonda a produgio capitals Este sistema odo asalrid> tem como estado eonsantere~ produzir 0 trabalhador como trabalhador ¢ 0 capi pitlista (K. Mare, Saldro, prego e luo [1865]. Paris, Calli- ‘naid/La Pleiade* Oeuvres” Economie I, 1965, p. 12513). ‘Vamos ser mais explicitos ainda; contrariamente aos econc- mistas clissicos (de modo particular Jean-Baptiste Say), Mane afirma inicialmente que uma vez produzido utn bem, este nfo en- contra necessariamente safda, Marx empreende uma critica mais fundamental ainda do modo de produgio capitalists quando enun- cia as leis “tendenciais” desse sistema, tendéncia ao nivelamenio por igual das taxas de Iucros entre setores ¢, sobretudo, declinio tendencial da taxa de Iucro. A logica deste Gltimo movimento a Seguinte: constaniemente sequiosos de Tucro, os detentores dos meios de produgo fazem concorréncia entre si e acumulando ¢ concentrando sempre mais capital. Essa_modemnizago tem por fim explicito o aumento da mais-valia (aumentando a produtividade, alongando tempo de trabalho...) portanto do lucro. Dé-se, por este fato, utna substi 0 crescente entre trabalho morto (méquinas) ¢ trabalho vivo (as- salariados). Ora, somente este tltimo tipo de trabalho é criador de valor. A longo prazo, 0 sistema nvio seta mais capaz de gerar novas riquezas. Vitima de sua prépria légica, 0 capitalism caminha rumo a uma crise inelutével, 3. Os marxismos depois de Marx Depois do fracasso das revolugdes de 1848, 0 movimento ope- rério 36 vai novamente entrar em vigor na Europa muito lentamen- te e de forma desigual conforme os paises. Na Inglaterra, se as Tra- de Unions (sindicetos) sio toleradas a partir de 1825, 0 ministério Disraeli s6 efetua reais concessdes sociaisa partir de 1874 (supres- sdo de todos os entraves 4 greve...). Na Franca, o direito de greve 86 € reconhecido em 1864, o sindicalismo em 1884, O marxismo, ‘na qualidade de doutrina federativa de uma ago politica, s6 nasce -verdadeiramente com a unificago dos socialistas alemiies (Gotha, 1875) a criaco, em 1879, sob o impulso de Jules Guesde, da Fe- derago do Partido dos Trabathadores Socialistas da Franga (que ‘passou a ser 0 Partico Operdrio Francés em 1882). Enfim, as revo- lugGes russas de 1905 e de 1917 sancionam realmente a eficécia da ago comunista. ‘Como € que os militantes e intelectuais deste final de século ad- rministram a heranga marxista (Baliza 14)? Na Franga a doutrina é vulgarizada quando nao caricaturada por alguns intelectuais mili- tantes como Gabriel Deville (Principias soctalistas, 1896), Paul Lafargue (0 genro de Mars, autor de O direito d preguiga, 1880) owainda Jules Guesde, De fato, longe de se alinhar unilateralmente ¢ apropriar-se cuidadosamente do conjunto da obra, os hercleitos se utilizam de trés vias prineipais: ou perpetuam desviando-a da tradigo utopista; ou se orientam ~ como na Gri-Bretanha ~ para ‘um reformismo que apela a ago do Estado; ou, enfim, se langama uma verdadeira revisio de Marx. Fsta iltima estratégia faz entio a andlise sociologica marxista aplicar-se a temas tio centrais como ‘0 Estado, a buroeracia, as classes sociais ou ainda a naga. Baliza 14 Revolugdo e ago revolucionaria, ‘Asteria da ago politica edo respectivo papel da classe opera {do partido e do Estado constituera um nicleo importante dos debates entre mandstas. O Partido Social-Democrata Russo, indado em 1895, por iniiatva de Vladimir Ich Ulianoy (Lenin, 1870-1924), 60 se {eatro privilegiado. Em 1908, por ocasio do Segundo Congresso em Bruxelas, o Partido se vé atavessado por umn coxjunto de debates que consolidam rapidamente uma total ruptura entre os majorities (bol- cheviques)¢ 0s minoritirios mencheviques). ‘Um primeiro tipo de debate se organiza em toro de trés pontos, de vista. Jorge Plekhanov ¢ 0 primeiro a acreditar que a Russia no se acha pronta para viver uma revolugdo: & necessirio epoiar a bur- ‘quesia no poder e permitirqueclaleve o pais a maturidade econdmi- ca. Ai entio terd chegado a hora de empreender a ofersiva revolu ciondria. Tomar a iniviativa revolucionsria antes da hora seria, como ‘aconteceu com a Comuna de Paris, correrorisco do fracasso. J Le- nin milita em favor de uma revolucao protetiria que, aliando-se & classe camponesa, permit quebraro elo fravo (@ Rissa) dacadeia ‘mperatisa, Com o spoio das menchevigues, Leto Davidovich Brons- tein (Trotski, 1879-1940) desvia-se dos pontos de vista de Lenin. Se cle pensacomo este itimo, queo prolerarindo russo deve congquistar © poder, no acredita na possibilidade de contar para isso com o ‘apoio do campesinato. Trotski preconiza uma nacionalizagio da in stra © uma socializago da agricultura, Consciente do obstdculo ‘que é o campesinato russo para a realizaglo desse programa, ele convoca a uma revoluo permanente e intemacional. Em 1917, Le- nin adotajgualmente essa posigio ‘Um sezundo ponto de debate & o que se refere ao papel do Parti- do, Por considerar que o protetariado no 6 naturalmente capaz de adquiric uma consciéncia revolucionsria, Lenia reiviadica a organi- zagio de uma vanguarda de revolucionécios profissionais (Que fa- 2er?, 1904). Esta posigio é oposta ainda a de Trotski (que adere ape- sar de tudo a Lenin quanto a este principio ers 1917), mas também & de Rosa Luxemburgo (1870-1919) (Greves de massa, partido e.sin- dicaio, 1906). Rosa Luxemburgo, que patticipou da tundagio do Partido Cormunista Alemao (1918) e da revolugio espartaguista de BBerlim Ganeiro de 1919), defende urna linha espontaneista: “os er- ros cometidos pelo movimento eperirio revolucioniria ~ escreve ela ~ do ponto de vista histérico sao infinitaments mais fecundos que @ infalibilidade do methor comit8 cente 4.1. Socialismo, reformismo e revisionismo Em sua versio ortodoxa, 0 marxismo penetrou mais as terras francesas e alemas, ao contrario da Inglaterra, mais sensivel 20 re- forrnismo. Isto nfo impediu a emergéncia dessa sensiilidade p. tica nos dois primeiros pafses, Assim, na Franca, esta ‘itima se en- carna com 0 “possibilisto” de Paul Brousse, moderaco que se tor na majoritirio, em 1882, no Congresso da Fecieragio dos Traba- Ihadores Socialistas da Franca. Partidério de uma politica das pos- sibilidades, Brousse desenvolve uma ética gestionaria visando deslocalizar 08 servigos piblicos em detrimento da ago revolu- ciondria. Na Alemanha, o reformismo assume, a principio, os tra- ‘90s de Ferdinand Lassalle (1825-1864). Para este histcriador da fi- losofia que se afirma como o tfder do movimento opertrio, importa ‘menos reivindicar amelhora da sorte dos trabalhadores que obter 0 suftigio universal de modo a exigir do FEstado que atenda aos inte- resses do maior niimero. O programa de Gotha (1875), do Partido Social-Democrata Aleméo, sob forte influéncia de Lassalle, softe- 18 as criticas acerbas de Marx. Este Partido Social-Democrata, tsa | | ij | sesso cece fundado em 1869 por dois propagandistas da doutrina marxista, ‘August Bebel e Karl Liebknecht, progressivamente vai direcionar sua atuagio para vias parlamentares. ‘Na Inglaterra, apés a morte do cartismo em 1858, 0 socialismo toma feigdes reformistas com a Sociedacte Fabiana (Sidney ¢ Bes- triz Webb, George Bernard Shaw), cuja reflexdo marca claramente 1 ago politica do Partido Trabalhista, Criada em 1884, essa socie~ dade reéne intelectuais que no concordam nem com 0 marcismo ‘nem como liberalismo. Socislogos das instituigdes muito preocu- ppados com a acumulagiio dos fatos, os esposos Webb consagram uma obra capital (Democracia industrial, 1897) & questio sindi- cal. Mostram que os sindicatos tém pot objetivo a aplicagaio de luna “regra comum”, noutras palavras, uma regrs que entrave a concorréncia no mercado de trabalho dando normas para as cond ges de trabalho e de salirio. A negociagio coletiva, o seguro mi- {uo e, enfin, a agio politica (ransformacao das regras commans em dispositivos fegais), constituem os melhores instrumentos pare isso, Fundadores da London School of Economies, relativamente influenciados pela sociologia organicista de Spencer, os Webb ‘derem no fim da vide 20 comunismo de molde sovistico. E agora, a quantas anda aop¢ao revisionista? O executor testa- mentério de Engels, Eduardo Bernstein (1850-1932), € 0 primneiro anegociar, Em nome da consciéneia do ser humano ede una vol- taa Kant, entio ei voga, Bemstein (0 socialismo tedrico e a pré- fica da social-democracia, 1899) pde-se a elaborar um revisionis- ‘mo que destréi os fundamentos materialista e dialético da histéria. ‘Ao mesmo tempo concede & democracia.o verdadeiro poder de f- cundacdo socialista, Situando-se além dos interesses de classes, 0 Estado democritico, alimentando-se com o desenvolvimento capi- talista, poderd, de mancira porfeitamente pacifica, dar novo rumo 20 processo histérico. Estaéa tese primeira de Bernstein. Com ele vai surgir uma forma de humanismo politico que impregnaré o pensamento de muitos sociatista, a principiar pelos ranceses Jean Jaurés e Ledo Blum. Sob a influéneia do grupo fabiano inglés, Bernstein ple tam- bém em xeque as grandes teses econdmicas e sociolégicas de Mars. Sua critica visa tanto denunciar a inanidade da teoria do va- lor como também desmistificar a idéia de um empobreciniento cons- ‘ante no seio do sistema capitalista, No cOmputo geral, Bernstein elimina 0 catastrofismo econdmico ¢ desposa a tese em favor de solugdes polticas que apontam claramente o caminho da social-de- Embora nfo entre em completo acordo intelectual com Berns- tein, Karl Kautsky (1854-1938) deve ser também situado nesta corrente revisionista. Aquele que foi, durante dois anos, 0 secreté- rio de Engels, ganhou fama por teses que moderam e radicalismo marxiano, A violéncia como arma para a conquista do poder ele prefere o trabalho de persuaslo, A classe operdria née tem a capa- cidade natural de conquistar a propria emancipago, Somente um regime democritico Ihe hé de garantir os meios de efetuar a passa- ‘gem para o socialismo, A citica do revisionismo 201 levada a cabo entre os marxistas em frentes miltiplas da atividade militante ¢ intelectual. Em con= traponto a essas teses social-democratas, Rosa Luxemburgo pro- lama em primeito lugar a necessidade historica do processo revo~ luciondrio, Se ela concede sem relutiincia a Bernstein que o cresci- ‘mento capitalista pés fim ao processo de empobrecimento na Eu- ropa, € para melhor sublinharo seu carater temporario. O capitalis- ‘mo — pensa ela ~ acha-se em permanente expansio. C imperilis- mo, que € a sua tradugdo modem, toma a forma de um chogue en- tre as grandes poténcias para conquistar novos mereados. Essas oposigdes serdo, portanto, inevitavelmente mortiferas. Contra os revisionistas, Lenin também reafirma, alto e bom Som, a injungdo revolucionéria. Denuneia um Kautsky que, para agradar & burguesia, teria transformado Marx em um “vulgar Libe- ral” (A revolugdo proletiria e 0 renegado Kautsky, 1918). Ora, pensa Lenin, o Estado, mesmo em uma democracia, €aindae sem pre um instrumento de opressio nas mios da classe dominante. f, pois, justamente em nome de Marx que € necessario reivindicar 0 seu desaparecimento pela revolugéo armada. Quebrar o Estado ‘burgués implica no mesmo lance a morte da democracia, 3.2, Reiorno ao problema das classes sociais Outro tema sociolégico importante veiculado nos debates em tomo do revisionismo ¢ 0 das classes sociais. Aqui ainda, Bemstein 60 primeizo a abrir fogo. Para ele, quando se quer Considerar aten- tamente que uma classe social se caracteriza, antes de tudo, por eti- térios econdmicos (tipo e nivel de renda), entio a polarizaedio da sociedade & simplesmente evidente. Nos fatos e contrariando as previsées marxianas, nfo ha como nfo constatar que as classes mé- dias aumentam em volume (Texto 30). Este diagnéstico fomeceu combustivel para uma célebre pole- mica entre Bernstein e Kauisky. Este titimo também constata 0 crescimento de um corpo social intermediacio. Melhor, registra a sua metamorfose: ao lado da pequena burguesia aparece um novo ‘grupo social proveniente da classe culta. Apesar de tudo, afirma Kautsky, ste desenvolvimento da classe média continua sendo algo ilusério. Em primeiro lugar porque, se algumas parcelas desta nova classe meédia sio atraidas para o pélo burgués, 0 algapic da proieta- tizagdo se escancara sob 0s pés cos outros, Em segundo lugar, por- aque hé verdadeiros desempregados que se escondem sob os tragos ‘de uma certa pequena burguesia proliferante “cada vez mais depre- ciada pela oferta sem cessar crescente das forgas de trabalho". Além dessa controvérsia, deve-se chamar a atengio, com Geor- ges Gurvitch, para o desvio principal dessas anilises marxistas © Teninistas: aquela que consiste em puxar a anilise das classes so- \ | i | ciais para concepgdes cada vez mais mecanivistas. Georges Lue kiies (Histria e eonsciéncia de classe, 1923) 6 0 primeiro que di uma freada decisiva nesse movimento. Pouco preocupado com qualquer recensio empirica dos grupos sociais, Lukées coloca a Enfase sobre a importéncia de apreender os fendmenos sociais como, em primeiro lugar, “totalidades dialéticas”. Bis por que, “como 0 protetariado se acha posto pela historia diante da tarefa de uma trans formacdo consciente da sociedade, & imperioso que surja em sua conscitncia de classe a contradigio dialética entre o inte- resse imediato e ameta fal, entre o momento isolado ea totalida- de” (Ibid. p. 96). Numa palavra, a verdadeira conscincia de clas- se proletéria néo é psicolégica, mas uma consciéncia global que integra interesse de classe e capacidade de compreender a realida- 4e social em sua totaidade, Texto 30 BERNSTEIN— O erescimento das classes médias ‘O modero mado de produgao se define por um evescimento considerdvel da produtividade do trabalho, coisa que tem comme conseqiiéncia um aumento nfo menos considersvel dos bens de consumo, Pode-se, com razio, perguatar para onde vio essasti- quezas, que nio sto consumidas pelos trabalhadores, em razio da fraqueza dos seus salérios, e que os proprios capitalistas nko conseguiriam absorver, mesmo que tivessern estémagos dez ve- es maiores que aqueles que thes atribui a imaginagio popular cou duas vezes mais servos do que tém na realidade, Alguém me hi de retorquie que os capitalistas exportar 0 excedente, VA ‘Mas nfo esquegimos que o comprador estrangeiro pega por seu ‘urno em mercadorias, dado que a moeda metdlica desempenka ‘um papel cada vez menos importante no mercado mundial. Com feito, quanto mais rico em capital wim pais, tanto maior o volt me de mercadorias que importa, pois os paises aos quais empres- tadinbeiro ndo podem geralmente pagar os juros do empréstimo aunfo ser sob a forma de mereadorias. Once vai desaparccer en to a massa das mercadoras que no pode ser absorvida velo consumo dos capitlistas? Como nio vai para os proletrios, ¢ simplesmente necessirio que haja outras classes encarregedias de absorvé-la, O crescimesto continuo da produsio nos eoloca, portanto, diante de segointe altenativa: ou uma elevasio pro: tressiva do bem-estar do proletariado ou entdo uma classe miédia As estatstica das renas nos paises de industilizagio acti- antadarevelam por uma paste a mobildade,afuidez ea inseges ranga do capital na economia moderna; os rendimentos eas For- tunas so, ein proporgdesceseentes, riquezas de papel que wma rejada de vento pode fciimente dispersr. Mas fica sempre ce pé ques hierarquia dos rendimentos no entraabsolutaments eri Eontradigao coma hietarqia das unidades econdmicasna indi tra, no comércio ena agicutura, A escala dos rendimentos e & eseala das empresas revelam na sua estrutura um parallisme bem evident, sobretado a0 que tange as categorias médias Estas ni estio em parte algusia diminuindo: o contzrio, nds as vemes aumentar quase em toda a pare em proporgées consi- deriveis. O que elas abandonam & grande empresa, v20 dep recaperi-lo polo sistema da ascensto social ea proleiatizasio & compensada pel difusto da riqueza geal devida a industiliza- Gio, Se 0 desmoronamento da sociedade modems depetx do Sdesaparecimento das categorias médias stuadas ete o vérice ¢ a base da pirdmide socal, se tem por condigio suaabsorsio pe- Ios extremes, a grande empresa e o protetarcdo, entdo essedes- ‘moronamento, aa Ingltea, na Alemanta ena Franga, nio est ‘mais perto hoje, em 1899, éa que em qualquer momento dosteu- io XIX (E, Bemstein, A evohgio econémica da socedade mo- dma, in: Os pressuposes do socialism [1899]. Paris, Seu 1974, p. 84-85 ¢ 103-104), 3.3.4 burocracia e a nagiio A evolugio da sociedade russa pés-revolucionsia ¢ de modo mais geral a erego, no decurso do século XX, de estados burocri ticos nos paises do Leste Europeu diminui sem contestagio aperti- néncia heuristica das teses marxisias sobre o Estado e as classes sociais. Logo, no entanto, 05 marxistas tiveram que se interesser pela “burocracia” (palavra inventada em 1745 por ura economista fisiocrata, Jean Claude Vincent de Goumay, para caracterizat 0 governo prussiano), Observando a Alemanha do século XIX, Marx 6 0 primeiro que mostra, em sua Critica da flosofia do Esta do de Hegel, que a burocracia nfo é nem uma classe nem uma ca ‘mada social, porque ela tira sta existéncia da divisio em classes. Dependente da classe dominante, ela possui, no entanto, unna rela- tiva autonomia quea leva. erigira incompeténcia em sistema, ase comportar diante do exterior como uma hierarquia fechada. E nfo somente gera 0 culto da autoridade