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O desenvolvimento

histórico do
messianismo no
 judaísmo antigo:

diversidade e
coerência
RODRIGO F. DE SOUSA

A
s ideias messiânicas, de configurações diversas ao longo dos tempos, e

que chegam ao Brasil por intermédio notadamente do pensamento de

Bandarra e do sebastianismo, gerando movimentos messiânico-mile-

naristas como o de Canudos e o Contestado (Godoy, 2005, pp. 100-1), têm origens

que remontam ao antigo Oriente Próximo e adquirem seus contornos determinantes

no judaísmo primitivo. O messianismo ocupou um papel de grande importância

no desenvolvimento do judaísmo antigo e na formação de suas ramificações e

grupos distintos, dentre os quais se encontram os primeiros cristãos. O estudo

do fenômeno nesse contexto constitui uma das formas mais significativas de se

compreender o judaísmo e o cristianismo na Antiguidade, e lança as bases para a

compreensão das concepções messiânicas subsequentes, inclusive das que viriam

a se desenvolver no Brasil.

RODRIGO F. DE
SOUSA é professor
no Programa de
Pós-graduação em
Ciências da Religião
da Universidade
Presbiteriana
Mackenzie.
Recentemente, alguns estudiosos têm Essas forças determinam os contornos es-
tentado minimizar a importância do mes- pecíficos do messianismo para cada grupo
sianismo na constituição do judaísmo social judaico. O conceito de ideologia ,
primitivo. Um expoente dessa linha de conforme proposto por Ricoeur (1989),
pensamento é Charlesworth, que afirma oferece o paradigma teórico básico para a
que a fragmentação e a variedade de con- formulação da nossa proposta.
cepções messiânicas no judaísmo antigo O termo “messias” deriva do grego
indicam que o messianismo possuía uma messias que, por sua vez, deriva do ara-
importância apenas ciliar (Charlesworth, maico mashiha e do hebraico mashiach
1998, pp. 1-5)1. (“ungido”). O termo grego aparece no
Do outro lado do espectro encontramos  Evangelho de João (1:42; 4:25) de forma a
a posição de Horbury, que sugere em seu indicar que, no período da escrita do Novo
esboço histórico do messianismo dos sé- Testamento, já se inseria no contexto de
culos VI a.C a II d.C. que a importância da um discurso com o qual pelo menos uma
expectativa messiânica do judaísmo nesse parcela da população judaica já se encon-
período não deve ser minimizada. Horbury trava familiarizada.
reconhece a diversidade de configurações O conceito de “ungido de Yavé” já havia
do messianismo no período, mas enxerga sofrido transformações significativas no
um elevado nível de consistência nas carac- fim do período do Antigo Testamento e a
terísticas atribuídas ao messias. Horbury vê descrição abreviada “ungido” (mashiach )
na forma de organização e transmissão dos passou a ser aplicada não só ao rei – como
livros da Bíblia hebraica (Antigo Testamento) o governante divinamente aprovado – mas
uma continuada inspiração e motivação para também ao sumo-sacerdote e adquiriu uma
a expectativa messiânica influenciada pelo conotação progressivamente voltada para o
próprio conteúdo dos textos coletados. Es- futuro. No século II a.C. o uso persistente
ses textos ocupariam um lugar proeminente dessa forma já seria uma indicação de que
nas tradições interpretativas do judaísmo no o conceito era familiar e dispensaria expli-
período grego e romano. Por sua vez, essas cações especiais.
tradições proporcionaram o surgimento de Ao discutir os usos do termo no pe-
um messianismo ramificado, mas não in- ríodo que vai do Segundo Templo às
consistente, inclusive com uma atribuição revoltas judaicas e à literatura talmúdica,
de traços super-humanos e sobrenaturais Horbury (1998, pp. 7-12) identifica quatro
comuns ao messias (Horbury, 1998, p. 2). elementos que indicam a centralidade do
O propósito da presente contribuição é messianismo:
delinear, em linhas gerais, o processo pelo
qual as expectativas messiânicas assumiram 1) os usos da terminologia, particular-
as formas que as caracterizavam no judaís- mente do equivalente grego messias, suge-
mo antigo, do final do período exílico2 até rem um uso bem difundido na oralidade ;
o princípio da era cristã, a época também 2) o uso frequente e consistente da ter-
conhecida como o período do Segundo minologia geraria certo nível de unidade
Templo, e propor uma visão do messianismo e coerência, contrariando a visão de que
que reconhece que o fenômeno assumiu as noções messiânicas eram totalmente
formas variadas, mas reteve ao mesmo díspares e inconsistentes;
1 Dentre as inúmeras contri-
tempo alguns traços característicos comuns. 3) as expectativas messiânicas origina-
buições de Charlesworth Seguindo parcialmente Horbury, nossa ram narrativas relativamente detalhadas do
destaca-se a conferência
tese é a de que o messianismo judaico tem advento, guerras e reino do messias;
sobre o messianismo orga-
nizada na Universidade de suas raízes no período da composição dos 4) o vocabulário messiânico, bem como
Princeton (Charlesworth, textos bíblicos, mas assume suas caracte- as noções que cercam o conceito, derivam
1992).
rísticas determinantes através de tradições do Antigo Testamento, e é nesta coleção
2 O período do exílio – ou
desterro – durou de cerca
interpretativas desses textos desenvolvidas que se encontra o ideário a partir do qual as
de 586 a 539 a.C. segundo forças históricas e sociais diversas. concepções posteriores se desenvolvem.

