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Topografias de subjetividades juvenis afirmação acerca da distância atual entre pais e fi-
lhos. O autor percebe, por meio dos vários relatos,
José Machado Pais. Sexualidade e afectos juvenis. as modulações contemporâneas que permeiam esse
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2012. 245 campo complexo de relações: “Não que os filhos
páginas. não sejam amados, é que eles não são devidamente
Glória Diógenes acompanhados” (p. 29). Como diz Chico Buarque
em Fado tropical, o que parece existir é uma “dis-
É raro um livro, resultante de uma pesquisa tância entre intenção e gesto”.
aprofundada, nos situar nos fluxos das cenas bué A velocidade, a mutabilidade, a descartabilida-
(gíria juvenil portuguesa: legal, agradável), no epi- de, a necessidade de múltiplas conectividades que
centro das experiências de vida de juventudes. São cadenciam o mundo moderno – ou pós-moderno –
escritos que escapam das armadilhas metodológicas deixam emergir outro pacto afetivo. “O compro-
tradicionalmente voltadas para obtenção e análise misso ocupa cada vez menos o horizonte da vida
de dados. Trata-se de “representações sociais circu- amorosa” (p. 37). A fluidez das relações entre jo-
lantes, com estatuto claramente opinativo” (p. 17). vens, como destaca o autor, atua “como voos de
Isso significa dizer que percorremos palavras como borboleta”. “A sexualidade tende a transformar-se
se fossem vias de acontecimentos, “pensamentos no domínio de coleção de experiências”. Isso por-
soltos” como eloquentes signos afetivos. que as sensações que a sexualidade propicia alcan-
Mais raro ainda, mesmo em se tratando de çam outros dispositivos corporais e outras mídias
um estudo qualitativo, perceber que a sexualidade de enunciação.
aparece aqui entrelaçada às tramas afetivas juvenis – Como diz João, um dos jovens participantes da
ainda que seja ressaltado pelo autor que “afectos e pesquisa, “agora nós estamos muito mais ligados às
sexualidades vestem-se de malhas sociais diferencia- novas tecnologias. Mesmo nos afectos e sentimentos
das” (p. 18). O esforço de “decifração de repertórios usamos as tecnologias para exprimir sentimentos e
culturais” opera um afastamento de um empirismo afectos, coisa que nossos pais não faziam” (p. 42). A
indutivista (por acumulação de dados) e de um te- sexualidade é intensificada, é alardeada, comunica-
oricismo dedutivista (p. 21). Esse intento resultou da, pactuada, tanto que tende à sua própria castra-
numa atitude metodológica de múltiplas entradas ção, ou a empurrá-la para um mundo de permis-
e saídas; entrevistas individuais foram antecedidas sividade onde tudo vale (p. 51). Ainda há gaguez,
por grupos de discussão e seguidas pela redação isto é, uma ausência das palavras quando se deseja
de composições por parte dos jovens relacionadas discutir a sexualidade, espaço que o autor denomi-
com os mais diversos temas: primeiro beijo, estar na “região dos silêncios cúmplices” (p. 48). Por isso,
apaixonado(a), vida amorosa, futuro, solidão, entre como ressalta Machado Pais, “é muito mais fácil
muitos outros. ensinar-se a colocar um preservativo, do que enten-
É desse modo que o leitor vai navegando numa der o complexo mundo dos afectos juvenis” (p. 49)
linguagem fluida, acessível, fazendo surgir uma “to- – sendo, em muitas situações, os termos sexualidade
pografia de subjetividades juvenis” (p. 19). Prova- e afectos utilizados como sinônimos, o que empo-
velmente, diante dos abismos de entendimento que brece os dois campos de experiência.