mas funciona igualmente se- undo as regras de um materialismo bastante sérdido: 0 burocraia faz do objetive do Estado 0 seu objetivo privado (6 a caga aos pos- (os superiores). Em 0 Estado e a Revoluedo (1917), Lenin retoniao fio da dis- cussdo e sublinha que, produto do Estado, a burocracia ¢ o exército permanente constituem duas formagdes “parasitas” no corpo da sociedade burguesa. A grande burguesia e as camadas superiores do campesinato, dos pequenos artesis, des pequenos comercian- tes... fomecem 0 contingente dos burocratas. Mudando de statu, estes iltimos se separam do resto do povo ¢ ligam sua sorte aquela a classe dominante, Aplicada 8 sociedade soviética, a critica da burocracia levou Trotski (4 revolusio traida, 1936) a definir a URSS como um sistema intermediério entre o socialismo ¢ 0 capi- talismo. Caracterizado pela degenerago do Estado operirio, do sistema de produgio e, sobretudo, da transformagio cos partidos em burocracia, o regime € parasitado por uma burocracia que Trotski se recusa a assimilar a uma classe “capitalista de Estado”, Se as instancias &s quais a classe operdria delegou o poder $6 fize- ram segregur ditadura e abuso, em nenhum caso os burocratas po- dem arrogar-setitulos ou agdes sobre os meios de produgio. Por este fato, eem consondncia com a teoria marxista, nfo se pode ée- finir a burocracia como classe dirigente. Mas sempre fica de pé ‘que a burocracia sovidtica adquiriu, mais que em qualquer out regime politico anterior, uma independéncia que a coloca na posi gio de “camada social privilegiads e dominante”, Traidora da re- volugdo, conclui Troiski, tornou-se “uma casla sem controle, es- tranha ao socialismno” ‘Além da burocracia, o problema da nagio questiona o ponto de ‘vista materialista ¢ dialético classico, Quais serdo, nesta materia, as posigdes das grandes figuras do marxismo? Para Marx e Engels, primeiramente, a nagio € apenas um fendmeno histérico tansité- fio, De fato, como observou Leszek Kolakowski Nio se acha nada nos eseritos de Marx e Engels que se possa chamar de ume teoria do fenémeno nacio- nal; neles nfo se acha nenhuma explicagdo sobre ¢ tnancira de abordar teoricamente a divisio émnica da hnumenidade quando confroniada com a divisao de Comunidade ‘Da ordem do natural, do bioligico, do afetivo C8 eee Faia Vida orginica > lago de sangue Instnto ¢ prazer > instintos e prazeres macemnais, ppaternais,fratemais Hib: t0 > costume, usos,rilos,religido Meméria von transmissdo dos costumes, dos sos, dos ritos e te na raligido [No plano juridico, aqui reina 0 estatuto (direito natural) que & expressio do costume, dos usos e da religito, ‘Vontade refletida.. so.» Sociedade Da ordem do supecfcial, do mecdnico, do racionat Refi > estudo do valor abstrate aleulo e especulagio...... > haero e vantag Contecitento cali socia Exg0Fsem0 on > comércio Dominagao... > eaptalismo 1Na sociedade, com o comércio € uoea... rina @ contrato que se objetiva do methor modo com a sociedade andaima, Segundo J. Lei, Introduedo a Comunidade e ssociedade. Pati, Retz, 1977, p. 32. ‘A. dualidade de Ferdinand Tonnies é um legado composto de ini- ‘eros esquemas forjados por sens contemporineos. Pode-se obser ‘var, por exemplo, ainfluéacia de Schopenhauer (o mundo como Von- tade e representagio), de Spencer (homogéneo e heterogénes), de Wundt (vontade simples-der Wille e vontade refletida-die Wilk’) ou ainda de Maine (sociedndes de estatuto e sociedades contratuais). De acordo com Tonnies, © bindmio comunidade/sociedade seria além disso homélogo as oposigies entre mulheres ¢ homens, entre pove simples ¢ erucitos, enire wabatho doméstico e atividade comercial. Partindlo desta dualidade, Ténnies direciona para 0 camposocio- légico as categorias de connmidade € sociedade. A comunidade (Gemeinschaft) se caracteriza por relagdes sociais fundades sobre aafetividade € 0 espirto de grupo. A familia, as redes locais de co- nhecimento so os seus dois exemplos tipicos. O estado de socie- dade (Gesellschaft) comesponde aquele descrito por Hobbes no Leviata: aqui as relagdes so formais, artificiais, e st baseiam ro inferesse individual. Sd geradas com 0 auxitio de uma fia poli doz, impessoal, ‘Tonnies utiliza, em primeiro lugar, wm par de nogBes em pers- pectiva histérica: na sociedade industrial, o impulso das grandes ci- dades, a expansio e racionalizagio das empresas e das administia- 4@es... nfo revelam a passagem progressiva da comunidade asocie- dade? Nesta iltima, a separagao entre os seres humanos se traduz por um incremento na troca de coisas, por um desenvolvimento das priticas contratuais, “A sociedade é o estado n0 qual cada homemé tum comerciante” (Adam Smith, apud Tonnies), Esta evolucd0, ava- Jia Ténnies, conduz para o socialismo, sistema que ird definitiva- mente destruir os Jagos comunitrios entre os homens. ‘Segundo Ténnies, deve-se a Wilhelm Schmalenbach, alano ée Simmel, a introdugio de uma terceira categoria: a de liga (Bea federagao, confederagao). A liga € uma forma social que, kistor: ‘catmente, precede a comunidade e a sociedade, Ela se define pelo acorde exaltado, pelo entusiasmo quase religioso ov, ainda, o amor elo lider que une os membros do grupo, Schialenbach veré nos movimentos da juventude, mas também no nacicnal-socialismo alemio, 0s tragos tipicas deste modo de organizagzo social, 3.2. 4 sociologia formal de Georg Simmel Além do seu interesse particular pela epistemologia histéica, Que o leva a refutar toda tentagio nomolégica a enunciar leis da hist6ria (Texto 36), uma das interrogagdes centtais de Simmel éa diferenciagdio social. Em um breve artigo de 1909 (iricke und Tiir = Ponte e Porta), que se tornou célebre, faz uma andlise vitalista do fato social, Para Simmel, a vida social é um movimento pelo Qual ndio cessam de se remodelar as relagdes entre os individuos, Estas relagdes so, imagem da ponte que liga e da porta que sepa. 18, um feixe de tendéncias contraditérias & coesto 2 dispersao. Para analisar essas relagies, Simmel propde um conceite diretor: 0 wonceito de agdo reciproca, Ele entende por isto maito simples- mente a influéncia que cada individuo exerce sobre outro. Esta acto € guiada por um conjunto de motivagées diversas (amor, im- Pulsos er6ticos, interesses, préticas, f8 religiosa, imperatives de sobrevivéncia ou de agressio, prazer liidico,trabalh...)é a tota- lidade — sempre mével ¢ confituosa ~ destas ages que contribui para unificar 0 conjunto dos individuos em uma sociedade global. Texto 36 SIMMEL.~ Critiea das lels da historia Suponhamos que estamos observando uma mudacga do es- tado A para o estado B, Esta seqUéncia nos parecerd eventual ‘mente como se fosse regida por uma lei, Mas imaginemos que 0 estado se compe dos elementos a, 8, ¢¢ 0 estado B dos ele- Mentos @ b,c, Ndo podemos entao atitmar que a” €a conse iiéncia de a, ano ser que observemos que Al é seguido de Bi, 0U Al € BI sto esiados composios respectivamente dos elemen. | i arsinar 4, d,¢,ea',d’,e". Suponhamos agora que vamos tent ole Sesonera gi okt esse ¢ «pe poet Ss mentes governadas: mets sel sess ty mpd tspaeaares, Contnuando tsi, deve seen Tir tementres Ess lito az que regia len entre {Samer menores sun combina determina 0 tos com Bara dnt ean meta” ssivel, com todo o rigor, falar de lei da historiaa nao scrap doers cause ple determine feo des $= lens hon Pseudo ps gud espa Encino ten selena ceeptacacnvezae A repre na omnes ie Sa ir eco nde are qu Aaj ca Kies Acne ds ceunstnis gone Be tou covered onde ens 3 peo fe gi he Gdaa vere quando conseide como un coq postive edie. to produind oefto Por oa ada aeasa An conery snp ox rel das cops he see Cinta os amp, oles ve por atin Git Stavetn cen bana lade oreo snc de fazer dar que, Seo, ndtv A arr moaned ores gue compSem A poleefavament fazer ale que ligy Ae Bead ‘car € perder o interesse (.... - Os aonecimenios que procuramos susan sb 1 da tra pone reset esteem. Fae esters pr um no, nossosjulsoude lor pel Ov tron nuslevtnarmate tases sobre wating dos tones responsiveis po um evento singular. Nasa consrsoesteicas thro quenostovana conta sbstantvossintetcs parkas ne esse th ago eGo conheieno, nosis tos de Valo: in rv apres to sole ail Tod um acoutecmento compleno, porque ese (ruplin, Resides com gua Speed or ous sets sn naan ‘ops ese pie deta ce can ec Sas que nos nes (, Simmel Os problanas Hiri 1892, aro PUP, 1984p 134-135) O objeto de anzilise de Simmel ndo é nem o individuo nem a sor cciedade em si: todo o seu interesse se focaliza sobre a interagdo cria- dora entre esses dois pélos extremos. A produgio da sociedade pe- los individuos ¢ a conformagdo permanente dos individuos pela sociedade constitui, neste sentido, a matriz fundadora do vinculo social, Situando-se no ponto de vista contrério a Durcheim, Sim- mel privilegia, portanto, nao a pressio social, mas o devir da socie- dade. Por isso ele prefere dedicar mais atengao a socializagio que A sociedade. Simmel nao ignora, todavia, a existéneia de estraturas pesadas que levam & reproducao social, Mas lbes atribui simples- ‘mente um estatuto comparivel a esses eventos microssociais da vida cotidiana, essas interagSes miltiptas e fugazes (a sociabilida- de), que constituem também a esséncia das relagdes humanas. Em oposigiio ao contetido da ago (as motivagdes que dirigem © agir humano), Simmel da o nome de formas sociais a0 produto das ages reciprocas, A rioda vema ser um exemplo tipico de for- ‘maa social (Texto 37), Expressio do individuslismo moderno, sem no entanto cessar de trair as distingBes de classe, ele revel, talvez ‘melhor que qualquer outra forma, a ess@ncia dindmica do social Seas formas sociais (juricicas, artistas, habituais..) sio 0 pod to do ser humano e das interagdes entre os seres humanos, ackam-se também, muitas delas, em via constante de objetivagio, Este pro- cesso de abstragio lhes confere uma légica de fancionamento au- tOnomo que as faz parecer estranhas aos sujeitos que as gereram. As formas sociais s20, portanto, elementos necessérios 3 vida coti- diana. Somente clas oferecem um quadro aos vinculos sociais Este paradoxo, que se nutre de uma constante tendéncia a coisifi- cago das relages humanas, esti no Amago daquilo que Simmel denomina a tragédia cultural da modemidade. E 0 que se dé como dinheiro, por exemplo. Instrumento de troca, meio de avaliagio dos objetos ¢ dos seres humanos, o dinkeiro facilita o desenvolvi« ‘mento econdmico das sociedades modemas. Infelizmente, consta- ta Simmel, o dinheio aprisiona ao mesmo tempo os individuos em relagGes sociais empobrecicas por estarem cada yez mais submeti- das ao caleulo e a estratégias 3.3. O desvio do “sistematismo” Seguindo a mesma linka de Tonnies ¢ Simmel, Alfred Vier- ands (1867-1953) e Leopold von Wiese (1876-1969) se mostra- tam os mais ardentes defensores de um tipo de sociologia ‘pura’ Para Vierkandt (Gesellschaftslehre [Teoria da Sociedade}, 1923), ‘em primeizo lugar, porque as relagdes ndo sfio nunca puramente cotiunitérias nem paramente societarias, 0s dais modelos de orgs- nizagao de Ténnies valem menos pela oposigio radical que clas constituem do que pelos limites extrensos que assinalam. A diver- sidade das formas sociais que se inscrevem entre estes dois pélos no deve tampouco ocultar a existéncia primeira de um conjunto de instintos individuais (o sentimento de si-mesmo, o instinto de submissio, a tendéncia a solidariedade...).Esses instintos, traduzi- dos em termos de comporiamentos sociais gragas & pressio dos ‘grupos, 0 socidlogo poderia constati-los sob a condigdo sine qua nom ée recorrer a uma postuta fenomenolégica. Texto 37 SIMMEL~As formas socials A moda como forma social tag de wn model dado a med isn vn recs doit cl. evs tn pe amino sido pr 108, wales gence needs comport ge cede0m our ingles ex, Dil ssn na ema Su anscasdo dosti annie aeons, Tein ademaregt Forgas dein do psa nian ‘Woe couecos ue imprine Anna de be a aes Sig cn ee daca tno a ar oor lado, ainda mais energicamente, gragas ao fato de que as modas sto sempre modas de classe, de que aquelas da camada superior se distinguem daquelas da camada inferior e se vBern abandona- das pela primeira desde que a segunda comega a se apropriar de- Iss. A moda ndo é, portanto, jamais senfio uma forma de vida en- tre muitas outa, que permite reunir em um mesmo agir unitirio 2 tendéncia a igualizagdo social e a tendéncia A distingio ine ‘dual, A variago (G, Simmel. A moda (1895). Zn: A tragédia da ‘cultura. Paris, Rivages, 1988, p. 91. Dinhelro e relagies sociais pape do inhsito no intro do sistem de avaliagbs mo- exists pode medirse pela volo ds mls monca Neste dominio se nos impde, como um dos fenémenos mais im- presionans, a reparagto do home luni . Into dua om fatto corquio ms ein tvas qu nos dpensaremos de spresetar exemple, a0 menos rogue coesne dan ver snpes edn Menesboadn ue fu egienci ao ent, intesiade com a qual lag tnt valor do mem eo do dni domina mits Vers repeseage jai, Na Ingle, no tmp dos angles _ -=s=seseaeaeN tase o re. Er eglmente nado er 2700 xeln. Ms con soma, nas cicnstaneia daquel poe, ea sempre claims posse de ei. Seu sentido ea rau yaa substi em ert medi, o set toda sua ain deveriam ser von dios como esr, a menos nda que deren se denen cnt um intrpree des osseo grande ques more Poderiacompenséla~ una simples dria co moedal (.). Partin no eit, no soment oni que stor nena mee de home, mas tambo homem ea "o medida do diet. A soma que se deve pagar pele aust no de um individu se apresenta como unidade menetia wos dais easos. Segundo Grn, pata comport shen que zr mis ou menos: tate ot fei dev portato repro, Oro solidus: ‘eta a terifa simples segundo a qual se calculavam as mul- tas no dito conauetidindo, Porno se sips que palit shilling, na Wgica do sentido attibuldo & skillan, 0 designava, ‘como “a unidade penal”, O valor do ser humano, portanto, apare- ce aqui como base de classificago do sistema monetirio ¢ como bose de fixagio do valor monetirio (G. Simmel. Filosofia do ai nkeiro [1900]. Paris, PUF, 1987, p. 445-446). Quanto a Von Wiese (Sistema da sociologia, 1924-1929), fil discipulo de Simmel, mantém mais firme ainda que Vierkandt 0 ‘rumo tedrico do seu mentor, A semelhanga de Simmel, Von Wiese aborda 0 campo de todas as interagdes humanas (das mais fegazes as mais estaveis, daquelas que aproxima aquelas que separa. mas com a firme persuasio de que é possivel uma leitura homoge- nea desses fendmenos, Para ele, com efeito, todo processo social (P) éaresultante de comportamentos individuais (11) em uma site agdo dada (8). A anélise sociol6gica pode entio condensar-se em ‘uma curta férmula: P = (H) x (S). Ou seja, decompondo cada um dos dois termos da direita: (P) = (Ix E) x (U x HI), onde I dessigna as tendéncias hereditérias que governam em parte as atitules de tum individuo, E as experiéncias passadas deste mesmo individuo, Uo meio natural ¢ HL, enfim, a atitude dos outros individuos. ‘Anda que submeta a prova dos fatos 0 seu esquema, Von Wie- se no consegue impedir o lento desvio da corrente sistemaitica Desse declinio cientifico os trabalhos de Othmar Spann soa me- Ihorilustragdo. Teérico, se nio ide6logo, Spann infere @ ordem so- cial de uma hierarquia dos valores. Elabora assim, tomando por modelo a cebola, uma representagdo da sociedade cujo vértice & constituido por uma elite detentora dos valores mais nobres, © cor po intermediario composto de wm grande niimero com os valores inferiores e a base formada por um conjunto roais restrito de indi- viduos ligados por valores negativos. Adversirio do individualis- ‘mo modemo, Spann se esforga para demonstrat que 0 poder deve raturalmente caber Aqueles que se acham impregnados dos valores superiores. Este poder deve ser, além disso, um instrumento de do- Se rminago cuja exceléncia se manifestaré com a construgao de um Estado forte e verdadeiro (0 verdadeiro Estado, 1921), 3.4, Sociologia e histéria A despeito de uma excessiva preocupagao formalista, a socio logia alema soube produzir interessantes e sutis anilises s6cio-his- toricas referentes aos tragos caracteristicos das formas de organi- zagdo do capitalismo modemo (as classes € 05 estratos sociais, os partidos politicos, o conhecimento...), Além de Max Weber, mui- tos finalmente enveredaram por esse catninho (Thurwald, Gei- ser, Kracauer, Blias..). E 0 que se da, por exemplo, com Joseph Schumpeter (1883- 1950). A tese principal deste austriaco, autor de obras sobre o im- perialismo e as classes sociais, € que 0 capitalismo seria infeliz- ‘mente condeniado a longo prazo por um processo crescente de roti- nizagdo e de burocratizagao (Capitalismo, socialisma e democra- ia, 1942), Explorando 20 contrério um veio marxista, Franz ‘Oppenheimer (1864-1943) denuncia por seu lado o carter opres sor do Estado, ator partidirio no seio de uma luta de classes cujo desafio maior & a apropriacdo das terras (Sistema da sociologia, 1923-1933, 4 vol.). Nesta mesma perspectiva sbcio-histérica de- vese lembrar igualmente 0 nome de Werner Sorabart (1863- 1941), co-fundador com J. Schumpeter e M. Weber do Archiv fir Socialwissenschaft und Socialpolitik (1903), primeira verdadeira grande revista de ciéncias sociais da Alensanha, Tal como Weber, ‘mas set compartithar as analises deste ditimo, Sombart estuda as determinantes sociais e culturais da vida econdmica {O capitalis- ‘mo moderno, 1902-1927; O burgués, 1913). Vale a pena, enfim, mencionar Ernst