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É necessário, portanto, observar tanto o sacerdotal, como mediador entre Deus e o
uso do vocabulário messiânico como tam- povo (Mowinckel, 2005, pp. 61-75).
bém as noções ideológicas e socioculturais Mowinckel (2005, pp. 12 e 96-173)
à base do messianismo. No contexto do sugere que, em linhas gerais, essas concep-
Antigo Testamento, o termo mashiach se ções têm características idênticas ao ideal
refere basicamente a um agente investido messiânico e lhe dão forma, mas não devem
com uma função social específica. A unção ser confundidas. Devido à constante tensão
com óleo separava socialmente um deter- entre ideal e realidade, o ideal israelita da
minado indivíduo para o desempenho de monarquia tinha, desde o início, um ele-
uma tarefa especial, em caráter permanente mento de esperança futura. A seu ver, isso
ou temporário. Primariamente, o processo deve ser diferenciado do que se entende
de unção era administrado em reis (1 Sm. por “escatologia” e “messianismo”, porque
2:10, 35; 16:6; Sl. 2:2; 20:7; 84:10) – uma não se refere necessariamente ao fim dos
prática possivelmente herdada das civili- tempos, e não se baseia em uma transfor-
zações cananeia e hitita –, sacerdotes ( Lv. mação cósmica da realidade. Aesperança se
4:3; 6:15) e outros oficiais religiosos (1 Cr. baseava na atuação de Yavé, mas por meio
16:22) (Fitzmyer, 2007, pp. 9-11). O termo de processos históricos humanos.
não aparece na primeira parte do Antigo O conteúdo da esperança futura descrita
Testamento, a Torá (ou Pentateuco ). Seu por Mowinckel forma a base da escatologia
uso é significativo nas narrativas sobre a e do messianismo judaicos, e aparece inicial-
história de Israel (nos chamados livros his- mente conectado à restauração da dinastia
tóricos ou profetas anteriores), em alguns de Davi. Isso ocorre, segundo Mowinckel
salmos, e em textos proféticos. A concepção (2005, p. 20), porque o ideal messiânico
de unção remonta a ideias comuns sobre a como tal só passa a se desenvolver em Israel
monarquia no antigo Oriente Próximo, e a com o fim da monarquia. A tese de Mowin-
relação entre esses conceitos e os desenvol- ckel é, pois, composta por duas afirmações
vimentos posteriores no messianismo tem básicas. Em primeiro lugar, ele afirma que
sido abordada por diversos estudiosos. as concepções de monarquia na antiga ideo-
Mowinckel (2005) ofereceu uma das logia real e no messianismo são idênticas em
mais significativas e influentes descri- linhas gerais. Em segundo lugar, os textos
ções do messianismo judaico, baseada bíblicos que informam a expectativa messi- Reprodução
basicamente na distinção entre os con- ânica datam do período pós-exílico, quando
ceitos de “ungido” e “messias”. Para ele, a monarquia israelita não mais existia. A
o último denota invariavelmente uma expectativa messiânica faria sentido apenas
figura escatológica, o primeiro aparece à luz da esperança de restauração nacional
conectado normalmente a um rei temporal (Mowinckel, 2005, p. 155).
(Mowinckel, 2005, p. 5). Ele afirma que Uma séria dificuldade metodológica na
as concepções de reino e reinado típicas proposta de Mowinckel diz respeito a sua
do antigo Oriente Próximo formaram a definição do messias como figura escatoló-
base da tradição israelita que deu formas gica e à relação dessa ideia com os textos
particulares a essas mesmas concepções. bíblicos relevantes. Segundo Mowinckel, a
No caso específico de Israel, a concepção distinção entre “ungido” e “messias” serve
de monarquia derivava da ideologia real também como chave para determinar se uma
do antigo Oriente Próximo, mas foi recon- determinada fonte é pré ou pós-exílica. Para
figurada à luz do iavismo – a religião dos ele todos os textos genuinamente messiâni-
antigos israelitas, representada nas páginas cos são pós-exílicos, havendo ainda alguns
do Antigo Testamento – e das tradições poucos textos que foram posteriormente in- Saul tentando
sobre a peregrinação dos israelitas pelo terpretados messianicamente que podem ser
matar Davi
deserto. O papel do rei seria o de exercer a datados como pré-exílicos, mas não podem
 justiça divina – com o ideal e a realidade em ser considerados estritamente messiânicos em códice do
tensão. O rei também adquire uma função porque se referem ao rei histórico. Os textos séc. XIV