têm alimentado distâncias entre a juventude e as Assim, é pertinente a indagação – “faz ou não
escolas, a juventude e o universo das famílias, esse sentido que as escolas possam realizar encontros
livro configura-se como uma preciosa cartografia. que estimulem os jovens a reflectir aquilo que em
O maior mérito de Sexualidade e afectos ju- sempre reflectem?” (p. 57). Lembrando que os jo-
venis, a meu ver, é não apenas o de ultrapassar al- vens entrevistados são filhos da geração dos anos de
guns clichês que povoam zonas de conforto, mas 1960, tendo crescido em famílias monoparentais e
também ressignificá-los por dentro dos fluxos de recompostas (p. 71), alguns pais, principalmente
sentidos que habitam as práticas discursivas juve- mães, “não desejam que seus filhos sejam tão repri-
nis. O primeiro dos clichês provém de uma usual midos quanto eles próprios o foram no seu tempo

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de juventude” (p. 116). Repressão tornou-se uma jovens criam territórios movediços de experiências,
palavra quase banida desse repertório, sendo muitas sem sair do lugar. São eles, o quarto e o computa-
vezes recodificada como respeito. dor, espaços centrais da construção da autonomia
Isso significa que se, por um lado, existe uma e ampliação das “escrituras de si”, seguindo aqui a
aura de liberdade e de promoção de valores de au- terminologia de Paula Sibilia (2002). A televisão
tonomia no campo das práticas juvenis, ainda coe- também habita a casa em vários cômodos e deses-
xiste, por outro lado, o silêncio e a padronização de tabiliza os fluxos de comunicação. Ela, assim como
juízos do senso comum sobre namoro, casamento, o computador, enuncia valores, práticas e imagens
amor e sexualidade: casamento é sinônimo de prisão, de forte conteúdo erótico que atravessam o conjun-
educação sexual nas escolas pode vir a estimular a to de experiências juvenis. Isso sem esquecer, como
homossexualidade, aborto é controverso, traição em destaca Machado Pais com uma boa dose de ironia,
nenhuma situação. “A sexualidade deixou de ser um “dos esfomeados telemóveis”.
tabu, mas não deixou de provocar um nervoso miu- Interessante a pontuação do pesquisador no
dinho e risos incontidos que reflectem alguma inibi- que diz respeito às diferenciações entre autonomia
ção quando se fala sobre o tema” (p. 135). Tudo isso e independência juvenil. Muitas vezes essas brechas
envolvido numa instigante malha de contradição, da autonomia “sobrevivem apenas à custa de sopros
tendo em vista que os jovens aderem a “um amor financeiros dos pais”. Num universo onde cada vez
confluente, baseado em trocas emocionais e afecti- mais se esgarçam as oportunidades relativas ao pri-
vas, numa relação de abertura à intimidade” (p. 72). meiro emprego, em que o próprio ideário da so-
De fato, os tempos mudaram, tendo em vista ciedade moderna do trabalho sofre efeitos de crises
a recusa do provérbio “casamento e mortalha no mundiais, o hiato da condição juvenil entre auto-
céu se talha” (p. 87), e ao mesmo tempo não mu- nomia e liberdade ganha fronteiras mais nítidas.
daram. Nesse terreno ambivalente, pantanoso, de Sendo assim, a pesquisa evidencia valores e práticas
uma geração que viveu sob o signo do “faça amor, em mutação. Nessa profusão de imagens, da inten-
não faça guerra” e que tenta educar dentro dessa sificação de usos de tecnologias, o “corpo tornou-se
mescla, é muitas vezes impossível alinhavar liber- um importante passaporte de acesso a um mundo
dade e obediên­cia, autonomia e respeito à ordem de trocas afectivas”. O corpo compõe e possibili-
paterna/materna. É por isso que ainda se contro- ta a produção de um múltiplo campo de imagens
lam as jovens nas saídas noturnas e liberam-se os de si, um “instrumento de gestão da identidade”
jovens mancebos. (p. 121). A “proliferação de estilos juvenis”, como
Um dos grandes méritos desta pesquisa é lidar afirma Suely Rolnik (1994), de identidades prêt-à-
justamente com zonas de exercício de um noma- -porter traduzem o corpo como território de dobras
dismo e de reinvenções de si. Como destaca o au- de construções subjetivas.