Troeltsch (1865-1923), um dos melhores especialistas da sua época em historia e sociolo- aia da religido crist@ (“A doutrina social das igrejas e dos grupos ctistios”. Ins Archiv fiir Sozialwissenschafi und Sozialpolitit, 1908-1910; O Historicismo e seus problemas, 1922). De modo se- relbante @ Max Weber, este professor de teologia se mostra pati- cularmente interessado no dilema com que se defronta um cristio perante a exigéncia dos principios religiosos (pureza, rentincia...) em um mundo terrestre considesado impuro eno qual énecesstirio, apesar de tudo, viver. Para resolver esta dificuldade, explica Tro- cltsch, 0 cristianismo inventou trés tipos de instituigdes (a mistica, aseita, a Tgreja), que constituem etapas sucessivas no processo de “sotinizagao do carisma” (Weber). ‘A mistica vai responder ao imperative de puteza eriginds uma forma radical de ruptura com o mundo dos homens. Ela favorecea relagiio direta entre o cristio e Deus no quadro de grupos pouco :i- gidos e informais. A seita, segundo tipo ideal, é uma pequena co- ‘munidade igualitéria & qual os memibros se uniram voluntariarsen- te, Privilegiando a busca da perfeigao interior, ela renuncia igual- mente a qualquer compromisso com o mundo. A Tgreja, enfimn, ¢ uma orgunizaglo flndamentalmente conservadora que tem como projeto a dominagao das massas. Trata-se de uma instituigo hic- rarquizada que se atribui a missio de superar a contradigdo entrea injungao religiosa c a atividade material dos figis: oferecendo-Ihes a graga ¢ a salvagao, a Igreja purifica suas ovelhas das impurezas do mundo, Desta maneira se afirmam tanto a sua influéncia real sobre um nimero importante de seres humanos como a sua manei- 1a de fazé-los reconciliar-se com o mundo, 4. A contribuigio de Vilfredo Pareto Alem da Grd-Bretanka, da Franga ¢ da Alemanha, a sociologia conquista, na virada do século, outros paises como a Bélgica (com ‘muito proudhoniano Guillaume de Greef) ea Tilia. Neste iltimo pafs, a filosofia politica se ilustra primeiramente com os trabalhos do marxista Antonio Labriola ou de seu discipulo mais heterodo- x0, Benedetto Croce. Mas seus trabalho levam a marca de um for- te antipositivismo que os afasia das ciéncias sociais. A criminolo- oe | gia (Cesare Lombroso, Scipio Sighele) se mostra ais préxima da sociologia, enquanto vai caber quase exclusivamente a Gaetano Mosca, Roberto Michels ¢ sobretudo Vilfredo Pareto o métito de ter trabalhaco em favor desta tiltima disciplina, iL = Genese: carom noel 4.1, Aga légica e acdo néo-logica Autor de um alentado Tratado de sociologia gerat (1916), Pare- to se dedicou as ciéncias sociais com o intuito explicito de enrigue- cer esquemas de andlise econémica centrados exclusivamente na fice de individuos racionais Baliza 19), Persuadido do valor cient fico das ciéncias sociais, Pareto refuta todo postulado determinista,E- le pensa, ao contrério, que “os fatos sociais sto mutuamente depen- dentes” e que a composigZo dessas forgas miltiplas gera (des)equili- bbrios econdmicos ou sociais, Debaixo da pressdo dos interesses, dos sentimentos, das idéias.., estes equilibrios se fazemee se desfazem: cis 0 principio que governa a evolugdo social. Baliza 19 VILFREDO PARETO (1848-1923) Pareto possui esta peculiaridade notivel: ele é um pioneiro no 86 em sociologia, mas também em economia. Nutride de mecéniea racional e de darwinismo, este engenheiro de formaga tem por am- bigdo, no comeco do seu trabalho, mostrar que “o desenvolvimento da sociedade humana se realiza segundo leis fxas ¢ determinadas ‘como aquelas que a fisica nos mostrou”, Ele defence, neste sentido, ‘um méiodo légico-experimental. Tendo sido objeto de suspeita du- ‘ante muito tempo, visto que apoiara o nascente fasc'smo itaiano, Pareto segue umm percurso intelectual mais complexo, Adere, desde ‘8 seus primeiros trabalhos sobre a politica eccndmica, a uma forma de ideologia liberal antiprotecionista ¢ pacifista. No entanto, Pareto vai de boa mente reconhecer {em Os sistemas soeialistas, 1902-1903) uma real utilidade do socialismo. A seu ver, esta doutrina “facilita a organizagiio cas elites que suygem das classes inferiorese é, em nos- 180° 8 época, um dos melhores instrumentos de educaglo dessas clas ses”, Pareto se mostra, porém, hostil a0 solidarismo que ele consile ra como uma “vaga e nebulosa concepgiio ética”. Embora Pareto te- ‘nha gozado de certo sucesso internacional (particularmente na dé da de 30 nos EUA), suas intuigSes foram muito menos levadas em cont pelos socilogos. C Pareto que toma posse em Lausanne, em 1893, da cétedra de economis vacante com a saida de Walras, vai sempre constituirem todo @ easo uma referéncia importante de and lise econémica dominante, Influenciado primeiro por Walras, 0 au- tordo Manat de economia politica (1906), rompe progressivamen- tecom este ltimoc inova enunciando uma lei estatisticasobrea clis- tribuigo da rendae, sobretudo, formalizando os problemas de valor com 0 auxitio de cutvas de indiferenga, Para efetuar uma nitida cisio entre economia ¢ sociologia, Pare- to ope aciio ogica e acc nfo-l6gica. A agto logica é aquela que se utiliza de meios adequados aos fins que se fixa¢ tem toda achasee de alcangar a meta efetivamente visada, Os trabalhos artisticos, ci- ‘enlificos, bem como as ages estudadas pela economia politica oua «estratégia militar se inserem nesse registro. “As agées ligicas — pre- cisa Pareto ~ so muito nnmerosas nos povos civilizados”. A. ago 1o-logica (0 que no quer dizer il6gica) se da quando um individuo que mobiliza meios inadequedos a0 fim visado (dangar para fazer cair chuva, por exemplo) on que no pode, a despeito de esforgos que se poderia considerar racionais, estabelecer uma correspondén- cia entre desejos subjetivos e resultados objetives. Deste modo, mesmo que nio seja légica, nem por isso uma age ¢ menos provida de uma certa eficdcia. Pareto constata, enfim, que, na medida em que a razio nao ¢ 0 tinico motor de nossas motivagdes, mas convive ‘cam as paixdes, com os sentimentos, com a tradigao... 0 seggundo tipo tem “uma grande parte no fendmeno social”, A andlise precisa das agées ndo-logicas supde que se separei, de uma parte, a ago enquanio fundada sobre crengas precisas (&0 dominio dos residuos) e, de outra parte, os argumentos mebiliza~ “181 os para justificara ago nio-légica (domfnio das derivagies). Os residuos correspondem a manifestago dos instintos que se encon- tram enterrados em todo ser humano, Em seu Tratado, Pareto vai clencar seis tipos de residuo (0 instinto de combinacio, a persistén- cia dos agrezados, a exteriorizagao dos sentimentos, a sociabilida- de, a integridade dos individuos e de suas dependéncias, 0 residuo sexual). As derivages, que variam segundo as épocas ¢ as cultue ras, constituem uma espécie de véu que serve para justficar as ages nio-logicas e Ihes dar uma forma logica e coerente. 4.2, Mudanea social e cireulagéo das elites Analisando a mudanga social, Pareto mostra, em primeiro lugar, que esta nunca é nem linear nem progressiva, Nem é tampouco ori- centada para um fim ltimo, A evolugao das sociedades néo poderia, portanto, dar margem a qualquer tipo de previsio, Deve-se apreen- der a mudanga social em termos de oscilages, de movimentos on- dulatérios. Assim procedem, alids, os economistas que, ainda hoje, raciocinam com o auxilio de ciclos, Em matéria de erengas, observa por exemplo Pareto, pode-se constatar, de maneira similar, ondas sucessivas de f8 e de incredulidade, Este retorno ao mesmo exprime perfeitamente bem a permanéncia dos residuos ¢ as mudangas das derivagdes: na dtice paretiana, a fé socialista ndo é assim seno uma nova forma de f8 religiosa. Bo modelo que Pareto submete a prova para produzir uma teoria das elites (Texto 38). Texto 38 Parero ~Revolugio e circulagio das elites Caso se quisesse indicar, em poucas palavras, as diferengas que hi entre. Estado social antes da Revelugio Francesa(M) eo estado atual (N), dever-se-ia dizer que consisiem principalmente ‘emums predomindncia dos intetesses econdmicos emuma muito maior intensidad: da circulagao das elites. Doravante,a politica extra dos Estados &quace exlusivamente eeoaémica ($3228), ¢ a pliteeinterna se redu-acsconfitos econdmicos. Por outo fadovsalvo um mimero pequeno derestigbe, na Aleomaha ema “Ausra, nfo 56 desapareceram (odes 0s dbsticulos&circulasdo ddoscltgs, mas ainda esta se ternou efeivamente inten, eras to apoio da prosperidadeesondmica. Hoje, use todos aqueles Ge ponstem en alo grav os esiduos da primeir clase intine {bts sombinagdes) esabem demonstra aptidGes nas ats, na indintsa, na apieulur, no comérco, na constiuigto de empre= fs naeeitas, honests ov desonestas, tapnceando com oS bons produtores de poupang,nahablidae pare obira autor- tags deexploraroscidadiosmencshabildosos, tapas pli- Gris proepesalfandepirias ou outas, as favores Je toda e- ple, exes com certeza, a menos cue sri algum estanho pe- algo, nfo somente vio Se eniquecer mas utéobtr honasepo- orem sua, aro pate ds clase governante(.). ‘Acizculag das eis, hoe, fiz entrar na classe govermante um grande némero de pessoas que destoem a riguezi, ms elt fazenrarat um némero nair ainda de pessoas que aproduzem. ‘Temosai uma prova certssra de que a ago destsitimos tera vantage sobre dos primis, dao queaprosperidide econd- nts dos povos eiviizadosaumentou enormemente. Ne Fransa, depois de 1854, no tempo da febre das construgées de ferrovins, diversosfinancistas pouco honestos se ensqueceram e destui~ faim prndes somas de riqueas; mas somas incomparavelmente tnolores de riguzas foram produzidas graas is erovis, © o1e- Fullad final da operag foun grande atmento de prosper Gepario pais. Nilo cabe aq pesquisa se tera so possiel ob terimalment poupando as dexpess que custramos paresis fi- ‘hiceto polices e outs, ratamos de movimentos res, node tmovimentos vitals; descevemos agulo que ecore € ovorre da, fo queremos iemaslonge (V. Pareto. Trarado de socolo- singer! (1916). Genéve-Pacs. Dior, 1968, p. 1501-1502). Antes dele, ojurista italiano Mosca (1858-1941), autor de Ble. mentos de ciéncia politica (1896), chamara a atengio para o card tor organizado das elites no seio de todas as sociedades que tinham alcangado um dado patamar de desenvolvimento, As elites for- ‘mam um grupo minoritirio que detém o poder no seio da socieda- de, Para ustificara desigualdade politica, sabem aselites, por miil- tiplos artficios, manipular os dominacios, Os lagos de parentesco bem como os valores € 0s interesses comuns mantém a rede das elites. Ainda que esta rede no seja homogénea, constitui apesar de tudo um efreulo restrito, um niicleo duro que determina 0 destino das sociedades. Embora o tenia negado, Pareto & grandemente devedor desse esquema de analise, Para ele, a despeito dos discutsos democrati- cos (derivagdes), a sociedade no escapa a realidade do residuo ‘que € a cist entre governantes e governados. As elites, aquelas que sao destinadas ao poder, t€m como elemento comum pertencer a0 conjunto de individuos que demonstram, pelo seu talento ou pelo seu trabalho, uma competéncia superior média, Pareto constata que as elites vio perpetuamente se substituindo umas as outras no comando da sociedade, Esta circulagio assegura regular a ascen- so ao poder dos melhores, que assim garantem o equilibrio ¢ @ ‘mudanga social. Segundo a lei da ondulagao, uma elite se esgota € depois passa 0 bastdo do comando a outra: As aristocracias nfo duram... Sejam quai forem as causas, € incontestivel que depois de eevto tempo ‘las desaparecera. A histiia é um cemitério de aris tocracias (Vilfiedo Pareto. Trataio de soctologia ge- ral, § 2053), Em virtude desta teoria, pode-se compreender que nas revolu- ies se processa a substiticao de elites antigas por elites novas, procedentes das classes inferiores. Este esqueme permite a Pareto descrever a tendéncia declinante-na qual se sitna a burguesia euro- péia da sua época bem como a ascensio concomitanre (da qual ele desconfia) de outras elites oriundas do seio oper Com isso, Pareto se amargurava ainda mais ae pensar que tinka sob os olhos uma burguesia ignorante e passiva diante desta “fase descendente da liberdade ¢ ascendente da organizaco”. 5, Nos Estados Unidos, 0 nascimento de uma sociologia mais pragmatica Precedida pelos trabathos de antropélogos (Lewis Henry Mor- gan, Franz Boas), que levam a termo uma ciéncia centradaem ti- pologias de raga, a sociologia nasce nos EUA, em um pais em ple- no crescimento econdmico e urbano. Os temas da cidade, da. imi- ‘ragio, dos guetos, da aculturagio (choque entre culturas difezen- tes), da estratificagfo... ocupam o lugar central nas primeiras refle- xGes desta nova cigncia, Deste modo, muito mais que na Europa, ¢ sob o impulso de pioneiros como Lester Ward, a saciologia vai Jogo cair diante dos encantos de uma disciplina cientifica explici- tamente consagrada a esclarecer as politicas reformistas. 5.1. As condigdes do progresso ‘Como disciplina auténoma, a sociologia americana se afirma na titima década do século XIX, Em 1895, comeca a cirtulas 0 American Journal of Sociology. William Sumner (1840-1910) &0 primeito professor catedratico de sociologia, a partir de 1876. E também o autor de Folkways (1906), obra colorida de spencerismo que pretends fundar uma ciéncia atenta aos costumes, #08 W808 € 4 ‘moral, Em 1892, gragas a um financiamento privado, funds-se na Universidade de Chicago o primeiro departamento de sociologis, sob a diego de Albion Small. Se outras universidades logo imi- ‘tam — Columbia, com Franklin Giddins e, bem mais tarde ainda, Harvard, com Pitirim Sorokin~ éa de Chicago que fixa o ritmo da Sociologia nascente. E logo vem o sucesso. No inicio do século XX, adisciplina co rheve um desenvolvimento sem qualquer comparacdo com os pai- ses europeus: mais de duzentas instituicdes de nivel superior se consagram ao seu ensino, Até os anos trinta, o apoio financeiro do Estado, de grupos privados (Fundagio Rockfeller} ede comités ¢ associagdes (sobretudo religiosas) favorece o desenvolvimento de uma sociologia que vai passando progressivamente de preocupa- es moras a uin maior interesse pela cientificidade. No plano teérico, a nascente sociologia americana é sobremo- o influenciada por uma parte da sociologia europtia, aquela de {ato menos estabelecida no plano académico (Darwin, Spencer, Simmel, Tarde...). Deste modo se encontram preocupagies mi- crossociologicas, amplamente estranhas a um Durkheim, nos tra- balhos realizados por Charles H. Cooley ¢ por George H. Mead (Balizas 20 e 21). Certamente, a verdadeira novidade introduzida pola sociologia americana ndo é realmente, nesse comego de sécu- lo, de ordem teérica: seu ponto forte — como o demonstram os tra- balhos fundadores da escola de Chicago~ é constituir um cadinho onde se vaio elaborar métocios de pesquisa empitica, sempre usa- dos até nossos dias. $.2.A escola de Chicago ou 0 desenvolvimento da ecologia urbana Desde a década de 1910, muitos pesquisadores do departamento de sociologia da Universidade de Chicago tém como trago comum uma referéncia metodoligica que tende a privilegiar 0 estudo de campo. A Tigo dos dads estatfsticos nfo é também desprezada: é 0 que comprova a presenga, desde 1927, de W. Ogburn, um adepto da dlémarche quantitativa. Mas também existe uma tendéncia forte em todos aqueles que reivindicam urna démarche antropolégica com base na monografia, ¢ cujo objetivo & apreender in situ a dinamica das interagdes sociais. Essa tendéncia metodologica vai beberar-se Giretamente na filosofia pragmatista americana (William James, John Dewey), doutrina que confere as idléias um valor acima de tudo instrumental: verdadeiro 6 aquilo que ¢ confirmado pela experién- cia, aquilo que produz conseqiiéncias satisfatrias. Baliza 20 Critica instituefonalista e sociologia da distingao (Thorstein Veblen, Edmond Goblet) ‘Thorstein Veblen (1857-1929), filho de camponeses da Norute- Bn, que emigraram para os BUA, foi sempre relegado & margem do sistema de reconhecimento institucional norte-americano. Seu trae batho, principalmente a Teoria da classe ociosa (1899), nio Ihe vale, lids, notoriedade nenhumaa nfo ser depois da morte. Soba ine Alugncia de Darwin, Veblen rejeita simultancamente tanto a ecomo- ‘mia marginalista como o marxismo. Vivamente impressionado pelo ‘eontraste entre o trabalho do agricultor ¢ a atividade burguesa que autoriza o enriquecimento por simples transagSes, Veblen considera que ha um dualiseno no homem: ele abriga em sium instinto artesa~ nal e um instinto predatério. O primeiro favorece a domesticagl ra- cional da natureza, evitendo todo desperdicio; o segundo impele & espoliago dos outros. Esta segunda tendéncia é o fndamento da nova classe dominante: a classe ociosa, @ classe que afirma a sua su perioridade social pelo n-trabalho. O consumo, infere dai Veblen, ro fem como tinico lve a aquisigao. A seu ver, a teoria evondmica tradicional esquece que, mediante a riqueza, 08 setes humanos bus- ccam também ganhar a estima eo reconbecimento sociais. O dci0 € 0 assim chamado “consumo canspfeuo” dio testemunho da capacida- depecuniéria, para uma fatia exclusiva da sociedade, de levar a vida na ociosiddade, Na tradigo vebleniana, que inaugura aquilo que hoje se conece como uma saciologia da distin, deve-se evocat 0 trabalho de Gio- blot. Este fogico francés, condiscipulo de Durkheim na Escola Nor. ‘mal