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1 ‘ DN ama — & omdnete Cousmr nce MAMI ] Ra. BR A Natureza do Nimero Piaget estabelcceu uma distingao fundamet.‘al en- tre trés tipos de conhecimento considerando suas fontes basicas e seu modo de estruturagdo: conhecimento fi- sico, conhecimento ldgico-matematico e conhecimento social (convencional) Conhecimento Fisica ¢ Légico-Matemitico Piaget concebeu dois tipos, ou pédlos, de conheci- mento — 0 conhecimento fisico num extremo e o légico- matematico no outro © conhecimento fisico é 0 conhecimento dos objetos da realidade externa. A cor e o peso de uma plaqueta so exemplos de propriedades fisicas que esto nos obje- tos na realidade externa, e podem ser conhecidas pela observacao. O conhecimento de que a plaqueta caira quando a deixarmos solta no ar é também um exemplo de conhecimento fisico. Contudo, quando nos apresentam uma plaqueta vermelha e uma azul, e notamos a diferenca, esta dife- renga é um exemplo de pensamento légico-matematico. As plaquetas sao realmente passiveis de observacao, mas a diferenca entre elas nao. A diferenga é uma relacéo criada mentalmente pelo individuo que relaciona os dois objetos. A diferenca nao esta nem em uma plaqueta nem em outra. Se a pessoa nao colocasse os objetos dentro desta relagdo, para ela no existiria a diferenca Outros exemplos das relagGes que o individuo pode criar entre as duas plaquetas sao: parecidas, mesmo 14 peso e duas. E tao correto dizer que as plaquetas verme: Ihas e azuis sio parecidas, quanto dizer que elas sio diferentes. A relagéo na qual uma pessoa coloca os objetos é uma decisio sua. De um ponto de vista as duas plaguetas sic diferentes e de outro elas sio parecidas. Se a pessoa deseja comparar 0 peso das duas plaquetas é provavel que diga que os objetos sao “iguais” (em peso). Se, contudo, quiser analisar os objetos numerica mente, dird que sdo “dois”. As duas plaquetas sao obser- vaveis. porém sua “natureza dual” ndo é © numero é a relagdo criada mentalmente por cada iduo.” A crianga progride na ‘construgao do conhecimento logico-matematico pela cvordenacao das relacdes sim ples que anteriormente ela criou entre os objetos. O conhecimento légico-matematico consiste na coordenagio de relagdes. Por exemplo ao coordenar as relagdes de igual, diferente e mais, a crianga se torne apta a deduzir que ha mais contas no mundo que con: tas vermelhas e que hé mais animais do que vacas. Da mesma forma é coordenando a relacdo entre “dois” € “dois” que ela deduz que 2 + 2 = 4,e que 2x 2=4 indi (1 Apresso-me em dizer que “dois” nao € um bom numero para ilus- trar a natureza logico-matematica do numero. Piaget faz ums Giferenca entre mimeros perceptuais e niimeros. Os niameros per ceptuals so nimeros pequenos. até quatro ou cinco, que poder: ser distinguidos pela percepgao, sem requerer uma estruturacso logico-matematica. Até alguns passaros podem ser treinados para distinguir entre ~00" e “000”. Contudo, ¢ impossivel distingwir “ooo0000" de "00000000" apenas pela percepgao. Os nimeros pe quenos que sto malores do que quatro ou cinco sio chamados de meres elementares. A tareta de conservacdo desria anterior mente usa sete ou olto objetos e envolve nimeros elementares Embora o -doi”seja wn numero perceptual, si tember. Dose ser um niimero logico-matematico para um adulto que Jé cons tulu todo o sistema Idgico-matematico dos niimeros. Mesmo reco- hnbecendo o problema dos’ nuimeros perceptuais, escolhi o nimero dols nesse exemplo porque, com duas fichas, pesso llustrar outras relagées simples tais como diferente, parecida, ¢ do mesmo peso 15 | | | | Assim, Piaget reconhecia fontes internas e externas, do conhecimento. A fonte do conhecimento fisico (assim como a do conhecimento social) é parcialmente ™' ex- terna ao individuo. A fonte do conhecimento légico-ma- teméatico, ao contrario é interna. Esta afirmagdo seré esclarecida pela discussio que se segue a respeito dos dois tipos de abstragdo através dos quais a crianca constréi 0 conhecimento fisico e 0 légico-metematico. A Construgio do Conhecimento Fisico e do Conhecimento Légico-Matematico: Abstragao Reflexiva e Empirica A visio de Piaget sobre a natureza légico-matema- tica do niimero esti em agudo contraste com a visio dos professores de matematica encontrada na maioria dos textos. Um texto tipico de matematica moderna (Duncan et al. 1972) declara, por exemplo, que o ntime- ro “é uma propriedade dos conjuntos, da mesma manei ra que idéias como cor, tamanho e forma se referem a propriedades dos objetos” (pag. T30) Assim apresentam-se as criancas conjuntos de quatro lapis, quatro flores, quatro baldes e cinco lapis, por exemplo, para pedir-Ihes que encontrem os conjun- tos que tenham a mesma “propriedade de ntimero”. Este exercicio reflete a suposigéo de que a crianga aprende conceitos sobre o niimero ao abstrair a “propriedade de numero” a partir de varios conjuntos, do mesmo modo que elas abstraem a cor e outras propriedades fisicas dos objetos. Na teoria de Piaget, a abstragao da cor a partir dos objetos é considerada de natureza muito diferente da abstragao do niimero. As duas so, de fato, tao diferen- tes, que até se distinguem por termos diferentes. Para (8) A razdo pela qual usel a expressao parclalmente ficara mals clara quando pasar a discussdo sobre a abstracao empirica e reflexiva, x 16 a abstragao das propriedades a partir dos objetos, Piaget usou o termo abstragdo empirica (ou simples). Para a abstragdo do ntimero, ele usou 0 termo abstragao re- flexiva Na abstragdo empirica, tudo o que a crianga faz é focalizar uma certa propriedade do objeto e ignorar as outras. Por exemplo, quando a crianga abstrai a cor de um objeto, simplesmente ignora as outras propriedades tais como o peso e o material de que o objeto é feito (isto é, plastico, madeira, metal, etc.) Em contrapartida, a abstragdo reflexiva involve a construgdo de relagées entre os objetos. As relagées, como disse anteriormente, nao tém existéncia na reali- dade externa. A diferenca entre uma ficha e outra nao existe em uma ficha ou outra, nem em nenhuma outra parte da realidade externa. A relagdo entre os objetos existe somente nas mentes daqueles que podem cria-la. © termo abstragéio construtiva poderia ser mais facil de entender do que abstragao refleziva, para indicar que esta abstracdo é uma construgdo feita pela mente, a0 invés de representar apenas 0 enfoque sobre algo j4 existente nos objetos. ‘Tendo feito a distingao entre a abstragdo reflexiva ea empirica, Piaget prosseguiu afirmando que, no 4m- bito da realidade psicoldgica da crianga, nao é possivel que um dos tipos de abstragdo exista sem o outro. Por exemplo, a crianga nao poderia construir a relagao di- ferente se nao pudesse observar propriedades de dife- renga entre os objetos. Da mesma forma, a relagao dois seria impossivel de ser construida se as criangas pensas- sem que os objetos reagem como gotas d’agua (que se combinam e se transformam numa gota). Por outro lado, a crianca nao poderia construir o conhecimento fisico se ela nao tivesse'um sistema de referéncia légico- . ” matematico que Ihe possibilitasse relacionar novas observagdes com um conhecimento ja existente. Para perceber que um certo peixe é vermelho, por exemplo, a crianca necessita possuir um esquema classificatério para distinguir 0 vermeiho de todas as outras cores. Ela também precisa de um esquema classificatério para distinguir peite de todos os outros objetos que j4 co- nhece. Portanto um sistema de referéncia légico-matema- tico (construido pela abstracao reflexiva) é necessario para a abstracdo empirica, porque nenhum fato pode- ria ser “lido" a partir da realidade externa se cada fato fosse um pedaco isolado do conhecimento, sem nenhu- ma relagdo com 0 conhecimento j4 construido numa forma organizada, Assim, durante os estdgios sensdrio-motor e pré- operacional a abstracdo reflexiva nao pode acontecer independentemente da empirica, mais tarde, entretan- to, ela poderé ocorrer sem depender desta tltima. Por exemplo, se a crianca jé construiu o numero (por abstragdo reflexiva), ela sera capaz de operar sobre os mimeros e fazer 5 + 5 e 5 X 2 (por abstracdo reflexiva) © fato de que a abstragdo reflexiva nao pode ocorrer independentemente das primeiras construgdes de rela- Ges feitas pelas criancas tem implicagdes importantes para o ensino do numero. Este principio implica que a crianga deve colocar todos os tipos de conteido (obje- tos, eventos e agdes) dentro de todos os tipos de rela- g6es para chegar a construir o numero. Este principio serd elaborado brevemente, logo abaixo, e no Capitulo 3 (sobre os principios de ensino) A distingao entre os dois tips de abstragao pode parecer pouco importante enquanto a crianca esta aprendendo os pequenos numeros, digamos até 10. Con- tudo, quando ela prossegue em direcdo a ntimeros maio- 18 res tais como 999 e 1000. fica claro que € impossivel aprender cada n{imero até 0 infinito através da abstra- co empirica a partir de conjuntos de objetos ow fi ras! Os ntimeros nfo so aprendidos pela abstragao reflexiva, A medida que a crianca constréi relagées, Como essas relacées so criadas pela mente, € pos- sivel entender ntimeros como 1.000.002 mesmo que nunca tenhamos visto ou contado 1.000.002 abjetos num conjunto, A Construcio do Nrimero: a sintese da ordem € da inclusio hierarquica © numero, de acordo com Piaget, é uma sintese de dois tipos de relagdes que a crianga elabora entre os objetos (por abstragao reflexiva), Uma é a ordem e a outra é a inclusio hierdrquica. Gostaria de iniciar a discussao através do que Pia- get entendia por ordem. Todos os professores de crian- gas pequenas podem observar a tendéncia, comum entre elas, de contar objetos saltando alguns, ou de contar 0 mesmo objeto mais de uma vez. Por exemplo, quando se dao oito objetos a uma crianga capaz de Tecitar “Um, dois, trés, quatro..." corretamente até dez, pode ser que ela termine de contar garantindo que ha dez objetos, ao conté-los da maneira que aparece no Quadro 4(a). Essa tendéncia mostra que a crianga nao sente a necessidade logica de colocar os objetos nu- ma determinada ordem para assegurar-se de que no salta nenhum nem conta o mesmo duas vezes. S6 pode- mos nos assegurar de que néo deixamos de contar ne- nhum objeto, ou de que no repetimos nenhum, se os colocarmos em ordem. Contudo, nao é necessario que a erianca coloque os objetos literalmente numa ordem espacial para arranja-los numa relacéo organizada. O importante é que possa ordend-lcs mentalmente como se vé no Quadro 4(b) Quadro 440), 4 ordenagdo men fal dos objetor mosirados no Qua tro sa) Quadro 41a). A moneira pela Qual rwitas crioncas de 4 anos Ye a ordenagao fosse a unica operacao mental da criarica sobre os objetos, estes ndo poderiam ser quan- tificados, uma vez que a crianca os consideraria apenas um de cada vez, em vez de um grupo de muitos a0 mesmo tempo. Por exemplo, depois de contar oito objetos arran- jados numa relagdo ordenada como se vé no Quadro 5(a), a crianca geralmente diz que ha cito. Se Ihe pedir- mos entdo que nos mostre os oito, as vezes ela aponta para 0 tiltimo (0 oitavo objeto). Esse comportamento indica que, para essa crianga, as palavras um, dois, trés, etc. so nomes para elementos individuais de uma série, como