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messiânicos devem ser reconhecidos como Egito até ao dia de hoje; mas tenho andado
tal apenas se forem pós-exílicos porque o em tenda e em tabernáculo. Em todo lugar
messianismo pressupõe a queda da monar- em que andei com todos os filhos de Israel,
quia. A circularidade do argumento torna a falei alguma palavra com qualquer das suas
metodologia de Mowinckel problemática. tribos, a quem mandei apascentar o meu
Uma proposta mais interessante do ponto povo de Israel, dizendo: Por que não me
de vista da interpretação das fontes é a de edificais uma casa de cedro? Agora, pois,
Talmon (1992), que diferencia também entre assim dirás ao meu servo Davi: Assim diz
o epíteto hebraico mashiach e o conceito de Yavé dos Exércitos: Tomei-te do rebanho,
messianismo. Para ele, enquanto o primeiro de detrás das ovelhas, para que fosses
denota um rei efetivamente no trono ou seu príncipe sobre o meu povo, sobre Israel.
sucessor imediato, o segundo conceito assu- E fui contigo, por onde quer que andaste,
me um caráter progressivamente religioso removi os teus inimigos diante de ti e fiz
e visionário que transcende a significação grande o teu nome, como só os grandes têm
original do termo mashiach . Contudo, uma na terra. Prepararei lugar para o meu povo,
importante diferença entre Mowinckel e para Israel, e o plantarei, para que habite
Talmon é que o último argumenta que o fenô- no seu lugar e não mais seja perturbado, e
meno do messianismo judaico se desenvolve  jamais os filhos da perversidade o aflijam,
desde a fundação da monarquia bíblica, como antes, desde o dia em que ordenei
por volta do ano 1000 a.C., admitindo uma que houvesse juízes sobre o meu povo de
maior correlação entre a ideologia real do Israel. Dar-te-ei, porém, descanso de todos
Israel antigo e o messianismo posterior. A os teus inimigos; também Yavé te faz saber
diferença entre as propostas de Mowinckel que ele mesmo, Yavé, te fará casa. Quando
e Talmon está centrada em como se con- teus dias se cumprirem e descansares com
figura a correlação entre o messianismo e teus pais, então, farei levantar depois de ti
o retrato bíblico da dinastia de Davi. Essa o teu descendente, que procederá de ti, e
questão é extremamente significativa e deve estabelecerei o seu reino. Este edificará uma
ser explorada. casa em meu nome, e eu estabelecerei para
Os textos relevantes para a construção sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei
do messianismo no corpus bíblico não como pai, e ele me será como filho; se vier
se limitam aos que contenham o termo a transgredir, castigá-lo-ei com varas de
mashiach . Diversos textos, como Gn . homens e com açoites de filhos de homens.
49:10, Nm. 24:17, e Is. 10:34-11:5, foram Mas a minha misericórdia não o deixará,
interpretados messianicamente por grupos como a retirei de Saul, a quem tirei de diante
diversos no judaísmo do Segundo Templo, de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão
com um nível significativo na coerência da firmados para sempre diante de ti; teu trono
interpretação (Collins, 1995; Broyles 1997, será estabelecido para sempre. Segundo
p. 23). A evidência sugere que a esperança todas estas palavras e conforme toda esta
messiânica se desenvolve no Antigo Testa- visão, assim falou Natã a Davi”.
mento primariamente no eixo de tradições
Detalhe de altar
e textos que propõem a eleição divina da
bizantino dinastia de Davi. A mais significativa pas-
sagem nesse sentido é o oráculo do profeta
Natã, encontrado em 2 Sm 7:4-173:

“E naquela mesma noite, veio a palavra


de Yavé a Natã, dizendo: Vai e diz a meu
servo Davi: Assim diz o SENHOR: Edifi-
car-me-ás tu casa para minha habitação?
Porque não habitei em casa alguma desde
3 Tradução do autor. o dia em que fiz subir os filhos de Israel do
Reprodução

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A promessa feita a Davi de uma “casa” ça messiânica. Em linhas gerais, portanto,
eterna formou a base da legitimação da di- vemos que a crença na eleição divina da
nastia davídica. Diversos textos do Antigo dinastia de Davi constitui a matriz textual
Testamento refletem essa promessa, dentre comum do messianismo judaico. Isso explica
os quais podemos ressaltar os chamados a coerência que existe entre diferentes ex-
“salmos reais” (Salmos 2, 18, 20, 21, 45, pectativas messiânicas. À luz desse elemento
72, 89, 101, 110, 132 e 144), que exaltam comum, resta ainda identificar os processos
o monarca da linhagem de Davi. ideológicos por meio dos quais a diversidade
A experiência histórica real dos israelitas de messianismos se configurou.
sob a dinastia davídica frequentemente não Talmon (1992, pp. 86-91) identifica dois
refletia a visão expressa pelos textos que padrões conceituais básicos, que ele chama
aspiram por um rei ideal, que governaria o de “messianismo utópico” e “messianismo
povo como um verdadeiro representante de restaurativo” (que em sua visão poderiam
Deus. As críticas tecidas aos monarcas daví- ser traçados de volta a tradições indepen-
dicos nos textos proféticos (por exemplo, Is. dentes). Cada um desses perfis deriva de
10:34-11:5) deixam claro que o ideal bíblico ênfases distintas dadas a diferentes textos
não era correspondido pelos descendentes de da literatura bíblica. O messianismo utópico
Davi que efetivamente governavam. tende a focalizar em “textos prova” retirados
A queda da dinastia davídica com o dos Salmos e livros proféticos. A partir daí,
desterro dos israelitas nas mãos do Império vai também antecipar uma visão idílica do
da Babilônia em 586 a.C. exerce forte im- futuro, jamais experimentada por Israel ou
pacto nas percepções ideológicas populares outra nação. Já o messianismo restaurativo
do status e da eleição da casa de Davi. As concebe a era vindoura segundo um Vorzeit 
narrativas históricas do Antigo Testamento, histórico percebido como um protótipo
principalmente as tradições reunidas nos idealizado. Nessas configurações de messia-
 Livros dos Reis , afirmam que a queda de nismo, o conceito de “era vindoura” é con-
Israel e de sua monarquia se deu primaria- cebido como uma era do passado projetada
mente como resultado das falhas e pecados no futuro. Essa distinção é fundamental para
de seus líderes. a compreensão dos diferentes movimentos
No período do Segundo Templo, os textos e tendências messiânicas no judaísmo pri-
que legitimavam a eleição dos daviditas rece- mitivo, especialmente se abordada do ponto
bem uma interpretação profética, e são vistos de vista da ideologia.
como promessas divinas a respeito de um rei Ricoeur (1989, p. 304) define ideologia
ideal que governaria o povo de forma perfeita de um ponto diferente do das teorias mar-
no futuro4. Os salmos, por exemplo, são muitas xistas centradas na luta de classes e parte
vezes interpretados como “profecia”, como de categorias derivadas de Max Weber e
no texto de Qumran 1QPsa 27:11 (Broyles, Jacques Ellul. Ele relaciona ideologia ao
1997, pp. 23-5). Pelo seu foco no rei ideal cujo momento fundador de uma comunidade:
governo reflete o governo de Deus sobre seu 4 Nem todos os judeus do
povo, os salmos reais se mostram passíveis “A Ideologia depende da distância que se- período pós-exílico espe-
ravam pela restauração
de receber uma interpretação messiânica. O para a memória social de um advento que da dinastia de Davi. Por 
conteúdo e a linguagem exaltada desses sal- é preciso, no entanto, repetir; o seu papel exemplo, a extensão da
influência da expectativa
mos “fomentam uma esperança monárquica não é apenas difundir a convicção para lá do messiânica davídica nos
e davídica” (Sicre, 2000, p. 176), uma espe- círculo dos pais fundadores, para fazer dela círculos que produziram
rança de vinda de um perfeito representante o credo do grupo inteiro; trata-se também os livros dos  Macabeus é
debatida. Goldstein (1987,
do reinado davídico. de lhe perpetuar a energia inicial para além pp. 78-88) sugere que o
Diversos outros textos ecoam a esperança do período de efervescência”. autor de 1 Macabeus evi-
 tou os textos messiânicos
da restauração plena da casa de Davi ( Is. ou dinásticos porque os
11:1-9; Ez. 34 e 37; Mq. 5:1-3). Esses textos Podemos correlacionar o conceito de asmoneus não pertenciam
de fato à linha davídica.
foram apropriados por diversos grupos no ideologia proposto por Ricoeur – uma “pon- Essa posição é criticada por 
 judaísmo antigo e embasaram a sua esperan- te” com o momento fundador de um grupo Collins (1987).