Superior e profesor de itosofia, obsexvow a burguesin provincial na jungio do século XIX com a XX, Em sua obra 4 darreira eo nfvel (2925) ele mostra que, no tendo nenhum meio material para se afir- ‘mar como classe social de pleno direito, estes burgueses deliberads- _mente optaram por uma estraligia de distingo, Deve-se compreender assim a moda burguesa: como bareira, cla define atrbutos especifi- cos (modo de se vestir, mancira de falar.) traga fronteiras entre bur- ueses © no-burgueses; como nivel, faz desses marcadores sociais 2 ‘condigdo minima para a definicio de uma identidade come (pouco importa, por exemplo, a maneira de falat 0 latin quer 0 daminem perfeitamente ou mio, os burgueses constituer um grupo que se pre= tende distinto porque todos os seus membros falam laim.,), As pesquisas de William I. Thomas ¢ Florian Znaniccki sobre a comunidade camponesa imigrante de Chicago (O camponés polo- nés na Europa na América, 1918-1920) inaugusam esse novo programa de trabalho sociolégico, Recorrendo a ui material bio- grafico consegiiente, eles elaboram uma tipologia das formas pu ras da personalidade social (Texto 39), Thomas e Zrsanieckidistin- ‘guem trés tipos principais:o filistem (conformista, submisso & tra- Baliza 21 Nos fundamentos da sociologia interacionista americana (Charles H. Cooley, George H. Mead) Do outro ado do Antico, aperspectivainteracionista que se de- senvolve no principio do século oferece o ensejo para se refetir com novo vigor sobre as relagdes microssociais Este € 0 caso, por exer- plo, de Charles H, Cooley ((864-1929), autorde A natureza haan € «@ ordem social (1902), € de Organizagao social (1909). O principal porte de Cooley reside em uma distingdo, agora famosa, entte grupos primirios e grupos secundisios. Os grupos primaios (camo a familia) ‘congregatn individuos préxims, ligados duredouramene uns aos ou ‘ros por valores comuns e forte diviso dos papéis. Nesses grupos se estabelecem as relagDes mais tntimas entre individu esociedade, Ji 0s grupos secundérios, como sedi em uma empresa ou em qualquer ‘outro tipo de organizaydo, vive na base de relagdes mis fonais © ‘mais frouxas. Ainda que pretenda elaborar uma teori sobre os gru- os, mesmo assim Cooley nfo estabelece ua hierarquialigia ene o individuo e a sociedade. Pars cle, “self and society are twin-born” Co individuo e a sociedade sio gémeos"). Inspirando-se amplamente no amigo Cooley, Mead (1863-1932) 0 segundo autor que exerveu forte influéncia sobre a tradigéo de So- ciologia interacionista americana. Autor de O espirito, o eu ea socie- dade (1934) (artigos compilacos € publicados depois de sua morte), Mead volta a atengaio para a socializagdo do individuo por intesgao ‘com os outros ou, empregando a terminalogia do priprio Mead, para 1 formagii do eu através do interedmbio com a comunidade. Nesta perspectiva, a connunidade toma a forma das classes sociais de perten- 5, dos subgrupas “concretos” (partidos, corporagies) ou “abstratos” (Gevedores). Na interagio, o intercdmbio — que toma a forma da Lin guagem, dos gestos e dos simbolos ~ acontece com aquilo que Mead, designa como “o outro generalizado”, tipo ideal que condensa 0 con- junto dos valores e das normas de comportamento que a comuniiade observa e que servird de guia para a agdo do ego. 0 desenvolvimento da erianga se realiza segundo esse esquemna. Por sua eapacidace progressiva de desempenhar 0 papel do outco ¢ analisar sua conduta deste mesmo ponto de vista, 2 erianga pode ad ‘uiriro uso consciente e completo da comunicagao com 0 outro. Nou- tras palavras, 0 intercdmbio &, a0 mesmo tempo, um proceso de ‘temalizagio das normas e um moclo de auto-regulagao da comunida- “Um homem ~ esereve Mead — possui uma personalidade porque ppertencea uma comunidade em seu proprio comportamento. Utlizaa Tinguager como © meio para receber sua personalidade; mais @rde, através do processo de adagto dos diversos papéis que todos 0s outros fornecem, termina, enfim, adotando a atitude dos membros da comu- nidude”. Simetticamente, deve-se compreender a sociedade como es- trutura emergeate, camo produto de um feixe de agies comunicscio- nais entre individuos orientados uns para os outros. cdo social), 0 boémio (de cariter particularmente instivel) ¢ 0 ‘riativo (reflexivo e aberto a mudanga). Devem-se também a Tho- tmas reflexes particularmente estimulantes sobre o itteresse que 0 socidlogo pode ter em analisar nao simplesmente a situago social } | objetiva mas também a maneira como esta € interpretada pelos proprios atores. De tal sorte, “se os seres humanos defintem as suas situagées como reais, elas sto reais também nas sas conseqiién- ins” (A erianea na América, 1932). ‘Texto 39 ‘THOMAS — Tres tipos de personalidade A nitidez des atirudes que compdem um cardter e a corres: pondente esquematizagao dos dados saciais ne forma como um individuo organiza a sua vida, dio margem, todavia, a um leque ‘muito amplo to que tange a uma questio fundamental; ¢ exten- sito das possibilidades de evolueto ulterior que restem ao indivi= ‘duo depois de sua estabilizagio. Isto depende de natureza das atioudes apresentadas pelo cariter, das estruturas de organizagio ce também da maneira como todas 2s dus so aproximadas ¢ sis- tematizadas. Tr8s tips de casos podem ser aqui definidos, 0 conjunto das atitudes que constituem o eariter pode ser tat que inmpega até a formagio de uma nova atiuude em certas condi- ces de vida, porque as atitudes conscientes do individuo adquiti= ram tamanha tigidez que ele se tomou sersivel apenas a uma cete- ori de infludneias ~aquelas que formam a parte mais permnanen- te do seu meio social. As tinicas possiblidades de evolugio que ‘estam, portant, a0 individuo, sfo ou as entas mudangas que vai sofrer com a idade ¢ que o tempo vai trazer ao seu meio social, ou lum abalo tio radical de condigdes que destrurd ao mesmo tempo ‘08 valores aos quais se havia adaptado ¢, cam muita probabilida- de, sua prépzia personatidade. O “fiisteu” ¢ a eneamagaio literat dessetipo de personalidade. A este se optic 0“boémio",cujas pos- sibilidades de evolugo ndo se acham fechas pela simples razio ‘que seu cariter permaneceu em uma fase de formagie inacabada. guns aspeetos do seu eariter permanecem ainda no estidio pri- ‘mirio €, mesmp que outros se tenham talvez inteleetualizado, ‘continua sem nenhuma rela¢io entre sie nfo foram um con junto estavel e sistematizado; isto milo exclui todavia a formagio de novas atitudes, 0 que deixa ois ‘luéncias. Nos antipodas desses dois tipos, pode-se encontrar wna terceira categoria de individuos cujo cardter se estabilizou e estru.- trou, mas que apresenta a possibitidade e mesmo a necessidade de uma evoluso, porque as préprias atitudes conscientes que © comp0em apresentam uma tendéncia para « tmudanga, reguleda por projetos de atividade produtiva: o individuo permanecers berto 2 todas as influéncias que forem conformes i sua evolueto preconcebida. Este & 0 tipo que representa o individuo criativo (W-I. Thomas & Znaniecki. O camponés polonés na Europa ena América [1918-1921]. New York, Dover Publications, 1958, . 2 [traduzido om P. Bimbaum & F. Chazel. Théorie sociologique, Paris, PUF/Thémis, 1975, p. 45-46). Robert E. Park (jornalista que entra na idade madura na univer- sidade mas traz-comorheranga de sua experiéncia profissional an- terior um gosto constanie pele observagao direta) e Emest W. Bur- ‘gess se inscrevem na esteira hist6rica desses trabalhos, Fiéis a Ligi- camicrossociol6gica de seus predecessores, Park ¢ Burgess desen- volvem, na sua eélebre Iniroducao a ciéncia da sociologia (1921), uma comparagdo mecanicista. Sugerem que, guardadas as dev ides proporedes, pode-se compreender o sistema social — 8 imagemn do cosmos ~ em termos de elementos ¢ forcas. Mas o trabalho de Park e Burgess repousa principalmente so- bre um conceito explicitamente tomado da ecologia animal, Desta diseiplina e de Darwin, Park (que foi aluno de Simmel) vai conser- ‘yar uma idéia-forga: em um trecho limitado de espago existe um conjunto equilibrado (ou nao equilibrado) de ligagoes entre ele- mentos. A semelhanga do meio natural, é necessario conceber uma comunidade humana como uma mistura de forgas enire reino hu- ‘mano ¢ reino técnico, Este o sentido de seu estudo classico sobre a cidade (RE. Park, E. Burgess e R. Mckenzie, 4 cidade, 1925) (Texto 40). Interessando-se por Chicago, cidade entio em pleno crescitento demogrifico, mostram os sociélogos como a chegaca de ondas sueessivas de imigrantes das mais diversas etnias (ale- mies, italianos, poloneses, chineses...) foi determinante para a ‘ocupagio do espaco, A cidade se constréi segundo o modelo de citeulos concéatricos, conjunto em cujo seio cada anel, ou arco de anel, possui vigorosa homogeneidade étnica e social: 0 centro ut- bbeno (0 loop), zona de transigiio onde moram os imigrantes, os ‘mais pobres, baitros proprios dos trabalhadores americanos que ganham melhores saris Espago de concoréncia e de comunicagao, a cidade se recom- Oe no ritmo incessante das novas instalagdes e expulsdes, das as- ‘censées profissionais... Por isso, ainda que produza mais racionali- dade e planejamento, a cidade gera ao mesmo tempo “desorgani- zagio". A imagem de Chicago, a instabilidade do equilibrio (de da particularmente d heterogencidade entre os diversos bairros ¢ & mobilidade residencial dos individuos) toma-se fonte de segrega- iio, de delingiiéncia e de marginalizasio. Define-se, enfim, a cidade em oposigio as sociedades locais tra- dicionais. Novamente aproximando-se nisto das anilises de Sim- ‘mel, Park enfatiza a complexidade, o anonimato, o cardter impes- soal e superficial dos contatos que caracterizam © mundo urbano. Estudando o gueto, Louis Wirth (O guero, 1928; “Urbanismo como way of life”, American Journal of Sociology, 1938) se move neste ‘mesmo conjunto de preocupagdes. Wirth insite sobre impacto de- cisivo da sociedade urbano-industral ¢ suas seqiielas: despersonali- zagiio, maior diferenciagdo social e substituiglo dos contatos primi- rios (enffaquecimento dos lagos de parentesco, desaparecimento da vizinhanga...) em prol dos contatos secundérios (adesfo a grupos formais de interesse) constituem, para este diseipulo de Park e Bur 088, 0s tragos caracteristicos do modo de vida urbano. jana virada do século © A cidade segundo Robert E, Park. A cidade, na ética deste artigo, & algo mais do que uma sim— ples aglomeragiio de individuos ¢ de servigos coletivos: russ, iméveis, rede elétrica de iluminaggo, bondes, telefones ete; & também algo mais que uma simples constelagdo de instituigdes © ‘egos administrativos: tribunais, hospitals, escolus, delegacias ‘de policia ¢ corpos de funcionsios de todas os tipos. A cidade & acima de tudo um estado de espirito, um conjunto de costumes © tradigSes, de atitudes e sentimentos organizados, inerentes a ¢S~ ses costumes e transmitidos com essas tradigdes. Nowtras pala vras, @ cidade no é simplesmente um mecanismo material © ‘uma eonstrugio artificial. Ela esta implicada nos provessos vit ‘das pessoas que @ compdem: & um produto da natureza ¢, parti~ ccularmnente, da natureza burmana (..) ‘A cidade foi rocentemente estudads do ponto de vista da sia, geografia ¢, mais recentemente ainda, do ponto de vista da sua cecologia, Dentro dos limites de uma comunidade urbana ~e, de ato, de qualquer drea natural de habitat humano ~ atwam forgas {que tendem a produzir um agrupamento ordenado ¢ caracteristi~ ‘co da sua populago e das suas instituigdes. A cigneia que procu~ ‘1 isolar esses fatores ¢ descrover as constelagses tipivas de pes~ soas e instituigbes produzidas pela sua convergéncia damos © rome de ecologia humans, em oposigo & ecologia vegetal ou ‘animal. (Os transportes eas comonicagGes, as linhas de bonde e a tele~ ‘nia, os jomais ea publicidade, 0s arranha-céus ¢ 0 elevadores ~ todlas essas coisas que tendem, de fato, a acentuar ao mesmo tem po a concentragdo ea mobilidade das populagdes urbanas—sioos fitores prineipais da onzenizagdo ecologica da cidade. ‘A cidade nfo é, no entanto, apenss uma unidade geogrifice © ecoldgica: ¢ ao mesmo tempo una unidade econdimica. A orga~ nizapio econdmica da cidade tem como base a divisfio do traba~ lho. A multiplicagda dos empregos e das profissbes no seio da populaglo urbana é um dos aspectos que mais dio nt vista eos menos bem compreendidos da moderna vida urbana, Neste sen- tido, nada nos proibiria de imaginar a cidade, isto é, os lugares, os seres humans e todas as engrenagens e os equigamentos ad- ministrativos que Ihes esto ligados como um todo organico: uma espécie de sistema psicofisico no qual, através do qual, os interesses privados e politicos encontram uma expressio nao s0- mente coletiva, mas organizads, ‘Uma grande parte dos elementos que consideramos em gerel ‘como constitutivos da cidade —seus estatutos, suas organizagdes formais, seus im6veis, suas vias férreas urbanas, ete, so ou pa- recem ser simples artefatos. Mas todos esscs elementos nio so por si mesmos senfo servigus, equipamentos acessérios ¢ s6 se foram integrante da cidade viva se e na medida em que se cham conectados, pelo uso ¢ pela vontade, as forges vivas dos individuos e das comunidades, exatamente como uma ferramen- ta mdo do homem (4 escola de Chicago ~ Nascimento da eco- fogia urbana (apresentagdo de Y. Grafmeyer & I, Joseph}. Paris, ‘Aubier/Champ urbsin, 2.ed., 1984, p, 83-84). Além da cidade, indmeros outros objetos sexo passados no cri- vvo da pesquisa assim como foi experimentada pela escola de Chi- cago. A marginalidade e a segregacio racial, por exemplo, serio estudadas em virtude desses principios que, ainda hoje, encontram ardorosos defensores entre 0s profissionais da sociologia. Emile Durkheim ¢ a escola francesa de sociologia O contetido da obra de fimile Durkheim ¢ insepardvel do qua- «ro sécio-bist6rico que ele vin surgir: o de uma III Repaiblica que ‘ptocura no apenas superar s suas incertezas politicas (a cbsessio pela tnidade nacional, a crise do “boulangismo”...), mas também resolver a “questo social” pela via pacifica edo direito. Diantede ‘um movimento operario que jamais se mosirou tio vigoroso € uni- do, os republicanos optam por integrar a classe operiiria gragas a rnovas leis sobre 0s riscos sociais (como a lei sobre os ucidentes de trabalho, em 1898), valorizara escola como um canal de sovializa- cio... 0 jovem Durkheim se mosiraa principio sensivel, sem divi- ‘da alguma, & questo da unidade politica, Mas, quando volta da ‘Alemanha em 1886, nfio consegue fugir A atmosfera politics e inte- Tectual em que 0 solidarismo adquire quase 0 status de doutrina oficial da Replica. Assim como o comprovam os seus munnero- 508 trabalhos ~ sobre a divisio do trabalho, o direito, a familia, a escola ou ainda a religido ~¢ 0 problema da integragio do indivi- duo a sociedade que ganha entio definitivamente o lugar principal na ordem de suas preocupagies. 1. 0 projeto sociolégico 1.1. Das preocupagdes morais e reformistas. ‘Nascido em uma familia judia,fitho de um rabino que perten- cia a uma longa linhagem de rabinos, Durkheim softe a influéneia da doutrina judaica que ele recebe na inféncia (Baliza 22). Embora ele depois se afaste do caminho religioso, sua anilise sera sempre influenciada pelo respeito a leie pela importéncia atribuida& forga da comunidade, A derrota em 1870, da Comma de Paris e, mais tarde, o “caso Dreyfus” (a cujo favor ele tomou partido), si0 al- guns dos fatos hist6ricos que marcam o socidlogo, agucando 0 seu receio de um despedacamento societirio e aticergam a sua firme vontade de militar pela coesio social Baliza 22 ‘Emile Durkheim (1858-1917) ‘Emile Durkheim nasceu em 1858 em Epinal (Lorena). Educado segundo os efnones da tradigo judsica, estuda o hebraico, freqiien- taaescole dos rabinos mas, a despeito de uma longa tradifo famili- far nessa matéria, niio abraga a vocagio rabinica. Seus estudes 0 le- ‘vam 4 Escola Normal Superior onde obtém a agrégation de Filoso- fia e€ colega particularmente de Bergson e Jaurés. Jovem professor de Filosofia na provincia, trabalha em uma tese (Da divisdo do tra- batho social, publicada em 1893) que inscreve sob 0 signo da articu- lagao problemitica entre o individuo ee sociedade (para am balango pormecorizado da entreda de Durkheim na Sociologia, cf B, Lacroix. “A vocagio original de £. Durkheim”. Revue Frangaise de Sociolo- _gie,n, XVII-2, abr.-jun./1976). Em 1885, Durkhefin des ruta por um ‘ano de um estigio de estudos na Alemanha, de onde rezressa com dois s6lidos artigos sobre a filosofia e a ciéncia positiva da moral alemd. Em 1887, € nomeado pelo responsivel pelo Ensino Superior (L. Liard) encarregado de cursos de eigncia social ¢ pedagogia na Universidade de Bordéus. Trabalhador obstinado, professor aplica- do, Durkkeim langa as bases de uma reflexdo sociolégica global, ali- ‘mentada inicialmente por suas leituras criticas de Comte, Spencer, Espinas, Tonnies on, ainda, Schiffle, Na dinética cientifica encar. ‘nada ent, acima de tudo, por Claude Bernatd (Ineradugio ao estu- do da medicina experimental, 1865), Durkheim segue um fio dire- {of a fandagio de uma moral secular. Definindo a sociedade segun- ‘doo modelo de um organismo dotado de conseiéneia coletiva, ele en- ‘vereda por miltplos campos que vo do estudo das formas de solics- riedade social 4 bistéria da sociologia (Montesquieu ¢ Rousseau). ‘Durkheim volta jgualmente seu interesse para a educagio e a historia do sistema educativo (ef. a este propésito M. Cherkaoui, Socializagao ‘econflito: 0 sistemas educativos ea sua histéria segundo Durkheim. In: Revue Francaise de Sociologte, n. XWU-2, abt.