Jodo, Maria, Suzaninha... Pedro. Portanto, quan- do Ihe perguntamos quantos so, a crianga responde 0 que chega até Pedro. O nome Pedro serve para 0 ultimo individuo da série e no para o grupo todo. Para quan- tificar os objetos como um grupo, a crianca tem que colocé-los numa relacdo de inclusio hierarquica. Esta relag&o vista no Quadro 5(b), significa que a crianca inclui mentalmente um em dois, dois em trés, trés em quatro, ete. Quando Ihe apresentamos oito objetos, ela s6 conségue quantificar o conjunto numericamente se puder coloca-los tocos numa tinica relacao que sinte- tize ordem "" ¢ inclusao hierarquica. @ Quadro $. 0 sermo cite usedo para se referir apenas ao iltimo clemen Orie Snirdrio dav mesma. pelasra usade com a estrutura da inehurdo hierdrquica A reagao das criangas pequenas @ tarela de incluy so de classes" ajuda-nos a entender qudo dificil ¢ construir a estrutura hierérquica. Na tarefa de inclu- sdo de classes, por exemplo, a crianga recebe seis ca- chorros em miniatura e dois gatos do mesmo tamanho. (a) Um outro termo para sintese € a assimilacio reciproca de dois taquemas — 0 esquema da ordenacéo € o de ir Incluindo hlerar- Guicamente um em dois. dois em tres, etc (10) Embora seja necessario ordenar os objetos para assegurar-se de que nenhum foi saitado ou contado mals de uma ver, a order specifica se torna irrelevante depois que 0 objeto 38 fol comtado tapos ter sido contado, 0 objeto se inclui na categoria dos 14 con- tatos, como qualquer outro objeto, e nao importa se o objeto tepecitico era o terceito, 0 quarto ou o quinto objeto na order. (any A tarefa da inclusdo de classes pretende determinar @ habilidade Ga etlanca para ccordenar 0s aspectos qualitatives ¢ quantita tivos de uma classe e uma subelasse. Por exemplo, a crianga doe diz que ha mais cachorroz do que animais ndo esté coordenands fot aspectos quantitativos © qualitativos da classe (animals) ¢ 4% subelasse (eachorros) ‘A inclusto de classes € semelhante. porém diferente, da estruc fura hierarquiea de numero, A inclusdo de classes maneja com qualldades tais como as que caracterizam cachorros, gatos ¢ animais. (segue) a Em weguica faz-se a pergunta: — “O que é que vocé vé?", para que o examinador possa prosseguir com alguma palavra que venha do vocabulario da crianga Entdo, pede-se a crianca que mostre “todos os animais", “todos os cachorros”, e “todos os gatos” com as pala- vras que a crianga tiver usado (p. ex.: cachorrinho) Somente depois de assegurar-se sobre a compreen- sao da crianga a respeito dessas palavras é que o adulto faz a seguinte pergunta em relacdo a inclusdo de clas- ses: “Existem mais cachorros ou mais animais?” A resposta tipica das criangas de 4 anos é: — “Mais cachorros”, quando entao o adulto pergunta: — “Mais do que o que”, A resposta da crianca de quatro anos é: — “Do que gatos”. A pergunta que o examina- dor faz, em outras palavras, é: “Existem mais cachor- ros ou mais animais?", mas o que as criangas peque- nas “‘ouvem” 6: — “Existem mais cachorros ou mais gatos?” As criancas pequenas ouvem uma pergunta diferente daquela que o adulto fez porque, uma vez que elas seccionaram mentalmente o todo (animais) em duas partes (gatos e cachorros), a tinica coisa sobre a qual podem pensar séo as duas partes. Para elas, na- quele momento, o todo nao existe mais. Elas conseguem Pensar sobre 0 todo, mas nao quando estdo pensando sobre as partes. Para comparar 0 todo com uma parte, a crianga tem que realizar duas operacdes mentais ao mesmo tempo — cortar 0 todo em duas partes e recolo- car as partes juntas formando um todo. Isto, de acordo com Piaget, é precisamente o que as criancas de quatro anos nao conseguem fazer. (1) Cont. — Contudo, no niimero, todas as qualidades sao irre tes, Porque 0 cachorro e o