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Caetano Veloso
O toque suave, o lirismo, a poesia sutil. O desespero das derrotas amorosas, dos
conflitos diários, administrados com a serenidade possível. Mais precisamente, com a
busca de alguma harmonia num cotidiano louco
— harmonia que se reflete em suas próprias composições. Essas são algumas das
coisas sugeridas na audição atenta dos sambas e chorinhos de Paulinho da Viola. Há
muito mais: imagens poéticas sofisticadas mas que não fazem ostentação disso — e são
entendidas e atingem por igual tanto o povão quanto os ouvintes letrados.
O mesmo pode-se dizer de seus arranjos: o samba é “tradicional”. E no entanto
não é: há algo mais, uma quebra de andamento aqui ou ali; uma passagem atonal, um
acorde ou dedilhar que pode ter vindo da MPB, do jazz ou até do funk ou pop. As
novidades (atualizações?) que Paulinho da Viola vem introduzindo no samba, ao longo de
sua carreira, não chocam. Não são criadas com esse fim. Mais duradouras, são
assimiladas quase inconscientemente pelo público, pelos músicos, por outros sambistas.
Paulinho da Viola é possivelmente o maior sambista vivo — ao lado de Chico
Buarque. Mas não é só de samba que Paulinho dá uma irrepreensível aula no LP Eu canto
samba (BMG Ariola), após cinco anos sem gravar disco. Pode-se dizer que, embutidas
em seu trabalho, há sugestões de caminhos para a “brasilidade”. Sem ranços ou
conservadorismos — que ele não é disso, muito pelo contrário.
Paulinho da Viola indica um caminho possível (o seu próprio), que não renega os
grandes achados do passado e da tradição brasileira — mas não estaciona por aí. Avança
no sentido de integração a este mundo cada vez mais internacionalizado e
multicomunicante. Atento, porém, para não ser tragado pela enxurrada da mídia e das
fórmulas determinadas pela frieza industrial do mercado.
Por isso ele pôde regravar o clássico Não tenho lágrimas (que me rolem na face, pra
me socorrer), de Max Bulhões e Milton de Oliveira. Integrando em seus arranjos o
clássico trombone e os típicos reco-reco, cavaquinho e violão de sete cordas com teclados
DX-7, por exemplo, ele se sente à vontade para filosofar sobre o processo de criação
artística: “Quando surge a luz da criação no pensamento ele/ (o poeta) trata com ternura o
sofrimento/ e afasta a solidão”. E, como diz o próprio nome do disco, Paulinho da Viola
faz sem afetação a sua revolução discreta, mas de forma consciente e irônica: “Há muito
tempo eu escuto esse papo furado/ dizendo que o samba acabou/só se foi quando o dia
clareou”.
Sala de Aula, 1989.