-jun 1976). Dur. heim segue também com mute aten¢Zo a evolugio da familia: pro- ‘cura assim estabelecer finas distingdes entre formas familiares, dis- ccemir as grandes tendéncias de sua evolugii historica, e ainds pro- por uma nova anélise do inierdito do incesto (1898). Em 1902, Durkheim substitui, na Sorbonne, um dos grandes arautos da Inici- ade: Ferdinand Buisson. Ocupa entao um posto de ciéncia da edu- cago, Nomeado professor em 1906, o titulo exato desua cétedra se transforma em 1913 em "Cidacia da Bducagio e Sociologia", Ante- riommente, no ano de 1896, Durkheim Fundara a Année Sociologi- ue, revista que congrega jovens colaboradores que iro constituir sob a sta direglo a Escola Francesa de Sociologia, Fortemente aba- Indo com a morte no fronte de seu filho André, Durkheim falece em nnovembro de 1917, De seus estudos, Durkheim conserva sempre as ligdes €0 rigor metodolégico do historiador Numa Denis Fustel de Coulange (4 cidade antiga, 1864); ¢ marcado igualmente pelo pensamento éos {ildsofos neokantianos Emile Boutroux ¢ Charles Renouvier, De Renouvier, um dos pensadores mais influentes da sua época ¢ vi- ‘vamente preocupado em fundar uma aut2ntica moral republicana (deve-se a ele um Manual republicano), Durkheim 0 tome, ais, por mestre. Abragando, também, a carreira de professor, Durkheim se inscreve no movimento de exaltagdo da escola leiga que earac~ ms Ses teriza a II] Repiblica (ef. Texto 41). A questio do casino é entio vital para os republicanos. Dela depende o futuro da Repliblica: to- dos militam por um ensino fundamental gratuite obrigatério e lei £20, programa que assume a forma de lei gragas a Jules Ferry, a par- tir dos anos 1880, Durkheim & um arauto desse movimento até 0 ponto de alguns no hesitarem em ver nele “o sumo sacerdote€ 0 te6- logo da religito civil da Terceira Repiiblica” (Bellah). Texto 44 PROST ~ Escola, um ideal republicano 'Nio nos seria possivel compreender a politica republicana, sea separissemos da corrente de opinio que acarrega A instri- ‘go constitui, nessa época, um ideal coletivo, Da mesma forma que hoje a msioria dos membros da nossa sociedade admite que © crescimento ccondmico ¢ 0 objetivo essencial da coletividad, dda mesma maneira, na segunda metade dio sécula XIX se acredi- tava na instrugao (..), Otimistas, os contemporiinens ito duvid ‘vam nem da rezio nem ds natureza, A escola aplicava am remé- dio a injustiga soca! bem como imoralidade ow d eriminalida- de, Que no povo esse confianga era meio confusa, em uma mis- tura de vontade de promocdo social e independéncia intelectual, isto éinegivel. Mas era mesmo real: nfo se duvidava que aquilo estivesse escrito nos livros fosse verdadeiro ¢ itil. O acesso a instrugdo era, portanto, de todas as maneiras, a promessa de uma vvida melhor. Esta eonviegio suscita os progressos ds escolerizagte que des- cerevemnos; cla anima ¢ movimento de opinio que se encama na liga do ensino e que serviré de apoio aos republicans; ela vai fazer ‘das leis da educagio de Ferry ¢ de Goblet leis “funcamentais” ‘Mas es repubiicenos no poder no mostrario unanimidade rnem sobre os objetivos nem sobre o método. A comisso nomea- da pela Cémara de 1877, ¢ seu relator, Paul Ber, deseaim uma lei de conjunto. Jules Ferry, ministro de 4 de fevereiro de 1879 a 14 de novemibco de 1881, a seguir de 30 de janeiro a 7 de agosto F200, de 1882 ¢ finalmente de 21 de fevereiro a 20 de novembro de 1883, promovea vitéria deum método mais empirico eataca su- ccessivamente cada ponto do programa (.... No ensino superior, é alei de 18 de mazgo de 1880 que supri- ime 0 jis mistos © proibe que os estabelecimentos livtes se déem o titulo de universidade. No ensino secundario, cujo dire- tor é Zévort, &a grande refortma dos programas de 1880 ¢ a fan- agiio das extematas femininos (lei de 21 de dezemibro de 1880). [No ensino primério, sob a direglo de Buisson, é a fundago das Escolas Normais de Fontenay e de Saint Cloud © a lei de 9 de ‘agosto de 1879 que instituem em cada departamento uma Escola ‘Normal para mogas. So também as leis de primeiro de junho de 1878 e de 20 de margo de 1883 que facilitam a construcao dos rédios escolares. Faz-se uma revisto da organizagiio pedagis ‘cae transformam-se os programas. Maso essencial da obra republicana & constituiro ensinopri- nig em servigo pablico, Af esti o sentido da total gratuidade estabelecide por uma lei de 16 de junho de 1881, da obrigegaio imposta pela lei de 28 de margo de 1882 a0 pai de familia, que devers enviar & escola 0s filos do 7 8 13 anos, anflo ser queob- tenham 0 certificado de estudos antes dessa idade. E sobrenido 0 ‘cardter leigo dos programas, corolirio da obrigagdo, institulda ‘pela mesma lei e que se traduz na prtica pela supressto do ensi- no do Catecismo. Seri, enfim, « Iaicidade dos estabelecimentos ‘escalates, cujo acesso € proibide aos ministros relipiosos pels Tei de 182, ea das funcionsrios, promulgada pela lei de 30 de outu- bro de [886 (A. Prost. Histoire de l'enseignement en France, 1800-1967. Patis, A. Colin, 1968, p. 191-195). Mais ainda, Durkheim acredita na igualdade de todos dianteda lei bem como no respeito dos direitos civis e das liberdades poltti- ‘cas, Nao é de se admirar, entio, se Durkheim manifesta algum gos- to pela ago politica e preocupacio pela pedagogia, téenica que the pparece ser um dos vetores privilegiados da integragao social. Mas, 5 201 ea 20 fundar a sociologia, Durkheim cria os meios cientificos mais apropriados para pensar e solucionara crise social 1.2, ..00 objeto da sociologia J bem cedo Durkheim mostra um interesse particular pelo so- cialismo, doutrina que ele nao abraga pessoalmente, mas & qual hi de consagrar um curso, Para sanar os problemas sociais, Durkheim defende uma outra op¢do: aquela que consiste em fundar uma mo- ral cientifica, Durlsheim decide analisar a moral (conjunto de re- gras definidas que determinam o comportamento de forma impe- sativa) situando-se a igual distancia dos preceitos moras filosoft- cos mais abstratos (como os Kantianos) ¢ dos prinefpis de outras cigncias como a biologia. [io queremos ~ escreve Durkheim ~ infer a moral dacigneia mas fazera ciéncia da moral (Emile Dur- Kkheim. De la division du travail social [prefécio & primeira edigdo). A cincia ~escreve ainda — pode ajudar-nos a encontrar o rumo em que devemos orientar o nosso comportamento. Essa grande preocupagio ~ a fundago de uma nova moral ~é tfpica das preo- cupagdes de numerosos autores contemporineos de Durkheim: 0 aleméo Wilhelm Wundt, em cujo laboratério Durkhe:m faré um estigio na sua estada além-Reno, o francés Charles Renouvier ou ainda o inglés Herbert Spencer. Os estadistas franceses dessa épo- ano constituem excecdo: também eles procuram constituir uma. moral civil e leiga. Durkheim encontra o prineipio ea fonte da moralidade na soli- dariedade social. Assim como ele expée em um livro publicado pds a sua morte (Ligdes de sociologia — Fisica dos castumes e do direito), podem-se distinguir duas grandes formas de solidarieda- Ge, Os costumes, primeira forma, remetem aos deveres que 08 se- res humanos tém uns para com os outros, pelo fato de pertencerem ni ea eco ‘aum grupo social. Neste registro, Durkheim elenca trés grupos im portantes: a familia, a corporagdo profissional ¢ o Estado. O direi- to, segunda forma, depende de uma ética mais geral. Esta iltima constitui 0 alicerce do direito a vida do direito & propriedade Mas o mais importante aqui é isto: para compreender a ldgica de funcionamento desias formas de solidariedadc (que so simples- mente sistemas regidos por regras de comportamento), convém aceitar que todo fato moral seja uma regra com sang&o, Pode-se entlo definir a sociologia como a ciéncia dos fatos sociais. Para Durkheim, 0s fatos sociais so maneiras de agir, de pensar e sentir, ixas ou nfo, que exercem sobre o individuo uma coetcitividade exterior (cf. Texto 42). Se odireito nos constrange = sugere portanto Durkheim — ha todo um sistema de regras me- nos visiveis que guiam também nossas priticas mais diversas: maneiras de vestir-se, de consumir, de pensar, de cometer suici- dio (cf. Texto 43)... Caberd ao socidlogo por em evidénciae ana- lisar esses comportamentos que constituein regularidades social- mente determinades. De maneita mais explicta ainda, 0 fato s0- cial é um fenémeno observavel e explicével com 0 auxilio de ca- tegorias (0 principio de cansalidade em primeiro lugar) e de ins- trumentos cientificos. Nesta perspectiva, constitui o objeto pré- prio desta nova cigncia que & a sociologia ‘Texto 42 DURKHEIM ~ O que é um fato social? Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam caracteris~ ticas muito especiais: consistem em maneiras de agi, de pensar ce sontir, exteriores go individuo, e que so dotadas de um poder de coergio em virtude do qual se impem ale, Por conseguinte, rio poderiam ser confundiclos com os Fenémenos orginicos, por consistirem em representagdes & ages; nem com os fendinenos psiqhicos, que nfo tim existéncia a ndo ser na conseiéncia indi- vidual e por ela. Constituem, portanto, uma espécie nova e é a oa = Fundacees = a cles que se devedare reservar aqualificagio de soetcis, Convémn ‘eles, pois esti claro que, no tendo o indivlduo como substrato, niopodem ter outro ano sera sociedade, sejaasaciedade politi ca em sua integiatidade, eja algum dos grupos parsais que ela encerr, confissiesreligiosas, escolas politica, literiias,compo- ragdes profisiomis et, Por outro lado, € apenas.a eles que con- -vém pois a palavra social sb tem sentido definico sob condigao de designar unicamente fendmenos que nfo se inlvem em ne- numa das categorias de falos j& constituldas e desominadas, Constituem, portanio, o dominio proprio da sociologia,# verda- ee que a palavra coersio ou coercitividade, pela qul os defini res, core o risco de perturbar os zelosos partidos de rn indi- Vidualismo absolut, Como professam que @ individuo& perfe- tamente auténomo, parece-hes que este sei dimsinuido toda vez ‘que se the faz. sentir que ele ndo depende apenas de si mesmo. Mes comio & hoje incontestivel que a maioria das nossasidias © de nossas tendéncias no so fruto de nossa elabaragio, mas nos vvém de fora, milo podem penetrar em n6s a nfo ser que se impo tnham. Eis todo e significado da nossa definiedo CE. Durkheim, Les régles de la méthode sociologique [1895], Pais, UR, Qua. Arige, 1983, p. 5-6), DURKHEDI~ O sulcidio como fato social A taxa dos suicidios, ao uiesmo tempo que acusa apenss li ‘geirasfluruagtes anuais, varia segundo as saciedades do simples a0 dobro, ao triplo, ao quidruplo e até mais. E portantc, em grau ‘muito mais elevaio que a taxa da mortalidade, pesscal a cada _2nipo social, pode ser considerada como uum indice ca-aetersti- co deste. Fstii mesino tio estreitamente ligada guile que hd de ‘mais profundamente coustitucional em cada temperamento na- cional, que a ordem em cue se classificam, segundo essa relacio, [Permanece quase rigorosamenie a mesma em épocas mnt dife- rentes. E 0 que prova este mesmo quadro*. No eurso dos trés pe- 204 rlodos que ai se compara, taxa de suieidios subi em tode a parte; mas nesta progress os diversos povos conservaram as fu distinciasrespectivas, Cada um tem o seu proprio coetici- ente de acleragio ‘A taxa dos sucidios constitu, entio, uma ordem de futos ‘nica e determinada; é 0 quedemonstram ac mesmo tempo sta permanéncia ea sua variablidade, Pois esa permanéacia seria rxplicével se nio se devesse a um conjunto de caracersticas stintivas, soldirias uma outras, que, malgradoaciversida~ de das circunstancias do meio, se afirmam simulnseamente. ‘ssa variabiliade alesta snatreza indivi e concreta desta, smecmas earcteristcas, dado que variam conforme a proprain- Gividualidade social. Em sum, esses dodos estatistcos expri- rem a tendéncia ao sucidn que afligecoletvamente qualquer Sociedade. No nos compete dizer atntmente em que consiste essa tendénci, se €um estado sui generis da alma coetva, dota do derealidade propria, os ela apenas representa una soma de ‘estado individuais. Emberaasprecedentes consideragSes scjarn {iicilmente coneilidveis com esta tiltmahipdtese,reservaenes © problema que ser ratade wo curso deste obra. Sea Hk o que Se Dense quanto a isto, € fa que essa tendéncia sempre exist, a Este ou auee titulo, Cada sociedade est predisposia a fomeer lm contingentedeterminado de mortes voluntéias. Essa pre posigto pode, portanto, costs o objta de um estudo especial gue compete A socoiogia (, Durkheim. Le suicide (1897), Pa- tis, PUF, 1983, p. 13 15) * CE o texto a4 1.3, As regras do método sociolégico Circunscrever um objeto de estucl particular iio basta para San- dar uma ciéncia, E necessério ainda que se tena um método ri gero- so de andlise e de explicacio. Durkheim se aplica rapidamente @ essa tarefa ¢ enuncia, em As regras do método sociolégico (1895), ‘8 principios fundumentais que devem nortear a sociologia. Para respeitar os efnones de cientificidade, deve-se em primei- ro lugar “tratar 05 fatos sociais como coisas”. Esta injunglo, as ve- zes mal compreenidida ou severamente criticada (J. Monnerot. Os fatos sociais néio so coisas, 1946), nlo quer dizer que os fatos so- ciais sejam redutiveis a fatos naturais. Durkheim quer simples- mente dizer que, assim como o fisico ou o bidloge observa “de fora” 0 seu objeto de estudo, osocidlogo deve saber situar-sea dis- tancia dos fatos sociais que analisa B coisa tle aquilo que é dado, tudo auilo que se ofe- rece, ou melhor, se impde 4 observagio (Emile Dur Ikheim. Les ries de la méthode socioegique, 1895). Esta postura metodologica ¢ ainda mais dificil de adotar pelo fato de vivermos 20 mundo social que estudamos. Acreditamos conhecé-lo e poder adivinhar seus mecanismos oeultes. E necessé- rio, de fato, desconfiar dessas impresses e “afastar sistematica- mente as pré-nogdes”. Noutras palavras, trata-se de nos desfazer- mos de nossos preconceitos, de nos libertarmos das falsas eviden- cias que nos so proporcionadas por nossa experiéncia sensivel. Deve-se, em suma, recusar considerar 0 social como transparente & imediatamente inteligivel, Da mesma forma que o fisico deve por de lado a impressiio de calor efetuando uma medida exala gracas, ao termémetro, deve o socidlogo armnar-se para aprecader 0 objeto de suas pesquisas e ser tdo objetivo quanto possivel. A fim de construir oseu objeto de estudo, deve 0 socidlogo, se- jgunda regra, isolar ¢ definir com fina preciso a categoria de fatos que se propde estudar. A maneira da biologia médica, Durkheim distingue entdo 0 “normal” do “patoldgico”, O normal correspon- de a médias ‘Um fato social ¢ normal para um tipo social determi- ‘nado, considerado em uma fase determinada de seu desenvolvimento, quando se produzna média das s0- ccisdades desta espéeie, consideradas na fase comes: pondeute da sua evolugio (As regras.., 0p. cit.) Em virtude dessa definigio, e por mais chocante que isto possa parecer, o crime é um fato social normal, Nao ha, com efeito, so- ciedade onde o crime esteja ausente, Melhor dizendo, o crime éum fendmeno necessiirio a toda vida em sociedade, pois, como Viola- ‘do de sentimentos coletivos, é expresso de um limite: oda oni- poténcia da consciéncia moral. Hi nevessidade, enfim, de outro preceito metodolégico impor- tante: explicar os fatos socizis por fatos sociais anteriores (€ nfo por fendmenos biol6gicos, psicoldgicos...). Com este intuito, deve (© socidlogo privilegiar © método das variagbes concomitanies {comparagio das variagées respectivas das varidveis estudadas), ‘Com as tegras enunciadas anieriormente, esta regra constinai uma das bases de um racionalismo positivista com o objetivo pragmati- co expresso: se apenas tivessem de ter um mero intesesse especuls- tivo, assim pensava Durkheim, suas pesquisas nfo mereceriam uma hora de esforgo. 2. As mutagdes do mundo social s primeiros trabalhos que conduzem Durkheim a enveredar pelo caminho da sociologia so ainda amplamente influenciados ppela probleinética comtiana das leis de evolugdo das sociedades, A tese de Durkheim, publicads em 1893, aborda, assim, a questa da divisio social do trabalho, meio privitegiado - segundo oautor— de abordat o estudo das sociedades chamadas “superiores”. 