gato sto ambos consideradar “uns” Uma outra diterenga entre o numero © a inclusto de classes ¢ a de que existe somente um elemento em cada nivel hierarquico do numero, Numa classe, geralmente. existe mals de um eles mento Entre sete e oito anos de idade, a maior parte do pensamento das criancas se torna flexivel o bastante para ser reversivel A reversibilidade se refere 4 habilidade de realizar mentalmente agdes opostas simultaneamente — neste caso, cortar o todo em duas partes e reunir as partes num todo, Na acdo fisica, material, nao é possivel fazer duas coisas opostas simultaneamente. Contudo, em nossas cabegas, isto é possivel quando o pensamento se tornou bastante mével para ser reversivel. Somente quando as partes puderem ser reunidas em sua mente é que a crianca podera “ver” que ha mais animais do que cachorros, E por isso que Piaget explica a obtencdo da estru- tura hierdrquica da inclusdo de classes pela mobilidade crescente do pensamento da crianga. Por essa razio é téo importante que as criangas possam colocar todos os tipos de contetidos (objetos, eventos, e agdes) dentro de todos os tipos de relacées. Quando as criangas colocam todos os tipos de con- tetidos em relagdes, seu pensamento se torna mais mé- vel, e€ um dos resultados desta mobilidade é a estrutura légico-matematica de ntimero vista no Quadro 5(b). O Conhecimento Légico-Matemitico ¢ Social (Convencional) A teoria do niimero de Piaget também é contraria ao pressuposto comum de que os conceitos numéricos podem ser ensinados pela transmissio social, como 0 conhecimento social (convencional), especialmente 0 ato de ensinar as crianeas a contar. Exemplos de conhe- cimento social (convencional) sao os que se referem a fatos como de que o Natal sempre ocorre a 25 de dezem- bro, que uma arvore é chamada de drvore, que algumas Pessoas cumprimentam-se em certas circunstancias, apertando as mdos, e que as mesas nao foram feitas para que se fique de pé sobre elas, A origem fundamental do conhecimento social so as convengées construidas pelas pessoas. A caracteris- tica principal do conhecimento social é a de que possui uma natureza amplamente arbitrdria. O feto de que alguns povos celebram o Natal, enquanto outros néo o fazem, 6 um exemplo da arbitrariedade do conheci- mento social, Nao existe nenhuma raaio fisica ou légi- ca para que 0 dia 25 de dezembro seja de algum modo considerado diferente de qualquer outro dia do ano. Da mesma forma o fato de que uma arvore seja chamada drvore € completamente arbitrario © mesmo objeto pode ter diversos nomes em lin- guas distintas, uma vez que no existe nenhuma rela- G40 fisica ou légica entre um objeto e o seu nome. Por- tanto, para que a crianca adquira o conhecimento so- cial € indispensavel a interferéncia de outras pessoas, A afirmagao anterior néo implica que a interferén- cia de outras pessoas baste para que a crianca adquira © conhecimento social. Assim como o conhecimento fisico, 0 conhecimento social é um conhecimento de contetido e requer uma estrutura ldgico-matematica para sua assimilacdo e organizacdo. Assim como a crianca necessita de uma estrutura lgico-matematica Para reconhecer um peixe vermelho como tal (conheci- mento fisico), ela necessita a mesma estrutura légico- matematica para reconhecer uma palavra obscena co- mo tal (conhecimento social). Para reconhecer uma Palavra obscena a crianca necessita fazer dicotomias entre “palavras obscenas” e “‘palavras que nfo so obs- cenas”, e entre “palavras” “tudo o mais”. A mesma estrutura légico-matematica ¢ usada pela crianca para construir tanto 0 conhecimento fisico quanto o social As pessoas que acreditam que os conceitos numé ricos devem ser ensinados através da transmissao socia! falham por ndo fazerem a distingdo fundamental