tor, existe no mundo juvenil uma espécie de “fun- Esses corpos em deslocamento, o vácuo de
damentalismo tecnológico” que ameaça excluir os compartilhamento de vivências no campo da se-
desconectados desta “post-utopia” a que chamamos xualidade, esse quase deserto de terrenos seguros,
de rede. Os jovens desenvolvem uma “sensibilidade­ mobilizam os jovens para tipos de “vinculações
tecnossocial associada a novas maneiras de ser e pessoais, de sustentos emotivos que lhes permitam
sentir a cultura no tempo e no espaço” (p. 102). manter uma confiança na vida” (p. 149), ou seja,
Aqui se cria uma zona própria, pontilhada por re- um círculo de afetos. Por isso, ressalta Machado, “o
correntes conflitos familiares. indivíduo não é um simples construtor de sua bio-
Outra linha de fuga é o quarto. Isso significa grafia, desenhada a seu bel-prazer. É também uma
dizer que “no quarto, em frente do computador, os construção que reflecte os relacionamentos que ele
jovens incorporam ‘outros territórios significativos’ próprio ajuda a construir” (p. 150). Eu diria que os
que galgam as fronteiras do seu canto residencial” afetos são pedrinhas que lançamos nas águas com
(p. 105). Dentro de um “tempo intemporal” e de suas elipses concêntricas mais ou menos largas,
um “espaço de fluxos”, como diz Castells (2009), os mais ou menos nítidas. Por isso mesmo a sensibi-

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lidade caminha para uma significativa percepção, e te acessível” (p. 205). As composições escritas no
nesses casos a noção de rede social é mais apropriada “recato de seus aposentos” possibilitaram que esses
do que a de comunidade, noção que implica uma sentimentos escorressem como magmas de palavras
estabilidade e um sentimento de pertença, em con- entornadas no papel. Por isso foi possível para ele
traste com a rede social, mais associada à contin- decodificar os meandros que definem as tensões en-
gência e à fluidez. Os afetos juvenis constituem-se tre medo e angústia. “O medo ocorre no seio da
nas experimentações, como uma ampliada cidade comunidade, nas suas formas de vida e de comuni-
povoada de esquinas, de vias, desenhadas entre re- cação. A angústia, em contrapartida, aparece entre
cantos de ficar, recantos de passar. Desse modo, “a os que se afastam de uma comunidade de pertença,
identidade é compósita, produto de múltiplas so- de rotinas compartilhadas” (p. 217). O medo re-
cializações e reconfigurações” (p. 151). No geral, de quer segurança, a angústia cadencia os passos dos
acordo com Kevin, um jovem escutado na pesqui- rebeldes, dos transgressores, dos que se perdem ou
sa, “a relação com meus pais é bué de fixe, por que descartam valores compartilhados dentro da comu-
eles gostam bué de mim” (p. 162). nidade e da família.
No capítulo sobre as “alcunhas de reconheci- As conclusões, eu diria, devem ser lidas. Creio
mento”, o autor identifica aquilo que muitas vezes que os leitores irão perceber que “o mundo dos
também me ocorreu nas minhas trajetórias de “pes- afectos e das sexualidades juvenis é mais complexo
quisadora em movimento”. Em 1993, coordenei, do que à primeira vista se poderia supor” (p. 230).
em Fortaleza, um levantamento censitário acerca O jogo do desejo, enlaçando a um só tempo sexu-
da quantidade de meninos e meninas em situação alidades e afetos, oferece transfigurações bem mais
de rua. Deparamo-nos com as mais diversificadas emaranhadas do que a vã filosofia dos manuais so-
alcunhas, designadas por eles mesmos de apelidos. bre educação sexual para adolescentes. Como assi-
Eram ratos da madrugada, peixinho, tufão, rapo- nala a perturbadora indagação lançada pelo autor:
sa e tantos outros. Percebemos – e essa percepção “que garantias existem que adultos que vivem a sua
tem se intensificado na nossa atual pesquisa sobre própria sexualidade de modo problemático estejam
atuações juvenis no ciberespaço – que, no geral, faz em condições de ensinar a jovens”? (p. 238).