2.1, Divisio do trabalho e formas da solidariedade social Em seu estudo Da divisdo social do trabalho, a grande tese de- fendida por Durkheim é que a divisdo do trabalho tem, antes de ‘mais nada, por Fungo, produzir solidariedade social. Esta asseryio no é neutra no contexto intelectual em que Durkheim evolu. Com feito, assumir uma posicao destas significa opor-se as teses que analisam a divisio €o trabalho como fator de desordem. Mas isto significa igualmeate contrapor-se as teses que reduzer a divisko do trabalho a wins fonte de progresso econdimico (03 economistas clissicos) ou ainds aquelas que avalisam essa divisio como um simples meio para que os homens possam viver sem coergio em sociedade, quando o vinculo social se reduz dai em diante a troca econdmica (Spencer) Para Durkheim, o progresso da indiistria, das artes e da ciéncia 08 servigos econémicos que a divisio do trabalho pode prestar, sto pouca coisa quando comparados com o efeito moral que esta liltima produz. A divisto do trabalho gera uma integragfo do corpo social, permite atender as necessidades de ordem e de harmonia. Ela é, de fo, um fator primério de coesdo ¢ de solidariedade. Para cefetuar a sua demonstragiio com todo o rigor, Durkheim toma o di- reito como 0 indicador da evolugdo das sociedades. Aos olhos de Durkheim, o direito éefetivamente um fendmeno exterior e objeti- vvadlo que apresenta a vantagem de reproduzicfielmerte as diversas formas de solidariedade social. Portanto, dois tipos de sangao (correspondendo a duas regras juridicas) merecem ser opostos: de um lado, a sangio repressiva (Sango do direito penal que visa atingir uma pessoa na sua fortu- na, na sta honra ou sua Vida), e do outro, a sango restitutiva (san- so do direito civit, comercial ou administrativo, que nao implica ‘um sofrimento do agente mas o ressarcimento do direito lesado). Desta dualidade e da importincia evolutiva desses direitos e san- Ses no seio das sociedades, Durkheim vai deduzir duas formas histéricas de solidariedade social. A primeira é caracteristica das sociedades de “solidariedade mecdnica”. Sto as soviedades que se ‘ualificam ainda de bom grado naquela época como “primitivas” ou ainda “inferiores”. No seu seio, as duas consciéncias do ser hu« ‘mano ~ consciéncia individual e consciéneia coletiva~ estio liga das: 08 individuos se acham unidos gragas 8 sua semnelhangs. Visto ‘que, nessas sociedades, os estados de consciéncia so comuns, ‘todo desvio deve sofier uma sangao penal. Tal ¢ justamentea légi- ca do direito repressive, A segunda forma & caracteristica das sociedades de “soliclaric- dade orginica”, sociedades éenominadas “industriais” ou “superi- ores”. Nestas itimas, a solidariedade sui generis que liga as duas consciéneias do ser humano resulta, nfo mais da semelhanga mas da diferenciagao, Da-se, para dizé-lo noutras palavras, parceli- zagio e complementaridade dos papéis no seio do sistema Social (cf. Texto 44). Nestas sociedades, a divisao do trabalho cumpre a Fungo que era confiada outrora 8 consciéncia coletiva: a de opera dor de coestio. E 0 que bem comprova, segundo Durkheim, o fato de que na historia da humanidade o direito cooperativo proggressi- vamente predominou sobre o direito repressive. Texto 44 DURKHEIM - Solidariedade mecinica e solidariedade orginiea Hid em cada urna de nossas conseiéncias, como ja disse, dias consciéneias: wa, que temos em comum cot todo o nosso gru- po, que, por conseguinte, ndo € nés mesmos, mas a sociedade que vive e age em nds; a outta, que s6 representa a nés mesos rnaquilo que temos de pessoal e distinto, naquilo que faz-de cada sum de nds um individuo. A solidariedade que deriva das seme- langas esté no seu maximum quando a conseiéncia coletiva co- bre exatamente a nossa consciéncia total eem todos os pontes de vista coincide com ela: mas, nesse momento, a nossa individuua- lidade & nula (.), ‘As moléculas sociais que no seriam coerentes a nio serape- nas desta maneira aio poderiam, portanto, mover-se em conjuun- to a no ser na medida em que nfo possuem movimentos pré- 5 209% 1 prios, como fazem as moléculas dos corpos inorginieos. E & por isso que propomos que se dé o nome de mecénica a essa espéci de solidariedade. Esta palavra nfo significa que seja produzida por mieios mecinicos earificialmente. Nés Ihe damos este nome somente por analogis com 2 coesio que une entre sios alemen- tos dos compos dratos, por oposigo Aquela que faz a unidade dos corpos vivos. O que actba de justficar essa denominacio é que 0 vinoulo que une assim oindividuo sosiedade 6 perfeitameate andlogo aquele que liga a coisa pessoa. A consciéncia indivi- dual, considerada sob este aspecto, € uma simples dependéncia do tipo coletivee segue todos os seus movimentos, came o obje- to possuldo segue aqueles que o seu propricttio Ihe imprime. Bem diferente € aquilo que se passa com e solidariedade pro- iiblica. Com o auxilio de leis numerosas que garantem os direitos e os deveres domésticos, o Estado nao cessa, com efeito, de amparar a institui- «do familiar, A mudanga nifo afeta somente a familia. As divisves temitoriais, (08 mosteiros e ontras associaySes que tinhatt substitaido a paren- tela foram igualmente deslocados com a Revolugao. Inversamen- te, com a diminuigdo da importancia da consciéncia coletiva, © Estado cresceu e se imps como uma instituigio distinta. Como {orca tinica da centralizagdo, cle cumpre uma dupla Fungo. Absor- ve € racionaliza, em primeiro lugar, fungdes que, antigamente, ‘ram preenchidas por outras instancias, Assim é que se pode Com- preendero desenvolvimento de uma burocracia, O Estado se torna, em segundo lugar, um instrumento de emancipasio. Gragas 20 seu desenvolvimento, os cidados podem escspar as obrigagSes de fi- delidades locais (a comegar pela da Tgzeja), Texto 45 DURKHEIM Para um modelo de familia conjugal A grande raudanga que se produziu, deste ponto de vista, ¢ o abalo progressive do comunismo familiar. Na origem, esten- ‘de-se a todas as relagties de parentesco: todos os pareates vivern em comum, tm a propriedade em comum. Mas desde que uma primeira dissociagao se produz no seio das massas amorfas da origem, desde que aparecem as freas secundarias, 0 comunismno se retira dal para se concentrar exclusivamente na regio priméi- ria ow central, Quando do cif emenge a familia agnitica®, 0 co- imunismo deixa de ser a base do cl& quando da familia agnitica se destaca & familia patrareal, o cormunisino deixa de ser a base dda familia ngnitica. Enfim, pouco a pouco, ele se vé corrompido até no interior do circulo primério do parentesco. Na familia pa- ttiarcal,o pai de familia se vé livre dele pois dispie livremente, ‘pessoalmente das bens ‘lomésticos. Na familia parental, € mais ‘mareado, parque o tipo familiar é de uma espécie inferior; no e- tanto, os membros da familia podem possuir uma fortuna pesso- al, mesmo que nl possam desfrutar dela ou administé-la pesso- aimente, Enfim, na familia conjugal, dele s6 restam vestigios, visto que o movimento estéentio ligado as mestnas causas que 0 precedem. As mesmas razfes que tém por efeito restringir pro- sgressivamente o circulo familiar fazem também a personalidacte dos membros da familia sfastar-se dela cada vex mais. 3s Dessas mudangas, a solidariedade doméstica sai enfraqueci- a ou revigorada? Néo € nada ficil responder aesta pergunta, Por um lado, ela fiea mais forte porque 0s lagos de parentesco so hoje indissoliveis; mas, por outro lado, as obrigagées a que dé cigem so menos rumetosas ¢ de menor importincia, O certo & que cla se vé transformada; e depende de dois fatores: as pessoas ets coisas. Nés nas apegamos a nossa familia porque temos ape- {go &s pessoas que a compéem; mas nos apegamos aela também porque nfo podemos passar sem as coisas e porque, sob o regime do comunismo familiar, é ela que as possui. Do abalo do comu- niismo resulta que as coisas defxam cada vez mais de ser um ci- mento da sociedade doméstica. A solidariedade doméstica passa a ser totalmente pessoal. Nos somos apegados a nossa familia apenas por sermos apegades 2 pessoa de noss0 pai denossa mie, de nossa mulher, de nosses filhos. As coisas eram muito diferen- tes antigamente, quando os vinculos que derivavam das coisas predominavam, 20 contrrio, sobre os que vinham das pessoas, cm que toda a organizacio familiar tinha, antes de tudo, por obje- to, manter na femilia 0s bens domésticos, e onde todas as consi~ deragGes de ordem pessoal pareciam secundris ao ado daque- las (F. Durkhinn, A familia conjugal (1892). In: Textes 111. Pari, Bd, de Minuit, 1975, p. 41-43). * O parentesco por agnagiio é um parentesce pela linha mas- cculina, isto ¢, agrupa os descendentes de um mesmo ramomascu- lino (M.L). ‘Mas o Estado pode ser ao mesmo tempo um “monsiniosidade sociolégica” (cf. Texto 46). Este timo se acha a tal ponto afasta- 40 das realidades locais que quando “tenia regulamenté-las, $6 0 consegue fazendo violéncia ¢ desnaturando-as” (Licdes de socio- logia, 1950). Por esta razio, Durkheim defende uma concepcio pluralista e democritica da sociedade politica. Para ele, 0 Estado jocupa um lugar normal se, A sua aco propria, se acrescenta a de poderes intermediiios, subordinados e dependentes. Trata-se dos “grupos secundatios” que, beneficiando-se de uma auforidade le- gal, t8m por missZo satisfazer as necessidades de integragio © de moralidade dos indivicuos. Texto 46 DURKHEIM—O Estado ‘O que é0 Estado? (0 Estado &, propriamente falando, o conjunto dos compos s0~ ciais, 08 inicos qualificados para falar e agirem nome da socie~ dade, Quando o Parlameato votou uma lei, quando © governo ‘0~ ‘mou uma decisdo nos consalhos da sua competéncia, toda a cole~ tividade, ipso fato, seacha comprometida. Quanto is administra ges, trata-se de Srgios secundirios, postos sob a alo do Esia~ do, mas que nfo o constituem. A fungdo destas érealiear as teso- lugdes promualgadas pelo Estado (..) ‘A.utilidade de um organismo deste género ¢intsoduri a refle- do na vida social, ¢ a reflexio tem ai um papel tanto mais consi~ Gerivel quanto mais deseavolvido for o Estado. Com certeza, 0 Estado nao cria a vida coletiva, como tampouco 0 eérebro crit a ‘vida do corpo e niio é a causa primeira da solidariedade que nele ‘une as diferentes fungaes, Pode haver e existem sociedades politi- ‘as sem Estado (E, Durkheim. Testes JH, op. cit, p. 173-174). ‘Uma monstruosidade sociologica (O Estado) teve, portanto, a tendéncia, pela forgs das coisas, a absorverem si todas as forras de atividade que poderiam apre- Sentar um caréter social, ¢diante dele niio restou mais que wma ppocira inconsistente de individuos. Mas entio viu-se obrigedo, porisso mesmo, a sobreceregar-se de fungdes para as quais n&o se achava habilitado © que nio pide exercer adequadamente, Pois esta é uma observagio feta muitas vezes, que eleé tio inva Sor como impotente. Faz um esforgo doentio para estender-se a todo o po de coisas que The eseapam e que $6 absrca violentan- do-as, Di esse desperdicia de forgas que se the eersurae que é, com efeito, desproporcional aos resultados aleangidlos, Por ot tro lado, os particulars nf esido mais submeridos 2 uma outa gto coletiva ano sera dele, dado que ele € a dinica sociedade ‘organizada. & apenas através dele que sentem a sociedal ea de- pendéncinei que se achamem face dela. Mas, coma o Estado se acha longe doles, s6 pode ter sobre eles ina ago longinqua ees- porldiea: por iso este sentimento no lhes € presente nem coma continuidade nem com a energia necessirias. Durante a maior parte da sua existéncia ndo Dé nada em torna deles que os tire para fora de si mesmos thes imponha um freio. Nestas condi- ses, € inevtivel que se precipitem no egofsmo ouno destegia- mento, O ser fumano € incapaz de se apegar fins superiores asi mesmo e submeter-se © una regra, se ndo pereebe acima de si nada com que soidarizar-s. Libetilo de toda a pressto socal significa abandoni-lo a si mesmo ¢ desmoralizilo, Tai s¥0, com efeto, as duas earacteristicas da nossa sitio moral Enquanteo Estado se incha ese hiperofia, para consepuirahra- gat coms orga os individuos, mas sem coasegui-lc, estes, sem nada para vinculé-s, olam uns sabre os outras como se fossem rmoléeulas liquidas, sem achar nenkun centro de forgas que os reprima, fie e organize (E. Durkheim, Le suicide [1897], Pati, PUF/Quaclige, 1983, p. 448). Quanto 20 Estado propriamente dito, deve “convocar progres: sivamente 0 individuo a existéncia moral”. Tem o dever de promo- ver uma moral civica ¢ sacrificar ao “eulto da pessoa humana”. Contra os liberais, Durkheim pensa ento que um Estado forte ode, e deve, colocar-se ao servigo de individuo. Depois, na mes- ‘ma época em que se cria, na Franca, a Federagio Geral das Associa- ‘¢5es Profissionais dos Servidores do Estado (1905), Durkheim de- fende a tese do necessirio apoliticismo dos funcionisios piiblicos. Como estes tltimos silo responséveis por uma missio de interesse 26? Be pibtico, néo poderiam pretender — assim julga o socilogo - orge- rizar-se para a defesa dos sous interesses proprio. 3. As formas ¢ os determinantes do vinculo social ‘Uma das pergiuntas centrais da obra de Durkheim se refere, em uma época turbulenta, aos deserminantes da coeso social. No seu estudo sobre 0 suicidio, Durkheim pos em evidéneia, de modo ma- gistrl, o peso determinante da sociedade sobre o comportamento do individuo. Este resultado, que teve muitas vezes como conse- iiéncia conjugar ingenuamente sociologia durkheimiana e deier- minismo social, deve ser relacionado ao menos a dois elementos complementares. Em primeiro lugar, como o permitem adivinhar suas anilises do Estado, Durkheim nao é, de modo algum, um “obstinado antiindividualista”. Mas ele poe em lugar da luta de classes 0 projeto de uma integragao do corpo social baseada, antes Ge tudo, sobre 0 respeito & pessoa. A seguir, as novas concep gies desenvolvidas por Durkheim, no final da sua obra, o levain a mu- dar orumo de sua problemétics inicial para definir a sociedade no ‘como uma maquina de produzir coereitividade, mas como utn or ‘ganismo que transcende os individuos € que, a maneira religiosa, les devem adorar. 5.1. O suicidio como fato social Na logica dos trabalhos de estatistica moral que se desenval- ‘vem nesse fim de século, 0 desafio impticito no estudo consogrado por Durkheim a0 suicidio (1897) ¢ explicar, de um ponto de viste socioldgico, aquilo que poderia parecer um ato {ntimo por antono- ‘asia, Para mostrar que o suicidio & um fato social e que “toda so ciedade esta predisposta a entregar um contingente determinado de mortos voluntarios” (cf. Texto 43), Durkheim comega refuian- o as explicagdes psicopatolégicas ¢ outras interpretagOes basen das sobre a idéia de determinagio pela tendéncia hereditaria, imi nanan tagdo e até o clima. Durkheim mostra, por exemplo, que 0 nexo di- reto de causalidade, que os positivist italianos acreditavam ter descoberto, entreasestagdes do ano ea taxa de suicidio (calor se- ria um fator de excitagao fisica) éilusbrio. E necessério, explica socidlogo fianeés, introduzir uma variavel intermedidris: 2 inten- idade social. Como no verio a vida social é mais intensa, a taxa de suicidio é mais elevada. Com o auxilio de estatisticas, mostra em seguida Dutkheim que co suicidio é com certeza um fato social na medida em. que, em todos 08 paises, a taxa de suicidios se mantém constante de um ano para o outro (ver 0 quadro abaixo, extraido da obra O suizidio). A longo prazo, ainda por cima, a evolugio dos suicfdias se insereve em cur ‘vas que 1ém formas similares para todos os paises da Europa. Os desvios entre paises ¢ entre regides sdo igualmente constantes. Quadro 2 ~ Taxa de suicidios por milhio de habitantes nos rentes paises da Europa 1866. | 1971- | 1974. | Nimero 1870 | 1875 | 1878 | deordem, aot" period aia 30] 3s | 3s 1 Belgica 06] 09] w| 2 jinglaca | 67 | 66 | 6 | 3 Norvege all a 4 Austria 7 | 94 | 130 5 Suscia 3s jist | or 6 Baviera so | 1 | 100 7 Franga ns | 150 | 160 | 8 Prissia 12 | 34 | ise 9 Dinamatea | 277 | 258 | 255} 10 Saxe 293 | 267 | 334 fo BSL imile du Durkheim estabelece, além disso, correlagbes miltiplas. Mos- tra, assim, que ataxa de suicidios esti ligada aos ritmos socials: co- rete-se 0 suicidio mais vezes de dia que de noite; a taxa de stici- dios aumenta com a duragao do dia; cometem-se, enfim, mais sui- cidios no inverno (a taxa declina a seguir com as estagies sucessi- ‘vas) € mais igualmente no comeyo que no fim de setnana, Durkheim destaca também nexos similares para outras varidveis ainda: a taxa de suicidios aumenta com a idade; é mais alta entre os homens que cenire as mulheres; ¢ mais importante em Paris que na Provincia... Da mesma forma, 0s protestantes se suicidam mais que os catoli- cos € estes iiltimos ainda mais que os judeus (Texto 47) Texto 47 DURKHEIM ~ Suicidio e integrasio religiosa Assim, se é verdadeiro dizer que o livre exame, uma vez prO~ clamado, muliplice os eismas, deve-se acrescentar que ele 05 supde e deles deriva, pois ele nfo ¢ reivindicado ¢ instituito ‘como principio a no ser para permitir que cismas latentes ou ‘meio declarados se desenvolvam mais livremente. Por conse- ‘guinte, se 0 protestantismo concede 20 pensamepto individual maior espago que 0 catolicismo, & que ele tem menos erengas priticas comuns, Ora, um cult religioso noturno nao existe sem. tum credo coletivo e & tanto mais uno ¢ tanto mais forte quanto mais extenso for esse credo. Pois esse cult azo une os homens pela pantlha e pela reciprocidade dos servigos, nexo temporal | ‘que comporta ¢ supée mesmo diferengas, mas que € impoteste ppara estabelecer. Nilo os socisliza a nao ser ligando-os todos a ‘um mesmo corpo de doutrinas € 0s socializa tanto melhor quanto mais vasto for esse corpo de doutrinas ¢ tanto mais solidamente constituido. Quanto mais numerosas forem as maneiras de agit © de penser, matcadas por um cariter religioso, subtraidas, por cconseguinte, a0 livze exame, tanto mais também a idéia de Deus ‘se far presente em todos os pormenores da existéncin e Faré con ‘vergir para um s6 e mesmo fim as vontades individuais, Inversa- mente, quanto mais espago um grupo confessional deixa a0 jul- gamento dos partculares, tanto mais fica ausente de uas vidas, € tanto menos coesio e vitalidade possui. Cheyamos, portanto, a cesta concluszo, que a