entre © conhecimento social e o légico-matematico. No conhe- cimento l6gico-matemético, a base fundamental do conhecimento é a propria crianga, e absolutamente nada é arbitrario neste dominio. Por exemplo, 2+3 da © mesmo resultado em todas as culturas. Na realidade, toda cultura que construir algum sistema de matema- tica terminard construindo exatamente a mesma mate- mitica, porque este é um sistema de relagdes no qual absolutamente nada é arbitrario. Para citar um outro exemplo da natureza universal e nao-arbitraria do co- nhecimento légico-matematico, podemos dizer que ha mais animais do que vacas em todas as culturas. As palavras um, dois, trés, quatro sio exemplos de conhecimento social. Cada idioma tem um conjunto de Palavras diferente que serve para o ato de contar, Con- tudo, a idéia subjacente de niimero pertence ao conhe- cimento ldgico-matematico, 0 qual é universal. Portanto, a visdo de Piaget contrasta com a crenga de que existe um “mundo dos ntimeros” em diregao ao gual toda crianca deve ser socializada. Pode-se afirmar que hé consenso a respeito da soma de 2+3, mas nem © niimero, nem a adigao esto “14 fora”, no mundo so- cial, para serem transmitidos pelas pessoas. Pode-se ensinar as criancas a darem a resposta correta para 2+3, mas néo sera possivel ensinar-lhes diretamente 4s relagdes que subjazem esta adig&o. Da mesma forma, até as criancas de dois anos podem ver a diferenca entre uma pilha de trés blocos:e uma de dez. Mas isto nao implica que o nimero esteja “14 fora”, no mundo fisico, Para ser aprendido através da abstracdo empirica. A Implicacao da Tarefa de Conservacao para os Educadores Para os educadores, a tarefa de conservacao repou- sa prineipalmente na epistemologia. A epistemologia é 0 estudo do conhecimento que formula perguntas como “Qual é a natureza do ntimero?” e “De que modo as pessoas chegaram a conhecer o niimero?”. Piaget in- ventou a tarefa de conservacdo para responder a estes tipos de perguntas. Com essa itarefa, provou que o numero nao é alguma coisa conhecida inatamente, por intui¢do, ou empiricamente, pela observagao. O fato de que as criangas pequenas nao conservam o niimero antes dos cinco anos mostra que o niimero ndo é conhe- cido inatamente e leva muitos anos para ser construido. Se fosse passivel de ser conhecido pela observacio, seria suficiente para eriangas de menos de cinco anos serem expostas & correspondéncia um a um entre as duas filei- ras, para saberem que os dois conjuntos do Quadro 2 tém a mesma quantidade. Piaget também provou, com a tarefa de conservagdo, que os conceitos numéricos nao so adquiridos através da linguagem. Se assim fos- se, as criancas nao diriam que “ha oito em cada fileira mas a mais comprida tem mais” ' Com esta e muitas outras provas, Piaget e seus co- laboradores demonstraram que o numero é alguma coi- sa que cada ser humano constrdi através da criacao e coordenagao de relagdes. Por causa da construgao indi- vidual do numero, é que vemos a seqiiéncia do desen- (42) A tarefa da quotidade (Gréco, 1962) mostra, contudo, que 0 ato de contar pode ser uma ferramenta util para o pensamento. Depois de obter uma resposta de ndo-conservagado por parte da erlanga, Gréco obtinha, algumas vezes, uma resposta de conser- vacdo ac pedir a crianga que contasse as duas filelras. As inter~ pretacbes de Plaget e Gréco sobre este fendmneno sio as de que. quando a crianga se encontra num nivel de transiga0 mals alto, a lnguagem pode ser um instrumento util, que, Ihe permite, por vezes pensar num nivel ainda mals alto, volvimento sumarizada na Tab. I. No nivel I a crianga no pode nem fazer um conjunto que tenha o mesmo numero. No nivel II, torna-se apta para fazer isto por- que comecou a construir a estrutura légico-matematica (mental) de