parte da condição juvenil vivenciar outros batismos Quem sabe, aqui, nessa sólida e intensa tapeça-
simbólicos. Como preciosamente assinala Macha- ria afetiva e em tantos outros passos que temos efe-
do, a alcunha é “um lugar de epifania da verdade tuado na construção de autonomias juvenis, todos
no seu entrelaçamento com o nome” (p. 187), são nós estejamos cadenciados por um tempo da deli-
portadoras de um prazer de enunciação (p. 188). cadeza, tal qual enuncia os versos da canção Todo o
Desse modo, as alcunhas mimetizam o espaço so- sentimento do já evocado Chico Buarque:
cial e o individual, porque um apelido, diferente-
mente do nome de batismo, não se outorga, se con- Pretendo descobrir
quista, ou, como se diz coloquialmente, se faz por No último momento
onde. Obviamente, assim como tão bem elucidou Um tempo que refaz o que desfez
Goffman em Estigma, “as alcunhas físicas podem Que recolhe todo o sentimento
explorar tropismos semânticos onde a totalidade da E bota no corpo uma outra vez
aparência é substituída pela parte”. De todo modo, […].
prosseguindo essa via de discussão, “a alcunha só
faz sentido dada a sua existência relacional”, como
uma elucidativa “mirada compartilhada” (Goff-
man, 1975, pp. 195, 203 e 204). BIBLIOGRAFIA
No final, Machado explicita, para a satisfação
do leitor, o que já havia deixado pulsar em cada CASTELLS, Manuel. (2009), A sociedade em rede.
linha de seu livro: “os sentimentos não se deixam São Paulo, Paz e Terra.
conhecer como objeto sociológico diretamen- GOFFMAN, Erving. (1975), Estigma: notas sobre

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a manipulação da identidade deteriora. Rio de Sobre a profissão de economista


Janeiro, Zahar. nas Américas
ROLNIK, Suely. (1994), “Toxicômanos de iden-
tidade: subjetividade em tempo de globaliza- Verónica MONTECINOS & John MARKOFF­.
ção”. Disponível em <http://caosmose.net/ Economists in the Americas. Cheltenham/Nor-
suelyrolnik/pdf/viciados_em_identidade.pdf>. thampton, Edward Elgar, 2009. 341 páginas.
SIBILIA, Paula. (2012), O homem pós-orgânico: Ana Maria Bianchi
corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de
Janeiro, Relume Dumará. Na avaliação do valor de uma coletânea muitos
critérios podem ser adotados, com alguma margem
Glória Diógenes de tolerância para compensações. Entre eles estão
é professora doutora do Programa de Pós- certamente a relevância da temática tratada, um
Graduação em Sociologia da Universidade fio condutor claro, o crivo a que os artigos selecio-
Federal do Ceará, criadora do Laboratório nados foram submetidos e a qualidade da reflexão
das Juventudes – UFC, e pós-doutoranda
no Instituto de Ciências Sociais da contida nos trechos elaborados por seus organiza-
Universidade de Lisboa. dores, sejam eles introdutórios ou de conclusão.
E-mail: <gloriadiogenes@gmail.com>. Pois bem, a coletânea organizada por Monteci-
nos e Markoff vale, desde logo, pela qualidade dos
capítulos de autoria dos organizadores, que com-
preendem um texto introdutório e um epílogo,
além de um capítulo sobre o Chile de Montecinos.
Na introdução, os organizadores fazem uma am-
pla varredura da temática do livro e definem sua linha
de exposição, cujo foco é a história da profissão de eco-
nomista nas Américas durante o século XX. Em uma
fase pregressa dessa história, situada em meados do
século passado, os autores retratam a adoção de uma
abordagem tipicamente latino-americana no ensino e
na prática da economia. Foi essa a fase de predomínio
da concepção desenvolvimentista, sob a liderança da
escola cepalina. A fase seguinte corresponde a um mo-
vimento de internacionalização (os autores preferem
falar em transnacionalização) da profissão, sob a in-
fluência dominante dos Estados Unidos e seus centros
de ensino e pesquisa. Essa segunda etapa é marcada
pelo intercâmbio internacional de alunos e docentes e
pela ascensão de economistas formados principalmen-
te nos Estados Unidos e no Chile a postos estratégi-
cos na condução da política econômica nacional. Os
organizadores mostram como os think tanks, que se
expandiram significativamente nas décadas de 1970 e
1980, converteram-se em plataformas de difusão das
concepções neoliberais, promovendo um acentuado
automento da semelhança entre os economistas dos
vários países do continente americano.
Igualmente interessante é o epílogo do livro,
onde Montecinos e Markoff especulam sobre aqui-

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