superioridade do protestantisma do ponto de vista suicide ver do fato de ser uma Igreja menos fortemente integrada que aIgeeja catolies, Do mesmo modo se encontra explicada a situagis do judais- mo. Com efeito, a reprovagdo com que o cristianismo os perse- guiu durante muitos séculos criou entre os udeus souimentos de solidariedade de particular energia, A necessidade de lutar eon- tra uma animosidede geral, a propria impossibilidade de se co- rmunicar livremente com o resto da populaglo os ebrigaram a Imanter-se esireitamente unidos entce si. Por conseguinte, cada ‘comunidade se tormou uma pequena sociedade, compacta e coe rente, que tinha desi mesma e da sua unidade um vivissimo sen ‘imento, Todo o mundo af pensava ¢ vivia da mesmataneira; as divergencias individuais af se tomavam quase impessiveis por causa da comunidade da existéncia e da estreita ¢ incessante vi- gildncia exercida por todes sobre cada um. A Igrej judaica se encontrot assim mais fortemente concentrada que neahuria ou tra, pelo fato de se ter rettaido sobre si mesma pela iatolerdneia de que era objeto. Por conseguinte, por analogia com aquilo que vvimos de observar com respeito ao protestantismo, éaesta mes- ‘mia causa que se deve atribuir a fraca tendéncia dos judeus para o suicidio, a despeito das cireunstincias de toda a sorte que deve iam, pelo contritio, incliné-los a isto (E. Durkheim, Le suicide, op. ei, p. 153-154). Para explicat todos esses resultados, Durkheim distingue trés formas principais de suicidio: osuicidioegoista, andmico e altruis- ‘ta, Em uma nota de rodapé ele chega até a introduz't uma quarta Forma, pouco importante a seu ver: 0 suicidio fatalista (suicidio de esoravo ou suicidio de jovens que se casaram cede demais, por exemplo). O suicidio altruista, em primeiro lugar, ¢ caracteristico de individuos téo fortemente inseridos com o seu grupo de perten- a0 8 ¢2 (como os militares), que slo incapazes de resistir a um golpe da sorte, Diversamente das sociedades “primitivas” que no foram ainda conquistadas pelo individualismo, esta forma de suicidio sé envolve, neste fim do século XIX, uma minoria de individuos. Durkheim privilegia, entéo, logicamente, a andlise das duas outras formas de suicfdio, formas nisto carncteristicas da época, revela- doras como séio de um afrouxamento erescente dos vinculos que li- gam o individuo sociedade. #0 que se di como suictdio cgofsta, Quando pensam essenei almente em si mesmos ese acham prisioneitos de desejos infin itos, 0s individuos no podem recuperar o equilibrio, a nfo ser que una forga exterior os love & moderacaio. Quando esta forga esta ausente (sto €, quando a integragai social a0 grupo se enfraquece), endo homens e mulheres se mostram mais inclinados a tirar-se a propria vida. E 0 que prova a taxa de suicidio mais alta entre os solteiros (cuja vida desrearada goza de maior tolerdncia que a de um pai de familia), que no se beneficiam deste quado integrador queé a fa- ‘mila. A demonstragio é idéntica coma variével religiosa: ocatsl- ‘co no busca seus principios inspiradores do comportamento como © protestante na propria consciéncia, mas recebe imposigdes de fora. Gozando de um quadro integrador, 0s catblicos se suiciclam, em conseqiiéncia, muito menos que os protestantes. 3,2, Suicidio e anomia A firm de caracterizar a ditima forma de suicidio, Durkheim se utiliza do termo anomia, tomado do filésofo Jean-Marie Guiyau (1854-1888). Este termo, convém sublinhé-lo, s6 é sistematica- mente usado por Durkheim ein duas de suas obras (Da diviséio so- cial do trabalho © O suicidio) e, ainda, em sentidos variados: Durkheim distingue assim diversas formas de anomias (nomia agudalerdnica, anomia regressiva/progressiva) ¢ prope diversas definigdes que oscilam entre 0 mal do infinita ea desregulamenta- ‘80 da vida econdmica. A partir de 1902 ele cessa, afinal, de usar sistematicamente esta nogio. J4 0s durkheimianos vo ignorar trargililamente 0 uso desse termo (sobre 0 destino desse conceito, cf. P. Besnard. L ‘anomie, 1987). Em Osuicidio, Durkheim quer sobretudo fiisara existéncia de uum desregramento social (a-nomos = auséncia de lei, auséncia de normas) que vai diretamente repercutir no volume das mortes vo- luntirias. Verdadeiro sintoma patolégico, a anomia se explica por uum deslocamento dos costumes que nfo enquadra mais estreita- ‘mente aatividade social, Como as forgas integradoras comegam a faltar, 0s individuos em competigo uns com 0s outros nfo conse- ‘guem mais limitar os seus desejos. Pedem demais é existéncia 20 ponto de experimentar desgosto e irritagio diante dela, Contribu- em, infere das Durkheim, para fazer do suicidio anémmico um fend- ‘meno regular e especitfico is sociedades modernas. 0 suicidio and- ico se revela claramente nas fases dos ciclos econdmicos: em pe- riodo de booms, as ambigées € aspiragSes dos individuos n&o se ‘véem mais limitadas precisamente, mas se estendem 20 infinito. A desproporgdo entre aspiragées ¢ gratificagdes, que dat resulta, & causa de suicidio. Este mal-estar € caracteristico das sociedades modernas que conheceram um excepeional desenvolvimento das atividades econdmicas. Implodindo as comunidades tradicionais, a indistria e 0 comércio “fracamente penetrados de moralidade” desvalorizam, pensando apenas no hucro do capital, numerosos va- lores e obrigagdes todavia indispensAveis 8 vida social. Nao & alias casual, observa Durkheim, se a taxa de suicfdio andmico & mais elevada nos setores mais “avancados” da sociedade: entre os pro- testantes, no mundo urbano, industrial ¢ leigo... Para remediar esta crise social, revelada pela evolugdo da taxa de suicidios, Durkheim propée diversas solugdes. Preconiza, antes dde mais nada, que se promova uma luta contza a anomia conjugal. Mas 0 problema nao & simples, dado que se a familia protege tanto ‘os homens como as mulheres, os dois sexos suportam de modo di- frente o casamento: os homens beneficiam-se da sua virmade pro- tetors, enquanto as mulheres o viver, sobretudo, como um fardo. Para consolidar 0 grupo conjugal (0 casal), Durkheim se pronuneia no entanto em favor de um casamento mais indissolivel. A fim de climinar, por outro lado, a anomia econdmica, sugere Durkheira que se desenvolvam as corporagdes profissionais, instituigdes in- termediia entre o Estado e 0s individuos. © socidlogo faz votos para que essas corporagdes possam desempenhar 0 papel de Orga- nizagio econdmica, politica, juridica de regulamentagio, mas so- brenido 0 de autoridade moral eapaz de preencher ~ pelo renovado sentido da comunidade ~o vacuo social que Durkheim nfo cessa de latmentar (Baliza 23), Baliza 23, [Anilise durkheimiana do suicidio: das controvérsias ‘metodolégicas A renovacio dos debates ‘Depois da publicagia de O.suicidio, nfo faltaram ctticas e com- plementos ao trabalho de Durkheim. Em Ay causas do suicédio (1930), Halbwachs sublinha, deste modo, as dificuldades de inter- pretagio ligadas ao tipo de reyistro do fend meno estudado. Ele mos. {ra igualmente todo o interesse mostrado por Durkheim no sentido de eferuar muito atentamente o seu levantamento estatistico para se- pararo efeito das diferentes variéveis explicadoras umas em relagie As outras, que 0 simples estudo dos suicidios "bem-sucedidos” (e nfo tentativas. abortadas) oblitera parcialmente a anilise: sabe-se com efeito que a populago envolvida & diferente (a presenga das ‘mulheres é maior para as tentativas fracassadas). Fin sua obra, Halb- ‘wachs indica, além disso, que se com certeza aumentou na segunda smetade do século XIX, a taxa de sicidios mostra a tendéncia, no co- imego do século XX, a estagnar, Depois e, sobretudo, Halbwachs dé ‘outro namo a hipstese durleheimiana relativa & integragio teligiosa, Ele mostra que a pertenca aum grupo de confissio catlica ot pro- testante Ga expresso de um conjunto de variveis relativas a0 gne~ ro de vida. Assim, a maioria dos eatolicos vive no meio rusal, meio conde costumes e tadigdes sio mais fortes e tém, portanto, maior po- der de integragZo, Inversamente, os protestantes sio mais urbanios, portadores de mais valores individualistas e tendem a investir mais, ‘no mundo, E mais importante levar em conta o estilo ds vida c a in- setgdo no espaco geogrifico, tendo em vista que estes dois fatores vvariam de um pais para © outro, Halbwachs explica deste modo por que, na Inglaterra, a taxa de suicidios 6, entre os protestantes, muito sais fraca do que a teorin durkheimiana poderia supor. Depois de Halbwachs, a critica metodologica mais rigorosa em relagio a Durkheim se deve a Jack D. Douglas (0 signyicado social do suictdio, Princeton University Press, 1967). Na sua cbra, Douglas ‘observa em primeiro lugar que ndo ha uma definigao Ynicae universal ide suicidio, mas esta € socialmente construida ¢ varia conforme 0 ‘tempo e o espago. Em segundo lugar, certos grupos socinis conse- ‘quem, melhor que outros, dissimular (por razBes morais, religiosas... ‘08 suicidios, Eafim, seria preciso abordar o problema das diferengas centre definigio teérica (a do pesquisador) ¢ 0 registro administatvo. Este problema vai aparecerclaremente quando se poe em evidéncia a distincia dos dados levantados pela administragio judiciéra ¢ 08 pro- venientes dos registros efetuadas pelo corpo médico (ver a este res- peito P. Besnard, Anti ou antidurkheimismo [contribuigio ao debate sobre as estatisticasoficiais do suicdio}, fn: Revue frangaise de socio- fogie, jan/1976, eC. Baudelot & R. Establet. Durtheim e o suiciio, PUF, 1984). Partindo dessas observagdes, Douglas conslui que éne- cessirio, para analisar o suicidio, eferuar pesquisas nio estatisticas mas biogrificas. E necessirio, caso por caso, interessar-se pelos moti- ‘vos exalos que levaram uma pessoa decidir matarse. Jean Baeckiler (Calmann-Lévy. Os suicidios, 1975) analisou neste sentido o sueidio como um ato “estratégica”, ato que permite a um individuo resolver as suas angistias existenciais ‘A despeito de todas essasseleiturss criticas, as teses de Durkheim oferecem até os dias de hoje matéria para debates e comprovacio cempitica. Inimeros tiabalhos foram assim consagrados a légica de classificago dos suicidies distinguidos por Durkheitn. Depois de terelencado esses miltiplos ensaios, Phillippe Besnard (4 anomia. PUB, 1987) reativou a anilise da socializagto de Durkheim, reto- ‘mando a oposigie entre inlegragio (assimilagdo a um grupo socil) ceregulagio (espirita de disciplina). Neste quedro, os quatro tipos de suicidio se ligam facilmente aos estados extremos dessas varitveis ‘uma integragdo social insuficiente leva a0 suicicio egoists, ume in- tegragdo forte demais a0 suiciio altuista, uma regulagto social fra- ‘ca a0 suicidio andmico eum excesso de regulagio social a0 suicfdio fatalista. Enveredando por outra via de pesquisa, Christian Baudclot & Roger Establet (op. cit) procuraram atualizar os trabalhos de ‘Durkheim. Suas conclusdes principais pSem em evidéacia recorrén- cias e inflexées. Ha, em primeitissimo lugar, a permanéneia do fato social, isto constata-se a regularidade dos efetivos globais de pes- soas que cometeram suicfdio, A familia, segundo ponto, continua sendo um quadro integrador privilegiado. Em compensacio, en- {quanto 0 suictdio era no séeulo XIX um fendmeno essencialmente ‘urbano, este no mais o caso em nossos dias. Da mesma forma, con- trariamente aos resultados anteriores de Durkheim, Baudciot & Escaplet constatarm que o suicidio atinge, acima de tudo, as earwacas sociais mais desfavorecidas, Para estes dois autores, esses dados no- vyos se explicanm pela emergéncia de novas formas de integrago vida social, Evidencia-se assim que desde o século XIX ocorrew ‘uma mudanga de valores: o utbano jf ndo é mais un desenraizado, Mais recentemente ainds, Louis Chauvet mostrou que na Franga a taxa de suicidio masculino por faixa etéria se uniformizou a partir dos anos 1970 sob o impulso de uma transformagdo do status social nas diferentes idades da vide. No mesmo fasciculo da Revue Fran- aise de Sociologie (XXXVII-4, 1997), Phillippe Besnard venifica, por seu tumo, a permanéncia dos nexos entre casamento esuicidio. [Nos EUA se realizarem tabalhos num espirit similar. Parao sé- ‘culo XX, K.D. Breault (Um teste da teoria durkheimiana da integra- ‘gio eligiosa e familiar, 1933-1980. Jn: American Journal of Socio- ogy, vol. 92, 3, 1986) constata, & semelhanga de Durkheim, das va- rifveis determinantes: 0 divercio ¢ a pertenea a uma comunidad reli- _aiosa. Q autor destaca de modo tedo especial a existéncia de uma taxa de suiefdio menor entre os catslivos do que nos niio-catblicos. Se al guns trabalhos zeabilitam deste modo as demonstragbes durkheimia- nas, é interessante sublinhar a emergéncia paralela de andlises “ardi- ‘anas", andlises que relacionam imitago e suicidio. Alguns pesquisa- ores (D.P. Phillips & KA. Bolen. American Sociological Reviews 47, 1982) observam um significativo aumento de martes voluatirias depois do antincio miditico do suicidio de uma personalidnde pitbli- ca, Persuadidos de se trata cesamente de um fendmeno de imitagaio, estes pesquisadores sublinham que a texa de suicidio ¢ mais forte no seio de categorias tradicionalmente consideradas mais sensiveis aos ieios de comunieagio e as modas (adolescentes, mogas). A essa ar- _gumentago houve quem objetasse que nao se trata de um fenémeno de imitagdo que aqui se multiplicaria. Os antineios miditticos apenas precipitariam as irtengdes de suicidio. Ainda por cima, percebe-se ‘que 0 suicidio de uma pessoa famosa pesa tanto como 0 de tia pes- ‘soa andnima. Enfir, pelo que parsee, os priprios médicos,influenci- adios pela tese da imitapdo, poderiam ter atendéncia.a superestimar es ‘martes por suicdio depois de cada noticia sensacionalist, 3.3. Individualismo e sociedade Singularmente obsessionadio pelo problema do nexo entre indi- ‘viduo e sociedade, Durkheim nfo acredita nem nas doutrinas reli- sgiosas nem na ficgéo da harmonia entre os interesses egoistas dos economistas liberais como possiveis remédios para a crise social Como ja se insinuce, ele em compensacdo consagra uma atengio particular as doutrinas socialistas, Em um trabalho que ficara ina- cabado (curso ministrado em 1895 ¢ 1896 e publicado mais tarde ‘como titulo O socielismo), Durkheim se langa a uma kitura “cien- tifica” das idéias socialistas saint-simonianas. Condiseipulo de Jean Jaurés na Escola Normal, Durkheim nao esconde uma dose de simpatia critica por esse corpo de pensamento, Nio pode, no en tanto, aceitar a violéncia, a proposta revolucionatia dos obreiristas ea dimensio politica que so a marca do movimento socialist, Durkheim se afesta igualmente do esquema marxiano da Inia de classes ~sintoma de destegramento mais que solugo sociale ne- ease a reduzir, como fazem muitos socialistas, a dinémiica social a0 simples resultado do jogo econémico, Segundo Durkheim, a maneira cotreia de colocar 0 problema consiste em penser de outro jeito a socializago dos individuos no seio de uma sociedade de solidariedade orgénica. Como 0 mostrow Jean-Claude Filloux, Durkheim se pronuncia entdo a fevor de uma litkheim ea escola francesa. Seaesen) © en ‘meritocracia inspirada em Saist-Simon, meritocracia que procura cconciliar 0 individualismo e a igualdade de oportunidades. A am- bigdo declarada nfo visa nada menos que reconstituir um corpo so- cial unido erespeitaso da pessoa cujaliberdade e autonomia passa- sam a ser imensas com o desenvolvimento da divisio do trabalho. Precisa-se de ums autoridacle— observa Durkheim no seu curso so- bre o socialismo ~ cuja superioridade todos os individuos reconhe- sam, e que dite 0 direito, Esta autoridade nfl podera ser assumida nom pelo Estado (muito distante das pessoas), nem pelos grupos religiosos (de cariter sempre mais abstrato ¢ intelectual), nem fi- nalmente pela familia (circulo muito reduzido € que perdewa sua fungio integradora). Seguindo agui o economista Jean-Charles Léonard Sismondi, Durkheim preconiza, como o vimes, a solugto das corporagdes profissionais, 0s imimeros cursos e paginas por ele consagrados a educacio tém como eixo principal uma preocupagdo semelhante, Quando se poe a estudar 2 historia do sistema educative, mostra Durkheim que a Escola constitai ha muito tempo um campo de luta idcoldgi- ca por cujo monopélio os diversos grupos politicos ¢ religiosos niio cessaram de entrar em concorténcia (4 evolucdio pedagdgica nna Franga, 1938). A seus olhos, a aprendizagem escolar constitu, entre todos, 0 processo de socializagio por exceléncia, E um canal privilegiado de integragao a sociedade, um periodo intermécio du- rante o qual os individuos aprendem a sujeitar-se a disciplina (Tex- to 48), Mesmo assim, Durkheim néo reduz a educago a um pro- cosso forgado € autoritério. Para encontrar o caminho da moral, ‘ttés passagens Ihe parecer obrigatbrias: 0 espirito de disciplina, 0 apego aos grupos sociais e a autonomia da yontade. A escola pro- dduz justamente o amor & diseiplina, ao grupo ¢ as instituigdes. Fla favorece igualmente, em uma época individualista, o desenvolvi- mento da personalidade e da autonomia, Aos olhos do socié logo francés, o professor & 0 sacerdote leigo que tem por missfo revelat ' f | i Texto 48 DURKHEIM Moral leiga, individualismo e educago ‘Uns educapio puramente racional parece oo apenas logi- camente possivel, mas ainda é exigiéa por todo o nosso desen- volvimento histirico, Sem divida, se a educagto