numero que se vé no Quadro 5(b). Contu- do, esta estrutura emergente ainda ndo é suficiente- mente forte para permitir-Ihe a conservagao da igual- dade numérica dos dois conjuntos. No nivel III, ela construiu uma estrutura numérica que se tornou bas- tante forte para habilitd-la a ver os objetos numerica- mente, em vez de espacialmente Observe que quando a crianga ainda nao tem a estrutura (mental) de numero nos niveis I e II, ela baseia seu julgamento no espago, ou na percepedo de fronteiras. No nivel I, como se vé no Quadro 3(b), ela usa os limites das fileiras para fazer um conjunto que tenha “a mesma quantidade”. No nivel II, quando uma fileira ultrapassa os limites da outra, como se vé no Quadro 2, a crianga conclui que esta fileira tem “mais”. A crian- ¢a que nao tem a estrutura de nimero usa a melhor coisa que lhe ocorre para fazer julgamentos quantita- tivos, isto é, utiliza a nogdo de espago. Contudo, quando ela ja tiver construido a estrutura de ntimero, 0 espaco ocupado pelos objetos se torna irrelevante, pois a crian- ga faz julgamentos quantitativos impondo uma estru- tura numérica aos nitmeros. Embora a tarefa de conservacao tenha sido cone bida para responder a perguntas epistemoldgicas, ela também pode ser usada para responder a perguntas Psicolégicas referentes ao ponto em que se encontra cada crianca na seqiiéncia de desenvolvimento. Contu- do, seria um absurdo que os educadores treinassem as criangas no sentido de que elas dessem respostas de nivel mais elevado a esta tarefa. A tazio desta minha osi¢ao € a de que o desempenho na tarefa é uma coisa € 0 desenvolvimento das infra-estruturas mentais, ilus- tradas no Quadro 5(b), é outra coisa totalmente dife. rente. Os educadores devem iavorecer o desenvolvimen. to desta estrutura, em vez de tentar ensinar as criancas a darem respostas corretas e superficiais na tarefa de conservagao Resultados encontrados em outra prova podem esclarecer a diferenca entre o desempenho na mesma. e a infraestrutura mental af presente. Passo agora a Giscutir brevemente os aspectos mais significativos de uma prova chamada conezidade, que foi conduzida por Morf (1962) em colaborago com Piaget. Veremos que embora a estrutura mental de numero esteja bastante bem formada em torno dos cinco para os seis anos Possibilitando 4 maioria das criancas a conservagao do nimero elementar, ela nao esta suficientemente estru- turada antes dos sete anos e meio de idade para per- mitir que a crianga entenda que todos os niimeros coni- secutivos estdo conectados pela operacio de “41”. Na tarefa de conexidade, Morf apresentou 9 cubos (de 2 cm’ de tamanho) a uma crianga, como se vé no Lado A do Quadro 6(a). Colocou outros 30 blocos aproxima- damente sobre uma régua, em fila, e deixou cair um de cada vez para comegar o arranjo linear marcado como B. Depois de assegurar-se da compreensio da crianca acerca do fato de que B podia ser aumentado pela queda continua de blocos da régua, ele fazia a seguinte per- gunta: “Se eu continuar deixando os blocos cairem um 4 wm, terei exatamente o mesmo niimero aqui (B), aqui (A)” Aos sete anos e meio de idade, as criangas Pensavam que a resposta era tio ébvia que a pergunta era estitpida. Contudo, antes desta idade elas nao esta- vam to seguras. 