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 – com os dois paradigmas de messianismo e entidade sociorreligiosa definível são
oferecidos por Talmon. Nessa perspectiva, fundamentais para Talmon7.
o messianismo restaurativo se apropriaria A partir da figura histórica do rei, o
ideologicamente do período da monarquia messianismo se desenvolve, para Talmon
davídica como o evento inaugural cuja (1992, p. 82), em uma visão de um salvador
memória promove a coesão do grupo e super-humano que surgiria em um futuro
constitui o alvo da esperança messiânica. distante e indeterminado. Ele vê esse pro-
Já o messianismo utópico seria caracteri- cesso como ocorrendo em três etapas: do
zado por uma reinterpretação criativa dos realismo histórico prevalente na era das
textos, muitas vezes aplicando-os a outros monarquias, para uma conceptualização no
referentes históricos significativos para a período do Segundo Templo, culminando
comunidade (por exemplo, o “Mestre da com a idealização do ungido após o ano
Justiça” de Qumran). 70 d.C., quando o “Messias” ocupa o lugar
Gradualmente, a crítica tecida – princi- principal como o inaugurador da era final
palmente pelos profetas – aos reis desem- da salvação universal.
bocou em uma expectativa de uma figura Talmon (1992, p. 83) afirma que há carac-
idealizada de um rei vindouro. A concretude terísticas-chave dos estágios de realismo his-
das concepções iniciais de monarquia passa tórico e conceptualização. O estágio inicial
5 Uma descrição detalhada do então a se tornar cada vez mais utópica e é centrado no espaço, com uma orientação
processo se encontra em: investida de características sobrenaturais e em direção a uma área geográfica definível,
Talmon, 1992, pp. 79-115.
sobre-humanas. a saber, a “nação-estado” soberana do Israel
6 Talmon tem cuidado em não A idealização progressiva do rei “un- bíblico na era dos reinos8. O segundo estágio
 traçar uma distinção ana-
cronística entre conceitos gido” da monarquia davídica teria como é centrado no tempo, deixando de lado os
“políticos” e “religiosos” no marco inicial a conquista de Jerusalém pelos parâmetros geográficos em direção a um
antigo Israel. Ele tem um ob-
 jetivo específico em mente, babilônios em 586 a.C. Impulsionada em universalismo compreensivo.
a saber,seu propósito é o de parte pelas expectativas proporcionadas por Talmon reconhece que as configurações
contrabalancear a tendência
de teologizar as noções de
textos do período pré-exílico, a esperança da ideia messiânica não se originam unica-
messias e messianismo em messiânica permaneceu viva. Para alguns, mente do conceito bíblico do rei ungido,
seu contexto bíblico. Seu
propósito é ressaltar suas
ela pode ser encontrada nos textos refe- mas de elementos mais gerais do universo
conotações políticas mais rentes a Zorobabel, governador de Judá no conceitual dos antigos israelitas. As escri-
imediatas, levando em conta período que segue o retorno do exílio em turas hebraicas formam o ponto de partida
o contexto histórico da-
queles que desenvolveram 539 a.C. Esses oráculos se encontram nos das concepções messiânicas. A ênfase dis-
esses conceitos. livros bíblicos de Ageu e Zacarias (cf. Ag. tintiva dos diferentes grupos que defendem
7 Talmon , 1992, p. 81. Por  2:20-23 e Zc. 3:8; 4:1-4; 6:9-15)5. ideias messiânicas pode ser explicada como
essa razão, ele afirma ser 
fundamental observar uma
O estudo do messianismo deve levar em derivada de diferentes porções ou estratos
comunidadesociorreligiosa conta essa progressão histórica, sem deixar do cânon bíblico, juntamente com fatores
distinta como a de Qumran,
de lado a questão das representações sociais externos que afetaram cada grupo (Talmon,
e deixa de lado na sua
investigação os chamados do messianismo. Estas se originam no 1992, pp. 83-4).
livros apócrifos e pseud mesmo universo conceitual e discursivo da Talmon, assim como Horbury, propõe
epigráficos, uma vez que
ele considera impossível monarquia bíblica. Para Talmon, mashiach que o messianismo pode ser percebido antes
identificar os grupos por  é originalmente uma noção sociopolítica e depois do exílio, embora os contornos da
 trás desses textos.
que deve ser abordada primariamente à ideia tenham se delineado mais especifica-
8 Pode-se levantar uma ob-
luz do contexto histórico e conceitual da mente no período pós-exílico. É o elemento
 jeção ao uso de “nação-
estado” com referência ao instituição bíblica do reinado6. Esse caráter de continuidade entre as realidades pré e
Israel antigo se seguirmos a político “terreno” do conceito é importante pós-exílicas que permite a percepção da
argumentação de autores
como Eric Hobsbawn, que para Talmon uma vez que manifestações coerência entre as diferentes configurações
sugerem que o conceito posteriores do messianismo podem ser do messianismo.
de nação é uma ideia da
modernidade. Para uma mais bem avaliadas tendo em vista grupos A visão de Mowinckel é problemática
defesa da ideia de que constituídos que apresentam aos estudio- ao sugerir que o desenvolvimento do mes-
nação é um conceito que
remonta à Antiguidade, ver:
sos um perfil sociorreligioso específico. sianismo é inerentemente tardio. Essa visão
Roshwald, 2006. Sendo assim, as noções de estrutura social se fundamenta principalmente na oposição