tivesse brusea mente essumido esse carter hd alguns anos, poder-se-in duvidar ‘que uma transformagi tio epentinaestvesse implicita na natu- reza des coisas. Mas, na reslidade, ela € somente o resultado de um desenvolvimento gradual cujas origens rementam, por assim dizer, &s propriasorigens da histria, Hi sévulos a educagdo se vem laicizando,Jése disse mais de uma vez que os povos prini- tivos ado tinhary moral. Era um erro histérica. Nao hl uma povo «que nfo teaha sua moral: 36 que a das sociedadesinferiores no é nossa. O que acaracteriza € precisamente ofato de ser essenci- allmente reiigiosa. Quoro dizer com isso que os deveres mais nu- sierosos ¢ mais importantes S80, réo aqueles que o bomen tern para com outros homens, mas os deveres para com seus deuses As principats obrizagées nio sio respeitaro préximo, ajudé-to, asist-lo, mas realizar exatamente 0s rites prescrites, dar aos sdeuses 0 que Ihe édevido, e mesmo, senecessitio, sacrficar-se sun gléria(.), Mas, a0s poucos 2s coisas vio mudando, Aos powes, multi- plicam-se os deveres hmmanos, definern-se com presisf0, pas- sam ao primeira plano, enquanto os outos, a contro, tendem a dessparecer(..) ‘Com efeito, se agora sentimos com ms forga que nossos pis a necessidade de una educago moral integralienteracio- nal, & evidentemente porque nos tormamos inais racionalistas Ora, oracionalismo nfo é mais que um dos aspectos do indivi= ualismo: 0 seu aspecto intelectual. Nao se tsta aqui de dois estados de espitito diferentes, mas um 60 inverso do outro, ere- ciprocamente, Quando se sente a necesidade de libero pens ‘mento individual, ¢que, de modo geral, se esti sentindo aneces- sidadede libertar indivicuo. A servidio intelectual éapenas wna das serviddes combatidas pelo individualismo. Ore, todo desen- Uae ‘olvimento do individualism tem como efeito sbrira consciin- cia moral idéias novas e #torné-la mais exigente. Pois, como cada un dos progresses que ele fiz tem como conseaiéncia una, concep mas alta, um senso mais delicado do que scjaa digni~ dade humana, nfo pode se desenvolver sem que nos mostre ‘como contrérias dignidade humnana, isto €, como injustas, ela ‘pes sociats cj injustiga outrora nko sentiamos de maneiraal~ fguma. laversemente, por outro lado, a fé racionalistareage sobre 6 sentimento individualista oestimula, Pois a injustiga&iraci~ onal ¢ absurd, , por conseguinte, nos tomamos cada vez mais sonsiveis a ela quanto mais sensiveis nos tomamos aos dirctos da razio, Em conseqiéncis, qualquer progresso da edueayo ‘moral na via de uma maior racionalidade no pode se produzir sem que, no mesmo momento, surjam tendéncias morais novas, ‘sem que se desperte uma sede nor de justsa, sem que a cons~ ciéncia piblica se sintatrabalhada por obscuras aspirages. educador que se propusesseracionalizar a educagdo, sem prover aeclosto desses sentimentos novos, sem a preparar€ digit, al- taria, portant, com uma parte de sua tarefa (E. Durkheim. [éducation morale ourso de 1902-1903}. Paris, PUF, 1974, p.5e 10). a lei da sociedade ds criangas, penetrii-les com o seu calor. A. fim de preparar 0 advento desta sociedade onde os seres humanos vi- vam em comurhi, Durkheim foi o primeiro, pelos seus cursos aos instrutores, professores da Escola Normal ¢ do Ensino Secun- dario, a contribuir para o desenvolvimento do ensino leigo ro qual acreditava profundamente 5.4. A religifio como fendmeno coletivo [As posigSes leigas de Durkheim niio o impediram de abordzra ‘questi da religifo. Reconhecendo nela um fato social de primor- ial importéncia, ele produz uma interpretagdo sociolbgica origi- nal que o leva a mostrar ndo somente que a sociedade & “uum ser psiquico de uma nova espécie que tem sua maneira propriade sen- | | tire agir”, que através da religifo é este ser que veneramos, mas ainda mais que as eategorias fundamentais do entendimento (tem- Po, espago, género, niimero, causa, substincia, personalidade..) tm sua origem ro pensamento religioso. Ointeresse de Durkheim pela religiso se manifesta em 1895, data em que 0 socidlogo diz ter passado por uma verdadeira re. volugao ste cursode 1895 marca uma linha de demarcagio no desenvolvimento do meu pensamenio — escreve ele ‘em uma carta, de modo que todas as minbas pesqui- sas anteriores tiveram de ser refeitas com novo esforgo pare estarem em harmonia com esses novos insights (qpud P. Steiner. soeiotogia de Durkheim, 1994). Aproveitando particularmente o trabalho paralelo de dois de seus discipulos (Hubert, Mauss), Durkheim explicita verdadeira- ‘mente a sua reflextio em As formas elementares da vida religiosa (1912), Nessa obra, Durkheim fixa como objeto de estudo aquela ‘que considera “a religio mais simples” que ele poderia conhecer: © totemismo austrakiano, Pondo em evidéncia todas as virtualida- des do fenémeno em seu estiio elementar, ele espera poder expli- cara natureza de toda religiao, A divisio do mundo em dois domi- nios~o sagrado ¢ o profano~, declara ele ento, é aquilo que é uni- versal e comum a todas as religides conhecidas (Texto 49), 0 sa- ‘grado nao significa simplesmente deuses, mas igualmente objetos, gestos, palavras... que os tabus isolam e protegem. Seguindo a mesma linha de pensamento de William R. Smith, Durkheim defi- ne melhor que ha precisamente duas espécies de sagrado: 0 puro e ‘oimpuro. Um fasto, 0 outro nefasto, Mas a oposigo é s6 aparente: “com puro faz-se impuro, e reciprocamente. E ne possibilidade dessas transmutagdes que consiste a ambigiidade do sagrado” (4s formas... op. cit.) Texto 49 DURKHEIM ~ 0 profane e 0 sagrado ‘Todas as crengas religiosas conhecidas, scjam simples ou. ‘complexes, apresentam um mesmo carter comum: supdem uma lassificagio das coisas, ress ou ideais, que os seres humanos Se representam, em duas classes, em dois géneros opostos, designa- 4s geralmente por dois termes distintos, traduzidos muito berm pelas palavras profano e sagrado. A divisio do mundo em dois dominios que abrangem, um tudo aquilo que ésagrado,e 0 outro tudo aquilo que é profaro, eis 0 traco distintivo do pensamento religioso. As crengas, 0s mitos, os gnomos, as Iendas so ou re~ presentagoes ot sistemas de representagGes que exprimem a na~ tureza das coisas sagradas, as Virtudes € os poderes que Thes sfio atribuidos, as relagGes de umas com as outras e suas relagies ‘com as coisas profanas. Mes, por coisas sagradas nfo se deve ‘compreender simapiesmente 08 seres pessoais chamados dewses: ‘ou espiritos. Um rocheéo, uma arvore, uma fonte, uma pedra, ‘um pedago de madeira, uma casa, numa palavra, qualquer coisa pode ser sagrada. Um rito pode ter esse carSter, nlo existe mes ‘mo um rite que alo o tenha em certo grau, HA palavras, terms, formulas, que s6 podem ser promunciados pela boca das pessoas consagradas; hé gestas, movimentos que nfo podem ser executa- dos portado a munda. Se o sacrificio védico teve tamanha eficd- cia, se mesmo, segundo a mitologia, foi gerador de deuses longe de ser apenas um meio de ganar seu favor, é que possuia una ‘viraude compardvel A dos seres mnais sagrades. Nio se pode, por tanto, determinar 0 circulo dos objetos sagrades de uma vez por todas: sua extensio ¢ infinitamente variivel segundo as reli _BiGes. Eis como o budismo éuma religigo: parque, na falta de dew. ses, admitea existéncia de coisas saeradas, a saber, as quatro no bres verdades ¢ as priticas que delas desivam (..). Chegamos, portanto, a definigio seguinte: Uma religido é um sistema solidério de erengas e préticas relativas a coisas sa gradas, isto é, separadas, interditas, erencas e priticas que twaem em wma mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles gue a elu aderem. O segundo elemento que entra assim em nossa definigdo nfo & menos essencial que o rimeiro; pois, mostrando que vida de religido € inseparivel de dé de grea, fiz pressentir que e religio deve ser uma coisa emizentemente coletiva (E, Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religiew- se [1912], Pais, PUF/Quactige, 1985, p. 50-51 € 63} No nivel mais clementar de organiza¢o, o elf encontra no 10- Jem o seu critério do sagrado, sendo 0 totem ~ além da realidade «que ele designa ~ de uma forga de participacdo concreta dos dife- rentes membros do cla. A semelhanga do totem, o sagrado encar- nado na realidade social ganka o nome de mana. Tal como 0 defi net os eindlogos, o mana é um poder indefinido, uma forga andi ma cujo cardter impessoal é comparavel As forgas da natureza. E dotado de um valor magico, religioso e social, No nivel superior, 0 da sociedade tribal, © mana se individualiza em espiritos criados pela sociedade: sfio os deuses, Quer se trate de fotem ou de deuses, temos aqui, observa Durkheim, a manifestagdo de uma consciéa- cia coletiva que opera para a coesio da sociedade (Texto 50). Texto 50 DURKHEIM — Sociedade e consciéneia coletiva ‘Da mesma forma, écertamente verdade que a sociedade no compreende outras forgas atuantes senia as dos individuos; so- mente os individuos, unindo-se, formam wm ser pstquico de es- écie nova que, por conseguinte, tem sua maneira prépria de ‘porsar e sentir. Sem divida, as propriedades elementares que «dio como resultado o fato social estio contidas em germe nos es pirtos particulares. Mas 0 fato social s6 sai dai quando ela fo- ram tansformadas pela associag, dado que é apenas nesse mo- mento que aparece, A axsociagio &, ambém ela, um ftorativa que produc efeitos especias. Ora, ela & por si mesma algo de novo. Quando coascignces, em lugar de ficarem igoladas umas rofisso, 20 ‘Stadoembrionrio, Assia, oapego& profisBoe & tarefs poderia sere ceramente cn mts cso em motive podeos0 que as- Guo operiio a suportar muitos esforgos «privacGes ‘Mas, por oso Tado, o trabalho do operivioapresentaigual- mente apectosineSmodos, por sua monotonia gersiment, cada Gur copectlizao ser human em im géaero de ativicademesi- Slew estretomente mia e volta param tinio aspect da thera E verende que pea espcilizato penetramos de algun trod no fundo das Goss, que obomem de urna profissto, de time ungdo, ¢ superior 20 amador superficial ue pretende brangertodasos aspects daaatorea,exercer todes ns feild des do ser humano, ea Gaica coisa que consegue & desperii far-se edspersrse. Mas acondiqao operéra se cacaseriz,3- fread, plo fate de que ouabelho obriga, durante amor pare dh di, ¢pemanecerem conato coma matéra inert, com mate fae maledveis frets, como os operirios tExtis, andere, teceldes; com matrais dirs ereistentes, como os mints, fom metas sides ou ex fsto; com madeira; com mateiis perigoss; com materia imundos ete, Dat resulta que o tabs- thador industrial ia isoade do mundo, a meior pare do ep, dliveremente de todos os outos agentes da vida exondmiea, 0- tmerianss, empregades,conramestres,caias et, cu traba- tho 0s pe em relagfio com as pessoas e nao obrigaa se afestar dos _gtupos humans. ‘Sem divida, 0 openisiotrzbatha em equipe, une seus esforgos aos dos seus companleiros, coopera com eles, Mas esta cooperay4o {toda técnica. O que os homens associam so suas forgas sexs 199 vimentos isigos. Estabelecem-se cntte eles relagies maquinais que no implicam nem 0 pensemeato, nem o sentimento. Ora, 0 serhi~ Imiano em geral tem necessidade do contato e da sociedade dos ot- tros seres humanos. Por isso, 0 operirio acha longa ajornada de ta~ ‘allio, quando lao prende 2 algo estabelecido, ou 9 prende & terefa material (M. Halbwachs, Esquise dine psychologie des classes so~ ales {1938], Pars, M. Riviere, 1964,p. 141-143). Entretanto, a meméria social se acha distribuida de maneita de- sigual (Texto 55). Ela perde forga quando se desce na hierarquia da sociedade: sea nobreza soube cultivar essa memoria, a burguesiaa substituiu por valores utilitaristas. Quanto & classe operdria, atra- ‘vés do jogo das relagies de produgao, ela se vé constantemente confrontada com a matéria, Fla sofre com wma répida mudanga de seus quadros e com a indiferenga 20 passado, Sugerindo um esque~ macomo este, Halbwachs pe em ayo ne campo sociologice uma distingao cara a Henri Bergson (que foi seu professor) entre maté- ria e meméria. Matéria é repeticdo e inércia (classe operaria), en- quanto memoria significa inovagao e liberdade. Texto 55 HALBWACHS~ Meméria coletiva e classes socials Mas, se examindssemos um pouco mais de perto de que mma~ ‘neira nos lemabramos, reconheceriamos que muito certamente © ‘maior atmero de nossas lembrangas nos vem quando nossos pais, nossos atnigos, ou outros homens no-las trazem & lembrarn~ be. Fica-se bastante espantado 20 ler os tratados de psicologia, Onde se aborda a memoria, ue o ser humano seja ai consideredo ‘como um Ser isolado, Parece que pars compreender nossas ope- rages mentais seria necessério Levar em conta somente 0 indivi- duo e cortar desde principio todas os vinculos que oligam a so- cciedade dos seus semelhantes, mas é na sociedade cue normal- mente o ser hurmano adguire suas lembrangas, que as recorda, €, ‘como se diz, que ele as econhece e localiza (..). ‘Nas grandes cidades modemas, dado o niimero de pessoas {que ai entram em relagdo, de origem muitas vezes muito diferen- tee afastada, toma-se cada vez mais dificil para “a sociedade” fi- ar, assim, em sua memoria, tantas ramificagdes familiares, Ai se cham, no entanto, alguns grupos, vestigios da antiga nobreza, onde o respeito pelos ttulos persiste, outros, embrides de uma nova nobreza, fundados sobre a exclusividade das relagBes e das aliangas, sobre aimportdneia excepcional das fortunas, sobre um ‘nome que algumna circunstdncia fez destacar-se. Mas. em geral a bburguesia, acumulando toda a espécie de contribuigées, perdeu 0 poder de fixar, assim, em si, uma hierarquia, de deter quadros ema que as geracdes sucessivas deveriam secolocar. A memériacole- tiva da classe burguesa perdeu em profundidade (entendendo ‘com isto a antigiidade das lembrancas) aquilo que ganhava em extensio (M. Halbwachs. Les cadres sociaux de la mimoire. Pax ris, Alean, 1925, p. VILL 335). Em A topografia legendéria dos Evangelhos na Terra Santa (1941), Halbwachs dé outro contetido a este jogo de hipSteses rela- tivas a meméria cofetiva. Depois de uma pesquisa na Palestina, ele mostra que a localizagdo geogréfica dos episédios da vidade Jesus variou no tempo com as diversas geragiies de cristdos. Investindo nos lugares santos, as devogées européias contriburam para uma reconstrupdo social continua: a da imagem flutuante, forjaca ¢ re- inventada no decorrer dos séculos, do itineririo de Jesus. 43, Marce! Mauss e a fundaedo da etnologia francesa “Muito mais fiel a Durkheim (seu tio) do que Halbwacks, Marcel Mauss procuziu também ura obra importante, que centribuin para ‘o sucesso e a notor’edade intelectual da escola francese de sociolo- sia. A primeira vista, fca-se admirado. E.que Marcel Mauss efetive- ‘mente nunca escreven grandes obras de sintese. Mais ainda, mesrao no sendo homem de campo (com excegio de una répida missio no Marrocos), Mauss, que foi professor no Collégede France, deu ori- ‘gem A grande onda einogréfica que tem sua fonte nos anos 30. A. co- rmecar por Claude Lévi-Strauss, grandes nomes da antropologia muito the devem. Entre seus discipulos, deve-se contar pessoas ‘como Marcel Griaule, Louis Dumont ou Jacques Soustelle. ‘Uma das primeiras inovagdes de Mauss consiste em romper (como o faz Franz Boas, na mesma época, nos EUA) com leituras evolucionistas da sociedade tio radicais, por exemplo, como a ée Herbert Spencer. Mesino assim, Mauss nio faz. um juizo a priori das inflexes que autorizam a passagem das sociedades primitivas as sociedades modemas. Sua conviesio, tal como ele a pode reve- far em um texto redigido em parceria com Durkheim, éque ha uma racionalidade do pensamento primitive. Contra Lucien Lévy-Bruhl, cle afirma que, em toda sociedade, a maneira de classificar as sas ¢ seriar 0s fendmenos é a expresso racional de uma conscién- cia coletiva. Nas tribos australianas, a classificago das coisas re- produza dos homens: pode-se, deste modo, dividir @ natureza em ‘objetos masculinos e femininos, classificados em uma divisio que reproduz a divisio em fratras... Na tribo dos Zufis a escolha € di- ferente: 0 espaco e suas diresGes determinam os prinefpios de clas- sificagao (Texto 56), Entre os esquimés a classificago do mundo é dual e opie o inverno ao verio... Sempre atento ao papel determinante da conscitncia coletiva na formagio das sociedades, Mauss se intcressa igualmente pela ‘evolugdo de certas categorias (0 espago, 0 tempo), nogées (a pes- ‘50a, a alma) ¢ priticas (a oragiio). Restabelecendo a sua génese nas representagdes religiosas cle acompattha em seguida as suas trans- formagées progressivas. Desenvolvida em seguida, & sua maneira, pela antropologia estrutural, a intuigdo central de Mauss € que a consciéncia coletiva é eriadora de sentido, Ela inscreve no social um sentido profndo que se decodifica nos peasamentos © com i i ! Funds ae portamentos individuais, Isto aparece com toda a clareza quando se observami as priticas educativas e as técnicas do 2orpo. Quer se trate do nado, da marcha, ds corrida, mas igualmente da respira- ‘so ou do sono, 2 etnologia constata sempre a mesma coisa: cada sociedade possui uma técnica particular que se imprime no corpo dos individuos, A fim de destacar, de maneira mais sensacional ainda, o papel da consciéncia coletiva, Mauss procura demonstrar que as socie-

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