28 ow) Loo] Quadro 6. Materials usados na tarcfa de conesidade Quando 0 adulto continuava deixando cair um bloco de cada vez e perguntava, depois de adicionar mais um deles, se os dois grupos agora tinham o mesmo numero, muitas criangas persistiam dizendo “Nao” até que, subitamente, declaravam que B tinha demais. Quando se thes perguntava se havia um momento em que as quantidades eram exatamente as mesmas, as criangas respondiam: “Nao, durante muito tempo B nio tinha o bastante, mas de repente tinha demais” "'. (13) Isto era exatamente o que a situacdo significava para a erlanca. Quando ela ainda nio tem a estrutura ldgico-matematica em Sua cabeca, usa o melhor melo que tem — seus olhos. Com ceus erlanga observa que subltamente B tinha mats do que A. As crlangas que Ja construlram a estrutura de numero em suas cabecas observam aleuma coisa a mals porque podem interpre- ‘ar @ informacaa sensorial numericamente, com a operagdo re~ petlda de “417 29 Para essas criancas era possivel passar diretamen- te de “nao bastante” para “demais”, sem passar por “exatamente 0 mesmo numero”. Outras diziam que era impossivel comparar as duas quantidades por que A era uma pilha e B uma linha. Outras ainda falavam sobre a necessidade de contar os blocos. Esta resposta era um tanto sofisticada, mas disfarcava a auséncia, de certeza logica. Ao perguntar & crianca se contar era a tinica possibilidade de conseguir 0 mesmo numero, Morf descobriu que as criancas freqiientemente men- cionavam este procedimento pratico porque nao podiam elaborar uma deducao logica. Para as criangas que hé viam construido a estrutura légico-matematica de ni mero, a resposta era téo dbvia que contar era supérfluo A tarefa tornou-se ligeiramente mais dificil quan- -do se passou a usar um grande ntimero de continhas de vidro de 3 mm de diametro. Morf apresentou a crian- ¢a um frasco contendo de 50 a 70 contas. Ento, de dentro de um pedago de papel dobrado como se vé no Quadro 6(b), ele deixava cair uma conta de cada vez em outro frasco. Sé a partir dos sete anos e meio a cite anos se torna ébvio para as criangas que deve haver um momento em que as duas quantidades s4o exatamente iguais. A crianga se torna capaz de deduzir a necessidade légicd de passar pelo “mesmo ntimero”, na tarefa aci- ma, quando ela constréi a estrutura logico-matematica de niimero que lhe permite realizar esta deducao. Se ela construir a estrutura légico-matematica de manei- Ta s6lida, tornar-se- capaz de raciocinar logicamente numa ampla variedade de tarefas mais dificeis do que a da conservagao. Contudo, se ela for ensinada a dar meramente respostas corretas 4 tarefa de conservagao, no se pode esperar que prossiga em direcao a racioci- nios matemticos de nivel mais alto. 30 Finalmente, a construgéo de ntimero acontece gra- dualmente por “partes”, ao invés de tudo de uma vez A primeira parte vai até aproximadamente 7. a segun- da até 8 — 15, e a terceira até 15 — 30 (Piaget e Sze- minska 1941, Prefacio 4 3. edicdo). No entanto, mesmo estando apta a conservar com 8 objetos, isto nao signi- fica que a crianca possa necessariamente conservar quando se usam 30. O principio de ensino que pode ser concebido na base desta estruturagéo progressiva é o de que, para a construgdo dos grandes numeros, é im- portante facilitar 0 desenvolvimento dos mesmos pro- cessos cognitivos que resultaram na construgao dos pequenos ntimeros. Se as criangas constroem os peque- nos ntimeros elementares ao colocarem todos os tipos de coisas em todos os tipos de relagdes, elas devem per- sistir ativamente na mesma espécie de pensamento para completar a estruturagao do resto da série. Em conelusio, a estrutura ldgico-matematica de niimero nao pode ser ensinada diretamente, uma vez que a crianga tem que construi-la por si mesma. Contudo, nao sugiro a implicagdo pedagdgica de que a tinica coisa que o professor pode fazer é sentar © esperar. Ha certas coisas que um professor pode fazer para encorajar as criangas a pensar ativamente (a colocar coisas em relagdes), estimulando, desta forma, 0 desen- volvimento desta estrutura mental. las serdo discutidas nos dois préximos capitulos como objetivos e prineipios de ensino da teoria de Piaget. u

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