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radical traçada entre esperança futura (es- e dos oráculos de salvação dos profetas. O 9 Mas a abordagem da cha-
catologia) e o reinado temporal de um rei caráter super-humano atribuído à figura do mada escola escandinava
e do “Mito e Ritual” – às
contemporâneo9. A proposta de Talmon rei davídico permitiu uma transformação e quais o próprio Mowinckel
faz mais jus às fontes ao identificar um adaptação gradual das ideias messiânicas pertencia – que percebe
o conceito de monarquia
crescimento das ideias messiânicas como do judaísmo e cristianismo10. como intrinsecamente re-
intrínseco e contemporâneo à realidade da À luz do fato de que o desenvolvimento do lacionado ao messianismo
permite admitir que associa-
monarquia israelita. conceito de messianismo ocorre segundo re- ções messiânicas remontem
Crescendo a partir de concepções co- alidades históricas e sociais diversas, Talmon ao período das mais primi-
 tivas monarquias do antigo
muns de “unção” e monarquia no antigo está correto em afirmar que isso não pode ter
Oriente Próximo.
Oriente Próximo, o messianismo pode ser ocorrido de maneira linear. Mas a origem do
10 Para Horbury (1998, pp. 6-7),
visto como uma influência sociocultural messianismo do período do Segundo Templo o conceito de messianismo
profunda na comunidade judaica do perío- com base no conteúdo dos próprios textos não se restringiria à vinda
de um ser super-humano
do do Segundo Templo. Literariamente, a do Antigo Testamento, nos quais a ideia no fim dos tempos, mas
tradição gira em torno primariamente das messiânica já se encontra presente mesmo poderia ser aplicado tam-
bém a líderes proeminentes
promessas feitas à dinastia de Davi ( 2 Sm. que de forma incipiente, garante uma medida
esperados em um futuro
7; Gn. 49:10), dos chamados salmos reais de coerência e uniformidade. próximo, sem conotações
de “fim dos tempos” ou
sobrenaturalismo.Portanto,
questões por vezes tratadas
sob a rubrica de ideologia
real são vistas por Hor-
bury como passíveis de ser 
estudadas sob a ótica do
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